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  • O que é o Estado de Israel e por que deve ser destruído?

    O que é o Estado de Israel e por que deve ser destruído?

    A lenda sionista conta que a criação de Israel foi como mais uma nação entre as que conseguiram sua independência política no pós-Segunda Guerra Mundial, com rebeliões ou guerras de libertação nacional contra seus colonizadores imperialistas. Índia, Indonésia, Argélia, Vietnã são alguns dos exemplos mais marcantes desse processo.

    Por: José Welmowicki e Alejandro Iturbe

    Em primeiro lugar, a implantação de Israel difere totalmente destes exemplos, pois ele é um enclave instalado na Palestina para defender o imperialismo em terras estratégicas e com base na transplantação de uma população externa à região, os judeus. Apoiada na perseguição antissemita, uma imigração, em especial da Europa oriental, é estruturada pela organização mundial sionista, financiada por milionários como Rothschild e estimulada por metrópoles como a Inglaterra, para garantir a fidelidade desses novos ocupantes a seus patrocinadores imperialistas. A comparação correta é com os colonos ocidentais implantados nos séculos XIX e XX, nas colônias, a exemplo dos ingleses na Rodésia (hoje Zimbábue) e nas Malvinas ou dos franceses na Argélia, africâneres no sul da África etc.

    Não por acaso, as potências imperialistas os promoveram, e os líderes de todas essas empresas colonizadoras, como Cecil Rhodes, respeitavam-se e tiveram relações políticas. Não são uma nacionalidade local que é oprimida pelos impérios, mas uma população estrangeira que se instala nas terras dos nativos e exerce um papel opressor e a serviço de seu imperialismo nessa área. Como são transplantes de uma minoria colonizadora, para manter-se, tem um caráter racista e militarista, assim como eram o governo branco da Rodésia, os colonos franceses na Argélia e a África do Sul do apartheid.

    O Estado de Israel serviu para as grandes potências imperialistas disporem de um cão de guarda numa região estratégica, o Oriente Médio. O líder sionista Chaim Weizmann, depois presidente de Israel, chegou a garantir ao imperialismo inglês no fim da Primeira Guerra Mundial: “uma Palestina judaica seria uma salvaguarda para a Inglaterra, em particular no que diz respeito ao canal de Suez”. Apoiado nessa população de colonos que se deslocaram para a Palestina atraídos pela pregação sionista, Israel sempre se comportou de acordo com esse projeto e a essa finalidade.

    Um Estado racista

    Israel, desde sua fundação, constitui-se como Estado racista, tanto no plano ideológico quanto no legislativo. Israel é oficialmente um Estado judeu, ou seja, não de qualquer habitante que ali resida, mas somente daqueles que se consideram da fé ou de descendência judaica. Para ficar mais inequívoco este caráter, 90% das terras se reservam exclusivamente para os judeus via Fundo Nacional Judaico, que, por estatutos, não pode nem vender, nem arrendar, nem sequer permitir que essa terra seja trabalhada por um “não judeu”. Mais ainda, proíbe-se aos palestinos qualquer compra ou mesmo arrendamento das terras anexadas pelo Estado desde 1948.

    Ao mesmo tempo, os judeus do mundo inteiro podem legalmente emigrar e obter, com a nacionalidade israelense, um sem número de privilégios sobre os nativos não judeus. Desde sua fundação, existe um sistema de discriminação racial que domina absolutamente todos os destinos das vidas palestinas; o que se diria hoje de um país que tivesse como política oficial a expropriação de terras de judeus ou que simplesmente proibisse que um cidadão de seu país pudesse assentar-se nele se se casar com uma mulher judia? Obviamente se diria tratar-se de um flagrante caso de discriminação, de antissemitismo e seguramente seria comparado com o nazismo ou com o apartheid sul-africano. No entanto, isso em Israel é legal por meio de uma série de instituições e leis que restringem somente os cidadãos não judeus de Israel.

    Dentre essas leis, destacam-se algumas. A Lei de Nacionalidade estabelece nítidas diferenças na obtenção da cidadania para judeus e não judeus. Pela Lei de Cidadania, nenhum cidadão israelense pode casar-se com um residente dos territórios ocupados da Palestina; em caso de se realizar a união, os direitos de cidadania em Israel se perdem, e a família, se não for separada, deve emigrar. Pela Lei de Retorno, qualquer judeu do mundo pode ser cidadão israelense. No caso dos cidadãos palestinos do Estado de Israel que têm familiares no estrangeiro, estes não podem obter o mesmo benefício somente pelo fato de não serem judeus. A Lei do Ausente permite a expropriação de terras que não tenham sido trabalhadas durante um tempo. Paradoxalmente, nunca foi expropriada a terra de um judeu, e a maioria delas foram expropriadas de refugiados palestinos no exílio, assim como de palestinos cidadãos de Israel e todo palestino que, residindo na Margem Ocidental, tenha terras na área ampliada de Jerusalém.

    Estas leis – apenas uma parte do total utilizado exclusivamente contra a população árabe em Israel – não só tem um elemento econômico importante (pela perda de numerosas extensões de terras), mas principalmente possuem um componente social: a divisão de famílias, forçando-as a emigrar. Começou a ser denunciado o fato de impedir até mesmo a realização de casamentos entre pessoas não judias que habitem áreas distintas dos territórios ocupados ou até mesmo a reunificação de famílias, marido e mulher, pais e filhos:

    Em 2000, similarmente eles “reavivaram” regras que foram tomadas com respeito aos palestinos cujos cônjuges eram cidadãos de países árabes, ou seja, não ocidentais. Eles não tiveram permissão para retornar a suas casas. Entre 1994 e 2000, durante os anos de Oslo, foram dadas instruções para atrasar o processo de “unificação familiar”, pelo qual dezenas de milhares de famílias nos territórios ocupados estão esperando, a um mínimo. Estas famílias não estão morando em Haifa ou Ashkelon, mas na Margem Ocidental e na Faixa de Gaza.

    Os postos de controle “só para palestinos”, com as esperas propositais e irritantes nas suas entradas impostas pelo exército de ocupação, contrastando com as modernas e livres estradas “só para judeus”, são outro elemento de exasperação para fazer com que os palestinos desistam de ali ficar, mas ao mesmo tempo de revolta profunda.

    A construção do Muro ao largo e dentro dos limites municipais de Jerusalém impedirá definitivamente a volta dos palestinos expulsos de Jerusalém pelo confisco de suas terras, a demolição de suas casas ou pressões de grupos de colonos extremistas. Perderão seus direitos de residência permanente em Jerusalém segundo a política do “centro de vida” e nunca mais poderão entrar na cidade sem permissões especiais. As propriedades que tiverem abandonado em Jerusalém podem ser desapropriadas segundo a lei israelense de Proprietários Ausentes.

    Uma sociedade cada vez mais violenta e militarizada

    Um Estado como o israelense necessita exercer a violência contra a população dominada de forma permanente. Para manter seu caráter colonial e racista, ele não pode tolerar resistência interna nem desafios em suas fronteiras. Tem que ser expansionista e reprimir qualquer mínima contestação à sua natureza.

    Desde sua fundação, a fim de impor a ferro e fogo sua natureza racista, Israel praticou uma permanente limpeza étnica dos palestinos arrancando-os de suas terras ancestrais. Por isso, sempre teve como política consciente agredir os vizinhos árabes, tanto para arrancar terra e fontes de água quanto para impor a vontade imperialista na região, impedindo o desenvolvimento de qualquer nacionalismo que o ameaçasse, como fizeram com Nasser, e perseguindo de modo implacável os lutadores palestinos.

    Dos mais de dez mil presos políticos que apodrecem nos cárceres sionistas, centenas são menores. A tortura praticada sob autorização da justiça e os “assassinatos seletivos” nos territórios são a rotina que este monstro racista tem a apresentar como expressão de sua essência nazista. Isso porque, quando um Estado persegue um povo inteiro com objetivos de eliminar sua identidade, de torná-lo escravo ou expulsá-lo, não há outro nome a dar ao regime desse Estado.

    Para defender esse caráter do Estado, a população israelense vive sempre em pé de guerra. A população foi educada a estar sempre a serviço do Exército, pois só a força das armas pode garantir uma situação como essa. Por isso, as Forças Armadas são sua instituição mais importante. E o papel desse Exército é impor aos palestinos e povos vizinhos a submissão, o saque de suas terras, com o uso extremo da violência.

    Essas exigências permanentes em nome da “segurança de Israel” criam uma realidade de permanente chamado às armas. Todos os homens e mulheres servem respectivamente três e dois anos ao completar dezoito anos e são reservistas por quase toda a vida, fazendo treinamentos anuais de um mês. Mesmo assim, não conseguem a tão ansiada “segurança”. Até a primeira derrota, em 2000, ainda eram anestesiados pelo mito do exército invencível.

    A violência em Gaza ou na Cisjordânia não é noticiada em Israel. Afinal, os palestinos não são considerados seres humanos; serem mortos ou torturados pelas Forças Armadas, para o establishment, era uma decorrência do “direito de se defender”. Antes a questão nem entrava na pauta dos jornais israelenses, aparecia como um problema de polícia exclusivo dos territórios. Era preciso apenas impedir os atentados suicidas com mais repressão ainda e isolá-los totalmente, daí o projeto do “Muro da Vergonha”. O resto, o Tsahal (Exército) garantiria.

    A situação econômica é desastrosa. Israel só sobrevive graças ao sustento estadunidense. Sua economia gira totalmente em torno da guerra em detrimento de todos os demais setores. O que se vê é uma cultura militarista e sanguinária. Os mercenários israelenses são conhecidos no mundo inteiro, recrutados em guerras coloniais ou por ditaduras, caso semelhante aos mercenários sul-africanos.

    As divisões e desigualdades entre diferentes grupos da população e setores de imigrantes judaicos são patentes. Os judeus orientais ou sefaradis recebem melhor trato que os árabes israelenses, mas são discriminados em relação aos ashkenazis originais da Europa. A imigração de um milhão de russos (judeus ou supostos judeus) originou um clã pouco apreciado pelos outros grupos sociais, por sua fama de aproveitadores e permanentes negociadores de subsídios do Estado. Os partidos que os representam são de extrema direita e estão sempre a exigir suculentos cargos e negociatas para manter seu apoio ao governo de turno.

    Outro setor que cumpre um papel de parasita e é sustentação direta da extrema-direita religiosa e de seus políticos racistas e corruptos são os colonos que vivem nos territórios ocupados em 1967. Como se viu na “desocupação” de Gaza, seus interesses são exigir mais e mais regalias do Estado para ser a ponta de lança da colonização e da expulsão dos palestinos. Geralmente quem cumpre esse papel são os judeus das últimas levas de imigrantes a chegar a Israel, os russos ou orientais, aos quais o Estado sionista destina terras financiadas, subsídios, com a condição de que aceitem viver em bunkers ao lado da população árabe e ser ponta de lança para agredi-los, atacar seus olivais, fazer com que saiam das poucas terras que lhes restam.

    Por fim, nos últimos anos, tem havido uma população flutuante de imigrantes temporários ilegais trazidos dos lugares mais distantes e sem conexão com a região, como Filipinas e outros pontos da Ásia. Eles são trazidos para substituir a mão de obra palestina, à medida que o fechamento de fronteiras impede que eles trabalhem nas empresas dentro do território de 1948. Esses duzentos e cinquenta mil semiescravos não judeus são fundamentais em áreas como construção, mas não tem nenhum direito, são párias que deixam ainda mais precários os laços da sociedade em Israel, vivendo à sua margem.

    Apesar das crises e diferenças, os colonos defendem seu Estado

    Evidentemente, há um laço comum que liga todos os cidadãos judeus israelenses: eles sabem que de uma maneira ou de outra vivem do saque a outro povo e do apoio que têm do imperialismo para cumprir o papel de cão de guarda na região. Sabem que os povos árabes e muçulmanos são suas vítimas e temem que essa massa se una e os expulse. Por isso, a única coisa que sustenta hoje a coesão dessa sociedade racista e violenta é o medo do “inimigo comum”, o que é permanentemente lembrado com força pelos dirigentes israelenses de todas as cores. “Ou eles ou nós” é a mentalidade primitiva usada para manter a união, é o único nexo possível de união, ou “nosso direito à existência” enquanto Estado racista, enquanto privilegiados saqueando os nativos e explorando seus escravos.

    Devido a isso, a maioria dos israelenses está a favor da “separação” e da limpeza étnica de palestinos e da destruição do Hezbollah; apoiou a guerra contra o Líbano, inclusive seu caráter genocida. Por isso, a cada guerra, mesmo com as derrotas, os políticos que se fortalecem são os mais fascistas do espectro político sionista.

    Um exército em processo de corrupção

    Mas se é assim, por que a derrota abriu uma profunda crise? Porque mostrou que Israel é “um país vulnerável”. Que o Exército e a superioridade militar não lhes dão uma garantia eterna, e os refugiados de Haifa e do norte do país provaram na carne essa situação. E, depois de anos sem batalhas contra os exércitos árabes, já percebem que não conseguem enfrentar uma guerrilha. Uri Avnery, pacifista israelense da organização Gush Shalom escreveu um artigo em que faz um diagnóstico avassalador:

    “[…] a ocupação está corrompendo nosso Exército […] A última guerra séria de nosso Exército foi a Guerra do Yom Kippur (1973). Depois de vários importantes reveses, obteve uma vitória impressionante. Porém, quando isso ocorreu, a ocupação só tinha seis anos. Agora, trinta e três anos depois, vemos o dano feito pelo câncer chamado ocupação, que já se espalhou a todos os órgãos do corpo militar.

    Generais como Dan Halutz, comandante supremo que se preocupou em lucrar na Bolsa no mesmo dia em que se decidia a invasão, são um sintoma do grau de deterioração da moral e das relações nas antes incensadas cúpulas das Forças Armadas israelenses.

    Avnery refere-se ao fato de que a descomunal desigualdade entre as Forças Armadas sionistas e os resistentes palestinos levou os oficiais e soldados israelenses a se acostumarem durante vários anos a atacar seus alvos sem ter de se preocupar com a resposta, como os pilotos da força aérea que bombardearam e assassinaram à vontade sem correr riscos. Mas agora eles têm de enfrentar uma verdadeira guerrilha, e aí não têm moral nem treinamento necessários:

    Durante trinta e nove anos, foram obrigados a realizar o trabalho de uma força policial colonial: correr atrás de meninos que atiram pedras e coquetéis molotov, arrastar mulheres que tratam de impedir que prendessem seus filhos, capturar pessoas que dormem em suas casas.

    O problema é que isso vale não somente para os que perseguem palestinos nos territórios ocupados, é a característica intrínseca de um Estado policial colonial. E, para um enclave, ter um problema dessa gravidade em suas Forças Armadas é aterrador, gera uma insegurança em todos os níveis da sociedade. À medida que a realidade vai se mostrando cada vez mais perigosa como tendência, muitos israelenses se cansam deste ambiente, fato que se traduz num número não desprezível de fugas. Eesconde-se essas cifras cuidadosamente, mas já são um fato: um número considerável de israelenses, muitos deles da elite intelectual e profissional, busca uma solução individual para sair do inferno da guerra permanente migrando. Esses migrantes saem com discrição, alegando ir estudar ou trabalhar no estrangeiro (principalmente Estados Unidos e Europa), mas muitos ficam fora e só visitam o país brevemente para ver as famílias.

    Na propaganda sionista, nem se menciona esse fato; só se mostram os novos imigrantes judeus que chegam para se fixar em Israel, chegando ao aeroporto mesmo durante a guerra, tentando demonstrar uma ardente fé sionista. Outra cifra que vai aumentando é a deserção não explícita, saída de jovens em idade militar, que tratam de evitar as frentes e o serviço em territórios palestinos ou libaneses.

    O povo israelense e seus operários podem se voltar contra o sionismo?

    As crises em Israel e em especial no Exército são muito importantes porque debilitam o Estado, abrem brechas para que a resistência possa golpear e preparam sua derrota. Contudo, não pensemos que se trata de um país normal, inclusive se o compararmos com um país imperialista. Aqui a população é formada por colonos que dependem da manutenção do Estado racista para manter seu nível de vida e sua proteção contra as reivindicações dos povos espoliados. Vejamos o que conta uma crônica de uma militante espanhola que passou várias semanas com os palestinos e depois em Israel e nas colônias sionistas da Cisjordânia:

    “[…] o sentimento de prepotência e superioridade dos israelenses e sua concepção dos palestinos e árabes em geral como seres inferiores, incivilizados, violentos e aos quais temem de uma forma totalmente irracional. Este sentimento se aguça durante o serviço militar e pode ser percebido com toda sua crueza em cada um dos checkpoints que se precisa atravessar. É habitual ver como os soldados tratam os palestinos como animais.

    Ao visitar uma colônia na Cisjordânia, ela relata:

    O que se vê e se sente quando se passeia por ali é que são lugares sem alma. São lugares tão artificiais, tão alheios ao entorno que os rodeia, que indubitavelmente a maneira mais acertada de qualificá-los é de “câncer”. Câncer, como tecido que cresce totalmente diferente do tecido sobre o qual se localiza e que, além disso, é daninho e pode ser letal. Outra coincidência entre as colônias e o câncer é seu tratamento. Seu tratamento não pode ser outro que a destruição desse novo, alheio e daninho tecido, sua destruição ou sua extirpação radical. E não há outra saída.

    A chantagem do antissemitismo

    Desde que Israel surgiu, seus dirigentes e o sionismo utilizaram a chantagem do Holocausto nazista para impor sua política. Frente ao massacre nazista, a comoção mundial foi utilizada pelo sionismo para vender a ideia de que a única saída para a perseguição era a criação de um Estado judeu na Palestina. Esse Estado seria um refúgio e a única garantia de paz e segurança para todos os judeus do mundo. Essa gigantesca falácia agora se mostra em toda sua crua realidade. Ao se basear na espoliação de outro povo – o palestino –, ao se converter neste monstro colonial, racista e opressor, transformou-se hoje na “maior fábrica de vírus do antissemitismo” segundo a expressão de Uri Avnery.

