Autor: Zezoca

  • O que é o Estado de Israel e por que deve ser destruído?

    O que é o Estado de Israel e por que deve ser destruído?

    A lenda sionista conta que a criação de Israel foi como mais uma nação entre as que conseguiram sua independência política no pós-Segunda Guerra Mundial, com rebeliões ou guerras de libertação nacional contra seus colonizadores imperialistas. Índia, Indonésia, Argélia, Vietnã são alguns dos exemplos mais marcantes desse processo.

    Por: José Welmowicki e Alejandro Iturbe

    Em primeiro lugar, a implantação de Israel difere totalmente destes exemplos, pois ele é um enclave instalado na Palestina para defender o imperialismo em terras estratégicas e com base na transplantação de uma população externa à região, os judeus. Apoiada na perseguição antissemita, uma imigração, em especial da Europa oriental, é estruturada pela organização mundial sionista, financiada por milionários como Rothschild e estimulada por metrópoles como a Inglaterra, para garantir a fidelidade desses novos ocupantes a seus patrocinadores imperialistas. A comparação correta é com os colonos ocidentais implantados nos séculos XIX e XX, nas colônias, a exemplo dos ingleses na Rodésia (hoje Zimbábue) e nas Malvinas ou dos franceses na Argélia, africâneres no sul da África etc.

    Não por acaso, as potências imperialistas os promoveram, e os líderes de todas essas empresas colonizadoras, como Cecil Rhodes, respeitavam-se e tiveram relações políticas. Não são uma nacionalidade local que é oprimida pelos impérios, mas uma população estrangeira que se instala nas terras dos nativos e exerce um papel opressor e a serviço de seu imperialismo nessa área. Como são transplantes de uma minoria colonizadora, para manter-se, tem um caráter racista e militarista, assim como eram o governo branco da Rodésia, os colonos franceses na Argélia e a África do Sul do apartheid.

    O Estado de Israel serviu para as grandes potências imperialistas disporem de um cão de guarda numa região estratégica, o Oriente Médio. O líder sionista Chaim Weizmann, depois presidente de Israel, chegou a garantir ao imperialismo inglês no fim da Primeira Guerra Mundial: “uma Palestina judaica seria uma salvaguarda para a Inglaterra, em particular no que diz respeito ao canal de Suez”. Apoiado nessa população de colonos que se deslocaram para a Palestina atraídos pela pregação sionista, Israel sempre se comportou de acordo com esse projeto e a essa finalidade.

    Um Estado racista

    Israel, desde sua fundação, constitui-se como Estado racista, tanto no plano ideológico quanto no legislativo. Israel é oficialmente um Estado judeu, ou seja, não de qualquer habitante que ali resida, mas somente daqueles que se consideram da fé ou de descendência judaica. Para ficar mais inequívoco este caráter, 90% das terras se reservam exclusivamente para os judeus via Fundo Nacional Judaico, que, por estatutos, não pode nem vender, nem arrendar, nem sequer permitir que essa terra seja trabalhada por um “não judeu”. Mais ainda, proíbe-se aos palestinos qualquer compra ou mesmo arrendamento das terras anexadas pelo Estado desde 1948.

    Ao mesmo tempo, os judeus do mundo inteiro podem legalmente emigrar e obter, com a nacionalidade israelense, um sem número de privilégios sobre os nativos não judeus. Desde sua fundação, existe um sistema de discriminação racial que domina absolutamente todos os destinos das vidas palestinas; o que se diria hoje de um país que tivesse como política oficial a expropriação de terras de judeus ou que simplesmente proibisse que um cidadão de seu país pudesse assentar-se nele se se casar com uma mulher judia? Obviamente se diria tratar-se de um flagrante caso de discriminação, de antissemitismo e seguramente seria comparado com o nazismo ou com o apartheid sul-africano. No entanto, isso em Israel é legal por meio de uma série de instituições e leis que restringem somente os cidadãos não judeus de Israel.

    Dentre essas leis, destacam-se algumas. A Lei de Nacionalidade estabelece nítidas diferenças na obtenção da cidadania para judeus e não judeus. Pela Lei de Cidadania, nenhum cidadão israelense pode casar-se com um residente dos territórios ocupados da Palestina; em caso de se realizar a união, os direitos de cidadania em Israel se perdem, e a família, se não for separada, deve emigrar. Pela Lei de Retorno, qualquer judeu do mundo pode ser cidadão israelense. No caso dos cidadãos palestinos do Estado de Israel que têm familiares no estrangeiro, estes não podem obter o mesmo benefício somente pelo fato de não serem judeus. A Lei do Ausente permite a expropriação de terras que não tenham sido trabalhadas durante um tempo. Paradoxalmente, nunca foi expropriada a terra de um judeu, e a maioria delas foram expropriadas de refugiados palestinos no exílio, assim como de palestinos cidadãos de Israel e todo palestino que, residindo na Margem Ocidental, tenha terras na área ampliada de Jerusalém.

    Estas leis – apenas uma parte do total utilizado exclusivamente contra a população árabe em Israel – não só tem um elemento econômico importante (pela perda de numerosas extensões de terras), mas principalmente possuem um componente social: a divisão de famílias, forçando-as a emigrar. Começou a ser denunciado o fato de impedir até mesmo a realização de casamentos entre pessoas não judias que habitem áreas distintas dos territórios ocupados ou até mesmo a reunificação de famílias, marido e mulher, pais e filhos:

    Em 2000, similarmente eles “reavivaram” regras que foram tomadas com respeito aos palestinos cujos cônjuges eram cidadãos de países árabes, ou seja, não ocidentais. Eles não tiveram permissão para retornar a suas casas. Entre 1994 e 2000, durante os anos de Oslo, foram dadas instruções para atrasar o processo de “unificação familiar”, pelo qual dezenas de milhares de famílias nos territórios ocupados estão esperando, a um mínimo. Estas famílias não estão morando em Haifa ou Ashkelon, mas na Margem Ocidental e na Faixa de Gaza.

    Os postos de controle “só para palestinos”, com as esperas propositais e irritantes nas suas entradas impostas pelo exército de ocupação, contrastando com as modernas e livres estradas “só para judeus”, são outro elemento de exasperação para fazer com que os palestinos desistam de ali ficar, mas ao mesmo tempo de revolta profunda.

    A construção do Muro ao largo e dentro dos limites municipais de Jerusalém impedirá definitivamente a volta dos palestinos expulsos de Jerusalém pelo confisco de suas terras, a demolição de suas casas ou pressões de grupos de colonos extremistas. Perderão seus direitos de residência permanente em Jerusalém segundo a política do “centro de vida” e nunca mais poderão entrar na cidade sem permissões especiais. As propriedades que tiverem abandonado em Jerusalém podem ser desapropriadas segundo a lei israelense de Proprietários Ausentes.

    Uma sociedade cada vez mais violenta e militarizada

    Um Estado como o israelense necessita exercer a violência contra a população dominada de forma permanente. Para manter seu caráter colonial e racista, ele não pode tolerar resistência interna nem desafios em suas fronteiras. Tem que ser expansionista e reprimir qualquer mínima contestação à sua natureza.

    Desde sua fundação, a fim de impor a ferro e fogo sua natureza racista, Israel praticou uma permanente limpeza étnica dos palestinos arrancando-os de suas terras ancestrais. Por isso, sempre teve como política consciente agredir os vizinhos árabes, tanto para arrancar terra e fontes de água quanto para impor a vontade imperialista na região, impedindo o desenvolvimento de qualquer nacionalismo que o ameaçasse, como fizeram com Nasser, e perseguindo de modo implacável os lutadores palestinos.

    Dos mais de dez mil presos políticos que apodrecem nos cárceres sionistas, centenas são menores. A tortura praticada sob autorização da justiça e os “assassinatos seletivos” nos territórios são a rotina que este monstro racista tem a apresentar como expressão de sua essência nazista. Isso porque, quando um Estado persegue um povo inteiro com objetivos de eliminar sua identidade, de torná-lo escravo ou expulsá-lo, não há outro nome a dar ao regime desse Estado.

    Para defender esse caráter do Estado, a população israelense vive sempre em pé de guerra. A população foi educada a estar sempre a serviço do Exército, pois só a força das armas pode garantir uma situação como essa. Por isso, as Forças Armadas são sua instituição mais importante. E o papel desse Exército é impor aos palestinos e povos vizinhos a submissão, o saque de suas terras, com o uso extremo da violência.

    Essas exigências permanentes em nome da “segurança de Israel” criam uma realidade de permanente chamado às armas. Todos os homens e mulheres servem respectivamente três e dois anos ao completar dezoito anos e são reservistas por quase toda a vida, fazendo treinamentos anuais de um mês. Mesmo assim, não conseguem a tão ansiada “segurança”. Até a primeira derrota, em 2000, ainda eram anestesiados pelo mito do exército invencível.

    A violência em Gaza ou na Cisjordânia não é noticiada em Israel. Afinal, os palestinos não são considerados seres humanos; serem mortos ou torturados pelas Forças Armadas, para o establishment, era uma decorrência do “direito de se defender”. Antes a questão nem entrava na pauta dos jornais israelenses, aparecia como um problema de polícia exclusivo dos territórios. Era preciso apenas impedir os atentados suicidas com mais repressão ainda e isolá-los totalmente, daí o projeto do “Muro da Vergonha”. O resto, o Tsahal (Exército) garantiria.

    A situação econômica é desastrosa. Israel só sobrevive graças ao sustento estadunidense. Sua economia gira totalmente em torno da guerra em detrimento de todos os demais setores. O que se vê é uma cultura militarista e sanguinária. Os mercenários israelenses são conhecidos no mundo inteiro, recrutados em guerras coloniais ou por ditaduras, caso semelhante aos mercenários sul-africanos.

    As divisões e desigualdades entre diferentes grupos da população e setores de imigrantes judaicos são patentes. Os judeus orientais ou sefaradis recebem melhor trato que os árabes israelenses, mas são discriminados em relação aos ashkenazis originais da Europa. A imigração de um milhão de russos (judeus ou supostos judeus) originou um clã pouco apreciado pelos outros grupos sociais, por sua fama de aproveitadores e permanentes negociadores de subsídios do Estado. Os partidos que os representam são de extrema direita e estão sempre a exigir suculentos cargos e negociatas para manter seu apoio ao governo de turno.

    Outro setor que cumpre um papel de parasita e é sustentação direta da extrema-direita religiosa e de seus políticos racistas e corruptos são os colonos que vivem nos territórios ocupados em 1967. Como se viu na “desocupação” de Gaza, seus interesses são exigir mais e mais regalias do Estado para ser a ponta de lança da colonização e da expulsão dos palestinos. Geralmente quem cumpre esse papel são os judeus das últimas levas de imigrantes a chegar a Israel, os russos ou orientais, aos quais o Estado sionista destina terras financiadas, subsídios, com a condição de que aceitem viver em bunkers ao lado da população árabe e ser ponta de lança para agredi-los, atacar seus olivais, fazer com que saiam das poucas terras que lhes restam.