    No entanto, os sionistas não desistiram de usar o fantasma do antissemitismo, agora para impedir a divulgação e tirar a atenção de sua crueldade com os palestinos ou pelo menos inibir as críticas e incitar mais judeus a se instalarem em Israel “para defender seu único refúgio”. Mas a chantagem do antissemitismo, esse terrorismo intelectual e moral, essas constantes mentiras fomentadas pelos políticos imperialistas e pela mídia servem para tentar calar os críticos. A manipulação permanente, pelos sionistas, quanto ao genocídio dos judeus também acaba por se desgastar.

    O estudo do nazismo e do ascenso do fascismo mostraria que ele foi tolerado e estimulado pelos regimes “democráticos” dos países imperialistas, pois esperavam que eles pudessem reprimir seus movimentos operários e invadir a urss. E que o sionismo da época foi cúmplice e nada fez para salvar os judeus da Europa ocidental das câmaras de gás.

    Agora, em nome de evitar o antissemitismo, querem que se avalizem os métodos genocidas de Israel, se calem perante os crimes de Israel e sobre o local onde está o verdadeiro fascismo de hoje.

    A polêmica sobre a natureza e a solução para a Palestina

    Podemos dizer que é cada vez maior o número dos que se horrorizam com a ação genocida de Israel, repudiam os assassinatos e buscam uma saída para essa situação permanente de guerra na região. Entre eles, há três posições sobre qual deve ser a saída.

    A mais difundida era a solução dos “dois Estados”, um judeu e outro palestino, no mesmo sentido da proposta da onu de 1948. Desde os acordos de Oslo, havia uma pressão muito forte para que os palestinos aceitassem essa solução, e a traição da OLP, sob a direção de Arafat, permitiu a implantação deste “engendro”, a ANP, que legitima Israel e se coloca a tarefa impossível de articular um “Estado” de bantustões totalmente dominados nos planos econômico e militar pelo opressor racista. Como bem classificou Edward Said na época, algo como o governo colaboracionista de Vichy sob a dominação nazista na França. Essa alternativa seria a coexistência lado a lado de um Estado racista e outro das populações excluídas, ou seja, do câncer ao lado do tecido vivo.

    Porém, depois de quase quinze anos de Oslo, alguns de seus partidários na esquerda começaram a ver que a proposta é cada vez mais inviável, por conta da própria ação de Israel, que cada vez se apropria de mais terras e expulsa mais palestinos. O “Muro da Vergonha”, o roubo de mais da metade das terras da Cisjordânia, das fontes de água etc. inviabilizaram até mesmo o miniestado destinado aos palestinos em Oslo. O enclave sionista não aceita se retirar de territórios ocupados em 1967 nem dar nenhuma autonomia real aos palestinos, muito menos anexar os territórios dando direitos aos palestinos, pois temem o “perigo demográfico” de anexar três milhões de “não judeus”. Não se pode pôr um fim à política de apartheid imposta na Palestina por uma sucessão de leis e reformas pressionadas pela revolta palestina, algo como o que se passou no fim do apartheid na África do Sul.

    Voltamos a ter a grande questão colocada na ordem do dia: é necessário destruir o Estado de Israel e qualquer outra solução só fará perpetuar a opressão e a expansão do câncer. E essa destruição só pode ser feita pela luta política e militar unificada, não somente das massas palestinas, mas também das massas árabes e muçulmanas. Nessa luta, é positivo cada golpe infligido ao Estado e seu Exército e a aparição de uma insegurança que leva cada vez mais gente a pôr em dúvida sua estada lá. Só depois de anos de rebelião, ações guerrilheiras e uma campanha mundial a favor da independência da Argélia grupos fascistas como a OAS foram derrotadas, os colonos da França foram obrigados pela insurreição argelina a abandonar seus enclaves, e a Argélia pôde comemorar sua independência.

    Aqui entra outro problema: em Israel por sua natureza de Estado policial, todas as estruturas são parte do sistema militar, por isso todos os judeus lá são soldados na ativa ou na reserva até os cinquenta anos de idade. Um kibutz é uma fortaleza armada dos colonos; uma cidade israelense, o mesmo. O quartel-general está em Tel Aviv. Assim, qualquer estrutura do Estado é alvo necessário da guerra de libertação nacional. Os foguetes que caíram sobre as cidades do norte são uma arma legítima da resistência e, ao abater o moral dos colonos, ajudam o objetivo de destruir o Estado genocida. Ademais, esse foi o efeito dos que atingiram Haifa ou outras cidades. Nada mais injusto que o “meio justo” da Anistia Internacional, que condena os dois lados por igual, por “crimes de guerra”. Essa destruição do Estado de Israel permitiria a recuperação do território histórico da Palestina e a construção de uma Palestina laica, democrática e não racista, antiga reivindicação da OLP dos anos 1970. Nessa Palestina, sem muros nem campos de concentração, os milhões de refugiados poderiam retornar e todos os judeus que quisessem viver em paz poderiam permanecer da mesma forma como durante muitos séculos viveram no mundo árabe.

    Publicada em outubro de 2006 na revista Marxismo Vivo N. 14, e no E-book O Oriente Médio na perspectiva marxista, Ed. Sundermann.

  • A decadência do antigo Secretariado Unificado a partir de sua visão sobre os processos do Leste

    A decadência do antigo Secretariado Unificado a partir de sua visão sobre os processos do Leste

    O morenismo 1 surgiu da luta frontal contra as revisões programáticas do pablismo 2 na década de 1950 e, em seguida, na luta contra a corrente majoritária do antigo Secretariado Unificado (SU), liderada por Ernest Mandel. 3 Livros como O Partido e a revolução e A Ditadura revolucionária do proletariado, ambos de Nahuel Moreno, são expressões dessas polêmicas.

    Por: José Welmowicki

    Contudo, após a morte de Moreno, nossa corrente acompanhou a evolução teórica e política do ex-SU apenas superficialmente. Isso ocorreu apesar de o próprio Moreno ter consolidado a Liga Internacional dos Trabalhadores – Quarta Internacional (LIT-QI) contra a corrente revisionista e liquidacionista organizada, então, no SU, que Moreno caracterizava como “o centro do revisionismo4 no seio do trotskismo.

    Há muitos anos, o ex-SU deu o salto de uma organização revisionista para o reformismo puro e simples: removeu explicitamente de seu programa a estratégia da ditadura do proletariado; abandonou a concepção de centralidade da classe operária no processo revolucionário; 5 seus dirigentes estiveram entre os principais ideólogos e apoiadores dos partidos amplos e anticapitalistas, principalmente na Europa; dissolveram sua seção mais importante, a Liga Comunista Revolucionária francesa, para fundar o Novo Partido Anticapitalista (NPA) com um programa reformista; não só apoiaram distintos governos burgueses que chamavam de progressistas, como o de Chávez, 6 promovendo a ideologia do “socialismo do século XXI”, como participaram diretamente de governos burgueses de colaboração de classes como o de Lula, no Brasil.

    Em nossa opinião, o SU, hoje Comitê Internacional (CI), é a corrente internacional com origem no trotskismo que ainda mantém alguma influência, e reflete de maneira mais nítida – teórica e politicamente – os efeitos do que chamamos de “vendaval oportunista”. Não é por acaso que seja atualmente um polo de atração para setores de diferentes origens, como o Movimento Esquerda Socialista (MES) brasileiro, o MST argentino, ou o Socialist Workers Party (SWP) britânico. Embora funcionem como uma federação frouxa de partidos e movimentos e, apesar de terem perdido força nas últimas décadas (como consequência de suas mudanças políticas que se refletem no declínio do NPA francês), suas elaborações têm alcance internacional e servem para justificar teoricamente a capitulação da esquerda à democracia burguesa e ao reformismo.

    Por essa razão, é importante retomar um estudo mais profundo sobre o conteúdo da elaboração do ex-SU no marco de nossa reelaboração programática. Demos um passo em relação à questão de seu programa e da ditadura do proletariado, sua concepção de Estado, a estratégia dos partidos anticapitalistas e sua visão sobre a Europa e o imperialismo. Porém, estamos atrasados no estudo rigoroso das premissas teóricas e das transformações de fundo em que se apoiaram para chegar à sua atual visão de mundo.

    Do revisionismo ao reformismo

    Nossa corrente sempre definiu o SU de Mandel como uma correte revisionista e liquidacionista. Ao caracterizá-los como revisionistas, dizíamos que seus desvios, zigue-zagues e capitulações não eram o resultado deste ou daquele erro político circunstancial. Pelo contrário, deviam-se ao fato de que o SU cristalizara-se como uma corrente que negava os pilares fundamentais do marxismo e do trotskismo.

    As Teses de Fundação da LIT-QI definem claramente as características do que chamamos de revisionismo:

    No decorrer desta longa marcha, todos os principais acontecimentos da luta de classes (principalmente cada grande vitória revolucionária de dimensões globais) motivaram, em algum setor de nosso movimento, uma tendência à adaptação à direção burocrática ou nacionalista dessas vitórias.

    A luta pela construção de uma direção revolucionária internacional implica a luta pela destruição de todas as direções burocráticas ou nacionalistas que concorrem conosco no seio do movimento de massas. O processo de construção de uma direção revolucionária significa, ao mesmo tempo, uma “guerra implacável” (como diz com razão o Programa de Transição) contra todas as outras correntes burocráticas e/ou pequeno-burguesas do movimento de massas.7

    Nesse sentido, as teses definem qual é a característica comum de todas as diferentes tendências revisionistas: “o fato de que propõem, não a guerra implacável, mas algum tipo de bloco com alguma tendência burocrática e/ou nacionalista, porque esta supostamente desempenha um papel progressista e até mesmo revolucionário”. 8

    A consequência não foi outra senão a liquidação do partido revolucionário e da IV Internacional. O revisionismo havia sido “o principal obstáculo subjetivo na longa marcha rumo à construção de uma direção revolucionária internacional”. 9

    Desde a década de 1950, Pablo e Mandel, impactados pelo fortalecimento relativo do stalinismo no segundo pós-guerra e pelo surgimento dos primeiros estados operários deformados, imprimiram um giro à IV Internacional, a partir da direção do então Secretariado Internacional (SI), orientando todos os seus partidos a realizarem o “entrismo sui generis” nos Partidos Comunistas ou em movimentos nacionalistas burgueses, porque, segundo eles, o stalinismo seria obrigado a dirigir revoluções no marco de uma III Guerra Mundial iminente. Isso levou à crise e inclusive à dissolução de quase todos os partidos que seguiram essa orientação. O SU como tal nasceu em 1963, em torno à defesa da revolução cubana, e Mandel encabeçou sua ala majoritária. Essa ala não fez o balanço dos graves erros do período anterior e continuou com a mesma linha impressionista, capitulando a qualquer fenômeno dito progressista que aparecesse e impactasse a vanguarda. Foi então a vez de capitular à direção castrista 10 e aos movimentos guerrilheiros, novamente com resultados desastrosos para o trotskismo internacional. O mesmo aconteceu diante do Movimento das Forças Armadas (MFA) de Portugal e, em seguida, com o chamado eurocomunismo. Na Nicarágua, o SU apoiou o governo de unidade nacional composto pelos sandinistas 11 e por Violeta Chamorro, 12 defendendo-o como um “governo operário e camponês”.

    A trajetória do revisionismo ao reformismo foi concluída a partir dos processos do Leste Europeu, aos quais caracterizam como uma profunda derrota do movimento de massas, que abriu uma crise no projeto socialista. Essa premissa e as conclusões dela derivadas levaram o SU a uma adaptação completa aos novos aparatos eleitorais surgidos da crise dos PCs e da social-democracia clássica, como o SYRIZA (Grécia), o Podemos (Espanha), etc. A tese do ex-SU é a de que os limites dessas novas direções obedecem às características de uma nova época, marcada pelo retrocesso da consciência das massas, que, por sua vez, resultaria da suposta derrota histórica no Leste Europeu. A partir daí, concluíram que não haveria outra saída a não ser apoiar ou ser parte dessas organizações.

    “Uma mudança de época”

    Os processos do leste significaram, para a grande maioria da esquerda, o início ou o agravamento de sua bancarrota teórica, programática e política. Influenciada pelo stalinismo e suas variantes – para o qual, como aparato, o fim da URSS significou, evidentemente, uma derrota histórica – em diferentes graus e com diferentes tons, a quase totalidade da esquerda chorou o suposto “fim do socialismo real”, a falência do “bloco socialista”, etc. O caso do ex-SU não foi diferente. Pelo contrário, o ex-SU foi a vanguarda desse processo.

    Para eles, a queda do Muro de Berlim produziu nada menos do que “uma mudança de época”. Daniel Bensaïd, principal teórico dessa corrente depois de Mandel, intitula, dessa maneira, um relatório apresentado no XIV Congresso do SU, em julho de 1995. Nesse texto, Bensaïd define o caráter das transformações decorrentes do fim da URSS como uma “grande transformação mundial”, especificamente, como uma “mudança de época”. Note-se que Bensaïd não fala de período, ou etapa, mas de época. Concretamente, para o ex-SU, estava encerrada a época histórica definida por Lenin como de “guerras, crises e revoluções”, aberta com a I Guerra Mundial e o Outubro russo – que o marxismo entendia como uma época revolucionária, a época imperialista –, dando lugar a outra diferente: “não estamos mais no período político de 1968, não saímos ainda da onda longa depressiva e estamos no final de uma época, aberta pela Primeira Guerra Mundial e pela Revolução Russa”. 13

    A nova época não só colocava tudo em questão, como, para Bensaïd, implicava um retrocesso para o movimento operário de quase um século ao identificar o ponto de partida dos marxistas numa coordenada anterior a 1914:

    “[…] o laboratório que se abre é de uma amplitude comparável à do início do século, onde a cultura teórica e política do movimento operário foi forjada: análise do debate sobre o imperialismo, sobre a questão nacional, organização política, social, parlamentar.14

    Esta nova época seria, essencialmente, defensiva, pois, de acordo com Bensaïd, inaugurava-se com uma profunda derrota do movimento operário: o “desmantelamento da União Soviética sem culminar numa revolução política”. 15 Assim, Bensaïd estabeleceu como características de toda uma época “o enfraquecimento social dos trabalhadores” e a “crise do projeto socialista”. 16

    Bensaïd atribuía essas “relações de força mundiais” desfavoráveis não a fatores objetivos, mas a elementos subjetivos, como o retrocesso ideológico do movimento operário, devido aos “profundos efeitos da crise do socialismo real”. 17 Destacamos este argumento desse informe para não haver confusão: Bensaïd não está afirmando que teria surgido um período de desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo e que, portanto, estaria prevendo a possibilidade de conquistar reformas que trouxessem melhorias ao nível vida das massas (como se fosse o período da livre concorrência anterior ao advento da época imperialista). Não é por isso que ele opina que estaríamos numa nova época. Ele acredita que ocorreu uma mudança reacionária da época histórica devido ao retrocesso da consciência e à “crise do movimento operário”, ou seja, devido a elementos subjetivos.

    Bensaïd diz:

    As mudanças nas relações políticas mundiais após a queda do Muro de Berlim, o desmantelamento da União Soviética e a Guerra do Golfo deram o golpe final, causando uma crise aberta, não conjuntural, nas formas do anti-imperialismo radical da fase precedente. […] Neste momento, a tendência dominante em escala internacional é o enfraquecimento do movimento social (começando pelo sindical). […] A esquerda revolucionária está hoje mais pulverizada e enfraquecida que há cinco anos […] Para a reconstrução de um projeto revolucionário e de uma Internacional, partimos de condições significativamente deterioradas.18 

    Em nenhum momento destaca não só a importância, mas o próprio fato da destruição do aparato contrarrevolucionário mundial do stalinismo pelas mãos das massas soviéticas. Ou seja, o ex-SU respondeu ao problema crucial de saber quem, quando e como o capitalismo foi restaurado fazendo coro com as viúvas do stalinismo: culpando os limites das massas trabalhadoras e não a burocracia termidoriana e totalitária do Kremlin.

    Para nós, a restauração do capitalismo foi obra daquela burocracia, que, para garantir a continuidade de seus enormes privilégios, decidiu, em completo acordo com o imperialismo, transformar-se em proprietários capitalistas no marco do retorno da economia de mercado e do desmonte dos estados operários. No entanto, alguns anos mais tarde, as massas soviéticas fizeram o stalinismo pagar caro por essa traição e, com a sua mobilização revolucionária, destruíram, um por um, em menos de dois anos, os terríveis regimes totalitários de partido único da URSS e da Europa Oriental. É verdade que a perda dos estados operários significou uma derrota e a perda de uma conquista enorme da classe trabalhadora. A questão, no entanto, é que o processo não parou por aí. As massas soviéticas, embora não tenham conseguido reverter o processo de restauração, liquidaram o maior aparato contrarrevolucionário da história, impondo-lhe uma derrota histórica. Ao destruir o aparato stalinista, os povos soviéticos libertaram forças gigantescas antes aprisionadas pelo stalinismo. Essa não é apenas uma imensa vitória, mas o principal fato da luta de classes mundial após a Revolução Russa.

    A tendência histórica do ex-SU à capitulação aos grandes aparatos e à opinião geral da esquerda, num momento decisivo da história, levou-o a um novo e fatal seguidismo: somou-se ao triste coro de lamentações daqueles que sentem saudades do stalinismo.

    O programa da nova época

    A nova época exigia, nas palavras de Bensaïd, uma “redefinição programática”, “construir um novo programa”. 19 Por si só, isso não é um problema. Qualquer mudança importante na realidade exige uma atualização programática. O problema foram as premissas teóricas das quais Bensaïd partiu para elaborar esse novo programa e o método usado para construí-lo.

    Bensaïd e o ex-SU partiram da hipótese de que a queda da União Soviética significou um “eclipse da razão estratégica”. 20 Tudo estava questionado e, por isso, tinham o caminho livre para deixar para trás qualquer legado trotskista. Assim, abandonaram o método trotskista de elaborar o programa a partir das necessidades objetivas da classe operária para absolutizar o elemento subjetivo: a consciência das massas e, por essa via, subordinar o programa à correlação de forças que, por sua vez, expressaria esse atraso da consciência das massas.

    Coerentes com a caracterização de que a época de crises e revoluções que se abriu em 1914 estava encerrada e com a suposição de que a nova época estaria marcada pelo retrocesso, o problema do poder foi relegado para um futuro incerto, porque as massas não o veem.

    Nesse marco, a conclusão a que chegaram foi a de adaptar o programa a essa nova época, desprovida de possibilidades revolucionárias. Bensaïd chegou a propor em seu texto as novas coordenadas programáticas pós-leste. Sobre a Europa, o centro histórico do SU, o objetivo estratégico, passou a ser a luta por “uma Europa social e solidária”, “uma Europa pacífica e solidária” em oposição à “Europa financeira e não democrática”. 21

    Após descrever o fim da URSS, as novas instituições da globalização, o problema da reestruturação produtiva, Bensaïd propôs uma visão e um programa completamente reformistas, nos moldes do conceito liberal de cidadania universal e da utópica democratização e humanização do capitalismo, ideias que, pouco depois, foram amplamente difundidas em espaços como os Fóruns Sociais Mundiais:

    Pode-se conceber outra forma de cooperação e de crescimento do pla-neta: organismos reguladores internacionais substituindo o BM/FMI/OM-C/G-7; organismos que promovam o comércio internacional entre países de produtividade similar; transferência planejada de riqueza dos países que a acumularam durante séculos em detrimento dos países pobres; novos dispo-sitivos para regular as trocas que permitam projetos de desenvolvimento di-ferenciados, desconexão parcial e controlada do mercado mundial e uma política de preços correta; uma política migratória negociada neste contexto.” 22

    Como parte da ideia de um mundo regulado e negociado, no momento de “reformular os primeiros contornos de uma proposta que conduza a uma contestação de conjunto da ordem estabelecida”, Bensaïd continua enunciando os pontos centrais do que ele chama de “programa de transição”. No entanto, o leitor rapidamente perce- be que o conteúdo de tal programa não passa de um programa mí- nimo socialdemocrata, marcado pela completa ausência de qualquer medida anticapitalista. A citação, embora extensa, é importante por sua clareza:

    a) Cidadania/democracia (política e social): em relação à universalidade dos direitos humanos proclamados, direitos civis e igualdade de direitos (imigrantes, mulheres, jovens), direitos civis e direitos sociais (igualdade ho-mens/mulheres); direitos sociais e serviços públicos;

    b) Contra a ditadura do mercado, suas consequências a curto prazo, sua lógica de desigualdades; direito à vida, a começar pelo direito ao emprego e à garantia de renda mínima; reinvestimento de lucros de produtividade (serviços de educação, saúde, habitação) com a expansão da gratuidade e ingerência no direito de propriedade privada. Direito de cidadãos/cidadãs à propriedade social das grandes empresas cujas opções e decisões tenham um impacto maior sobre suas condições de vida presentes e futuras. Esse direito não implica necessariamente uma nacionalização, mas uma socializa-ção efetiva (direito ao uso autoadministrado, descentralização, planificação);

    c) Solidariedade entre gerações (proteção social, ecologia);

    d) Solidariedade sem fronteiras: desarmamento, dívida, constituição de espaços políticos regionais, internacionalização dos direitos sociais.23

    Bensaïd chega a falar sobre a tarefa de reelaborar o programa de transição. No entanto, evidentemente, a partir do que lemos acima, sua proposta não tem nada a ver com o objetivo estratégico nem com o método usado por Trotsky. Bensaïd afirma estar disposto a encon-trar as novas pontes entre as reivindicações imediatas e a conquista do poder. Entretanto, apressa-se a dizer: “mas essas pontes e passarelas são, por enquanto, muito precárias”. 24 O problema central não é que as pontes sejam precárias, mas que o ex-SU, como Trotsky dizia, não tem “o objetivo de chegar à outra margem”. 25 Isso se demonstra no fato de que, após os processos do leste, abandonaram a concepção marxista de Estado e a estratégia da luta pelo poder operário, a dita-dura do proletariado, nada menos do que o centro do programa mar-xista. Sobre este assunto, dando uma piscadela para teorias como as de Toni Negri ou Holloway, Bensaïd chega inclusive a perguntar:

    “Onde está o poder? Ainda concentrado nos aparatos do Estado, mas também delegado a instituições regionais e internacionais. […] Hoje, a disso-ciação dos poderes políticos e econômicos, a dispersão dos centros de deci-são e dos atributos de soberania (em nível local, nacional, regional, mundial) fazem com que as passarelas projetadas a partir das reivindicações imedia-tas partam em direções diferentes.” 26

    A questão de se saber se os processos do leste foram ou não uma derrota histórica é um debate aceitável entre marxistas. É uma dis-cussão sobre correlação de forças. Para nós, não houve tal derrota histórica. Essa não é, contudo, a discussão. O nó principal é que, mesmo que o ex-SU tivesse razão e houvesse ocorrido tal catástrofe, o seu abandono do programa revolucionário e da construção de partidos leninistas não se justificaria de forma alguma. Seu critério, diante de uma possível derrota ou situação muito desfavo-rável, é oposto, uma vez mais, ao de Lenin e Trotsky. Analisemos dois exemplos disso:

    1. Existe consenso quanto ao fato de que a eclosão da I Guerra Mundial, em 1914, foi uma grande derrota do proletariado europeu e mundial. A II Internacional e os principais partidos socialdemocratas, a direção inquestionável da classe operária, destruíram-se nessa ocasião como orga-nizações marxistas. A classe operária europeia, traída por essa direção, se dividiu e entrou na guerra imperialista, servindo como bucha de canhão para suas burguesias. O “retrocesso” no nível de consciência das massas chegou a tal ponto que os trabalhadores assassinavam-se uns aos outros em favor dos interesses de suas burguesias imperialistas. Não poderia haver perspec-tiva mais sombria. E, contudo, qual foi a atitude e a política de Lenin diante dessa derrota gravíssima? Adaptar o programa ao nível de consciência da classe operária naquele momento? Nada disso. Ele denunciou o colapso da II Internacional e convocou a construção da III Internacional revolucionária. Convocou os operários a transformar a guerra interimperialista em guerra civil contra os seus governos, mesmo que tal proposta não fosse sequer inte-ligível para a maioria dos operários europeus. Se Lenin houvesse raciocinado e atuado como o ex-SU, a partir de uma premissa similar, simplesmente a Revolução de Outubro não teria existido.
    2. O mesmo aconteceu quando o stalinismo completou a contrarrevolução política na ex-URSS, corrompeu a III Internacional e culminou sua traição suprema ao levar ao desastre a revolução alemã em 1933, facilitando a ascensão de Hitler. O que fez Trotsky diante de tamanha derrota da classe operária alemã e internacional, que significou a degeneração da III Internacional e a ascensão do nazismo? A classe operária e o punhado de revolucionários que não se curvaram diante do imenso poder de Stalin atravessavam o pe-ríodo de mais graves derrotas, traições e perseguições. Foi a “meia-noite do século 20”. Leon Trotsky, no entanto, chamou a construção da IV Internacional para manter vivo o programa revolucionário contra a burguesia mundial, o stalinismo e até mesmo contra os céticos de seu próprio movimento. As lições de nossos mestres refutam completamente a lógica usada pelo ex-SU, assimilada hoje pela maior parte da esquerda.

    Programa, direções e consciência

    Para Bensaïd, o programa que as direções do movimento de massas apresentam é uma expressão da consciência das massas:

    É surpreendente constatar que o programa do PT brasileiro foi muito mais moderado do que o programa reformista radical da Unidade Popular chilena de 1970 ou do que alguns programas radicais em alguns países europeus (redução da jornada de trabalho, direito dos imigrantes, suspensão da dívida e desmilitarização) e, muitas vezes, muito mais rebaixado do que os programas reformistas dos anos [19]70, pelo menos em sua forma escrita (nacionalização, elementos de controle e autogestão).27

    De acordo com esta lógica, a traição de partidos como o PT brasileiro seria responsabilidade não de sua direção burocrática, mas de um atraso da consciência do movimento operário. A traição deveria ser atribuída não à natureza dos aparatos contrarrevolucionários, mas sim à “crise do projeto socialista”, uma característica da nova época.

    Assim, o ex-SU acabou abandonando a compreensão trotskista do papel das direções e da crise de direção revolucionária.

    A razão de ser e o conceito central do Programa de Transição resumem-se na premissa de que: “a crise da direção do proletariado, que se transformou na crise da humanidade, só pode ser resolvida pela IV Internacional”. 28 Bensaïd, em seu informe, iguala a “crise de direção revolucionária” com a “crise do movimento operário”. Ou seja, as direções são a expressão da época. Neste caso, seria expressão da derrota do movimento operário e do retrocesso de sua consciência. Não seriam os aparatos contrarrevolucionários que passaram descaradamente para a ordem capitalista, mas sim as massas que estão confusas e atrasadas. Da mesma forma, o programa pró-burguês de partidos como o PT ou a social-democracia europeia não seriam produto de sua natureza contrarrevolucionária, mas um reflexo da nova época histórica.

    Este não foi o critério de Trotsky. Para o fundador da IV Internacional, a crise da direção revolucionária obedecia a fatores objetivos: a existência e força concreta (maior ou menor) dos aparatos contrarrevolucionários e da direção revolucionária. Independentemente do que pensassem os operários, as ações do stalinismo e dos aparatos contrarrevolucionários sempre estavam orientadas para evitar, a qualquer custo, o desenvolvimento da direção revolucionária, valendo-se ora de campanhas ideológicas, do engano e da calúnia, ora da repressão aberta.

    Foi exatamente sobre a relação entre a consciência do movimento operário e a direção revolucionária que Trotsky polemizou contra os defensores do Partido Operário de Unificação Marxista (POUM) espanhol no artigo Classe, partido e direção. Os apologistas do POUM diziam – da mesma forma como os liberais culpavam o povo pelo governo que tinham – que as massas tinham “a direção que merecem”. Algo similar às teses do SU, que esgrimem a imaturidade do proletariado e a suposta correlação de forças desfavorável para justificar o seu programa reformista.

    O mesmo método dialético deve ser utilizado para tratar a questão da direção de uma classe. Como os liberais, nossos sábios admitem tacitamente o  axioma segundo o qual cada classe tem a direção que merece. Na verdade, a direção não é, em absoluto, o “simples reflexo” de uma classe ou o produto de seu próprio poder criativo. Uma direção é formada no curso dos choques entre as diferentes classes ou do atrito entre as diferentes camadas dentro de uma mesma classe. Mas, assim que aparece, a direção, inevitavelmente, eleva-se sobre a classe e, por este fato, arrisca-se a sofrer a pressão e a influência de outras classes.

    O proletariado pode “tolerar” por bastante tempo uma direção que já tenha sofrido uma degeneração interna completa, mas que não tenha tido a chance de demonstrar isso no decorrer de grandes eventos. É necessário um grande choque histórico para revelar de forma aguda a contradição que existe entre a direção e a classe. Os choques históricos mais potentes são as guerras e as revoluções. Por essa razão, a classe trabalhadora é, muitas vezes, pega de surpresa pela guerra e pela revolução. Mas, inclusive quando a antiga direção já revelou sua própria corrupção interna, a classe não pode improvisar imediatamente uma nova direção, especialmente se não herdou do período anterior quadros revolucionários sólidos, capazes de tirar proveito do colapso do velho partido dirigente. A interpretação marxista, isto é, dialética e não escolástica, da relação entre uma classe e sua direção não deixa pedra sobre pedra dos sofismas legalistas de nosso autor.29

    Como se estivesse respondendo de antemão àqueles que, como Bensaïd, atribuem as derrotas e determinam o seu programa a partir do retrocesso geral da consciência ou à mera relação de forças, Trotsky expõe o problema de “como se deu o amadurecimento dos operários russos”:

    A maturidade do proletariado é concebida como um fenômeno puramente estático. No entanto, no decurso de uma revolução, a consciência de classe é o processo mais dinâmico que pode ocorrer, o que determina diretamente o curso da revolução. Era possível, em janeiro de 1917 ou mesmo em março, após a derrubada do czarismo, dizer se o proletariado russo havia “amadurecido” o suficiente para tomar o poder dentro de oito a nove meses? A classe operária era, naquele momento, totalmente heterogênea social e politicamente. Durante os anos de guerra, tinha sido renovada em cerca de 30 ou 40%, a partir das fileiras da pequena burguesia, frequentemente reacionária, à custa dos camponeses atrasados, à custa das mulheres e dos jovens. Em março de 1917, apenas uma insignificante minoria da classe operária seguia o partido bolchevique e, além disso, em seu seio, reinava a discórdia. Uma esmagadora maioria de operários apoiava os mencheviques e os socialistas revolucionários, ou seja, os sociais-patriotas conservadores. A situação do exército e do campesinato era ainda mais desfavorável. Devemos acrescentar, ainda, o baixo nível cultural do país, a falta de experiência política das camadas mais amplas do proletariado, especialmente nas províncias, para não mencionar os camponeses e soldados. Qual foi o trunfo do bolchevismo? No início da revolução, apenas Lenin tinha uma concepção revolucionária clara, elaborada até mesmo nos mínimos detalhes. Os quadros russos do partido estavam espalhados e bastante desorientados. Mas o partido tinha autoridade sobre os operários avançados e Lenin tinha grande autoridade sobre os quadros do partido. Sua concepção política correspondia ao desenvolvimento real da revolução e ele a ajustava a cada novo acontecimento. Esses elementos dos trunfos do bolchevismo fizeram maravilhas em uma situação revolucionária, isto é, nas condições de uma luta de classes encarniçada. O partido alinhou rapidamente sua política para fazê-la corresponder à concepção de Lenin, isto é, ao verdadeiro curso da revolução. Graças a isso, encontrou um forte apoio entre dezenas de milhares de trabalhadores avançados. Em poucos meses, com base no desenvolvimento da revolução, o partido foi capaz de convencer a maioria dos trabalhadores do acerto de suas palavras de ordem.

    «Esta maioria, por sua vez, organizada nos soviets, foi capaz de atrair os operários e camponeses. Como poderíamos resumir este desenvolvimento dinâmico, dialético, usando uma fórmula sobre a “maturidade” ou “imaturidade” do proletariado? Um fator colossal da maturidade do proletariado russo, em fevereiro de 1917, era Lenin. Ele não tinha caído do céu. Encarnava a tradição revolucionária da classe operária. Uma vez que, para que as palavras de ordem de Lenin encontrassem o caminho das massas, era necessário que existissem quadros, por mais fracos que fossem no início, era necessário que estes quadros tivessem confiança em sua direção, uma confiança baseada na experiência passada. Rejeitar estes elementos de seus cálculos é simplesmente ignorar a revolução viva, substituí-la por uma abstração, a “relação de forças”, já que o desenvolvimento das forças não deixa de se modificar rapidamente sob o impacto das mudanças na consciência do proletariado, de modo que as camadas avançadas atraem as mais atrasadas, e a classe adquire confiança em suas próprias forças. O principal elemento, vital, desse processo é o partido, da mesma forma que o elemento principal e vital do partido é a sua direção. O papel e a responsabilidade da direção em uma época revolucionária são de importância colossal.30 

    Os partidos amplos e as consequências do giro pós-Leste

    Para a visão do SU desde 1995, era tamanho o retrocesso da consciência no mundo que não era mais possível manter a construção de partidos leninistas com um programa revolucionário como o centro de sua atividade. Por isso, a partir daí, a proposta foi organizar revolucionários e reformistas honestos no mesmo partido. Esse projeto levou-os a dissolver a antiga Liga Comunista Revolucionária (LCR) francesa, em 2004, e a formar o NPA, um partido eleitoral que opera com base no programa que eles consideram aceitável pelos reformistas honestos.

    A ironia da história é que resolveram fazer isso para melhor dialogar com os trabalhadores na nova época, em 1995. Porém chegaram a essa conclusão justamente no momento em que o trotskismo francês começou a ter êxito no terreno eleitoral: a organização Lutte Ouvrière (Luta Operária) obteve 5,2% na eleição presidencial de 1995, e o trotskismo chegou a 10% nas eleições presidenciais. A própria LCR teve 4,25% em 2002, mostrando como sua análise sobre a consciência estava equivocada. Essa visão de mundo levou-os a um retrocesso real. A LCR, a antiga seção francesa do SU, rebaixou o seu programa e se dissolveu no NPA, procurando se aproximar desse nível de consciência e, agora, está sofrendo uma profunda crise ao ser superada pelos reformistas da Frente de Esquerda. Os militantes do ex-SU na França não são sequer a sombra do que era a antiga LCR no início dos anos 2000.

    Avançaram nessa dinâmica e, hoje, aceitam programas ainda mais rebaixados do que o do NPA. Armados com suas elaborações pós-Leste, transformaram-se em entusiastas e promotores dos partidos neorreformistas, aceitando seus programas de defesa da democracia burguesa radicalizada. É o caso do Podemos (em que também dissolveram o seu partido, a Esquerda Anticapitalista, diante das ameaças de Pablo Iglesias) e do Bloco de Esquerda português (em que também se dissolveram).