    Por fim, nos últimos anos, tem havido uma população flutuante de imigrantes temporários ilegais trazidos dos lugares mais distantes e sem conexão com a região, como Filipinas e outros pontos da Ásia. Eles são trazidos para substituir a mão de obra palestina, à medida que o fechamento de fronteiras impede que eles trabalhem nas empresas dentro do território de 1948. Esses duzentos e cinquenta mil semiescravos não judeus são fundamentais em áreas como construção, mas não tem nenhum direito, são párias que deixam ainda mais precários os laços da sociedade em Israel, vivendo à sua margem.

    Apesar das crises e diferenças, os colonos defendem seu Estado

    Evidentemente, há um laço comum que liga todos os cidadãos judeus israelenses: eles sabem que de uma maneira ou de outra vivem do saque a outro povo e do apoio que têm do imperialismo para cumprir o papel de cão de guarda na região. Sabem que os povos árabes e muçulmanos são suas vítimas e temem que essa massa se una e os expulse. Por isso, a única coisa que sustenta hoje a coesão dessa sociedade racista e violenta é o medo do “inimigo comum”, o que é permanentemente lembrado com força pelos dirigentes israelenses de todas as cores. “Ou eles ou nós” é a mentalidade primitiva usada para manter a união, é o único nexo possível de união, ou “nosso direito à existência” enquanto Estado racista, enquanto privilegiados saqueando os nativos e explorando seus escravos.

    Devido a isso, a maioria dos israelenses está a favor da “separação” e da limpeza étnica de palestinos e da destruição do Hezbollah; apoiou a guerra contra o Líbano, inclusive seu caráter genocida. Por isso, a cada guerra, mesmo com as derrotas, os políticos que se fortalecem são os mais fascistas do espectro político sionista.

    Um exército em processo de corrupção

    Mas se é assim, por que a derrota abriu uma profunda crise? Porque mostrou que Israel é “um país vulnerável”. Que o Exército e a superioridade militar não lhes dão uma garantia eterna, e os refugiados de Haifa e do norte do país provaram na carne essa situação. E, depois de anos sem batalhas contra os exércitos árabes, já percebem que não conseguem enfrentar uma guerrilha. Uri Avnery, pacifista israelense da organização Gush Shalom escreveu um artigo em que faz um diagnóstico avassalador:

    “[…] a ocupação está corrompendo nosso Exército […] A última guerra séria de nosso Exército foi a Guerra do Yom Kippur (1973). Depois de vários importantes reveses, obteve uma vitória impressionante. Porém, quando isso ocorreu, a ocupação só tinha seis anos. Agora, trinta e três anos depois, vemos o dano feito pelo câncer chamado ocupação, que já se espalhou a todos os órgãos do corpo militar.

    Generais como Dan Halutz, comandante supremo que se preocupou em lucrar na Bolsa no mesmo dia em que se decidia a invasão, são um sintoma do grau de deterioração da moral e das relações nas antes incensadas cúpulas das Forças Armadas israelenses.

    Avnery refere-se ao fato de que a descomunal desigualdade entre as Forças Armadas sionistas e os resistentes palestinos levou os oficiais e soldados israelenses a se acostumarem durante vários anos a atacar seus alvos sem ter de se preocupar com a resposta, como os pilotos da força aérea que bombardearam e assassinaram à vontade sem correr riscos. Mas agora eles têm de enfrentar uma verdadeira guerrilha, e aí não têm moral nem treinamento necessários:

    Durante trinta e nove anos, foram obrigados a realizar o trabalho de uma força policial colonial: correr atrás de meninos que atiram pedras e coquetéis molotov, arrastar mulheres que tratam de impedir que prendessem seus filhos, capturar pessoas que dormem em suas casas.

    O problema é que isso vale não somente para os que perseguem palestinos nos territórios ocupados, é a característica intrínseca de um Estado policial colonial. E, para um enclave, ter um problema dessa gravidade em suas Forças Armadas é aterrador, gera uma insegurança em todos os níveis da sociedade. À medida que a realidade vai se mostrando cada vez mais perigosa como tendência, muitos israelenses se cansam deste ambiente, fato que se traduz num número não desprezível de fugas. Eesconde-se essas cifras cuidadosamente, mas já são um fato: um número considerável de israelenses, muitos deles da elite intelectual e profissional, busca uma solução individual para sair do inferno da guerra permanente migrando. Esses migrantes saem com discrição, alegando ir estudar ou trabalhar no estrangeiro (principalmente Estados Unidos e Europa), mas muitos ficam fora e só visitam o país brevemente para ver as famílias.

    Na propaganda sionista, nem se menciona esse fato; só se mostram os novos imigrantes judeus que chegam para se fixar em Israel, chegando ao aeroporto mesmo durante a guerra, tentando demonstrar uma ardente fé sionista. Outra cifra que vai aumentando é a deserção não explícita, saída de jovens em idade militar, que tratam de evitar as frentes e o serviço em territórios palestinos ou libaneses.

    O povo israelense e seus operários podem se voltar contra o sionismo?

    As crises em Israel e em especial no Exército são muito importantes porque debilitam o Estado, abrem brechas para que a resistência possa golpear e preparam sua derrota. Contudo, não pensemos que se trata de um país normal, inclusive se o compararmos com um país imperialista. Aqui a população é formada por colonos que dependem da manutenção do Estado racista para manter seu nível de vida e sua proteção contra as reivindicações dos povos espoliados. Vejamos o que conta uma crônica de uma militante espanhola que passou várias semanas com os palestinos e depois em Israel e nas colônias sionistas da Cisjordânia:

    “[…] o sentimento de prepotência e superioridade dos israelenses e sua concepção dos palestinos e árabes em geral como seres inferiores, incivilizados, violentos e aos quais temem de uma forma totalmente irracional. Este sentimento se aguça durante o serviço militar e pode ser percebido com toda sua crueza em cada um dos checkpoints que se precisa atravessar. É habitual ver como os soldados tratam os palestinos como animais.

    Ao visitar uma colônia na Cisjordânia, ela relata:

    O que se vê e se sente quando se passeia por ali é que são lugares sem alma. São lugares tão artificiais, tão alheios ao entorno que os rodeia, que indubitavelmente a maneira mais acertada de qualificá-los é de “câncer”. Câncer, como tecido que cresce totalmente diferente do tecido sobre o qual se localiza e que, além disso, é daninho e pode ser letal. Outra coincidência entre as colônias e o câncer é seu tratamento. Seu tratamento não pode ser outro que a destruição desse novo, alheio e daninho tecido, sua destruição ou sua extirpação radical. E não há outra saída.

    A chantagem do antissemitismo

    Desde que Israel surgiu, seus dirigentes e o sionismo utilizaram a chantagem do Holocausto nazista para impor sua política. Frente ao massacre nazista, a comoção mundial foi utilizada pelo sionismo para vender a ideia de que a única saída para a perseguição era a criação de um Estado judeu na Palestina. Esse Estado seria um refúgio e a única garantia de paz e segurança para todos os judeus do mundo. Essa gigantesca falácia agora se mostra em toda sua crua realidade. Ao se basear na espoliação de outro povo – o palestino –, ao se converter neste monstro colonial, racista e opressor, transformou-se hoje na “maior fábrica de vírus do antissemitismo” segundo a expressão de Uri Avnery.

    No entanto, os sionistas não desistiram de usar o fantasma do antissemitismo, agora para impedir a divulgação e tirar a atenção de sua crueldade com os palestinos ou pelo menos inibir as críticas e incitar mais judeus a se instalarem em Israel “para defender seu único refúgio”. Mas a chantagem do antissemitismo, esse terrorismo intelectual e moral, essas constantes mentiras fomentadas pelos políticos imperialistas e pela mídia servem para tentar calar os críticos. A manipulação permanente, pelos sionistas, quanto ao genocídio dos judeus também acaba por se desgastar.

    O estudo do nazismo e do ascenso do fascismo mostraria que ele foi tolerado e estimulado pelos regimes “democráticos” dos países imperialistas, pois esperavam que eles pudessem reprimir seus movimentos operários e invadir a urss. E que o sionismo da época foi cúmplice e nada fez para salvar os judeus da Europa ocidental das câmaras de gás.

    Agora, em nome de evitar o antissemitismo, querem que se avalizem os métodos genocidas de Israel, se calem perante os crimes de Israel e sobre o local onde está o verdadeiro fascismo de hoje.

    A polêmica sobre a natureza e a solução para a Palestina

    Podemos dizer que é cada vez maior o número dos que se horrorizam com a ação genocida de Israel, repudiam os assassinatos e buscam uma saída para essa situação permanente de guerra na região. Entre eles, há três posições sobre qual deve ser a saída.

    A mais difundida era a solução dos “dois Estados”, um judeu e outro palestino, no mesmo sentido da proposta da onu de 1948. Desde os acordos de Oslo, havia uma pressão muito forte para que os palestinos aceitassem essa solução, e a traição da OLP, sob a direção de Arafat, permitiu a implantação deste “engendro”, a ANP, que legitima Israel e se coloca a tarefa impossível de articular um “Estado” de bantustões totalmente dominados nos planos econômico e militar pelo opressor racista. Como bem classificou Edward Said na época, algo como o governo colaboracionista de Vichy sob a dominação nazista na França. Essa alternativa seria a coexistência lado a lado de um Estado racista e outro das populações excluídas, ou seja, do câncer ao lado do tecido vivo.

    Porém, depois de quase quinze anos de Oslo, alguns de seus partidários na esquerda começaram a ver que a proposta é cada vez mais inviável, por conta da própria ação de Israel, que cada vez se apropria de mais terras e expulsa mais palestinos. O “Muro da Vergonha”, o roubo de mais da metade das terras da Cisjordânia, das fontes de água etc. inviabilizaram até mesmo o miniestado destinado aos palestinos em Oslo. O enclave sionista não aceita se retirar de territórios ocupados em 1967 nem dar nenhuma autonomia real aos palestinos, muito menos anexar os territórios dando direitos aos palestinos, pois temem o “perigo demográfico” de anexar três milhões de “não judeus”. Não se pode pôr um fim à política de apartheid imposta na Palestina por uma sucessão de leis e reformas pressionadas pela revolta palestina, algo como o que se passou no fim do apartheid na África do Sul.

    Voltamos a ter a grande questão colocada na ordem do dia: é necessário destruir o Estado de Israel e qualquer outra solução só fará perpetuar a opressão e a expansão do câncer. E essa destruição só pode ser feita pela luta política e militar unificada, não somente das massas palestinas, mas também das massas árabes e muçulmanas. Nessa luta, é positivo cada golpe infligido ao Estado e seu Exército e a aparição de uma insegurança que leva cada vez mais gente a pôr em dúvida sua estada lá. Só depois de anos de rebelião, ações guerrilheiras e uma campanha mundial a favor da independência da Argélia grupos fascistas como a OAS foram derrotadas, os colonos da França foram obrigados pela insurreição argelina a abandonar seus enclaves, e a Argélia pôde comemorar sua independência.