    Os militantes do SU já sequer propõem o conceito de anticapitalista para a formação desses partidos. Basta ser antiausteridade. Para eles, esses partidos neorreformistas são a alternativa possível nesta época. A proposta do ex-SU não é o entrismo, mas sim entrar e ser parte permanente desses partidos e de sua direção. Como prova, é revelador ler as declarações de Teresa Rodríguez e Miguel Urbán, dirigentes da Esquerda Anticapitalista do Estado Espanhol, quando proclamam orgulhosos que foram fundadores do Podemos, partido ao qual saúdam por ter canalizado uma “tempestade de entusiasmo pela mudança” e por ser uma “ferramenta de protagonismo popular e cidadão”, bem como “uma ferramenta eleitoralmente mais fluída”. 31

      Notas:

    1. Referente à corrente política fundada pelo argentino Nahuel Moreno, um dos mais importantes dirigentes trotskistas. ↩︎
    2. Referente ao dirigente trotskista do SU Michel Pablo, pseudônimo do grego Michel Raptis. ↩︎
    3. Ernest Mandel (1923-1995): foi um importante dirigente trotskista, economista e político alemão. Passou a maior parte de sua vida e militou na Bélgica. Também era conhecido pelos pseudônimos Ernest Germain, Pierre Gousset, Henri Vallin, Walter entre outros. ↩︎
    4. LIT-CI. Conferencia de fundación. Resoluciones y documentos. São Paulo: Ediciones Marxismo Vivo, 2012, p. 150. ↩︎
    5. Bensaïd afirmou em 2004: “Na realidade, os grandes sujeitos da mudança revolucionária – sobretudo os três Ps maiúsculos: Povo, Proletariado e Partido – foram fantasmas como grandes sujeitos coletivos. […] O problema hoje deveria ser colocado de outro modo: como, a partir de uma multiplicidade de protagonistas que são capazes de se unir por um interesse negativo – de resistência à mercantilização e privatização do mundo – conseguir uma força estratégica de transformação sem recorrer a esta duvidosa metafísica do sujeito […]”. BENSAÏD, Daniel. Entrevista inédita. Disponível em: http://www.vientosur.info/spip.php?article8797 ↩︎
    6. Hugo Chávez (1954-2013), presidente da Venezuela entre 1999 e 2013. ↩︎
    7. LIT-CI. Conferencia de fundación. Resoluciones y documentos. São Paulo: Ediciones Marxismo Vivo, 2012, p. 65. ↩︎
    8. Ibid, p. 65.  ↩︎
    9. Ibid, p. 66. ↩︎
    10. Fidel Castro (1926-2016), líder da revolução cubana, primeiro-ministro e presidente de Cuba entre 1959 e 2008. ↩︎
    11. Refere-se aos seguidores das ideias e políticas de Augusto César Sandino (1895-1934), que dirigiu a revolta contra a presença militar dos Estados Unidos na Nicarágua, iniciada em 1927. ↩︎
    12. Violeta Chamorro (1929-): política nicaraguense que se integrou à Junta de Governo de Reconstrução Nacional, assumindo o controle do país por um breve período após a revolução de 1979. A junta levou a revolução à derrota. ↩︎
    13. BENSAÏD, Daniel. Una nueva época histórica, julho de 1995. Disponível em: http://www.danielbensaid.org/Una-nueva-epoca-historica?lang=fr ↩︎
    14. Ibid. ↩︎
    15. Ibid. ↩︎
    16. Ibid. ↩︎
    17. Ibid. ↩︎
    18. Ibid. ↩︎
    19. Ibid. ↩︎
    20. Ibid. ↩︎
    21. Ibid. ↩︎
    22. Ibid. ↩︎
    23. Ibid. ↩︎
    24. Ibid. ↩︎
    25. TROTSKY, Leon. O Programa de Transição. ↩︎
    26. BENSAÏD, Daniel. Ibid. ↩︎
    27. Ibid. ↩︎
    28. TROTSKY, Leon. O Programa de Transição. ↩︎
    29. TROTSKY, Leon. Classe, partido e direção. ↩︎
    30. Ibid. ↩︎
    31. RODRÍGUEZ, Teresa; URBÁN, Miguel. Dos años de PODEMOS. Disponível em: http://blogs.publico.es/otrasmiradas/5852/dos-años-de-podemos ↩︎

    Publicado em novembro de 2016 na revista Marxismo Vivo N. 8

  • Uma história pouco conhecida: os Estados operários burocráticos do Leste Europeu

    Uma história pouco conhecida: os Estados operários burocráticos do Leste Europeu

    O livro de Jan Talpe, Los Estados obreros del glacis, 1 vem suprir uma lacuna importante. Desde a queda do Muro de Berlim e dos anos 1990, o processo da restauração capitalista é um foco de polêmica, em especial no interior da esquerda e entre aqueles que se reivindicam da tradição antistalinista. De sua interpretação, decorre toda uma visão da realidade de hoje.

    Por: José Welmowicki

    As polêmicas concentraram-se no processo da ex-URSS, mas para tirar todas as lições, é necessário analisar os demais países da Europa Oriental que, logo após a Segunda Guerra Mundial e a derrota do nazi-fascismo, foram ocupados pelo exército soviético e ficaram sob o comando da burocracia stalinista da URSS, que acabou criando novos Estados operários burocráticos deformados.

    Para os stalinistas, é simples. O que aconteceu resume-se a uma derrota do socialismo pela ofensiva esmagadora do capitalismo imperialista, e as massas foram enganadas. Por isso, não defenderam o regime “socialista”, que tinha seus problemas, mas era uma plataforma para o comunismo. Daí viria, segundo eles, a imensa dificuldade do projeto socialista que “ficou sem referências”. Para eles, estamos numa etapa defensiva e é necessário esperar outra etapa ou época em que se retome a capacidade de ofensiva do socialismo, derrotado na ex-URSS e no Leste Europeu.

    A maioria da esquerda que não se reivindica stalinista (incluindo aqueles que se reivindicam trotskistas), embora faça críticas muitas vezes duras aos regimes stalinistas, na prática, colocou-se como a ala esquerda desses regimes do chamado “socialismo real”. Isso porque atribuíram a restauração às debilidades do movimento operário e não à ação contrarrevolucionária da burocracia stalinista. Essa posição provinha de um grave erro teórico: consideravam a burocracia como uma camada de dirigentes que, embora fossem algozes do proletariado e da oposição de esquerda, jamais poderiam liderar a restauração por conta de uma suposta “dupla natureza”. Devido a seus interesses materiais associados, a manutenção das bases econômicas sociais do Estado operário, segundo essa visão, essa casta jamais poderia apoiar a restauração capitalista, nem na URSS, nem nos demais países do glacis. Viam a burocracia como uma barreira contra o capitalismo dominante em escala mundial.

    Essa era uma tese oposta às conclusões de Trotsky sobre a URSS após a contrarrevolução stalinista e a burocratização. Para Trotsky, como está em seu livro A Revolução Traída, de 1936, e no Programa de Transição, caso não houvesse uma revolução política que derrubasse a burocracia, defendendo as bases sociais e econômicas do Estado operário, a restauração era inevitável.

    No entanto, depois do assassinato de Trotsky, muitos dirigentes da jovem direção da IV Internacional do pós-guerra, como seu teórico mais conhecido, Ernest Mandel, caíram no erro de opinar que a burocracia jamais poderia liderar a restauração do capitalismo na URSS ou no Leste Europeu.

    Nesse sentido, ignoravam a própria elaboração de Trotsky, que afirmou com toda a nitidez que a partir da burocratização da URSS, exceto se houvesse uma revolução política que a expulsasse do poder, era inevitável que a burocracia conduzisse o Estado operário à restauração do capitalismo.

    Fatos esquecidos

    O texto de Talpe tem o mérito de estudar com profundidade o que se passou, em particular na região do Leste Europeu. Após a Segunda Guerra Mundial e a vitória das massas e do exército soviético sobre os nazistas e seus aliados, a região esteve sob controle direto das tropas russas e, portanto, da burocracia da URSS. A heroica luta do proletariado russo em Stalingrado – apesar da direção burocrática – durante cinco meses e com o saldo de dois milhões de mortos, levou à vitória nessa batalha decisiva contra o regime de Hitler, que havia sido aliado de Stalin nos primeiros anos do conflito, e permitiu mudar o curso da II Guerra Mundial.

    Essa vitória permitiu à burocracia russa “recuperar o prestígio do Kremlin”, negociar com o imperialismo o reconhecimento de sua influência sobre a região, no marco dos acordos de Yalta e Potsdam, e deixar cair no esquecimento seus acordos com Hitler que levaram à divisão da Polônia entre a URSS e a Alemanha nazista.

    A pesquisa de Jan Talpe ajuda a entender com profundidade como se originou o crescente ódio das massas de toda essa região aos ocupantes russos e aos burocratas locais que seguiam suas ordens, e assim entender as raízes das revoluções políticas que se sucederam, embora derrotadas, começando por Berlim Oriental e, depois, na Hungria, na Tchecoslováquia e na Polônia.

    Em 1939, Stalin havia feito um pacto de não agressão com Hitler e de divisão de áreas de influência (na Polônia, países bálticos, parte da Romênia e outras regiões) entre os dois países, o que incluía a invasão da Polônia pelos exércitos de Hitler, para ocupar a parte ocidental, e de Stalin para ocupar a parte oriental.

    Trotsky viveu esse episódio de invasão da Polônia em setembro de 1939, um pouco antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial e de ser assassinado. Assim, pôde deixar expressa sua posição sobre o que aconteceria sobre uma eventual ocupação da URSS nos territórios conquistados pelo Exército Vermelho e, de forma ampla, sobre as consequências da guerra.

    Trotsky opinava que o exército de Stalin, ao invadir a Polônia e os outros países, apesar de ter um objetivo contrarrevolucionário, expropriaria a burguesia desses países. Seria obrigado a tomar uma série de medidas progressistas, de caráter socialista, que dariam origem a Estados operários, embora burocratizados, assim como era a URSS.

    No entanto, para Trotsky, mesmo que o stalinismo tomasse esse tipo de medidas, que deveriam ser defendidas frente a um possível ataque de Hitler, a invasão do Exército Vermelho a esses países não podia contar com nenhum tipo de apoio dos revolucionários. Nisso, Trotsky era preciso e categórico: “Estivemos e continuamos contra ocupações de novos territórios pelo Kremlin”. 2

    Embora o acordo entre Hitler e Stalin tivesse sido rompido em 1941 por Hitler, quando o exército nazista invadiu o território da URSS, essa posição serviria para entender e dar referência ao que se passou no fim da Segunda Guerra Mundial, quando Stalin estabeleceu os acordos com seus novos aliados imperialistas, Inglaterra e Estados Unidos, para estabelecerem as áreas de influência. Os acordos ficaram conhecidos pelos nomes das cidades onde aconteceram as reuniões, Yalta e Potsdam.

    O glacis, Estados operários burocráticos sob um regime semelhante a colônias

    A partir desses acordos, o Exército Vermelho ocupou grande parte dos países do Leste Europeu e a burguesia foi expropriada nestes Estados. Assim, surgiram os Estados operários burocratizados do Leste Europeu, como previra Trotsky. Do mesmo modo que tinha prognosticado para a URSS sob a burocracia stalinista, aí também se cumpriu o prognóstico de Trotsky de que, se não houvesse a revolução política, a restauração do capitalismo seria inevitável.

    Contudo, além dessa ideia geral, era cada dia mais evidente o caráter contrarrevolucionário das burocracias na gestão diária da economia expropriada, no caso dos países do glacis. Eles estavam submetidos a uma dominação semelhante à pilhagem e à dominação colonial que o imperialismo capitalista exerce nos países dominados, bem como tinham seus governos, as instituições jurídicas repressoras e as polícias locais sob o controle direto do Kremlin.

    Tudo isso se dava no marco dos acordos de Yalta e Potsdam, no qual a URSS de Stalin comprometeu-se e respeitou de forma escrupulosa o acordo para manter o capitalismo na França, na Itália e na Grécia, instando os partidos comunistas locais a entregarem as armas à burguesia e aceitarem o apoio à “unidade nacional” para reconstituir o Estado burguês. No Ocidente, aceitavam a volta da burguesia local ao poder; no Leste, tinham o comando direto dos Estados para impedir que a mobilização das massas saísse do controle, utilizando as tropas russas para disciplinar as massas libertas do nazismo. E o monopólio do comércio exterior desses países era controlado… pela burocracia russa.

    Como escreve Jan Talpe:

    Em uma aliança contrarrevolucionária, o Kremlin e o imperialismo propuseram-se a domar o levante das massas. E a burocracia soviética aproveitou a oportunidade para implementar a pilhagem em grande escala. Para isso, foi capaz de criar um glacis de semicolônias, que descrevemos como “sui generis” porque não havia burguesia no país colonizador. A grande burguesia havia fugido diante do avanço das tropas do Exército Vermelho, abandonando armas e bagagens. Isso permitiu uma pilhagem selvagem no início, levando tudo o que fosse transportável, até mesmo a força de trabalho. Mas uma burguesia local 3 permaneceu e, a longo prazo, o regime teve de ser alinhado com o da URSS por meio da nacionalização da indústria ou, eventualmente, da industrialização do país, com relações de propriedade socialistas e a implementação da coletivização agrária. O controle sobre o que restava da burguesia e da pequena burguesia foi facilitado pelo peso do monopólio da força militar e realizado por plenipotenciários, comandados de Moscou, com as tropas russas. Em geral, Stalin garantiu o controle sobre o aparato de repressão (o Ministério do Interior) e “fundiu” os partidos da social-democracia com o que restava dos partidos comunistas.

    Com o CAME, 4 o Kremlin pôde assegurar um “monopólio do comércio exterior” particular, controlado desde Moscou. E, com o tempo, a pilhagem requereria também a planificação central da economia, em que “central” significava não só planos quinquenais, mas também sua sincronização com os do colonizador.

    Jan Talpe fez uma pesquisa detalhada, país por país da região do glacis, que explica como as massas ficavam numa penúria a cada dia que se passava e voltavam-se contra os governantes dos Estados burocráticos totalitários a serviço da burocracia da URSS. As massas desses Estados obtiveram, num primeiro momento, o benefício da expropriação das burguesias locais, base para os novos Estados operários, mas esse benefício era anulado em seguida pela pilhagem dos recursos que ficaram assim disponíveis.

    As massas nunca deixaram de lutar contra a tirania dos PCs, que asseguravam e impunham essa rapina. Essa foi a base das revoluções políticas e das rebeliões parciais em todo o glacis, de 1948 até a década de 1980. Porém, elas foram esmagadas pela repressão local e, quando as forças de repressão local eram ultrapassadas, como na Hungria de 1956 ou na Tchecoslováquia de 1968, foram sustentadas pela intervenção direta das tropas russas.

    Assim, com a manutenção das burocracias governantes à cabeça desses Estados, verdadeiras satrapias 5 do Kremlin, todos marchavam cada vez mais para a restauração capitalista.

    A burocracia pregava que caminhava para o socialismo enquanto impulsionava medidas que alimentavam a restauração capitalista

    Como Talpe demonstra, o resultado da permanência da burocracia foi o retrocesso cada vez maior da situação da economia e o aumento da penúria dos trabalhadores e da repressão. Assim, as burocracias iam abrindo o caminho para a volta do capitalismo. Ela tratava de cobrir a pilhagem com o nome de “socialismo”, inclusive criando novas “Constituições” que davam uma roupagem “socialista” ao país.

    Como diz Talpe:

    Mas, mesmo nesses casos, para cada Estado era sempre uma questão de “socialismo em seu próprio país”, em um mundo de “coexistência” e “paz” entre “estados”, independentemente de sua cor. E, em última análise, “socialismo” era um termo que cobria a “lealdade ao Kremlin”, e a acusação de “capitalista” era uma denúncia de infidelidade a ele.

    Essa colaboração contrarrevolucionária do Kremlin para controlar o ascenso das massas não anulava a política do imperialismo para recuperar o controle direto sobre a totalidade da economia mundial. A partir da crise mundial dos anos 1970, as possibilidades do Kremlin de defender suas aquisições coloniais foram se reduzindo. O imperialismo passou a competir de forma direta para assumir o papel de colonizador. Assim, encontramos o fenômeno de países como Romênia e Polônia, já no início dos anos 1980, como membros dos organismos imperialistas de dominação econômica, como o FMI, submeterem-se a seu controle e terem dívidas externas escorchantes junto aos bancos ocidentais.

    Como analisa Talpe em seu livro, o chamado “socialismo num só país”, naquele momento estendido a vários “países sós”, abriu o campo para que o imperialismo recuperasse sua hegemonia em todos eles. Quando a burocracia russa passou a abandonar de vez as bases da grande conquista da Revolução de Outubro na URSS, teve de ceder suas semicolônias também, uma após a outra, aos novos senhores. Esses países deixaram de ser Estados operários – sem, por isso, sair do status de semicolônias. Ao contrário, desceram mais um degrau e passaram a ser semicolônias diretas do imperialismo. Sua situação deteriorava-se a cada dia, mostrando que o capitalismo não dá qualquer saída a esses povos.

    Lições para o futuro

    A leitura do livro de Jan Talpe pode ajudar a entender o papel criminoso do stalinismo no Leste Europeu. Mostra como ele foi o responsável pela pilhagem de toda a região e por preparar o retorno do capitalismo, reprimindo de forma selvagem as revoluções que tentaram reverter essa situação, impondo derrotas sangrentas que deixaram o terreno aberto para a ofensiva restauracionista e para a submissão direta ao imperialismo e o desgaste profundo da ideia de socialismo em toda a área.

    Cabe aos revolucionários de hoje estudar essa experiência para se armarem para combater a propaganda imperialista que diz que o “socialismo morreu no Leste”, contestar as propostas dos stalinistas e de seus epígonos e, assim, apresentar uma alternativa oposta pelo vértice ao stalinismo em todas suas variantes, que diga claramente que o stalinismo não tem a nada a ver com o socialismo e com a revolução operária mundial.

    Passados 30 anos da queda do muro de Berlim, o livro de Jan Talpe chega em boa hora para subsidiar essa discussão tão necessária.

    Notas:

    1. Glacis é uma expressão usada no fim da Segunda Guerra para descrever a região entre o antigo território da Alemanha e a URSS que, na visão de Stalin, serviria de zona de proteção para impedir que a Alemanha pudesse atacar militarmente o território soviético. Correspondia aos territórios ocupados pelo Exército Vermelho no fim da guerra e incluía a parte oriental da Alemanha, Polônia, Hungria, Tchecoslováquia etc. ↩︎
    2. TROTSKY, Leon. Em defesa do marxismo. São Paulo: Proposta Editorial, p. 34. ↩︎
    3. Jan Talpe se refere a um curto período em que ainda havia uma burguesia local que, logo em seguida, foi expropriada pela burocracia russa. ↩︎
    4. CAME era a sigla do Conselho de Ajuda Mútua Econômica, cuja abreviação em inglês era Comecon. Era apresentado pela burocracia stalinista como uma organização de cooperação econômica formada a partir da URSS pelos diversos países do “campo socialista”. Seus objetivos declarados eram fomentar as relações comerciais entre os Estados membros, como um contraponto aos organismos econômicos internacionais da economia capitalista, assim como apresentar uma alternativa ao Plano Marshall desenvolvido pelos Estados Unidos para a reorganização da economia europeia após a Segunda Guerra Mundial. Na prática, serviu para impor as decisões da burocracia russa no campo do comércio e do planejamento econômico aos países que dele faziam parte. ↩︎
    5. Satrapias eram as províncias do primeiro Império Persa. Cada satrapia era governada por um sátrapa. As funções deste eram basicamente recolher impostos, reprimir e recrutar homens para o exército. ↩︎

    Publicado em novembro de 2019 na revista Marxismo Vivo N. 14

  • Gaza e eleições confirmam a natureza racista e genocida de Israel

    Gaza e eleições confirmam a natureza racista e genocida de Israel

    Fica cada vez mais difícil negar o verdadeiro caráter do Estado de Israel. Depois do massacre na Faixa de Gaza em dezembro de 2008 e as recentes eleições que deram a vitória às forças mais direitistas, já não resta muita dúvida de que esse é um Estado a serviço do imperialismo no Oriente Médio, construído e assentado sobre a força das armas e do apartheid. Os que advogam um caráter democrático para Israel, ou mesmo um caráter “socialista” e os que usam termos como “lar” e “terra santa” para referir-se a esse Estado, têm a obrigação de explicar os atos cometidos pelos sucessivos governos israelenses.

    Por: José Welmowicki

    O mundo terminou o ano de 2008 vendo pela TV imagens de crianças mutiladas, ruas cobertas de sangue, famílias destruídas, casas e prédios transformados em escombros em Gaza. Em dezembro, durante 22 dias, as forças armadas sionistas, com aviões despejando bombas de alto poder destrutivo e lançando mísseis de artilharia, além do emprego de armas proibidas pelas convenções de Genebra, como as bombas com fósforo branco, arrasaram a Faixa de Gaza. Contaram-se 1285 habitantes mortos. Desses, 111 eram mulheres e 280 crianças. Assassinaram pessoas que apenas andavam pela rua e usaram civis como escudos humanos de suas tropas. Bombardearam ambulâncias, escolas, hospitais, mesquitas, e prédios da ONU. Não são imagens inéditas. Já perdemos a conta de quantas vezes vimos esse filme onde os protagonistas são os soldados israelenses e as vítimas as populações palestinas, quase sempre desarmadas e indefesas. 

    A intenção do governo sionista da época, Olmert/Livni/Barak, foi derrotar a resistência palestina. Mas foi o que menos conseguiram. O que esse novo massacre, agora em Gaza, conseguiu, foi deixar o mundo indignado e estarrecido diante de tamanha brutalidade, selvageria e sangue frio com que Israel comete os seus crimes. Mas a barbárie israelense não foi suficiente para derrotar o povo palestino, que luta por sua terra. Enganam-se aqueles que pensam que esse genocídio foi fruto de uma conjuntura adversa de medo ao terror por parte de um governo específico, mais à direita, como o Kadima, que teria usado o “perigo dos mísseis de Gaza” para demonizar os palestinos. E que, ao perceber a verdadeira realidade, o israelense médio iria reagir e votar em setores mais dispostos à negociação.  Na verdade, havia uma pressão “popular” para ir mais fundo na eliminação do “perigo” representado por Gaza. Tanto que a invasão teve amplo apoio popular em Israel, e a falta de reação aos massacres, aliado ao crescente ódio aos palestinos refletiram-se nas eleições e deixaram claro que existe um acordo geral entre os judeus israelenses, com exceção de poucos indivíduos ou grupos, de livrar-se dos palestinos, expulsando-os ou eliminando-os. A situação interna é tão contrária a qualquer convivência pacífica com seus vizinhos e com os palestinos, que quem se expressa contra a limpeza étnica é ameaçado de punição ou eliminação, o que faz com que alguns deles tenham preferido viver no autoexílio, como o professor Ilan Pappé, autor do livro A limpeza étnica da Palestina. 1

    As eleições como expressão desse sentimento

    Isso ficou expresso nas recentes eleições. Elas representaram um duro golpe à ideologia dos “dois Estados”. 2 Ao invés de alguma força moderada que pudesse salvar as propostas de “paz” e dos dois Estados, o resultado das urnas mostrou a dimensão da adesão da população israelense ao racismo e o desprezo aos palestinos. Os vencedores da eleição são uma variante de correntes de ultradireita, algumas abertamente fascistas e racistas. Tanto que Uri Avneri, veterano pacifista israelense defensor da tese dos dois Estados e fiel à solução pacífica por dentro do sionismo, pergunta se não está na hora de encarar a realidade de uma irrupção do fascismo em Israel:

    O Estado de Israel aproxima-se de uma crise existencial-moral, política, econômica que o converteria em uma nação em perigo? É possível que Lieberman, ou alguém que tome seu lugar, seja uma personalidade demoníaca como Hitler ou Mussolini? Em nossa situação atual, há alguns indícios perigosos. A última guerra mostrou uma decadência maior de nossos padrões morais. O ódio à minoria árabe de Israel aumenta, bem como o ódio ao povo palestino ocupado, que sofre um lento estrangulamento.3 

    Embora Avneri encerre o artigo com otimismo, revela a real situação em Israel ao ser obrigado a colocar-se essa pergunta. A composição atual do governo israelense mostra que sua preocupação é justa. Publicamos abaixo um quadro, baseado no jornal israelense Haaretz (17/2/09):

    Fazem parte da coligação de governo os já descritos Likud (15 ministérios), Israel Beitenu (5), e Trabalhistas (5). Além deles, estão nela: o Shas, partido religioso de extrema-direita, que detém o Ministério do Interior, o Judaísmo Unido da Torá e o Lar Judaico (racistas ainda mais fanáticos que o Likud). Esses partidos têm em comum sua base nos colonos que vivem nos territórios da Cisjordânia, a defesa da expansão contínua dos assentamentos judeus nessa região e a ‘’judaização’’ de Jerusalém.

    Em última instância, o significado dessa eleição é que as ideias de Zev Jabotinsky, fundador do “sionismo revisionista”, estão totalmente em voga. Defensor declarado do fascismo nos anos 20 e 30, Jabotinsky defendia a necessidade de exercer uma estratégia de terror – a tal “muralha de ferro” – para impor a colonização aos palestinos:

    Não cabe pensar em uma reconciliação voluntária entre nós e os árabes, nem agora, nem em um futuro previsível. Todas as pessoas bem-intencionadas, salvo os cegos de nascimento, compreenderam há muito a completa impossibilidade de se chegar a um acordo voluntário com os árabes da Palestina para transformar a Palestina de país árabe em um país de maioria judia. (…) Portanto, a colonização somente pode desenvolver-se sob um escudo que inclua uma muralha de ferro que jamais possa ser penetrada pela população local. Essa é a nossa política árabe, formulá-la de qualquer outro modo seria hipocrisia.4

    Nessas últimas eleições, o eleitorado escolheu um novo parlamento cujos membros em sua ampla maioria são fascistas, como o Likud, cujo dirigente, Aryeh Eldad, propôs que a Jordânia se “transformasse” num Estado palestino e que concedesse a cidadania jordaniana aos palestinos da Cisjordânia. A proposta imporia a soberania israelense em “toda a Palestina do Mandato”, do rio Jordão até o Mediterrâneo, e prepararia o terreno legal e psicológico para a deportação final de cerca de 5,1 milhões de palestinos de sua terra ancestral. Essa era exatamente a proposta discutida nos congressos sionistas antes de 1948 (vide Box). 

    Somando-se as diferentes coalizões, 80% dos eleitos representam a continuidade da proposta de Jabotinsky. O primeiro-ministro Netanyahu é um herdeiro direto de Jabotinsky e dos terroristas do Irgun e da gangue Stern, responsáveis diretos pelo massacre de Deir Yassin em 1948. Ele foi apadrinhado pelos líderes paramilitares Beguin e Shamir, que comandaram os massacres de mulheres e crianças palestinas em 1948 e formaram o partido Herut, que depois se tornou o Likud. Tanto Begin como Shamir foram primeiros-ministros pelo Likud. Netanyahu defende a expansão das colônias judaicas na Cisjordânia e em torno de Jerusalém, iniciada pelos governos Sharon e Olmert, para dividir de vez os territórios palestinos e isolá-los uns dos outros. 

    No importante Ministério de Relações Exteriores está o partido Israel Beitenu (Israel Nossa Casa), dirigido por Avigdor Lieberman, que teve 15% dos votos e chegou a propor o lançamento de bombas nucleares sobre Gaza. Hoje propõe a transferência forçada dos árabes israelenses, os palestinos que vivem no território tomado em 1948 e a perda de qualquer direito aos que não reconhecem o “caráter judaico do Estado de Israel”. 5 O Beitenu descreve-se como “um partido nacional com a meta de seguir o corajoso caminho de Zev Jabotinsky”.

    Para a mídia ocidental, essa direitização seria compensada pela entrada dos trabalhistas no governo. Ainda vistos como de “esquerda” ou “centro-esquerda”, os trabalhistas são os mesmos que comandaram o massacre de Gaza via Ehud Barak, novamente Ministro da Defesa. Vários parlamentares do partido Trabalhista no governo dirigido pelo Likud votaram a favor do envio da proposta de Eldad ao Knesset, citada acima, para discuti-la mais adiante. Após servir para disfarçar a natureza do Estado de Israel, dirigido por ele nos seus primeiros 40 anos, passados 60 anos de sua criação, o sionismo “de esquerda” é uma fraude tão descarada que não tem mais espaço para se postular aos olhos do mundo como alternativa negociadora e “pacifista”. Sua derrota patética e a perda até mesmo do 3º lugar para o Beitenu demonstram que, para o eleitorado israelense, se é necessário defender o caráter racista do Estado, é melhor escolher quem fala claro e quer ir ainda mais fundo na limpeza étnica.

    Apesar de ter sido o partido mais bem votado, o Kadima não pôde formar o  governo por não contar com uma coalizão suficiente. Esse partido foi criado por Sharon, o genocida de Sabra e Chatila, e Ehud Olmert. Sharon também foi membro do Likud e defensor das ide ias de Jabotinsky, Begin e Shamir, além de responsável direto pela unidade 101 do exército, que praticou o massacre de Kybia em 1953. O governo do Kadima, com Olmert e Tzipi Livni à frente, foi o responsável pelo bloqueio genocida de Gaza e pelo recente massacre.

    Os partidos de base judaica que seriam mais “democráticos”, tidos pela imprensa ocidental como de centro-esquerda (Meretz, por exemplo) e que têm um discurso que fala de paz, não têm praticamente eleitores. Os únicos partidos que questionam até certo ponto o status racista têm sua base entre os árabes israelenses, cerca de 20% da população. São eles o Hadash, Balad e Lista Árabe Unida, cuja votação é concentrada nos eleitores árabes. Nesta eleição, esses partidos só foram autorizados a concorrer na última hora, devido a uma sentença da Corte Suprema. Por isso, quase a metade dos eleitores árabes israelenses não votaram. Agora, para demonstrar o caráter da “democracia israelense”, estão sob a ameaça da nova lei, que exige a aceitação do Estado de Israel como de uma “raça”, e a proibição de comemorar a Nakba. 

    Uma crise mais profunda

    Netanyahu introduz uma mudança em relação ao governo de Olmert/Livni: um discurso  direto contra qualquer tipo de Estado ou Autoridade palestina; ao contrário do que os EUA e a União Europeia gostariam, ele afirma abertamente que nem sequer se deve pensar em uma entidade palestina que leve o nome de “estado”. Seriam aceitáveis apenas “áreas econômicas” sem continuidade e estranguladas pela expansão dos assentamentos de colonos, do Muro da Vergonha e das estradas exclusivas a judeus construídas na Cisjordânia. Continua com a política de bloqueio a Gaza, que deve ser condenada a um cerco até que se renda ou seus habitantes saiam do território palestino. Netanyahu tenta diluir o problema para sair do isolamento, apontando suas baterias para o perigo do Irã e de sua política nuclear, como já faziam Olmert e Livni.

    Ao contrário do que poderia parecer à primeira vista, essa posição não é a de um país em processo de fortalecimento. Israel vem sendo derrotado militar e politicamente. Tenta se contrapor a uma possível negociação de Obama com o  Irã, que poderia dar mais peso à negociação e ameaçar sua hegemonia militar absoluta. A preocupação de Obama e dos governos imperialistas da Europa é que tal posição seja fatal para o próprio Israel, que este una os povos árabes cada vez mais contra si até sua situação ficar insustentável.

    Por isso, Obama identificou esse como um dos problemas mais graves para o novo governo dos EUA. Afinal, ele tem que governar os EUA depois da derrota da política mundial de “guerra ao terror”, simbolizada pela débacle de Bush frente à resistência dos povos e frente ao crescimento do repúdio ao imperialismo norte-americano. Por isso, tem que apelar muito mais à retórica dos planos de paz, da solidariedade, falar em um novo “diálogo” entre os povos. Sobretudo no Oriente Médio. O resultado são os choques com o governo israelense, encabeçado por forças que não têm a mesma preocupação tática dos trabalhistas de outrora. Estes faziam toda uma encenação para aparecer como “pombas”, enquanto massacravam os palestinos, expandiam os assentamentos de colonos, torturavam e deixavam apodrecer os lutadores palestinos nas prisões. Obama quer convencer Netanyahu que, frente ao isolamento de Israel, seria melhor voltar à prática tradicional desses governos trabalhistas da década de 90 e mesmo do Kadima: falar em processo de paz e em Estado palestino, enquanto continuam a praticar o roubo das terras palestinas e a limpeza étnica. A posição de Netanyahu, aceitando um Estado palestino desde que não tenha qualquer instituição própria, renuncie a Jerusalém e ao direito de retorno dos refugiados, deixa até mesmo o colaboracionista Mahmoud Abbas balbuciando que a defesa de tal proposta é insustentável.  

    Obama sustenta Israel com uma face mais negociadora

    Qual a lógica dessa mudança tática? A política para o Oriente Médio tem que ser modificada para garantir a supremacia imperialista. Trata-se de conseguir via negociação e chantagens, elogios e ameaças, o que a invasão militar não arrancou.  

    O discurso de Obama na Universidade do Cairo em junho foi a expressão dessa nova cara do imperialismo, preparado habilidosamente para criar esperanças na população árabe e muçulmana, aproveitando-se da nova imagem do presidente recém-empossado. Só que o limite para essa mudança está dado pelo vínculo entre EUA e Israel, que faz com que seu limite máximo seja a retomada da política dos dois estados, que levou aos acordos de Oslo. Tal política levou Arafat a trair a causa palestina e a criar no lado palestino um simulacro de governo completamente servil a Washington e ao sionismo, do qual seu sucessor, Mahmoud Abbas, é a expressão mais ultrajante.

    Como disse Ali Abunimah, da Electronic Intifada, referindo-se ao discurso de Obama no Cairo, é como “Bush em pele de cordeiro”. Sem deixar nenhuma das apostas estratégicas do imperialismo, Obama precisa mostrar um rosto amigável, aproveitando sua origem étnica e as relações familiares que teve com a cultura muçulmana. Por isso, pressionou seus parceiros sionistas para que os trabalhistas encabeçados por Barak fizessem parte do governo com os fascistas do Likud para dar-lhe uma faceta mais “humana”. O convite de Netanyahu, com a pronta aceitação dos trabalhistas, foi patrocinado pelo novo governo dos EUA, ansioso para que os assassinos sionistas apresentem ao mundo uma cara mais palatável para melhor passar a proposta de impor aos árabes o reconhecimento de Israel. 

    Afinal, tanto Hillary Clinton, em visita a Israel, reafirmou o “leal compromisso” dos EUA com a segurança de Israel quanto Obama, dirigindo-se aos muçulmanos, enfatizou seu compromisso de “lealdade” aos sionistas. O novo governo norte-americano continua sustentando a todo custo o regime nazi de apartheid, que detém centenas de ogivas nucleares e um dos exércitos mais fortes do mundo, com a desculpa de que a segurança de sua população civil está ameaçada pelos foguetes caseiros de Gaza. Obama aconselhou os palestinos a agir pacificamente depois de comparar sua condição aos escravos negros. E então se dedicou a condenar os atentados palestinos contra os transportes e a lamentar-se pelas crianças israelenses feridas. Nem uma palavra sobre o massacre dos palestinos por Israel em Gaza. Disse que vai trabalhar com qualquer governo que o povo de Israel escolher, ou seja, mesmo com esses nazistas declarados, que propõem e votam leis racistas e até a expulsão dos palestinos, mas impõe como condições para conversar com o governo eleito pelos palestinos, encabeçado pelo Hamas, o “reconhecimento de Israel”. 