    Aqui entra outro problema: em Israel por sua natureza de Estado policial, todas as estruturas são parte do sistema militar, por isso todos os judeus lá são soldados na ativa ou na reserva até os cinquenta anos de idade. Um kibutz é uma fortaleza armada dos colonos; uma cidade israelense, o mesmo. O quartel-general está em Tel Aviv. Assim, qualquer estrutura do Estado é alvo necessário da guerra de libertação nacional. Os foguetes que caíram sobre as cidades do norte são uma arma legítima da resistência e, ao abater o moral dos colonos, ajudam o objetivo de destruir o Estado genocida. Ademais, esse foi o efeito dos que atingiram Haifa ou outras cidades. Nada mais injusto que o “meio justo” da Anistia Internacional, que condena os dois lados por igual, por “crimes de guerra”. Essa destruição do Estado de Israel permitiria a recuperação do território histórico da Palestina e a construção de uma Palestina laica, democrática e não racista, antiga reivindicação da OLP dos anos 1970. Nessa Palestina, sem muros nem campos de concentração, os milhões de refugiados poderiam retornar e todos os judeus que quisessem viver em paz poderiam permanecer da mesma forma como durante muitos séculos viveram no mundo árabe.

    Publicada em outubro de 2006 na revista Marxismo Vivo N. 14, e no E-book O Oriente Médio na perspectiva marxista, Ed. Sundermann.

  • A decadência do antigo Secretariado Unificado a partir de sua visão sobre os processos do Leste

    A decadência do antigo Secretariado Unificado a partir de sua visão sobre os processos do Leste

    O morenismo 1 surgiu da luta frontal contra as revisões programáticas do pablismo 2 na década de 1950 e, em seguida, na luta contra a corrente majoritária do antigo Secretariado Unificado (SU), liderada por Ernest Mandel. 3 Livros como O Partido e a revolução e A Ditadura revolucionária do proletariado, ambos de Nahuel Moreno, são expressões dessas polêmicas.

    Por: José Welmowicki

    Contudo, após a morte de Moreno, nossa corrente acompanhou a evolução teórica e política do ex-SU apenas superficialmente. Isso ocorreu apesar de o próprio Moreno ter consolidado a Liga Internacional dos Trabalhadores – Quarta Internacional (LIT-QI) contra a corrente revisionista e liquidacionista organizada, então, no SU, que Moreno caracterizava como “o centro do revisionismo4 no seio do trotskismo.

    Há muitos anos, o ex-SU deu o salto de uma organização revisionista para o reformismo puro e simples: removeu explicitamente de seu programa a estratégia da ditadura do proletariado; abandonou a concepção de centralidade da classe operária no processo revolucionário; 5 seus dirigentes estiveram entre os principais ideólogos e apoiadores dos partidos amplos e anticapitalistas, principalmente na Europa; dissolveram sua seção mais importante, a Liga Comunista Revolucionária francesa, para fundar o Novo Partido Anticapitalista (NPA) com um programa reformista; não só apoiaram distintos governos burgueses que chamavam de progressistas, como o de Chávez, 6 promovendo a ideologia do “socialismo do século XXI”, como participaram diretamente de governos burgueses de colaboração de classes como o de Lula, no Brasil.

    Em nossa opinião, o SU, hoje Comitê Internacional (CI), é a corrente internacional com origem no trotskismo que ainda mantém alguma influência, e reflete de maneira mais nítida – teórica e politicamente – os efeitos do que chamamos de “vendaval oportunista”. Não é por acaso que seja atualmente um polo de atração para setores de diferentes origens, como o Movimento Esquerda Socialista (MES) brasileiro, o MST argentino, ou o Socialist Workers Party (SWP) britânico. Embora funcionem como uma federação frouxa de partidos e movimentos e, apesar de terem perdido força nas últimas décadas (como consequência de suas mudanças políticas que se refletem no declínio do NPA francês), suas elaborações têm alcance internacional e servem para justificar teoricamente a capitulação da esquerda à democracia burguesa e ao reformismo.

    Por essa razão, é importante retomar um estudo mais profundo sobre o conteúdo da elaboração do ex-SU no marco de nossa reelaboração programática. Demos um passo em relação à questão de seu programa e da ditadura do proletariado, sua concepção de Estado, a estratégia dos partidos anticapitalistas e sua visão sobre a Europa e o imperialismo. Porém, estamos atrasados no estudo rigoroso das premissas teóricas e das transformações de fundo em que se apoiaram para chegar à sua atual visão de mundo.

    Do revisionismo ao reformismo

    Nossa corrente sempre definiu o SU de Mandel como uma correte revisionista e liquidacionista. Ao caracterizá-los como revisionistas, dizíamos que seus desvios, zigue-zagues e capitulações não eram o resultado deste ou daquele erro político circunstancial. Pelo contrário, deviam-se ao fato de que o SU cristalizara-se como uma corrente que negava os pilares fundamentais do marxismo e do trotskismo.

    As Teses de Fundação da LIT-QI definem claramente as características do que chamamos de revisionismo:

    No decorrer desta longa marcha, todos os principais acontecimentos da luta de classes (principalmente cada grande vitória revolucionária de dimensões globais) motivaram, em algum setor de nosso movimento, uma tendência à adaptação à direção burocrática ou nacionalista dessas vitórias.

    A luta pela construção de uma direção revolucionária internacional implica a luta pela destruição de todas as direções burocráticas ou nacionalistas que concorrem conosco no seio do movimento de massas. O processo de construção de uma direção revolucionária significa, ao mesmo tempo, uma “guerra implacável” (como diz com razão o Programa de Transição) contra todas as outras correntes burocráticas e/ou pequeno-burguesas do movimento de massas.7

    Nesse sentido, as teses definem qual é a característica comum de todas as diferentes tendências revisionistas: “o fato de que propõem, não a guerra implacável, mas algum tipo de bloco com alguma tendência burocrática e/ou nacionalista, porque esta supostamente desempenha um papel progressista e até mesmo revolucionário”. 8

    A consequência não foi outra senão a liquidação do partido revolucionário e da IV Internacional. O revisionismo havia sido “o principal obstáculo subjetivo na longa marcha rumo à construção de uma direção revolucionária internacional”. 9

    Desde a década de 1950, Pablo e Mandel, impactados pelo fortalecimento relativo do stalinismo no segundo pós-guerra e pelo surgimento dos primeiros estados operários deformados, imprimiram um giro à IV Internacional, a partir da direção do então Secretariado Internacional (SI), orientando todos os seus partidos a realizarem o “entrismo sui generis” nos Partidos Comunistas ou em movimentos nacionalistas burgueses, porque, segundo eles, o stalinismo seria obrigado a dirigir revoluções no marco de uma III Guerra Mundial iminente. Isso levou à crise e inclusive à dissolução de quase todos os partidos que seguiram essa orientação. O SU como tal nasceu em 1963, em torno à defesa da revolução cubana, e Mandel encabeçou sua ala majoritária. Essa ala não fez o balanço dos graves erros do período anterior e continuou com a mesma linha impressionista, capitulando a qualquer fenômeno dito progressista que aparecesse e impactasse a vanguarda. Foi então a vez de capitular à direção castrista 10 e aos movimentos guerrilheiros, novamente com resultados desastrosos para o trotskismo internacional. O mesmo aconteceu diante do Movimento das Forças Armadas (MFA) de Portugal e, em seguida, com o chamado eurocomunismo. Na Nicarágua, o SU apoiou o governo de unidade nacional composto pelos sandinistas 11 e por Violeta Chamorro, 12 defendendo-o como um “governo operário e camponês”.

    A trajetória do revisionismo ao reformismo foi concluída a partir dos processos do Leste Europeu, aos quais caracterizam como uma profunda derrota do movimento de massas, que abriu uma crise no projeto socialista. Essa premissa e as conclusões dela derivadas levaram o SU a uma adaptação completa aos novos aparatos eleitorais surgidos da crise dos PCs e da social-democracia clássica, como o SYRIZA (Grécia), o Podemos (Espanha), etc. A tese do ex-SU é a de que os limites dessas novas direções obedecem às características de uma nova época, marcada pelo retrocesso da consciência das massas, que, por sua vez, resultaria da suposta derrota histórica no Leste Europeu. A partir daí, concluíram que não haveria outra saída a não ser apoiar ou ser parte dessas organizações.

    “Uma mudança de época”

    Os processos do leste significaram, para a grande maioria da esquerda, o início ou o agravamento de sua bancarrota teórica, programática e política. Influenciada pelo stalinismo e suas variantes – para o qual, como aparato, o fim da URSS significou, evidentemente, uma derrota histórica – em diferentes graus e com diferentes tons, a quase totalidade da esquerda chorou o suposto “fim do socialismo real”, a falência do “bloco socialista”, etc. O caso do ex-SU não foi diferente. Pelo contrário, o ex-SU foi a vanguarda desse processo.

    Para eles, a queda do Muro de Berlim produziu nada menos do que “uma mudança de época”. Daniel Bensaïd, principal teórico dessa corrente depois de Mandel, intitula, dessa maneira, um relatório apresentado no XIV Congresso do SU, em julho de 1995. Nesse texto, Bensaïd define o caráter das transformações decorrentes do fim da URSS como uma “grande transformação mundial”, especificamente, como uma “mudança de época”. Note-se que Bensaïd não fala de período, ou etapa, mas de época. Concretamente, para o ex-SU, estava encerrada a época histórica definida por Lenin como de “guerras, crises e revoluções”, aberta com a I Guerra Mundial e o Outubro russo – que o marxismo entendia como uma época revolucionária, a época imperialista –, dando lugar a outra diferente: “não estamos mais no período político de 1968, não saímos ainda da onda longa depressiva e estamos no final de uma época, aberta pela Primeira Guerra Mundial e pela Revolução Russa”. 13

    A nova época não só colocava tudo em questão, como, para Bensaïd, implicava um retrocesso para o movimento operário de quase um século ao identificar o ponto de partida dos marxistas numa coordenada anterior a 1914:

    “[…] o laboratório que se abre é de uma amplitude comparável à do início do século, onde a cultura teórica e política do movimento operário foi forjada: análise do debate sobre o imperialismo, sobre a questão nacional, organização política, social, parlamentar.14

    Esta nova época seria, essencialmente, defensiva, pois, de acordo com Bensaïd, inaugurava-se com uma profunda derrota do movimento operário: o “desmantelamento da União Soviética sem culminar numa revolução política”. 15 Assim, Bensaïd estabeleceu como características de toda uma época “o enfraquecimento social dos trabalhadores” e a “crise do projeto socialista”. 16

    Bensaïd atribuía essas “relações de força mundiais” desfavoráveis não a fatores objetivos, mas a elementos subjetivos, como o retrocesso ideológico do movimento operário, devido aos “profundos efeitos da crise do socialismo real”. 17 Destacamos este argumento desse informe para não haver confusão: Bensaïd não está afirmando que teria surgido um período de desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo e que, portanto, estaria prevendo a possibilidade de conquistar reformas que trouxessem melhorias ao nível vida das massas (como se fosse o período da livre concorrência anterior ao advento da época imperialista). Não é por isso que ele opina que estaríamos numa nova época. Ele acredita que ocorreu uma mudança reacionária da época histórica devido ao retrocesso da consciência e à “crise do movimento operário”, ou seja, devido a elementos subjetivos.

    Bensaïd diz:

    As mudanças nas relações políticas mundiais após a queda do Muro de Berlim, o desmantelamento da União Soviética e a Guerra do Golfo deram o golpe final, causando uma crise aberta, não conjuntural, nas formas do anti-imperialismo radical da fase precedente. […] Neste momento, a tendência dominante em escala internacional é o enfraquecimento do movimento social (começando pelo sindical). […] A esquerda revolucionária está hoje mais pulverizada e enfraquecida que há cinco anos […] Para a reconstrução de um projeto revolucionário e de uma Internacional, partimos de condições significativamente deterioradas.18 

    Em nenhum momento destaca não só a importância, mas o próprio fato da destruição do aparato contrarrevolucionário mundial do stalinismo pelas mãos das massas soviéticas. Ou seja, o ex-SU respondeu ao problema crucial de saber quem, quando e como o capitalismo foi restaurado fazendo coro com as viúvas do stalinismo: culpando os limites das massas trabalhadoras e não a burocracia termidoriana e totalitária do Kremlin.