    Aí está o núcleo central da política de Obama para a Palestina: aconselha o povo palestino a desistir da resistência armada, reconhecendo Israel, resignar-se a conviver com o estado racista, o que significa o mesmo que abandonar a luta por seu direito à autodeterminação, como já fizeram a Al Fatah e os que apóiam a Autoridade Nacional Palestina de Abbas. E essa política pode ter impacto: segundo o jornal The Independent, o primeiro-ministro e dirigente do Hamas em Gaza, Ismail Haniyeh, declarou, após se entrevistar com o ex-presidente Jimmy Carter, que aceitaria um Estado palestino baseado em suas fronteiras de 1976 e que o movimento havia “escutado atentamente” Obama no Cairo, cujo discurso reconhecia o apoio do Hamas pelos palestinos, mas também a necessidade de assumir responsabilidades. “Encontramos una nova língua, uma nova linguagem, um novo espírito”, teria declarado Haniyeh.

    O discurso de Obama mantém a estratégia de defender Israel e seu “direito à segurança”, o que significa colonizar e massacrar os palestinos, e limita-se a dar alguns conselhos a seu governo. Mas, mais que pelas palavras, devemos julgar um governo por seus atos. O governo Obama já mostrou a que veio, ao colocar em seu orçamento para 2010 a soma de US$ 2,775 bilhões em ajuda militar a Israel, que serão convertidos em mísseis, aviões ultramodernos e farta munição para manter a prática do terror de Estado contra os palestinos.]

    BOX

    Sionismo significa terror aos palestinos desde suas origens

    Quando os soldados sionistas apareceram na TV usando camisetas com inscrições que defendiam abertamente a morte de mulheres grávidas palestinas como forma de eliminar dois “possíveis terroristas” com um só tiro, a barbárie nazista imperante em Israel ficou estampada aos olhos do mundo e fez crescer a campanha de boicote a Israel.

    O processo de perda da imagem de “única democracia do Oriente Médio” do Estado sionista já vinha desde as décadas de 1970-80. Até então, um ponto de inflexão e símbolo dessa perda de imagem havia sido o massacre de Sabra e Chatila no Líbano, em 1982, quando as milícias cristãs fascistas a serviço de Israel chacinaram os palestinos, sob o comando do então ministro da defesa, Ariel Sharon.  

    O massacre de Gaza fez esse desgaste dar um salto: eram comuns nos atos ao redor do mundo inteiro as bandeiras em que a estrela de David era substituída pela suástica nazista, expressando claramente a real herança política do Estado de Israel. Do mesmo modo, cartazes e discursos comparavam Gaza ao Gueto de Varsóvia, e denunciavam como a ofensiva sionista fazia dos habitantes de Gaza as vítimas de um novo e mais prolongado Holocausto. O crescimento da campanha pelo boicote a Israel (BDS) é uma expressão clara desse salto. Um exemplo desse repúdio foi o protesto contra o jogo entre Israel e a Suécia pela Taça Davis de tênis logo depois da invasão a Gaza. Mais de 7000 manifestantes marcharam da praça principal da cidade de Malmoe até o local onde se jogava aquela partida de tênis. Boicotes de portuários na Austrália e na África do Sul fizeram a força da ação operária ser sentida, na melhor tradição dos boicotes ao regime do apartheid sul-africano. 

    As pesquisas históricas e biografias publicadas mostram que a decisão de expulsar os palestinos e realizar uma limpeza étnica, a Nakba, 6 para criar Israel, foi do primeiro governo do trabalhista Ben Gurion em 1948. Havia naquele momento um grande acordo e uma diferença tática com uma parte das correntes mais fascistas, origem dos atuais Likud e Kadima. Toda a região entre o Mediterrâneo e o Jordão deveria ser usurpada pela expulsão dos árabes para a criação de um estado exclusivamente judeu, batizado de Eretz Israel (Terra de Israel). A diferença era que o Poale Zion, partido de Ben Gurion na época, depois Mapai, aceitava a partilha da ONU com o argumento de que, uma vez instalados, tornariam a vida dos palestinos um inferno, de tal forma que eles seriam obrigados a sair; enquanto os antecessores do Likud, os paramilitares do Irgun e Lehi, recusavam-se a aceitar a partilha e queriam tomar todo o território do mandato da Palestina para o Estado judeu já em sua fundação. 

    Mas em relação ao objetivo final e aos métodos necessários havia um acordo, tanto assim que os massacres de palestinos marcaram a fundação de Israel, seja pela ação do Irgun e Lehi, como em Deir Yassin, como pela ação do Haganah, a organização militar sionista que deu origem ao exército israelense, em Al Dawayema em 1948 e mais tarde em Kybia, em 1953, entre outros. Ben Gurion dizia em 1936: ”um acordo abrangente está fora de questão. Apenas o desespero total da parte dos árabes pode fazer com que eles aceitem a criação de um Eretz Israel judeu”. 7

    Essa mesma lógica de impor a expulsão da população palestina pela força do terror persiste e é essencial para a própria existência do Estado de Israel, cuja razão de ser é a limpeza étnica e o expansionismo. Por isso, continuam os assentamentos na região ocupada em 1967 pelas tropas sionistas, a ampliação da proibição de construir casas em regiões inteiras de Jerusalém pelos palestinos, o avanço na “judaização” da cidade e as propostas de transferência forçada da população árabe, tanto dos territórios de 48 como dos ocupados após 67. As últimas eleições são uma expressão cabal dessa política.

    A jornalista Amira Hass, uma das vozes solitárias que defendem um tratamento humano aos palestinos, indignada com essa realidade, escreveu no jornal israelense Haaretz um artigo dirigido aos setores mais cultos da população israelense:

    O que ocorre com vocês, pesquisadores do nazismo, do Holocausto e dos gulags? Poderiam vocês estar a favor das leis discriminatórias sistemáticas? Leis que colocam de forma clara que os árabes da Galileia nem sequer serão compensados pelos danos de guerra com as mesmas quantias que seus vizinhos judeus terão direito? É possível que estejam a favor de uma lei que proíba um árabe israelense de viver com sua família em sua própria casa? Que estejam de acordo com mais expropriações de terras e com a demolição de mais hortas para instalação de novos assentamentos de colonos e para outra estrada exclusivamente para judeus? Que todos vocês respaldem os bombardeios e os lançamentos de mísseis que matam velhos e crianças na Faixa de Gaza? (…) como judeus, todos nós desfrutamos dos privilégios que Israel nos oferece, o que também nos converte em colaboracionistas.8

    Só existe uma saída para que haja paz: o fim de tal anomalia, de um Estado em que o genocídio de outro povo que ali habitava seja considerado válido. Não há como sair da macabra sucessão de guerras e massacres, a não ser com a destruição do Estado de Israel. E para isso, a saída é a resistência palestina e das massas árabes. Não há como fazer reformas nem como construir “dois estados”, como querem os colaboracionistas da ANP e a maior parte da esquerda mundial. A realidade comprova a cada dia que tal solução é inviável e significa o prolongamento da agonia palestina.

    Notas:

    1. Pappé recebeu ameaças de morte, obrigando-o a renunciar ao cargo de catedrático de ciência política na Universidade de Haifa e deixar o país. ↩︎
    2. A criação de um Estado palestino ao lado do Estado de Israel e uma paz baseada em uma reforma interna em Israel, tornando-o mais favorável à convivência com os palestinos. ↩︎
    3. www.rebelion.org, abril de 2009. ↩︎
    4. Citado em Brenner, The iron wall, 1984 ↩︎
    5. Nota publicada em Gara, 28/5/09: “A Knesset (Parlamento israelense) aprovou ontem em primeira leitura uma proposição de lei que estabelece um ano de prisão para quem peça o fim de Israel como Estado judeu. O texto propõe ainda a toda declaração contra Israel como Estado judeu que «possa levar a atos de ódio, desprezo, ou falta de lealdade em relação ao Estado, suas autoridades governamentais ou sistemas legais». (…) Esta votação ocorreu apenas quatro dias após a aprovação, pelo Governo israelense, de outra proposta destinada a castigar com até três anos de prisão aqueles que participarem de atos comemorativos da Nakba, a catástrofe que para os palestinos supôs a criação do Estado de Israel em 1948”. Uma das formas mais importantes com que os palestinos residentes no território de 1948 contestam o que significa o racismo é justamente a comemoração da Nakba, que vem tendo manifestações cada vez mais importantes nesses últimos anos. ↩︎
    6. Nakba significa catásfrofe. ↩︎
    7. Citado em Shlaim, Avi, The Iron Wall, Israel and the Arab world, p.18-19 ↩︎
    8. www.rebelion.org, 25/5/09. ↩︎

    Publicado em agosto de 2009 na revista Marxismo Vivo N. 21

  • Contribuição à crítica das diferentes interpretações na esquerda sobre a revolução brasileira

    Contribuição à crítica das diferentes interpretações na esquerda sobre a revolução brasileira

    Este artigo é fruto da discussão realizada no seminário do PSTU, cujo tema foi “Teoria da Revolução Permanente e sua aplicação no Brasil”. Por que é importante a discussão sobre o PCB, a Cepal e os teóricos que os criticaram? Porque a interpretação do Brasil moderno que a esquerda em geral definiu para seus projetos vem dessa época, que marca as primeiras visões de conjunto sobre o Brasil.

    Por: José Welmowicki

    A evolução das visões sobre o Brasil desde os anos 1930 

    A primeira tentativa de interpretação da esquerda foi a do PCB. Aqui, cabe explicar o contexto internacional em que foi elaborada. Naquele momento, fins da década de 1920, começo dos anos 1930, os partidos comunistas, já dominados pelo stalinismo, eram hegemônicos no movimento operário do mundo inteiro. No Brasil, entre 1930 e 1964, o PCB foi amplamente majoritário no movimento operário e na intelectualidade de esquerda. 

    A visão que eles tinham do Brasil derivava de uma teoria que a própria Internacional Comunista elaborara como justificativa para sua desastrosa política para a revolução chinesa de 1926-28, no marco da afirmação do socialismo num só país e do combate à teoria da revolução permanente de Trotsky. A teoria stalinista deveria se aplicar a todos os países atrasados, classificando-os como feudais ou semifeudais, para os quais não estaria colocada a revolução socialista, e sim a revolução democrática burguesa. A partir dessa revolução, abrir-se-ia uma etapa de desenvolvimento nacional em que, aí sim, estaria colocada a luta pelo socialismo. No VI Congresso da III Internacional de 1928, essa teoria foi aceita como válida para todo o mundo colonial. 

    Coerente com essa teoria, o PCB classificava o Brasil como feudal, tirando como consequência programática a necessidade de  uma revolução democrática burguesa. Isso gerou a tese de que caberia à burguesia nacional, em aliança com o proletariado e o campesinato, cumprir as tarefas democráticas, acabar com o latifúndio e libertar o Brasil da dominação imperialista. Só a partir daí estariam colocados o desenvolvimento capitalista e a preparação da luta pelo socialismo. Essa compreensão esteve em todas as resoluções desde os anos 1930 (e foi criticada duramente pela Liga Comunista, a primeira organização trotskista brasileira) e continuou dominando a visão do PCB até a década de 1960, como mostra a resolução política do V Congresso, de 1960:

    […] Nas condições atuais, entretanto, o Brasil tem seu desenvolvimento entravado pela exploração do capital imperialista internacional e pelo monopólio da propriedade da terra em mãos da classe dos latifundiários. As tarefas fundamentais que se colocam hoje diante do povo brasileiro são a conquista da emancipação do país do domínio imperialista e a eliminação da estrutura agrária atrasada, assim como o estabelecimento de amplas liberdades democráticas e a melhoria das condições de vida das massas populares. Os comunistas empenham-se na realização dessas transformações, ao lado de todas as forças patrióticas e progressistas, certos de que elas constituem uma etapa prévia e necessária no caminho para o socialismo […] em sua etapa atual, a revolução brasileira é anti-imperialista e antifeudal.

    Houve outra corrente influente entre 1945 até a década de 1960, que desenvolveu uma compreensão que se aproximava da visão do PCB. Tratava-se de uma corrente articulada pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), a comissão da ONU dedicada a estudar a economia na América Latina, que serviu como instituição para uma serie de pensadores que tentavam entender nossa realidade a partir da dicotomia desenvolvimento/subdesenvolvimento. Segundo eles, o problema de países como o Brasil seria que seu desenvolvimento econômico tinha ficado retardado por uma série de barreiras por sua localização subordinada entre as nações e pelo tipo de estrutura produtiva, em que a produção agrícola e de matérias-primas eram o centro, ao contrário das nações mais desenvolvidas, que tinham como centro a indústria. Dessa tese, decorria a proposta de fomentar a industrialização como superadora do subdesenvolvimento. Essa corrente foi chamada de desenvolvimentista ou nacional-desenvolvimentista, pois pregava a luta pelo desenvolvimento autônomo da nação. Para garantir trilhar esse caminho, dever-se-ia fazer uma aliança entre a burguesia nacional, os trabalhadores e os camponeses. Celso Furtado era um dos principais teóricos da Cepal.

    Nos anos 1930, já estávamos na época imperialista. A partir da época imperialista, a economia já é mundial. Não há mais como separar nenhuma sociedade, nenhuma economia de um país do resto do mundo. O mesmo vale para a luta de classes: é um processo internacional. Já não era mais possível um desenvolvimento capitalista autônomo sob o imperialismo. Só a revolução socialista poderia emancipar o país. Como explica Trotsky em A Revolução permanente, “com a criação do mercado mundial, da divisão mundial do trabalho e das forças produtivas mundiais, o capitalismo preparou o conjunto da economia mundial para a reconstrução socialista”. 

    Por outro lado, não havia mais espaço para um desenvolvimento autônomo que rompesse com o imperialismo mantendo-se capitalista. Ao longo do século 20, o Brasil permaneceu uma semicolônia. Primeiramente, da Inglaterra e, depois, dos EUA, como é até hoje.

    Com o golpe de 1964, houve uma crise muito forte no PCB e nas forças que se apoiavam nas suas elaborações, assim como na visão cepalina, muito presente no PTB de João Goulart e Leonel Brizola. A capitulação do stalinismo ao governo Goulart e a derrota frente ao golpe militar geraram uma serie de dissidências e surgiu uma série de críticas às teorias que haviam embasado a prática de colaboração de classes da esquerda no período de 1945 a 1964.

    Uma série de autores ajudou a construir uma visão crítica do PCB e da Cepal nas décadas de 1970 e 1980. Estudamos e valorizamos muito as elaborações que existem. Mas, ao utilizarmos como marco teórico a revolução permanente, vemos importantes limitações e equívocos em suas elaborações. Até hoje, não foram elaboradas ou publicadas visões críticas e dialéticas sobre elas. Há, por exemplo, uma tendência a reivindicar, de maneira acrítica e sem apontar seus limites, Caio Prado Junior, por ele expressar uma visão crítica à interpretação do PCB ou a reivindicar acriticamente Florestan Fernandes e outros autores, como Chico de Oliveira. Nossa proposta aqui é analisar suas interpretações com um olhar crítico, valorizando o que na nossa maneira de ver são importantes acertos, mas também apontar seus limites e erros.

    A contribuição e nossa crítica a Caio Prado Junior

    Ronald Leon já analisou, na Marxismo Vivo nº 9, os avanços e os limites de Caio Prado. Ele teve grande importância na análise do Brasil e contribuiu para destruir o velho argumento de seu partido, o PCB, sobre a suposta formação feudal e também por mostrar a relação entre a burguesia nacional e o imperialismo. Nessa contribuição, entretanto, persistiam grandes contradições. Caio foi militante comunista a partir de 1931 e por toda sua vida membro do PCB e adepto da URSS e das teorias do stalinismo. Apoiou a política internacional de Stalin e a orientação da burocracia russa pós-morte de Stalin, com Nikita Kruschev e a linha da coexistência pacífica com o imperialismo.  Caio Prado Jr. não tinha diferenças com a estratégia de conciliação de classes aplicada pelo stalinismo em escala mundial –  e no Brasil também – e o demonstrou em sua participação como parlamentar no pós-guerra e intelectual de destaque nos anos 1950.

    Isso esteve na raiz de uma incoerência entre a análise que fazia da formação do Brasil e o programa. Apesar de no texto A Revolução Brasileira dizer que o Brasil já era capitalista em suas relações de produção no campo e na cidade e também afirmar o caráter submisso da burguesia brasileira em sua relação com o imperialismo, sua perspectiva era a revolução que tiraria o Brasil do atraso colonial, abrindo passo ao desenvolvimento nacional: “A revolução brasileira está marcada pelo processo geral que vai do Brasil colônia de ontem ao Brasil nação de amanhã, e que se trata hoje de levar a cabo. Tarefa essa que constitui a essência da revolução brasileira”. 

    Assim, mantinha-se nos marcos da proposta de revolução democrática burguesa, embora sem acreditar na necessidade de superar supostos restos feudais, mas sim os aspectos coloniais do país.

    Embora analise o caráter submisso da burguesia brasileira, ele não define quem é a classe capaz de assumir o projeto de desenvolvimento nacional autônomo, o Brasil nação. Mas o fato de não definir coloca-nos uma hipótese implícita e, em alguns de seus textos programáticos, ele fala em projeto nacional com a iniciativa privada. Qual classe social tem a iniciativa privada? A burguesia. Contraditoriamente, ele levanta a hipótese da burguesia nacional cumprir a tarefa de libertação nacional, que ele mesmo analisa como associada ao imperialismo. Essa contradição em seus textos tem a ver com a não superação programática e com uma concepção mais geral que não rompeu com as teses internacionais do stalinismo e, portanto, opostas à teoria da Revolução Permanente. Para essa teoria, a saída para a superação do caráter colonial ou semicolonial do capitalismo brasileiro é a revolução encabeçada pela classe operária que, ao tomar o poder, imporá a ditadura do proletariado que cumprirá as tarefas democráticas das quais a principal é a liberação nacional do imperialismo, mas essa revolução se fará contra a burguesia nacional.

    A contribuição e a crítica a Chico de Oliveira

    Francisco (Chico) de Oliveira chegou a trabalhar com Celso Furtado na Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) durante o período de 1959 a 1964.

    Para a Cepal, havia um Brasil moderno e um Brasil arcaico. Para eles, o Brasil arcaico, que era associado ao campo, ao latifúndio, impedia o desenvolvimento do país. Portanto, ele considerava que se o Brasil se industrializasse, iria se desenvolver, e superaria esse atraso se o Estado e um setor progressista da burguesia aceitassem essa proposta. Por isso, Celso Furtado criou e dirigiu a Sudene nos governos Juscelino Kubitschek e João Goulart, do qual foi ministro do Planejamento, com o objetivo de levar o desenvolvimento ao Nordeste atrasado. 

    Chico de Oliveira, no Crítica à razão dualista, faz uma crítica frontal a essa ideia de “dois Brasis” e demonstrou que há uma articulação entre ambos, porque esse Brasil atrasado é fundamental para o Brasil moderno, essa agricultura atrasada, que vende barato os produtos alimentícios, e esse tipo de propriedade são funcionais para o moderno, inclusive para as indústrias estrangeiras. Não há uma contradição entre nacional e estrangeiro nisso e não há uma contradição decisiva entre a burguesia industrial e os latifundiários do campo atrasado. Ele desmistifica a ideia de um desenvolvimentismo do Brasil a partir do avanço da indústria.

    Mas Chico de Oliveira, que teve o mérito de demonstrar que de-positar as esperanças num desenvolvimento industrial que pudesse superar o atraso do latifúndio era um projeto sem fundamento que levaria a fracassos seguidos, como os da aliança populista e do governo João Goulart, caiu num erro ao analisar os caminhos alternativos possíveis: ele também nutriu esperanças num caminho endógeno ao não dar a devida importância ao papel do Brasil no mundo, que, mesmo havendo um processo de industrialização, nunca deixou de ser uma semicolônia. Na época imperialista, já não existe essa possibilidade. Ele parte de um fato real: na década de 1930, entre as duas guerras mundiais, em particular após a crise de 1929, houve um momento, o período de passagem de semicolônia inglesa para semicolônia norte-americana, que permite às burguesias latino-americanas, entre as quais a brasileira, apoiarem-se nos seus proletariados para conseguir algumas concessões do imperialismo.

    Trotsky analisa esse processo em seus textos sobre a América Latina escritos no México. Esse processo, no entanto, não significou uma via autônoma ou independente e, quando o imperialismo norte-americano voltou a impor sua hegemonia na região, recortou as concessões. Para isso, recorreu a pressões duras e inclusive a golpes militares quando havia alguma ameaça maior.

    Ou seja, ele acerta em mostrar a relação de funcionalidade entre os setores atrasado e moderno, inclusive cita a teoria do desenvolvimento desigual e combinado de Trotsky, mas interpreta o crescimento da indústria como um processo endógeno, sem integrá-lo de forma submetida à economia mundial. Que sem uma revolução socialista era impossível sequer manter esses processos. O processo posterior no Brasil comprovou esse limite dado pela submissão da burguesia ao imperialismo. 

    No terceiro governo de Getúlio Vargas, houve um processo de ascenso operário que preocupou a burguesia e o imperialismo, e a maioria da burguesia nacional passou a articular um golpe. Getúlio suicida-se para evitar o golpe em preparação e, depois de uma série de crises, Juscelino Kubitschek (PSD) é eleito com o apoio do PTB e do PCB, que permitiram desviar o ascenso e ter um período de relativa estabilidade. Juscelino implementou o modelo de industrialização nas áreas de bens duráveis com a participação das empresas imperialistas e o Estado como garantidor da infraestrutura e de determinados insumos básicos, como a eletricidade e o aço. Em 1955, já era o modelo que posteriormente a ditadura viria a intensificar, com a entrada do imperialismo na área produtiva industrial. Aplicou-se o famoso tripé: burguesia imperialista no setor mais avançado, burguesia industrial brasileira nos setores de menos tecnologia – aproveitando a mão de obra migrante (em especial nordestina) para terem uma taxa de lucro altíssima – e o Estado entrando com toda a parte estrutural. Nenhum governo posterior à ditadura modificou esse modelo, ao qual a burguesia nacional adaptou-se. Tanto Fernando Collor, quanto FHC, que foram seus grandes entusiastas, e também os governos do PT, que inventaram o nome de neodesenvolvimentismo, aplicaram-no.

    Essa contradição de Chico de Oliveira, ao ver centralmente uma dinâmica interna para explicar o processo, levou-o a pensar que não era imperioso o caminho revolucionário e a admitir um caminho reformista para o desenvolvimento nacional. Por isso, mais adiante, nos anos 1990, defendeu um welfare state brasileiro para alcançar uma melhor distribuição de renda, e viu no PT o sujeito político para instalá-lo. Em Os Direitos do antivalor (1992), ele propõe uma série de reformas emulando o welfare state europeu. Mas aconteceu justamente o oposto: um ataque permanente aos poucos direitos sociais conquistados a duras penas. Como Chico não via essa contradição estrutural, pensava ser isso possível, a partir de uma decisão interna de um sujeito político decidido a dar passos nessa direção de reformas substanciais no marco do capitalismo brasileiro. Uma visão reformista que o próprio PT decepcionou no campo dos direitos sociais, e fez Chico romper com esse partido, depois de militar nele por anos, quando Lula chegou ao governo e avançou na implementação da reforma da Previdência.

    A contribuição de Florestan Fernandes e nossa crítica

    Florestan Fernandes tem o grande mérito de ter caracterizado a incapacidade congênita da burguesia nacional de lutar pela revolução democrática burguesa no Brasil. Em seu texto A revolução burguesa no Brasil, aponta isso em vários momentos. Ele também recusa a ideia da formação feudal do país presente no PCB e aponta o caráter subordinado do capitalismo e a submissão da burguesia nacional em relação ao imperialismo.

    Por isso, quando se constitui, consolida-se e tal economia competitiva se expande, tende a redefinir e a fortalecer os liames de dependência, tornando impossível o desenvolvimento capitalista autônomo e autossustentado. 

    Florestan afirma que a burguesia é incapaz e, mais ainda, que ela necessita da contrarrevolução, e trata de mostrar que isso é estrutural. Em O que é revolução, de 1981, ele afirma:

    Os últimos 25 anos compreendem uma vasta transferência de capitais, tecnologia avançada e quadros empresariais técnicos e dirigentes, pela qual a economia e a sociedade brasileira foram multinacionalizadas através de uma cooperação organizada entre capitalistas, militares burocratas brasileiros com a burguesia mundial e seus centros de poder. […] o que interessa ressaltar nesse quadro? Primeiro, a relação siamesa entre a burguesia nacional e a burguesia externa, que não são mais divididas e opostas entre si quando o capitalismo atinge o seu apogeu imperialista.

    Porém, a contradição que ele não consegue superar – como outros autores – é sobre a atualidade e a afirmação do sujeito social da revolução socialista. Para ele, a classe operária brasileira arrasta um atraso cultural tão profundo que não teria condições por um longo período de se colocar como cabeça de uma revolução. Por isso, chega a prever um processo longo de amadurecimento tomando a tarefa da revolução democrática em si até que se possa colocar no horizonte a revolução proletária, mesmo que ela já esteja colocada em escala internacional. Ele localiza esse atraso na formação do proletariado após a abolição da escravatura:

    De um lado, fica patente que o negro ainda é o fulcro pelo qual se poderá medir a revolução social que se desencadeou com a Abolição e com a proclamação da República (e que ainda não se concluiu). De outro, é igualmente claro que, no Brasil, as elites não concedem espaço para as camadas populares e para as classes subalternas de motu próprio (de livre e espontânea vontade). […] Cabe às classes subalternas e às camadas populares revitalizar a República democrática, primeiro para ajudarem a completar, em seguida, o ciclo da revolução social interrompida e, por fim, colocarem o Brasil no fluxo das revoluções socialistas do século XX.

    O argumento para afirmar que a classe operária não tem condições de encabeçar esse processo é o atraso cultural, a falta de um período de formação. E não faz a comparação que deveria com a Revolução Russa. Afinal, se, como ele enfatiza, no Brasil havia a escravidão recente, que era um fator imenso de atraso, a classe operária da Revolução Russa também vinha do campo, dos servos recém-libertados, também era jovem, também tinha baixo nível cultural, mas devido ao seu papel objetivo na sociedade russa e à existência do Partido Bolchevique, cumpriu um papel revolucionário em outubro de 1917. 

    Outro elemento débil em Florestan é a associação direta entre classe operária e suas direções, como se essas refletissem imediatamente aquela. Não via a questão da direção como um problema central para impedir o desenvolvimento da classe em direção a ser uma alternativa de poder:

    Numa sociedade de classes, se a classe trabalhadora não amadurece politicamente, se não se desenvolve como classe independente, o intelectual que se identifica com ela não pode ser instrumental para nada. A menos que ele queira ser instrumental para as suas inquietações, para o seu nível de vida, para um trabalho pessoal criador. Mas, se você vai além disso, você se esborracha. O que aconteceu comigo foi que eu me esborrachei e daí o fato de que, até hoje, não me conformo com o nosso padrão de radicalismo e de socialismo.

    Para resumir essa primeira síntese sobre alguns dos mais importantes intérpretes do Brasil, é importante ressaltar que eles fizeram aportes muito importantes, mas parciais, para a superação da visão do PCB e da Cepal. Valorizamos muito essas elaborações. Mas todos tinham a limitação de não pensar a partir da revolução permanente e, por essa via, não conseguiam apresentar uma alternativa, mantendo um ceticismo sobre o papel da classe operária como sujeito social.

    Cabe agora basear-se na teoria da Revolução Permanente para fazer avançar a elaboração marxista sobre nossa formação social e a resposta que necessitamos: o programa revolucionário.

    Publicado em outubro de 2017 na revista Marxismo Vivo N. 10  

  • A 70 anos da Nakba: debate sobre a questão nacional

    A 70 anos da Nakba: debate sobre a questão nacional

    Aos 70 anos da proclamação do Estado de Israel, que para os palestinos significou a Nakba (catástrofe), é necessário fazer uma discussão teórica e programática sobre as visões fundamentais relacionadas.

    Por: José Welmowicki

    Começamos pelos fundamentos do sionismo, a corrente política que produziu essa catástrofe – a criação de um Estado fundado sob o pretexto de abrigar o povo judeu, que sempre foi baseado numa definição racial excludente. Essa definição, na prática, necessariamente geraria uma situação catastrófica, pois tinha como pressuposto que a maioria da população desse território, a Palestina, deveria ser judia. Se a ampla maioria era árabe, como tornar realidade esse pressuposto básico do sionismo? Isso só seria possível se fosse garantido aos judeus essa maioria, ou seja, se se expulsasse a maioria da população existente, palestinos, e se garantisse que eles não poderiam voltar.

    A Nakba não foi o produto fortuito de uma guerra que estalou devido à reação dos governos “feudais” árabes, como sempre afirmaram os líderes sionistas, que até hoje chamam essa operação de Guerra da Independência, mas sim o resultado de uma operação de limpeza étnica autorizada pela recomendação de partilha da ONU de 1947. Essa operação foi planejada com várias fases, para garantir que os árabes residentes há séculos no território do antigo mandato do imperialismo inglês sobre a Palestina fossem retirados rapidamente, para permitir que os judeus se tornassem franca maioria. O planejamento minucioso dessa operação pelo quartel-general sionista encabeçado por David Ben Gurion está muito bem documentado no livro A limpeza étnica da Palestina, de Ilan Pappé, historiador israelense que teve acesso aos arquivos e pôde revelar os detalhes em toda sua extensão, os quais desmentem, uma a uma, as inúmeras versões difundidas pelos que hoje governam o Estado de Israel.

    A evolução desse Estado, seu caráter racista de enclave militar aliado do imperialismo e potência dominante, hoje os EUA, sua completa impossibilidade de ter uma evolução democrática ou de aceitar uma solução do tipo “dois estados” que fosse realmente em igualdade de condições, tem sua base teórica e programática na própria concepção elaborada pelo fundador do sionismo político, Theodor Herzl, desde sua organização no final do século XIX.

    Nestes artigos, temos o objetivo de confrontar essas bases, mostrar como os marxistas da III e da IV Internacionais responderam e previram sua evolução e qual programa apresentavam em contraposição ao sionismo e, mais tarde, à sua concretização, o Estado de Israel. A história dos 70 anos que se seguiram à criação do Estado de Israel e a realidade atual na Palestina permitem confirmar a visão marxista revolucionária e a luta contra o sionismo e o Estado, que é sua expressão e segue aplicando a limpeza étnica até hoje. 

    A origem da questão judaica

    Abraham de Leon foi um jovem dirigente que rompeu com o sionismo (grupo Hashomer Hatzair) e aderiu à IV Internacional às vésperas da II Guerra Mundial. Escreveu um texto que teve um mérito enorme: aplicar o marxismo para entender a questão judaica. Frente às explicações do sionismo ou da religião, ele atribuía a especificidade do judeu, sua localização, a perseguição da qual era vítima, não à religião nem a uma essência genética racial, mas às condições materiais com as quais se inseria na realidade econômica e social em que vivia. Em seu livro A concepção materialista da questão judaica, localizou quais eram as bases para entender a especificidade dos judeus. Ela estaria vinculada ao papel assumido pelos judeus nas sociedades pré-capitalistas, de comerciantes e usurários, nas quais o capital ainda não dominava em forma plena. Sobre essa base, teria se constituído uma superestrutura cultural e uma religião adequada a esse papel. Formara-se, assim, um “povo-classe”.

    Embora se possa questionar a aplicação tão generalizada da tese de Leon, essa localização é chave para se entender – em particular para a Europa feudal – como os judeus tinham um papel de intermediários, no comércio e na usura, para lidar com o dinheiro e estavam sempre na linha de confronto quando os senhores queriam colocar um bode expiatório para desviar a indignação popular contra a miséria social reinante. Na Europa Oriental, em especial onde havia uma concentração de judeus “asquenazes” com esse papel, encontramos a discriminação, os guetos, a grande base do antissemitismo moderno.

    Para comprovar, porém, que esse não era um destino inelutável nem fruto da religião, houve comunidades judaicas que ganharam igualdade de direitos já no século 19: na Europa Ocidental, após a revolução francesa e no governo de Napoleão Bonaparte, os judeus foram emancipados, e as ideias de liberdade da Revolução Francesa estenderam-se a eles. Napoleão suspendeu velhas leis que os restringiam a residir em guetos, bem como leis que limitavam os direitos dos judeus à propriedade, ao culto e a certas ocupações. 

    O sionismo

    O sionismo surgiu como um movimento baseado numa falsa teoria e numa falsa visão da história. Partia de um problema grave: a perseguição aos judeus, nessa época espalhados por vários países, reprimidos e perseguidos, em especial na “terra Yidish” (onde se falava o ídiche, na Europa Oriental). Contudo, atribuía todo o problema a uma incompatibilidade de convivência originada pela religião ou pela raça e, por isso, a tese do sionismo baseava-se em que só havia uma saída para os judeus de todo o mundo: isolar-se numa nação-território em que fossem maioria exclusiva e permanente.

    Nesse primeiro momento, virada do século XX até os anos 1930, os sionistas não conseguiram agrupar a maioria das comunidades judaicas. Tinham que disputar com os marxistas que defendiam o socialismo e o fim da discriminação a todos os oprimidos e que se fortaleceram quando a revolução russa derrubou o czarismo e instalou o primeiro Estado operário. Sua posição em defesa da imigração para a Palestina não encontrou eco importante até os anos 1930 e o surgimento do nazismo, além do retrocesso stalinista na URSS.

    As alas do sionismo 

    O sionismo dito socialista era um movimento com uma aparência popular e social, devido ao fato das primeiras camadas de judeus que imigraram para a Palestina no século XX serem oriundos da Europa oriental e influenciados por movimentos socialistas e sindicais. Porém, ao assumirem a posição sionista, voltaram-se contra qualquer unidade com os trabalhadores já residentes lá, os palestinos.

    Essa geração produziu a primeira liderança do sionismo na Palestina. Dela viriam os partidos que encabeçam Israel, como o Mapai e suas rupturas, até conformar-se, mais tarde, o Partido Trabalhista. Eles organizaram a Histadrut, que ainda hoje se intitula central sindical, mas, na verdade, é uma organização que foi criada para assegurar que os empresários judeus só empregassem trabalhadores judeus e para separar completamente esses últimos dos trabalhadores palestinos.

    Os kibutzim são apresentados como comunidades coletivistas, mas, na verdade, são colônias a serviço da expansão e da defesa dos territórios ocupados pelos agricultores judeus, que também não admitem nenhuma coexistência ou associação com os agricultores árabes. Assim, o sionismo socialista, ao invés de lutar por “proletários do mundo, uni-vos”, organizou-se para dividir proletários judeus e árabes.

    Jabotinsky, o fundador da corrente sionista revisionista e autor de A muralha de ferro, tinha uma posição racista: dizia que era impossível a assimilação entre judeus e outras raças devido a um problema de sangue. Para ele, a preservação da integridade nacional futura do estado judeu só seria possível se tivesse pureza racial. Assim como os racistas afrikaners do sul da África, considerava os palestinos uma raça inferior com a qual era proibido mesclar-se.

    A ideia da “transferência” dos palestinos unia todas as alas – consenso entre a maioria dos sionistas trabalhistas (identificados como esquerda) e a minoria revisionista (direita). Os palestinos deveriam ser expulsos e suas terras, tomadas pela força. Contudo, para fazer isso, os sionistas deviam primeiro adquirir soberania, ou seja, um Estado. O decisivo era que as duas alas coincidissem em que o Estado deveria ser exclusivamente judeu, livre da população árabe autóctone. Daí o slogan “Uma terra sem povo para um povo sem terra”. Por isso, foi possível a laboristas e revisionistas não só conviverem, como se unirem num só exército e, uma vez instalado o novo Estado, sucederem-se no exercício do governo, sem que se possa distinguir nos traços fundamentais as gestões de cada um: no que diz respeito à limpeza étnica, ao papel do exército e da indústria militar e de segurança. Pela mesma razão, a partir dos anos 1980, houve vários governos de coalizão entre trabalhistas e Likud. As diferenças sempre foram de ordem tática, não estratégica.