    Para nós, a restauração do capitalismo foi obra daquela burocracia, que, para garantir a continuidade de seus enormes privilégios, decidiu, em completo acordo com o imperialismo, transformar-se em proprietários capitalistas no marco do retorno da economia de mercado e do desmonte dos estados operários. No entanto, alguns anos mais tarde, as massas soviéticas fizeram o stalinismo pagar caro por essa traição e, com a sua mobilização revolucionária, destruíram, um por um, em menos de dois anos, os terríveis regimes totalitários de partido único da URSS e da Europa Oriental. É verdade que a perda dos estados operários significou uma derrota e a perda de uma conquista enorme da classe trabalhadora. A questão, no entanto, é que o processo não parou por aí. As massas soviéticas, embora não tenham conseguido reverter o processo de restauração, liquidaram o maior aparato contrarrevolucionário da história, impondo-lhe uma derrota histórica. Ao destruir o aparato stalinista, os povos soviéticos libertaram forças gigantescas antes aprisionadas pelo stalinismo. Essa não é apenas uma imensa vitória, mas o principal fato da luta de classes mundial após a Revolução Russa.

    A tendência histórica do ex-SU à capitulação aos grandes aparatos e à opinião geral da esquerda, num momento decisivo da história, levou-o a um novo e fatal seguidismo: somou-se ao triste coro de lamentações daqueles que sentem saudades do stalinismo.

    O programa da nova época

    A nova época exigia, nas palavras de Bensaïd, uma “redefinição programática”, “construir um novo programa”. 19 Por si só, isso não é um problema. Qualquer mudança importante na realidade exige uma atualização programática. O problema foram as premissas teóricas das quais Bensaïd partiu para elaborar esse novo programa e o método usado para construí-lo.

    Bensaïd e o ex-SU partiram da hipótese de que a queda da União Soviética significou um “eclipse da razão estratégica”. 20 Tudo estava questionado e, por isso, tinham o caminho livre para deixar para trás qualquer legado trotskista. Assim, abandonaram o método trotskista de elaborar o programa a partir das necessidades objetivas da classe operária para absolutizar o elemento subjetivo: a consciência das massas e, por essa via, subordinar o programa à correlação de forças que, por sua vez, expressaria esse atraso da consciência das massas.

    Coerentes com a caracterização de que a época de crises e revoluções que se abriu em 1914 estava encerrada e com a suposição de que a nova época estaria marcada pelo retrocesso, o problema do poder foi relegado para um futuro incerto, porque as massas não o veem.

    Nesse marco, a conclusão a que chegaram foi a de adaptar o programa a essa nova época, desprovida de possibilidades revolucionárias. Bensaïd chegou a propor em seu texto as novas coordenadas programáticas pós-leste. Sobre a Europa, o centro histórico do SU, o objetivo estratégico, passou a ser a luta por “uma Europa social e solidária”, “uma Europa pacífica e solidária” em oposição à “Europa financeira e não democrática”. 21

    Após descrever o fim da URSS, as novas instituições da globalização, o problema da reestruturação produtiva, Bensaïd propôs uma visão e um programa completamente reformistas, nos moldes do conceito liberal de cidadania universal e da utópica democratização e humanização do capitalismo, ideias que, pouco depois, foram amplamente difundidas em espaços como os Fóruns Sociais Mundiais:

    Pode-se conceber outra forma de cooperação e de crescimento do pla-neta: organismos reguladores internacionais substituindo o BM/FMI/OM-C/G-7; organismos que promovam o comércio internacional entre países de produtividade similar; transferência planejada de riqueza dos países que a acumularam durante séculos em detrimento dos países pobres; novos dispo-sitivos para regular as trocas que permitam projetos de desenvolvimento di-ferenciados, desconexão parcial e controlada do mercado mundial e uma política de preços correta; uma política migratória negociada neste contexto.” 22

    Como parte da ideia de um mundo regulado e negociado, no momento de “reformular os primeiros contornos de uma proposta que conduza a uma contestação de conjunto da ordem estabelecida”, Bensaïd continua enunciando os pontos centrais do que ele chama de “programa de transição”. No entanto, o leitor rapidamente perce- be que o conteúdo de tal programa não passa de um programa mí- nimo socialdemocrata, marcado pela completa ausência de qualquer medida anticapitalista. A citação, embora extensa, é importante por sua clareza:

    a) Cidadania/democracia (política e social): em relação à universalidade dos direitos humanos proclamados, direitos civis e igualdade de direitos (imigrantes, mulheres, jovens), direitos civis e direitos sociais (igualdade ho-mens/mulheres); direitos sociais e serviços públicos;

    b) Contra a ditadura do mercado, suas consequências a curto prazo, sua lógica de desigualdades; direito à vida, a começar pelo direito ao emprego e à garantia de renda mínima; reinvestimento de lucros de produtividade (serviços de educação, saúde, habitação) com a expansão da gratuidade e ingerência no direito de propriedade privada. Direito de cidadãos/cidadãs à propriedade social das grandes empresas cujas opções e decisões tenham um impacto maior sobre suas condições de vida presentes e futuras. Esse direito não implica necessariamente uma nacionalização, mas uma socializa-ção efetiva (direito ao uso autoadministrado, descentralização, planificação);

    c) Solidariedade entre gerações (proteção social, ecologia);

    d) Solidariedade sem fronteiras: desarmamento, dívida, constituição de espaços políticos regionais, internacionalização dos direitos sociais.23

    Bensaïd chega a falar sobre a tarefa de reelaborar o programa de transição. No entanto, evidentemente, a partir do que lemos acima, sua proposta não tem nada a ver com o objetivo estratégico nem com o método usado por Trotsky. Bensaïd afirma estar disposto a encon-trar as novas pontes entre as reivindicações imediatas e a conquista do poder. Entretanto, apressa-se a dizer: “mas essas pontes e passarelas são, por enquanto, muito precárias”. 24 O problema central não é que as pontes sejam precárias, mas que o ex-SU, como Trotsky dizia, não tem “o objetivo de chegar à outra margem”. 25 Isso se demonstra no fato de que, após os processos do leste, abandonaram a concepção marxista de Estado e a estratégia da luta pelo poder operário, a dita-dura do proletariado, nada menos do que o centro do programa mar-xista. Sobre este assunto, dando uma piscadela para teorias como as de Toni Negri ou Holloway, Bensaïd chega inclusive a perguntar:

    “Onde está o poder? Ainda concentrado nos aparatos do Estado, mas também delegado a instituições regionais e internacionais. […] Hoje, a disso-ciação dos poderes políticos e econômicos, a dispersão dos centros de deci-são e dos atributos de soberania (em nível local, nacional, regional, mundial) fazem com que as passarelas projetadas a partir das reivindicações imedia-tas partam em direções diferentes.” 26

    A questão de se saber se os processos do leste foram ou não uma derrota histórica é um debate aceitável entre marxistas. É uma dis-cussão sobre correlação de forças. Para nós, não houve tal derrota histórica. Essa não é, contudo, a discussão. O nó principal é que, mesmo que o ex-SU tivesse razão e houvesse ocorrido tal catástrofe, o seu abandono do programa revolucionário e da construção de partidos leninistas não se justificaria de forma alguma. Seu critério, diante de uma possível derrota ou situação muito desfavo-rável, é oposto, uma vez mais, ao de Lenin e Trotsky. Analisemos dois exemplos disso:

    1. Existe consenso quanto ao fato de que a eclosão da I Guerra Mundial, em 1914, foi uma grande derrota do proletariado europeu e mundial. A II Internacional e os principais partidos socialdemocratas, a direção inquestionável da classe operária, destruíram-se nessa ocasião como orga-nizações marxistas. A classe operária europeia, traída por essa direção, se dividiu e entrou na guerra imperialista, servindo como bucha de canhão para suas burguesias. O “retrocesso” no nível de consciência das massas chegou a tal ponto que os trabalhadores assassinavam-se uns aos outros em favor dos interesses de suas burguesias imperialistas. Não poderia haver perspec-tiva mais sombria. E, contudo, qual foi a atitude e a política de Lenin diante dessa derrota gravíssima? Adaptar o programa ao nível de consciência da classe operária naquele momento? Nada disso. Ele denunciou o colapso da II Internacional e convocou a construção da III Internacional revolucionária. Convocou os operários a transformar a guerra interimperialista em guerra civil contra os seus governos, mesmo que tal proposta não fosse sequer inte-ligível para a maioria dos operários europeus. Se Lenin houvesse raciocinado e atuado como o ex-SU, a partir de uma premissa similar, simplesmente a Revolução de Outubro não teria existido.
    2. O mesmo aconteceu quando o stalinismo completou a contrarrevolução política na ex-URSS, corrompeu a III Internacional e culminou sua traição suprema ao levar ao desastre a revolução alemã em 1933, facilitando a ascensão de Hitler. O que fez Trotsky diante de tamanha derrota da classe operária alemã e internacional, que significou a degeneração da III Internacional e a ascensão do nazismo? A classe operária e o punhado de revolucionários que não se curvaram diante do imenso poder de Stalin atravessavam o pe-ríodo de mais graves derrotas, traições e perseguições. Foi a “meia-noite do século 20”. Leon Trotsky, no entanto, chamou a construção da IV Internacional para manter vivo o programa revolucionário contra a burguesia mundial, o stalinismo e até mesmo contra os céticos de seu próprio movimento. As lições de nossos mestres refutam completamente a lógica usada pelo ex-SU, assimilada hoje pela maior parte da esquerda.

    Programa, direções e consciência

    Para Bensaïd, o programa que as direções do movimento de massas apresentam é uma expressão da consciência das massas:

    É surpreendente constatar que o programa do PT brasileiro foi muito mais moderado do que o programa reformista radical da Unidade Popular chilena de 1970 ou do que alguns programas radicais em alguns países europeus (redução da jornada de trabalho, direito dos imigrantes, suspensão da dívida e desmilitarização) e, muitas vezes, muito mais rebaixado do que os programas reformistas dos anos [19]70, pelo menos em sua forma escrita (nacionalização, elementos de controle e autogestão).27

    De acordo com esta lógica, a traição de partidos como o PT brasileiro seria responsabilidade não de sua direção burocrática, mas de um atraso da consciência do movimento operário. A traição deveria ser atribuída não à natureza dos aparatos contrarrevolucionários, mas sim à “crise do projeto socialista”, uma característica da nova época.

    Assim, o ex-SU acabou abandonando a compreensão trotskista do papel das direções e da crise de direção revolucionária.

    A razão de ser e o conceito central do Programa de Transição resumem-se na premissa de que: “a crise da direção do proletariado, que se transformou na crise da humanidade, só pode ser resolvida pela IV Internacional”. 28 Bensaïd, em seu informe, iguala a “crise de direção revolucionária” com a “crise do movimento operário”. Ou seja, as direções são a expressão da época. Neste caso, seria expressão da derrota do movimento operário e do retrocesso de sua consciência. Não seriam os aparatos contrarrevolucionários que passaram descaradamente para a ordem capitalista, mas sim as massas que estão confusas e atrasadas. Da mesma forma, o programa pró-burguês de partidos como o PT ou a social-democracia europeia não seriam produto de sua natureza contrarrevolucionária, mas um reflexo da nova época histórica.

    Este não foi o critério de Trotsky. Para o fundador da IV Internacional, a crise da direção revolucionária obedecia a fatores objetivos: a existência e força concreta (maior ou menor) dos aparatos contrarrevolucionários e da direção revolucionária. Independentemente do que pensassem os operários, as ações do stalinismo e dos aparatos contrarrevolucionários sempre estavam orientadas para evitar, a qualquer custo, o desenvolvimento da direção revolucionária, valendo-se ora de campanhas ideológicas, do engano e da calúnia, ora da repressão aberta.

    Foi exatamente sobre a relação entre a consciência do movimento operário e a direção revolucionária que Trotsky polemizou contra os defensores do Partido Operário de Unificação Marxista (POUM) espanhol no artigo Classe, partido e direção. Os apologistas do POUM diziam – da mesma forma como os liberais culpavam o povo pelo governo que tinham – que as massas tinham “a direção que merecem”. Algo similar às teses do SU, que esgrimem a imaturidade do proletariado e a suposta correlação de forças desfavorável para justificar o seu programa reformista.

    O mesmo método dialético deve ser utilizado para tratar a questão da direção de uma classe. Como os liberais, nossos sábios admitem tacitamente o  axioma segundo o qual cada classe tem a direção que merece. Na verdade, a direção não é, em absoluto, o “simples reflexo” de uma classe ou o produto de seu próprio poder criativo. Uma direção é formada no curso dos choques entre as diferentes classes ou do atrito entre as diferentes camadas dentro de uma mesma classe. Mas, assim que aparece, a direção, inevitavelmente, eleva-se sobre a classe e, por este fato, arrisca-se a sofrer a pressão e a influência de outras classes.

    O proletariado pode “tolerar” por bastante tempo uma direção que já tenha sofrido uma degeneração interna completa, mas que não tenha tido a chance de demonstrar isso no decorrer de grandes eventos. É necessário um grande choque histórico para revelar de forma aguda a contradição que existe entre a direção e a classe. Os choques históricos mais potentes são as guerras e as revoluções. Por essa razão, a classe trabalhadora é, muitas vezes, pega de surpresa pela guerra e pela revolução. Mas, inclusive quando a antiga direção já revelou sua própria corrupção interna, a classe não pode improvisar imediatamente uma nova direção, especialmente se não herdou do período anterior quadros revolucionários sólidos, capazes de tirar proveito do colapso do velho partido dirigente. A interpretação marxista, isto é, dialética e não escolástica, da relação entre uma classe e sua direção não deixa pedra sobre pedra dos sofismas legalistas de nosso autor.29

    Como se estivesse respondendo de antemão àqueles que, como Bensaïd, atribuem as derrotas e determinam o seu programa a partir do retrocesso geral da consciência ou à mera relação de forças, Trotsky expõe o problema de “como se deu o amadurecimento dos operários russos”:

    A maturidade do proletariado é concebida como um fenômeno puramente estático. No entanto, no decurso de uma revolução, a consciência de classe é o processo mais dinâmico que pode ocorrer, o que determina diretamente o curso da revolução. Era possível, em janeiro de 1917 ou mesmo em março, após a derrubada do czarismo, dizer se o proletariado russo havia “amadurecido” o suficiente para tomar o poder dentro de oito a nove meses? A classe operária era, naquele momento, totalmente heterogênea social e politicamente. Durante os anos de guerra, tinha sido renovada em cerca de 30 ou 40%, a partir das fileiras da pequena burguesia, frequentemente reacionária, à custa dos camponeses atrasados, à custa das mulheres e dos jovens. Em março de 1917, apenas uma insignificante minoria da classe operária seguia o partido bolchevique e, além disso, em seu seio, reinava a discórdia. Uma esmagadora maioria de operários apoiava os mencheviques e os socialistas revolucionários, ou seja, os sociais-patriotas conservadores. A situação do exército e do campesinato era ainda mais desfavorável. Devemos acrescentar, ainda, o baixo nível cultural do país, a falta de experiência política das camadas mais amplas do proletariado, especialmente nas províncias, para não mencionar os camponeses e soldados. Qual foi o trunfo do bolchevismo? No início da revolução, apenas Lenin tinha uma concepção revolucionária clara, elaborada até mesmo nos mínimos detalhes. Os quadros russos do partido estavam espalhados e bastante desorientados. Mas o partido tinha autoridade sobre os operários avançados e Lenin tinha grande autoridade sobre os quadros do partido. Sua concepção política correspondia ao desenvolvimento real da revolução e ele a ajustava a cada novo acontecimento. Esses elementos dos trunfos do bolchevismo fizeram maravilhas em uma situação revolucionária, isto é, nas condições de uma luta de classes encarniçada. O partido alinhou rapidamente sua política para fazê-la corresponder à concepção de Lenin, isto é, ao verdadeiro curso da revolução. Graças a isso, encontrou um forte apoio entre dezenas de milhares de trabalhadores avançados. Em poucos meses, com base no desenvolvimento da revolução, o partido foi capaz de convencer a maioria dos trabalhadores do acerto de suas palavras de ordem.

    «Esta maioria, por sua vez, organizada nos soviets, foi capaz de atrair os operários e camponeses. Como poderíamos resumir este desenvolvimento dinâmico, dialético, usando uma fórmula sobre a “maturidade” ou “imaturidade” do proletariado? Um fator colossal da maturidade do proletariado russo, em fevereiro de 1917, era Lenin. Ele não tinha caído do céu. Encarnava a tradição revolucionária da classe operária. Uma vez que, para que as palavras de ordem de Lenin encontrassem o caminho das massas, era necessário que existissem quadros, por mais fracos que fossem no início, era necessário que estes quadros tivessem confiança em sua direção, uma confiança baseada na experiência passada. Rejeitar estes elementos de seus cálculos é simplesmente ignorar a revolução viva, substituí-la por uma abstração, a “relação de forças”, já que o desenvolvimento das forças não deixa de se modificar rapidamente sob o impacto das mudanças na consciência do proletariado, de modo que as camadas avançadas atraem as mais atrasadas, e a classe adquire confiança em suas próprias forças. O principal elemento, vital, desse processo é o partido, da mesma forma que o elemento principal e vital do partido é a sua direção. O papel e a responsabilidade da direção em uma época revolucionária são de importância colossal.30 

    Os partidos amplos e as consequências do giro pós-Leste

    Para a visão do SU desde 1995, era tamanho o retrocesso da consciência no mundo que não era mais possível manter a construção de partidos leninistas com um programa revolucionário como o centro de sua atividade. Por isso, a partir daí, a proposta foi organizar revolucionários e reformistas honestos no mesmo partido. Esse projeto levou-os a dissolver a antiga Liga Comunista Revolucionária (LCR) francesa, em 2004, e a formar o NPA, um partido eleitoral que opera com base no programa que eles consideram aceitável pelos reformistas honestos.

    A ironia da história é que resolveram fazer isso para melhor dialogar com os trabalhadores na nova época, em 1995. Porém chegaram a essa conclusão justamente no momento em que o trotskismo francês começou a ter êxito no terreno eleitoral: a organização Lutte Ouvrière (Luta Operária) obteve 5,2% na eleição presidencial de 1995, e o trotskismo chegou a 10% nas eleições presidenciais. A própria LCR teve 4,25% em 2002, mostrando como sua análise sobre a consciência estava equivocada. Essa visão de mundo levou-os a um retrocesso real. A LCR, a antiga seção francesa do SU, rebaixou o seu programa e se dissolveu no NPA, procurando se aproximar desse nível de consciência e, agora, está sofrendo uma profunda crise ao ser superada pelos reformistas da Frente de Esquerda. Os militantes do ex-SU na França não são sequer a sombra do que era a antiga LCR no início dos anos 2000.

    Avançaram nessa dinâmica e, hoje, aceitam programas ainda mais rebaixados do que o do NPA. Armados com suas elaborações pós-Leste, transformaram-se em entusiastas e promotores dos partidos neorreformistas, aceitando seus programas de defesa da democracia burguesa radicalizada. É o caso do Podemos (em que também dissolveram o seu partido, a Esquerda Anticapitalista, diante das ameaças de Pablo Iglesias) e do Bloco de Esquerda português (em que também se dissolveram).

    Os militantes do SU já sequer propõem o conceito de anticapitalista para a formação desses partidos. Basta ser antiausteridade. Para eles, esses partidos neorreformistas são a alternativa possível nesta época. A proposta do ex-SU não é o entrismo, mas sim entrar e ser parte permanente desses partidos e de sua direção. Como prova, é revelador ler as declarações de Teresa Rodríguez e Miguel Urbán, dirigentes da Esquerda Anticapitalista do Estado Espanhol, quando proclamam orgulhosos que foram fundadores do Podemos, partido ao qual saúdam por ter canalizado uma “tempestade de entusiasmo pela mudança” e por ser uma “ferramenta de protagonismo popular e cidadão”, bem como “uma ferramenta eleitoralmente mais fluída”. 31

      Notas:

    1. Referente à corrente política fundada pelo argentino Nahuel Moreno, um dos mais importantes dirigentes trotskistas. ↩︎
    2. Referente ao dirigente trotskista do SU Michel Pablo, pseudônimo do grego Michel Raptis. ↩︎
    3. Ernest Mandel (1923-1995): foi um importante dirigente trotskista, economista e político alemão. Passou a maior parte de sua vida e militou na Bélgica. Também era conhecido pelos pseudônimos Ernest Germain, Pierre Gousset, Henri Vallin, Walter entre outros. ↩︎
    4. LIT-CI. Conferencia de fundación. Resoluciones y documentos. São Paulo: Ediciones Marxismo Vivo, 2012, p. 150. ↩︎
    5. Bensaïd afirmou em 2004: “Na realidade, os grandes sujeitos da mudança revolucionária – sobretudo os três Ps maiúsculos: Povo, Proletariado e Partido – foram fantasmas como grandes sujeitos coletivos. […] O problema hoje deveria ser colocado de outro modo: como, a partir de uma multiplicidade de protagonistas que são capazes de se unir por um interesse negativo – de resistência à mercantilização e privatização do mundo – conseguir uma força estratégica de transformação sem recorrer a esta duvidosa metafísica do sujeito […]”. BENSAÏD, Daniel. Entrevista inédita. Disponível em: http://www.vientosur.info/spip.php?article8797 ↩︎
    6. Hugo Chávez (1954-2013), presidente da Venezuela entre 1999 e 2013. ↩︎
    7. LIT-CI. Conferencia de fundación. Resoluciones y documentos. São Paulo: Ediciones Marxismo Vivo, 2012, p. 65. ↩︎
    8. Ibid, p. 65.  ↩︎
    9. Ibid, p. 66. ↩︎
    10. Fidel Castro (1926-2016), líder da revolução cubana, primeiro-ministro e presidente de Cuba entre 1959 e 2008. ↩︎
    11. Refere-se aos seguidores das ideias e políticas de Augusto César Sandino (1895-1934), que dirigiu a revolta contra a presença militar dos Estados Unidos na Nicarágua, iniciada em 1927. ↩︎
    12. Violeta Chamorro (1929-): política nicaraguense que se integrou à Junta de Governo de Reconstrução Nacional, assumindo o controle do país por um breve período após a revolução de 1979. A junta levou a revolução à derrota. ↩︎
    13. BENSAÏD, Daniel. Una nueva época histórica, julho de 1995. Disponível em: http://www.danielbensaid.org/Una-nueva-epoca-historica?lang=fr ↩︎
    14. Ibid. ↩︎
    15. Ibid. ↩︎
    16. Ibid. ↩︎
    17. Ibid. ↩︎
    18. Ibid. ↩︎
    19. Ibid. ↩︎
    20. Ibid. ↩︎
    21. Ibid. ↩︎
    22. Ibid. ↩︎
    23. Ibid. ↩︎
    24. Ibid. ↩︎
    25. TROTSKY, Leon. O Programa de Transição. ↩︎
    26. BENSAÏD, Daniel. Ibid. ↩︎
    27. Ibid. ↩︎
    28. TROTSKY, Leon. O Programa de Transição. ↩︎
    29. TROTSKY, Leon. Classe, partido e direção. ↩︎
    30. Ibid. ↩︎
    31. RODRÍGUEZ, Teresa; URBÁN, Miguel. Dos años de PODEMOS. Disponível em: http://blogs.publico.es/otrasmiradas/5852/dos-años-de-podemos ↩︎