    Esse caráter do sionismo esteve na base da fundação de Israel. Ilan Pappé demonstra de forma exaustiva como houve uma limpeza étnica planejada. Esse plano foi elaborado bem antes e já tinha como meta desalojar a imensa maioria dos palestinos de sua terra. Para isso, o sionismo aproveitou-se da comoção mundial causada pelo genocídio nazista contra o povo judeu para impor a limpeza étnica dos palestinos, que não tinham nenhuma responsabilidade no massacre dos judeus europeus. Para levar a cabo seu plano de implementar seu Estado com maioria judaica pela expulsão da população árabe palestina existente, os sionistas candidataram-se a formar parte ativa na defesa do sistema mundial de dominação e construíram alianças com os imperialismos dominantes.

    Israel, um cão de guarda do imperialismo: a dependência profunda dos EUA desde 1948 é cada vez maior

    Desde o início do movimento sionista, com Theodor Herzl e suas tratativas com o Kaiser, o czar russo e, a partir da vitória dos impérios inglês e francês na I Guerra Mundial, o sionismo sempre buscou e teve sustentação do imperialismo. A fundação do Estado de Israel, em 1948, só pôde realizar-se devido ao apoio do governo norte-americano. No entanto, foi a partir dos anos 1960 que a relação alcançada com o imperialismo hegemônico, os EUA, tornou-se total e decisiva. Com a consolidação dos EUA como a potência hegemônica indiscutível, os sionistas armaram-se para se tornarem fiéis guardiões da ordem imperialista na região e no mundo. Foi assim na intervenção de tropas israelenses em aliança com os impérios inglês e francês em 1956, em Suez, na guerra de 1967, no papel de perseguição e repressão em todo o Oriente Médio (como no Líbano) e até mesmo na América Central e do Sul na década de 1980-1990. Assim, Israel conseguiu se tornar um país armado até os dentes. Inclusive, é um dos que recebem a última geração dos modernos armamentos dos EUA e é subcontratante de seus monopólios armamentistas. Em especial a partir da Guerra dos Seis Dias, de 1967, essa associação avançou a ponto tal que hoje a principal indústria israelense é armamentista ou vinculada a ela, como a tão proclamada indústria de tecnologia. 1

    Desde 2008, qualquer venda de armas dos EUA para outros países na região não pode ser realizada a não ser que os governos provem que não serão usadas contra Israel. Os valores da ajuda militar dos EUA a Israel crescem a cada ano, independentemente de o governo ser democrata ou republicano. No período de Clinton, foi de US$ 26,7 bilhões; no de George Bush, US$ 30 bilhões; no de Obama, US$ 36 bilhões. Uma porção importante da ajuda foi fornecida em forma de acordos de coprodução, como em 2014, em que fabricantes das indústrias militares de Israel e EUA concordaram em trabalhar juntos para desenvolver os foguetes do sistema de defesa de Israel, o Iron Dome.

    O papel de Israel na divisão internacional do trabalho tem como centro ser um fornecedor de armamentos e instrutor mundial da segurança empresarial e da repressão aos povos. Vejamos o que diz o texto da Rede Internacional de Judeus Antissionistas:

    A habilidade única de Israel em dispersão de multidões, vigilância, desocupações e ocupações militares resultou em sua posição na vanguarda da indústria global da repressão: desenvolve, monta e comercia tecnologia que é utilizada por exércitos e forças policiais ao redor do mundo com o propósito de reprimir. O papel de Israel nessa indústria começou com o exército israelense, que primeiro usou suas armas contra o povo palestino na Palestina histórica e, depois, contra os países vizinhos. Nos últimos anos, conforme cresceu o interesse pela vigilância e pelo controle policial entre os governos do mundo, um serviço privado israelense pôs à prova (no campo) instrumentos que emergiram de ‘segurança doméstica’ e os exportaram de acordo com seu interesse. A indústria inclui agências governamentais, o exército israelense e uma rede de corporações privadas que produziram mais de US$ 2,7 bilhões em 2008.” 2

    Esta área econômico-política especial de Israel teve e tem uma presença importante na América Latina. Durante o período das ditaduras do fim dos anos 1970 e anos 1980, Israel forneceu suas armas mais conhecidas, a metralhadora Uzi e o rifle Galil, para os regimentos da morte na Guatemala, para os Contras da Nicarágua e para o Chile de Pinochet. Nesse período, Israel ganhou mais de US$ 1 bilhão com a venda de armamento para as ditaduras da Argentina, do Chile e do Brasil. A ditadura de Pinochet, de 1973 a 1990, comprou armas de dispersão de massas de Israel, incluindo equipamentos adequados para canhões de água.

    O próprio Ministério Israelense da Indústria, Comércio e Trabalho publicou em sua página na Internet:

    Israel tem mais de 300 empresas de segurança doméstica que exportam uma ampla gama de produtos, serviços e sistemas… Estas soluções nasceram da necessidade de sobrevivência de Israel e amadureceram conforme a realidade das contínuas ameaças terroristas (sic) ao país… Nenhum outro país tem um acúmulo tão grande de polícias, soldados e vigilantes na reserva e nenhum outro país foi capaz de pôr a prova seus sistemas e soluções em tempo real.

    O governo israelense e suas corporações cumprem um papel importante na política nacional do Brasil, na dispersão de multidões, nos sistemas de vigilância, nas prisões e nas fronteiras militarizadas. Junto a outras políticas de repressão doméstica, o treinamento da polícia e seu armamento são parte da campanha antifavela do Brasil.3

    A companhia israelense Elbit, uma das implicadas na construção do Muro do Apartheid na Palestina, participou no projeto e abasteceu com tecnologia de vigilância o muro fronteiriço entre EUA-México, mais conhecido como o Muro da Morte. 4

    O que é Israel hoje? A comparação com a África do Sul 

    Na mesma época da fundação do Estado de Israel, foi fundada a África do Sul como Estado racista, branco, apoiado nos colonos afrikaners. Era a mesma base teórica e material do sionismo: um grupo de colonos brancos europeus instalara-se no território africano habitado por uma população negra, e impôs um Estado baseado em leis racistas, o apartheid, excluindo a maioria da população dos direitos, buscando criar um regime permanente que garantisse uma maioria branca às custas de tornar os negros cidadãos confinados em bantustões (reservas nativas), sob repressão fortíssima.

    A África do Sul era muito semelhante a Israel. Lá, os negros eram mantidos à força em bantustões. Em Israel, havia as chamadas leis de Regulações Administrativas baseadas nas leis racistas do apartheid da África do Sul. Em Israel, essa lei confinava os palestinos em determinados lugares, dos quais não podiam sair sem ter um passe, e estabelecia zonas proibidas a eles, pois estavam reservadas para a “raça” dominante no Estado, os sionistas. Colocava, ainda, os palestinos à mercê de comissários com plenos poderes para prender, transferir e deportar os habitantes de áreas árabes, tomar posse de qualquer objeto pertencente a um árabe, fazer investidas nas casas a qualquer momento, impor restrições sobre emprego ou negócios, confiscar qualquer terreno ou casa e assim por diante. Violações a essa lei seriam submetidas à jurisdição de tribunais militares. Essa era apenas uma de muitas leis racistas aplicadas aos palestinos.

    O papel da África do Sul na repressão aos movimentos negros pela independência na África dos anos 1960-1990 também se assemelha ao papel de Israel como polícia desde sua fundação: enquanto a África do Sul interveio diretamente em Angola, Moçambique, Namíbia e apoiou os racistas da ex-Rodésia, Israel fazia e faz o mesmo na sua região. Por isso, os movimentos antirracistas da África do Sul identificaram-se sempre com a luta dos palestinos. Houve uma colaboração estreita entre a burguesia branca racista sul-africana e a liderança sionista desde 1948. Israel cumpriu o papel de armar e treinar os regimes de apartheid da África do Sul e da Rodésia. Em contraposição, construiu-se uma solidariedade entre os movimentos de resistência ao apartheid, na África do Sul, e na Palestina que dura até hoje. Da África do Sul, veio o exemplo para o movimento de boicote ao Estado racista, que golpeou fortemente os racistas afrikaners, e que, com o movimento BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções), transforma-se num poderoso instrumento contra o racismo sionista.

    Um enclave racista

    Essa definição era muito combatida nos anos iniciais do Estado sionista. Ainda persistia a imagem do sionismo progressista, de seus fundadores e dos kibutzim como colônias socialistas. Esse suposto caráter progressista ou democrático era contraposto pela mídia e até pela esquerda reformista ao caráter supostamente atrasado dos palestinos e dos árabes. Também contribuía para isso o mito de que Israel teria empreendido uma luta de “Davi contra Golias”, baseado no tamanho da população e do território. No entanto, Israel não parou de se expandir e de estender sua natureza racista a novos territórios. De trazer colonos de fora do país ou de áreas internas e fazer com que eles ocupassem terras palestinas. De jamais aceitar a volta dos refugiados criados pela limpeza étnica em todos esses anos.

    A Nakba de 70 anos atrás continua hoje. A natureza do Estado criado com base na concepção sionista impede qualquer via democrática, pois está baseada numa definição estatal racista e, assim, numa maioria demográfica judaica que é a única aceita como cidadã desse Estado. Não há a menor perspectiva de que as correntes que dirigem Israel aceitem qualquer solução intermediária, com concessões mútuas aos palestinos. A única solução possível aos olhos dos sionistas de todas as facções é que os palestinos aceitem sua expulsão, e que os poucos que ficarem sejam cidadãos de segunda classe.

    Agora, a posse de Donald Trump nos EUA, que tem um acordo mais estreito com o governo de Netanyahu, permite que Israel deixe de lado o discurso demagógico e apresente claramente seu projeto e o transforme em instituições e leis. O caráter de Israel se desnuda, o projeto de Ben Gurion e dos fundadores torna-se explícito.

    Como expressão dessa política para institucionalizar o projeto sionista até o fim, Netanyahu já havia posto em prática a definição de Jerusalém como capital exclusiva em novembro de 2017. Pela resolução da ONU na partilha de 1947, Jerusalém teria de ser internacionalizada para permitir o acesso das três religiões que a consideram sagrada – e ter a administração dividida entre os dois estados. Trump, então, decidiu anunciar a mudança de sua embaixada para Jerusalém.

    A definição final de Israel como Estado baseado em apartheid foi votada no Knesset (parlamento israelense) no dia 19 de julho de 2018. Essa já era a realidade na prática, mas agora está no papel. A mudança legal define Israel como um Estado exclusivamente judeu. Segundo essa lei, os assentamentos judaicos em todo o território da Palestina são considerados parte do Estado de Israel e devem ser defendidos. A população árabe é relegada à condição de não-cidadã, e seu idioma não é reconhecido como uma das línguas. Essa lei gerou uma reação ampla dos árabes que vivem no território palestino de 1948 (que hoje se denomina Israel) e até dos drusos, pois oficializa o Estado racista de Israel.

    Os drusos compõem um setor minoritário que os sionistas atraíram desde a Nakba, para separá-los dos demais palestinos, tanto que muitos deles são recrutados e servem ao exército israelense, ocupando, inclusive, altos cargos oficiais. Mesmo assim, ficaram também excluídos da cidadania. Daí seu protesto contra a lei. 

    Nas palavras de uma diretora da organização de esquerda norte-americana Jewish Voice for Peace (Voz Judaica para a Paz), a rabina Alissa Wise:

    Hoje, abandonamos de uma vez por todas a ilusão de que Israel é uma democracia. O projeto do Estado-nação que Israel aprovou hoje consolida Israel como um Estado de apartheid – da Cisjordânia a Gaza, a Jerusalém e a Haifa. Os palestinos, não importa onde morem, são controlados por um governo e por forças armadas israelenses que os privam dos direitos e de liberdades fundamentais.5

    A perda de apoio entre os intelectuais

    Em 1948, boa parte da intelectualidade de esquerda europeia da época apoiava o Estado de Israel. Nomes como o filósofo Jean-Paul Sartre, em 1949, comovidos pelo genocídio dos judeus europeus pelos nazistas, tornavam sua fundação um avanço da democracia e do progresso, dizendo que um Estado de Israel autônomo legitimava os combates do povo judeu e “era um dos mais importantes acontecimentos de nossa era […] para todos nós significa um progresso concreto em direção a uma humanidade onde os homens serão o futuro do homem”. 6 Saudavam a libertação dos sobreviventes de um povo chacinado sem se aterem ao que a fundação de Israel significava para os palestinos e para os próprios judeus que, atraídos pela ideia sionista, caíam assim numa armadilha.

    O BDS

    Hoje existe um desencanto crescente, pois a realidade golpeou os mitos divulgados pelo sionismo e pela mídia imperialista. Em vez da ideia de 1948-1949, do resgate de um povo perseguido, aparece a imagem real de um estado militarista com líderes racistas, praticando massacres, matando crianças etc. Existe uma campanha ampla e democrática de boicote a Israel que começou em 2005, a partir de uma frente de organizações sindicais e democráticas palestinas e inspirada no boicote contra o regime de apartheid da África do Sul.

    A campanha tem como um dos centros o reconhecimento do direito de retorno aos palestinos expulsos de suas terras. Já atingiu alguns sucessos, como o grande físico Stephen Hawkings, que se recusou a comparecer a um evento em Israel depois dos massacres de Gaza. Teve a adesão de artistas como os atores Javier Barden, Danny Glover, Penelope Cruz, o diretor Pedro Almodóvar, os músicos Roger Waters, Santana e muitos outros. No futebol, a seleção argentina de 2018 acabou desistindo de jogar uma partida em Israel diante da pressão dos ativistas do BDS. O chamado ao boicote cumpre um papel muito importante, como o foi na África do Sul do apartheid, e começou a preocupar seriamente Israel e o stablishment sionista. Já existe um dispositivo de espionagem do governo sionista articulado com seus representantes nos países para tentar criminalizar as ações de boicote, acusando-as de antissemitas.

    A perda de apoio de Israel na comunidade judaica em todo o mundo

    Israel conseguiu, durante muitos anos, apoiar-se, por um lado, na principal potência imperialista, os Estados Unidos, e, por outro, na comunidade judaica, em especial na burguesia que sustenta o projeto sionista com o apoio financeiro e político-midiático. De todo o mundo, a principal fonte de sustento é a colônia judaica norte-americana, por sua força econômica e política. Calcula-se em três milhões o número de judeus nos EUA. Pesquisas recentes mostram um afastamento crescente dos jovens de origem judaica de Israel, em especial por conta das práticas racistas explícitas de massacres de civis desarmados em Gaza. Diante desses ataques, a atriz israelense Natalie Portman recusou-se a receber um prêmio israelense.

    Nesse sentido, Israel vem perdendo terreno e sua imagem desgasta-se cada vez mais com a ruptura de judeus com o sionismo e o surgimento de grupos cuja ação dirige-se contra os abusos de Israel. Existe uma série deles, como a rede Ijan. O grupo Jewish Voices for Peace, que sempre denuncia os abusos e aderiu ao BDS, alega ter mais de 60 mil filiados e 250 mil seguidores. Ao se colocar a favor do direito de retorno dos palestinos, desafia diretamente um dos postulados do sionismo: não permitir a volta dos palestinos às suas terras, o que geraria uma maioria de árabes em relação aos judeus na Palestina.

    Os dirigentes do establishment sionista estão alarmados. Ronald Lauder, presidente do Congresso Judaico Mundial, figura importante do lobby sionista, declarou-se preocupado com a perda de legitimidade de Israel e a dificuldade de seus apoiadores judeus tradicionais nos EUA e em outros locais do Ocidente em defenderem suas ações, o que poderia “levar a uma divisão entre o Estado judeu e seus apoiadores”. 7 Entre suas preocupações, a maior é com a juventude judaica que “não quer mais se associar a uma nação que discrimina judeus não ortodoxos, minorias não judaicas e a comunidade LGBT” e até mesmo quer “deixar de combater o BDS, deixar de sustentar Israel em Washington” e deixar de garantir a “retaguarda estratégica que Israel tanto necessita”. Isso não modifica a relação estreita entre as altas esferas do Estado norte-americano, seu Congresso e a força do lobby sionista, como o AIPAC, 8 mas mostra sua perda de legitimidade crescente.

    Outra fonte de desprestígio é a ação cada vez mais repressiva do Estado de Israel contra os ativistas de direitos humanos e contra os dissidentes judeus de dentro e de fora. Nas últimas semanas, aumentaram as medidas contra advogados, como o diretor da Human Rights Watch para Israel e Palestina, Omar Shakir, um norte-americano de origem palestina que foi impedido de permanecer em seu escritório em Ramallah, na Cisjordânia, e teve de deixar o país. Assim como os abusos na entrada do aeroporto contra dissidentes e ativistas de direitos humanos e até jornalistas judeus liberais que se tornam suspeitos por fazerem críticas, como Peter Beinart, da rede de TV CNN. Cem advogados ligados aos direitos humanos fizeram uma carta protestando contra esses abusos.

    Notas:

    1. Dados de J. Nitzan e S. Bichler, “The global political Economy of Israel”, cap. 5: The Weapondollar-Petrodollar Coalition. ↩︎
    2. Extraído do site da Ijan – Rede Internacional de Judeus Antissionistas, “El Rol de Israel en la Represión Mundial”, publicado em fevereiro de 2013. ↩︎
    3. Idem ↩︎
    4. Idem ↩︎
    5. Extraído do site da Jewish Voice for Peace. Declaração publicada em 19 de julho de 2018. ↩︎
    6. Extraído do texto “O nascimento de Israel”, de Jean-Paul Sartre, publicado em junho de 1949. ↩︎
    7. Haaretz, 8/8/2018. ↩︎
    8. Comitê de Assuntos Públicos EUA-Israel, fundado na década de 1950, com mais de cem mil membros ativos. ↩︎

    Publicado em junho de 2018 na revista Marxismo Vivo N. 12.