    Publicado em novembro de 2016 na revista Marxismo Vivo N. 8

  • Uma história pouco conhecida: os Estados operários burocráticos do Leste Europeu

    Uma história pouco conhecida: os Estados operários burocráticos do Leste Europeu

    O livro de Jan Talpe, Los Estados obreros del glacis, 1 vem suprir uma lacuna importante. Desde a queda do Muro de Berlim e dos anos 1990, o processo da restauração capitalista é um foco de polêmica, em especial no interior da esquerda e entre aqueles que se reivindicam da tradição antistalinista. De sua interpretação, decorre toda uma visão da realidade de hoje.

    Por: José Welmowicki

    As polêmicas concentraram-se no processo da ex-URSS, mas para tirar todas as lições, é necessário analisar os demais países da Europa Oriental que, logo após a Segunda Guerra Mundial e a derrota do nazi-fascismo, foram ocupados pelo exército soviético e ficaram sob o comando da burocracia stalinista da URSS, que acabou criando novos Estados operários burocráticos deformados.

    Para os stalinistas, é simples. O que aconteceu resume-se a uma derrota do socialismo pela ofensiva esmagadora do capitalismo imperialista, e as massas foram enganadas. Por isso, não defenderam o regime “socialista”, que tinha seus problemas, mas era uma plataforma para o comunismo. Daí viria, segundo eles, a imensa dificuldade do projeto socialista que “ficou sem referências”. Para eles, estamos numa etapa defensiva e é necessário esperar outra etapa ou época em que se retome a capacidade de ofensiva do socialismo, derrotado na ex-URSS e no Leste Europeu.

    A maioria da esquerda que não se reivindica stalinista (incluindo aqueles que se reivindicam trotskistas), embora faça críticas muitas vezes duras aos regimes stalinistas, na prática, colocou-se como a ala esquerda desses regimes do chamado “socialismo real”. Isso porque atribuíram a restauração às debilidades do movimento operário e não à ação contrarrevolucionária da burocracia stalinista. Essa posição provinha de um grave erro teórico: consideravam a burocracia como uma camada de dirigentes que, embora fossem algozes do proletariado e da oposição de esquerda, jamais poderiam liderar a restauração por conta de uma suposta “dupla natureza”. Devido a seus interesses materiais associados, a manutenção das bases econômicas sociais do Estado operário, segundo essa visão, essa casta jamais poderia apoiar a restauração capitalista, nem na URSS, nem nos demais países do glacis. Viam a burocracia como uma barreira contra o capitalismo dominante em escala mundial.

    Essa era uma tese oposta às conclusões de Trotsky sobre a URSS após a contrarrevolução stalinista e a burocratização. Para Trotsky, como está em seu livro A Revolução Traída, de 1936, e no Programa de Transição, caso não houvesse uma revolução política que derrubasse a burocracia, defendendo as bases sociais e econômicas do Estado operário, a restauração era inevitável.

    No entanto, depois do assassinato de Trotsky, muitos dirigentes da jovem direção da IV Internacional do pós-guerra, como seu teórico mais conhecido, Ernest Mandel, caíram no erro de opinar que a burocracia jamais poderia liderar a restauração do capitalismo na URSS ou no Leste Europeu.

    Nesse sentido, ignoravam a própria elaboração de Trotsky, que afirmou com toda a nitidez que a partir da burocratização da URSS, exceto se houvesse uma revolução política que a expulsasse do poder, era inevitável que a burocracia conduzisse o Estado operário à restauração do capitalismo.

    Fatos esquecidos

    O texto de Talpe tem o mérito de estudar com profundidade o que se passou, em particular na região do Leste Europeu. Após a Segunda Guerra Mundial e a vitória das massas e do exército soviético sobre os nazistas e seus aliados, a região esteve sob controle direto das tropas russas e, portanto, da burocracia da URSS. A heroica luta do proletariado russo em Stalingrado – apesar da direção burocrática – durante cinco meses e com o saldo de dois milhões de mortos, levou à vitória nessa batalha decisiva contra o regime de Hitler, que havia sido aliado de Stalin nos primeiros anos do conflito, e permitiu mudar o curso da II Guerra Mundial.

    Essa vitória permitiu à burocracia russa “recuperar o prestígio do Kremlin”, negociar com o imperialismo o reconhecimento de sua influência sobre a região, no marco dos acordos de Yalta e Potsdam, e deixar cair no esquecimento seus acordos com Hitler que levaram à divisão da Polônia entre a URSS e a Alemanha nazista.

    A pesquisa de Jan Talpe ajuda a entender com profundidade como se originou o crescente ódio das massas de toda essa região aos ocupantes russos e aos burocratas locais que seguiam suas ordens, e assim entender as raízes das revoluções políticas que se sucederam, embora derrotadas, começando por Berlim Oriental e, depois, na Hungria, na Tchecoslováquia e na Polônia.

    Em 1939, Stalin havia feito um pacto de não agressão com Hitler e de divisão de áreas de influência (na Polônia, países bálticos, parte da Romênia e outras regiões) entre os dois países, o que incluía a invasão da Polônia pelos exércitos de Hitler, para ocupar a parte ocidental, e de Stalin para ocupar a parte oriental.

    Trotsky viveu esse episódio de invasão da Polônia em setembro de 1939, um pouco antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial e de ser assassinado. Assim, pôde deixar expressa sua posição sobre o que aconteceria sobre uma eventual ocupação da URSS nos territórios conquistados pelo Exército Vermelho e, de forma ampla, sobre as consequências da guerra.

    Trotsky opinava que o exército de Stalin, ao invadir a Polônia e os outros países, apesar de ter um objetivo contrarrevolucionário, expropriaria a burguesia desses países. Seria obrigado a tomar uma série de medidas progressistas, de caráter socialista, que dariam origem a Estados operários, embora burocratizados, assim como era a URSS.

    No entanto, para Trotsky, mesmo que o stalinismo tomasse esse tipo de medidas, que deveriam ser defendidas frente a um possível ataque de Hitler, a invasão do Exército Vermelho a esses países não podia contar com nenhum tipo de apoio dos revolucionários. Nisso, Trotsky era preciso e categórico: “Estivemos e continuamos contra ocupações de novos territórios pelo Kremlin”. 2

    Embora o acordo entre Hitler e Stalin tivesse sido rompido em 1941 por Hitler, quando o exército nazista invadiu o território da URSS, essa posição serviria para entender e dar referência ao que se passou no fim da Segunda Guerra Mundial, quando Stalin estabeleceu os acordos com seus novos aliados imperialistas, Inglaterra e Estados Unidos, para estabelecerem as áreas de influência. Os acordos ficaram conhecidos pelos nomes das cidades onde aconteceram as reuniões, Yalta e Potsdam.

    O glacis, Estados operários burocráticos sob um regime semelhante a colônias

    A partir desses acordos, o Exército Vermelho ocupou grande parte dos países do Leste Europeu e a burguesia foi expropriada nestes Estados. Assim, surgiram os Estados operários burocratizados do Leste Europeu, como previra Trotsky. Do mesmo modo que tinha prognosticado para a URSS sob a burocracia stalinista, aí também se cumpriu o prognóstico de Trotsky de que, se não houvesse a revolução política, a restauração do capitalismo seria inevitável.

    Contudo, além dessa ideia geral, era cada dia mais evidente o caráter contrarrevolucionário das burocracias na gestão diária da economia expropriada, no caso dos países do glacis. Eles estavam submetidos a uma dominação semelhante à pilhagem e à dominação colonial que o imperialismo capitalista exerce nos países dominados, bem como tinham seus governos, as instituições jurídicas repressoras e as polícias locais sob o controle direto do Kremlin.

    Tudo isso se dava no marco dos acordos de Yalta e Potsdam, no qual a URSS de Stalin comprometeu-se e respeitou de forma escrupulosa o acordo para manter o capitalismo na França, na Itália e na Grécia, instando os partidos comunistas locais a entregarem as armas à burguesia e aceitarem o apoio à “unidade nacional” para reconstituir o Estado burguês. No Ocidente, aceitavam a volta da burguesia local ao poder; no Leste, tinham o comando direto dos Estados para impedir que a mobilização das massas saísse do controle, utilizando as tropas russas para disciplinar as massas libertas do nazismo. E o monopólio do comércio exterior desses países era controlado… pela burocracia russa.

    Como escreve Jan Talpe:

    Em uma aliança contrarrevolucionária, o Kremlin e o imperialismo propuseram-se a domar o levante das massas. E a burocracia soviética aproveitou a oportunidade para implementar a pilhagem em grande escala. Para isso, foi capaz de criar um glacis de semicolônias, que descrevemos como “sui generis” porque não havia burguesia no país colonizador. A grande burguesia havia fugido diante do avanço das tropas do Exército Vermelho, abandonando armas e bagagens. Isso permitiu uma pilhagem selvagem no início, levando tudo o que fosse transportável, até mesmo a força de trabalho. Mas uma burguesia local 3 permaneceu e, a longo prazo, o regime teve de ser alinhado com o da URSS por meio da nacionalização da indústria ou, eventualmente, da industrialização do país, com relações de propriedade socialistas e a implementação da coletivização agrária. O controle sobre o que restava da burguesia e da pequena burguesia foi facilitado pelo peso do monopólio da força militar e realizado por plenipotenciários, comandados de Moscou, com as tropas russas. Em geral, Stalin garantiu o controle sobre o aparato de repressão (o Ministério do Interior) e “fundiu” os partidos da social-democracia com o que restava dos partidos comunistas.

    Com o CAME, 4 o Kremlin pôde assegurar um “monopólio do comércio exterior” particular, controlado desde Moscou. E, com o tempo, a pilhagem requereria também a planificação central da economia, em que “central” significava não só planos quinquenais, mas também sua sincronização com os do colonizador.

    Jan Talpe fez uma pesquisa detalhada, país por país da região do glacis, que explica como as massas ficavam numa penúria a cada dia que se passava e voltavam-se contra os governantes dos Estados burocráticos totalitários a serviço da burocracia da URSS. As massas desses Estados obtiveram, num primeiro momento, o benefício da expropriação das burguesias locais, base para os novos Estados operários, mas esse benefício era anulado em seguida pela pilhagem dos recursos que ficaram assim disponíveis.

    As massas nunca deixaram de lutar contra a tirania dos PCs, que asseguravam e impunham essa rapina. Essa foi a base das revoluções políticas e das rebeliões parciais em todo o glacis, de 1948 até a década de 1980. Porém, elas foram esmagadas pela repressão local e, quando as forças de repressão local eram ultrapassadas, como na Hungria de 1956 ou na Tchecoslováquia de 1968, foram sustentadas pela intervenção direta das tropas russas.

    Assim, com a manutenção das burocracias governantes à cabeça desses Estados, verdadeiras satrapias 5 do Kremlin, todos marchavam cada vez mais para a restauração capitalista.

    A burocracia pregava que caminhava para o socialismo enquanto impulsionava medidas que alimentavam a restauração capitalista

    Como Talpe demonstra, o resultado da permanência da burocracia foi o retrocesso cada vez maior da situação da economia e o aumento da penúria dos trabalhadores e da repressão. Assim, as burocracias iam abrindo o caminho para a volta do capitalismo. Ela tratava de cobrir a pilhagem com o nome de “socialismo”, inclusive criando novas “Constituições” que davam uma roupagem “socialista” ao país.

    Como diz Talpe:

    Mas, mesmo nesses casos, para cada Estado era sempre uma questão de “socialismo em seu próprio país”, em um mundo de “coexistência” e “paz” entre “estados”, independentemente de sua cor. E, em última análise, “socialismo” era um termo que cobria a “lealdade ao Kremlin”, e a acusação de “capitalista” era uma denúncia de infidelidade a ele.

    Essa colaboração contrarrevolucionária do Kremlin para controlar o ascenso das massas não anulava a política do imperialismo para recuperar o controle direto sobre a totalidade da economia mundial. A partir da crise mundial dos anos 1970, as possibilidades do Kremlin de defender suas aquisições coloniais foram se reduzindo. O imperialismo passou a competir de forma direta para assumir o papel de colonizador. Assim, encontramos o fenômeno de países como Romênia e Polônia, já no início dos anos 1980, como membros dos organismos imperialistas de dominação econômica, como o FMI, submeterem-se a seu controle e terem dívidas externas escorchantes junto aos bancos ocidentais.

    Como analisa Talpe em seu livro, o chamado “socialismo num só país”, naquele momento estendido a vários “países sós”, abriu o campo para que o imperialismo recuperasse sua hegemonia em todos eles. Quando a burocracia russa passou a abandonar de vez as bases da grande conquista da Revolução de Outubro na URSS, teve de ceder suas semicolônias também, uma após a outra, aos novos senhores. Esses países deixaram de ser Estados operários – sem, por isso, sair do status de semicolônias. Ao contrário, desceram mais um degrau e passaram a ser semicolônias diretas do imperialismo. Sua situação deteriorava-se a cada dia, mostrando que o capitalismo não dá qualquer saída a esses povos.

    Lições para o futuro

    A leitura do livro de Jan Talpe pode ajudar a entender o papel criminoso do stalinismo no Leste Europeu. Mostra como ele foi o responsável pela pilhagem de toda a região e por preparar o retorno do capitalismo, reprimindo de forma selvagem as revoluções que tentaram reverter essa situação, impondo derrotas sangrentas que deixaram o terreno aberto para a ofensiva restauracionista e para a submissão direta ao imperialismo e o desgaste profundo da ideia de socialismo em toda a área.

    Cabe aos revolucionários de hoje estudar essa experiência para se armarem para combater a propaganda imperialista que diz que o “socialismo morreu no Leste”, contestar as propostas dos stalinistas e de seus epígonos e, assim, apresentar uma alternativa oposta pelo vértice ao stalinismo em todas suas variantes, que diga claramente que o stalinismo não tem a nada a ver com o socialismo e com a revolução operária mundial.

    Passados 30 anos da queda do muro de Berlim, o livro de Jan Talpe chega em boa hora para subsidiar essa discussão tão necessária.

    Notas:

    1. Glacis é uma expressão usada no fim da Segunda Guerra para descrever a região entre o antigo território da Alemanha e a URSS que, na visão de Stalin, serviria de zona de proteção para impedir que a Alemanha pudesse atacar militarmente o território soviético. Correspondia aos territórios ocupados pelo Exército Vermelho no fim da guerra e incluía a parte oriental da Alemanha, Polônia, Hungria, Tchecoslováquia etc. ↩︎
    2. TROTSKY, Leon. Em defesa do marxismo. São Paulo: Proposta Editorial, p. 34. ↩︎
    3. Jan Talpe se refere a um curto período em que ainda havia uma burguesia local que, logo em seguida, foi expropriada pela burocracia russa. ↩︎
    4. CAME era a sigla do Conselho de Ajuda Mútua Econômica, cuja abreviação em inglês era Comecon. Era apresentado pela burocracia stalinista como uma organização de cooperação econômica formada a partir da URSS pelos diversos países do “campo socialista”. Seus objetivos declarados eram fomentar as relações comerciais entre os Estados membros, como um contraponto aos organismos econômicos internacionais da economia capitalista, assim como apresentar uma alternativa ao Plano Marshall desenvolvido pelos Estados Unidos para a reorganização da economia europeia após a Segunda Guerra Mundial. Na prática, serviu para impor as decisões da burocracia russa no campo do comércio e do planejamento econômico aos países que dele faziam parte. ↩︎
    5. Satrapias eram as províncias do primeiro Império Persa. Cada satrapia era governada por um sátrapa. As funções deste eram basicamente recolher impostos, reprimir e recrutar homens para o exército. ↩︎

    Publicado em novembro de 2019 na revista Marxismo Vivo N. 14

  • Gaza e eleições confirmam a natureza racista e genocida de Israel

    Gaza e eleições confirmam a natureza racista e genocida de Israel

    Fica cada vez mais difícil negar o verdadeiro caráter do Estado de Israel. Depois do massacre na Faixa de Gaza em dezembro de 2008 e as recentes eleições que deram a vitória às forças mais direitistas, já não resta muita dúvida de que esse é um Estado a serviço do imperialismo no Oriente Médio, construído e assentado sobre a força das armas e do apartheid. Os que advogam um caráter democrático para Israel, ou mesmo um caráter “socialista” e os que usam termos como “lar” e “terra santa” para referir-se a esse Estado, têm a obrigação de explicar os atos cometidos pelos sucessivos governos israelenses.

    Por: José Welmowicki

    O mundo terminou o ano de 2008 vendo pela TV imagens de crianças mutiladas, ruas cobertas de sangue, famílias destruídas, casas e prédios transformados em escombros em Gaza. Em dezembro, durante 22 dias, as forças armadas sionistas, com aviões despejando bombas de alto poder destrutivo e lançando mísseis de artilharia, além do emprego de armas proibidas pelas convenções de Genebra, como as bombas com fósforo branco, arrasaram a Faixa de Gaza. Contaram-se 1285 habitantes mortos. Desses, 111 eram mulheres e 280 crianças. Assassinaram pessoas que apenas andavam pela rua e usaram civis como escudos humanos de suas tropas. Bombardearam ambulâncias, escolas, hospitais, mesquitas, e prédios da ONU. Não são imagens inéditas. Já perdemos a conta de quantas vezes vimos esse filme onde os protagonistas são os soldados israelenses e as vítimas as populações palestinas, quase sempre desarmadas e indefesas. 

    A intenção do governo sionista da época, Olmert/Livni/Barak, foi derrotar a resistência palestina. Mas foi o que menos conseguiram. O que esse novo massacre, agora em Gaza, conseguiu, foi deixar o mundo indignado e estarrecido diante de tamanha brutalidade, selvageria e sangue frio com que Israel comete os seus crimes. Mas a barbárie israelense não foi suficiente para derrotar o povo palestino, que luta por sua terra. Enganam-se aqueles que pensam que esse genocídio foi fruto de uma conjuntura adversa de medo ao terror por parte de um governo específico, mais à direita, como o Kadima, que teria usado o “perigo dos mísseis de Gaza” para demonizar os palestinos. E que, ao perceber a verdadeira realidade, o israelense médio iria reagir e votar em setores mais dispostos à negociação.  Na verdade, havia uma pressão “popular” para ir mais fundo na eliminação do “perigo” representado por Gaza. Tanto que a invasão teve amplo apoio popular em Israel, e a falta de reação aos massacres, aliado ao crescente ódio aos palestinos refletiram-se nas eleições e deixaram claro que existe um acordo geral entre os judeus israelenses, com exceção de poucos indivíduos ou grupos, de livrar-se dos palestinos, expulsando-os ou eliminando-os. A situação interna é tão contrária a qualquer convivência pacífica com seus vizinhos e com os palestinos, que quem se expressa contra a limpeza étnica é ameaçado de punição ou eliminação, o que faz com que alguns deles tenham preferido viver no autoexílio, como o professor Ilan Pappé, autor do livro A limpeza étnica da Palestina. 1

    As eleições como expressão desse sentimento

    Isso ficou expresso nas recentes eleições. Elas representaram um duro golpe à ideologia dos “dois Estados”. 2 Ao invés de alguma força moderada que pudesse salvar as propostas de “paz” e dos dois Estados, o resultado das urnas mostrou a dimensão da adesão da população israelense ao racismo e o desprezo aos palestinos. Os vencedores da eleição são uma variante de correntes de ultradireita, algumas abertamente fascistas e racistas. Tanto que Uri Avneri, veterano pacifista israelense defensor da tese dos dois Estados e fiel à solução pacífica por dentro do sionismo, pergunta se não está na hora de encarar a realidade de uma irrupção do fascismo em Israel:

    O Estado de Israel aproxima-se de uma crise existencial-moral, política, econômica que o converteria em uma nação em perigo? É possível que Lieberman, ou alguém que tome seu lugar, seja uma personalidade demoníaca como Hitler ou Mussolini? Em nossa situação atual, há alguns indícios perigosos. A última guerra mostrou uma decadência maior de nossos padrões morais. O ódio à minoria árabe de Israel aumenta, bem como o ódio ao povo palestino ocupado, que sofre um lento estrangulamento.3 

    Embora Avneri encerre o artigo com otimismo, revela a real situação em Israel ao ser obrigado a colocar-se essa pergunta. A composição atual do governo israelense mostra que sua preocupação é justa. Publicamos abaixo um quadro, baseado no jornal israelense Haaretz (17/2/09):

    Fazem parte da coligação de governo os já descritos Likud (15 ministérios), Israel Beitenu (5), e Trabalhistas (5). Além deles, estão nela: o Shas, partido religioso de extrema-direita, que detém o Ministério do Interior, o Judaísmo Unido da Torá e o Lar Judaico (racistas ainda mais fanáticos que o Likud). Esses partidos têm em comum sua base nos colonos que vivem nos territórios da Cisjordânia, a defesa da expansão contínua dos assentamentos judeus nessa região e a ‘’judaização’’ de Jerusalém.

    Em última instância, o significado dessa eleição é que as ideias de Zev Jabotinsky, fundador do “sionismo revisionista”, estão totalmente em voga. Defensor declarado do fascismo nos anos 20 e 30, Jabotinsky defendia a necessidade de exercer uma estratégia de terror – a tal “muralha de ferro” – para impor a colonização aos palestinos:

    Não cabe pensar em uma reconciliação voluntária entre nós e os árabes, nem agora, nem em um futuro previsível. Todas as pessoas bem-intencionadas, salvo os cegos de nascimento, compreenderam há muito a completa impossibilidade de se chegar a um acordo voluntário com os árabes da Palestina para transformar a Palestina de país árabe em um país de maioria judia. (…) Portanto, a colonização somente pode desenvolver-se sob um escudo que inclua uma muralha de ferro que jamais possa ser penetrada pela população local. Essa é a nossa política árabe, formulá-la de qualquer outro modo seria hipocrisia.4

    Nessas últimas eleições, o eleitorado escolheu um novo parlamento cujos membros em sua ampla maioria são fascistas, como o Likud, cujo dirigente, Aryeh Eldad, propôs que a Jordânia se “transformasse” num Estado palestino e que concedesse a cidadania jordaniana aos palestinos da Cisjordânia. A proposta imporia a soberania israelense em “toda a Palestina do Mandato”, do rio Jordão até o Mediterrâneo, e prepararia o terreno legal e psicológico para a deportação final de cerca de 5,1 milhões de palestinos de sua terra ancestral. Essa era exatamente a proposta discutida nos congressos sionistas antes de 1948 (vide Box). 

    Somando-se as diferentes coalizões, 80% dos eleitos representam a continuidade da proposta de Jabotinsky. O primeiro-ministro Netanyahu é um herdeiro direto de Jabotinsky e dos terroristas do Irgun e da gangue Stern, responsáveis diretos pelo massacre de Deir Yassin em 1948. Ele foi apadrinhado pelos líderes paramilitares Beguin e Shamir, que comandaram os massacres de mulheres e crianças palestinas em 1948 e formaram o partido Herut, que depois se tornou o Likud. Tanto Begin como Shamir foram primeiros-ministros pelo Likud. Netanyahu defende a expansão das colônias judaicas na Cisjordânia e em torno de Jerusalém, iniciada pelos governos Sharon e Olmert, para dividir de vez os territórios palestinos e isolá-los uns dos outros. 

    No importante Ministério de Relações Exteriores está o partido Israel Beitenu (Israel Nossa Casa), dirigido por Avigdor Lieberman, que teve 15% dos votos e chegou a propor o lançamento de bombas nucleares sobre Gaza. Hoje propõe a transferência forçada dos árabes israelenses, os palestinos que vivem no território tomado em 1948 e a perda de qualquer direito aos que não reconhecem o “caráter judaico do Estado de Israel”. 5 O Beitenu descreve-se como “um partido nacional com a meta de seguir o corajoso caminho de Zev Jabotinsky”.

    Para a mídia ocidental, essa direitização seria compensada pela entrada dos trabalhistas no governo. Ainda vistos como de “esquerda” ou “centro-esquerda”, os trabalhistas são os mesmos que comandaram o massacre de Gaza via Ehud Barak, novamente Ministro da Defesa. Vários parlamentares do partido Trabalhista no governo dirigido pelo Likud votaram a favor do envio da proposta de Eldad ao Knesset, citada acima, para discuti-la mais adiante. Após servir para disfarçar a natureza do Estado de Israel, dirigido por ele nos seus primeiros 40 anos, passados 60 anos de sua criação, o sionismo “de esquerda” é uma fraude tão descarada que não tem mais espaço para se postular aos olhos do mundo como alternativa negociadora e “pacifista”. Sua derrota patética e a perda até mesmo do 3º lugar para o Beitenu demonstram que, para o eleitorado israelense, se é necessário defender o caráter racista do Estado, é melhor escolher quem fala claro e quer ir ainda mais fundo na limpeza étnica.

    Apesar de ter sido o partido mais bem votado, o Kadima não pôde formar o  governo por não contar com uma coalizão suficiente. Esse partido foi criado por Sharon, o genocida de Sabra e Chatila, e Ehud Olmert. Sharon também foi membro do Likud e defensor das ide ias de Jabotinsky, Begin e Shamir, além de responsável direto pela unidade 101 do exército, que praticou o massacre de Kybia em 1953. O governo do Kadima, com Olmert e Tzipi Livni à frente, foi o responsável pelo bloqueio genocida de Gaza e pelo recente massacre.

    Os partidos de base judaica que seriam mais “democráticos”, tidos pela imprensa ocidental como de centro-esquerda (Meretz, por exemplo) e que têm um discurso que fala de paz, não têm praticamente eleitores. Os únicos partidos que questionam até certo ponto o status racista têm sua base entre os árabes israelenses, cerca de 20% da população. São eles o Hadash, Balad e Lista Árabe Unida, cuja votação é concentrada nos eleitores árabes. Nesta eleição, esses partidos só foram autorizados a concorrer na última hora, devido a uma sentença da Corte Suprema. Por isso, quase a metade dos eleitores árabes israelenses não votaram. Agora, para demonstrar o caráter da “democracia israelense”, estão sob a ameaça da nova lei, que exige a aceitação do Estado de Israel como de uma “raça”, e a proibição de comemorar a Nakba. 

    Uma crise mais profunda

    Netanyahu introduz uma mudança em relação ao governo de Olmert/Livni: um discurso  direto contra qualquer tipo de Estado ou Autoridade palestina; ao contrário do que os EUA e a União Europeia gostariam, ele afirma abertamente que nem sequer se deve pensar em uma entidade palestina que leve o nome de “estado”. Seriam aceitáveis apenas “áreas econômicas” sem continuidade e estranguladas pela expansão dos assentamentos de colonos, do Muro da Vergonha e das estradas exclusivas a judeus construídas na Cisjordânia. Continua com a política de bloqueio a Gaza, que deve ser condenada a um cerco até que se renda ou seus habitantes saiam do território palestino. Netanyahu tenta diluir o problema para sair do isolamento, apontando suas baterias para o perigo do Irã e de sua política nuclear, como já faziam Olmert e Livni.

    Ao contrário do que poderia parecer à primeira vista, essa posição não é a de um país em processo de fortalecimento. Israel vem sendo derrotado militar e politicamente. Tenta se contrapor a uma possível negociação de Obama com o  Irã, que poderia dar mais peso à negociação e ameaçar sua hegemonia militar absoluta. A preocupação de Obama e dos governos imperialistas da Europa é que tal posição seja fatal para o próprio Israel, que este una os povos árabes cada vez mais contra si até sua situação ficar insustentável.

    Por isso, Obama identificou esse como um dos problemas mais graves para o novo governo dos EUA. Afinal, ele tem que governar os EUA depois da derrota da política mundial de “guerra ao terror”, simbolizada pela débacle de Bush frente à resistência dos povos e frente ao crescimento do repúdio ao imperialismo norte-americano. Por isso, tem que apelar muito mais à retórica dos planos de paz, da solidariedade, falar em um novo “diálogo” entre os povos. Sobretudo no Oriente Médio. O resultado são os choques com o governo israelense, encabeçado por forças que não têm a mesma preocupação tática dos trabalhistas de outrora. Estes faziam toda uma encenação para aparecer como “pombas”, enquanto massacravam os palestinos, expandiam os assentamentos de colonos, torturavam e deixavam apodrecer os lutadores palestinos nas prisões. Obama quer convencer Netanyahu que, frente ao isolamento de Israel, seria melhor voltar à prática tradicional desses governos trabalhistas da década de 90 e mesmo do Kadima: falar em processo de paz e em Estado palestino, enquanto continuam a praticar o roubo das terras palestinas e a limpeza étnica. A posição de Netanyahu, aceitando um Estado palestino desde que não tenha qualquer instituição própria, renuncie a Jerusalém e ao direito de retorno dos refugiados, deixa até mesmo o colaboracionista Mahmoud Abbas balbuciando que a defesa de tal proposta é insustentável.  

    Obama sustenta Israel com uma face mais negociadora

    Qual a lógica dessa mudança tática? A política para o Oriente Médio tem que ser modificada para garantir a supremacia imperialista. Trata-se de conseguir via negociação e chantagens, elogios e ameaças, o que a invasão militar não arrancou.  

    O discurso de Obama na Universidade do Cairo em junho foi a expressão dessa nova cara do imperialismo, preparado habilidosamente para criar esperanças na população árabe e muçulmana, aproveitando-se da nova imagem do presidente recém-empossado. Só que o limite para essa mudança está dado pelo vínculo entre EUA e Israel, que faz com que seu limite máximo seja a retomada da política dos dois estados, que levou aos acordos de Oslo. Tal política levou Arafat a trair a causa palestina e a criar no lado palestino um simulacro de governo completamente servil a Washington e ao sionismo, do qual seu sucessor, Mahmoud Abbas, é a expressão mais ultrajante.

    Como disse Ali Abunimah, da Electronic Intifada, referindo-se ao discurso de Obama no Cairo, é como “Bush em pele de cordeiro”. Sem deixar nenhuma das apostas estratégicas do imperialismo, Obama precisa mostrar um rosto amigável, aproveitando sua origem étnica e as relações familiares que teve com a cultura muçulmana. Por isso, pressionou seus parceiros sionistas para que os trabalhistas encabeçados por Barak fizessem parte do governo com os fascistas do Likud para dar-lhe uma faceta mais “humana”. O convite de Netanyahu, com a pronta aceitação dos trabalhistas, foi patrocinado pelo novo governo dos EUA, ansioso para que os assassinos sionistas apresentem ao mundo uma cara mais palatável para melhor passar a proposta de impor aos árabes o reconhecimento de Israel. 

    Afinal, tanto Hillary Clinton, em visita a Israel, reafirmou o “leal compromisso” dos EUA com a segurança de Israel quanto Obama, dirigindo-se aos muçulmanos, enfatizou seu compromisso de “lealdade” aos sionistas. O novo governo norte-americano continua sustentando a todo custo o regime nazi de apartheid, que detém centenas de ogivas nucleares e um dos exércitos mais fortes do mundo, com a desculpa de que a segurança de sua população civil está ameaçada pelos foguetes caseiros de Gaza. Obama aconselhou os palestinos a agir pacificamente depois de comparar sua condição aos escravos negros. E então se dedicou a condenar os atentados palestinos contra os transportes e a lamentar-se pelas crianças israelenses feridas. Nem uma palavra sobre o massacre dos palestinos por Israel em Gaza. Disse que vai trabalhar com qualquer governo que o povo de Israel escolher, ou seja, mesmo com esses nazistas declarados, que propõem e votam leis racistas e até a expulsão dos palestinos, mas impõe como condições para conversar com o governo eleito pelos palestinos, encabeçado pelo Hamas, o “reconhecimento de Israel”. 

    Aí está o núcleo central da política de Obama para a Palestina: aconselha o povo palestino a desistir da resistência armada, reconhecendo Israel, resignar-se a conviver com o estado racista, o que significa o mesmo que abandonar a luta por seu direito à autodeterminação, como já fizeram a Al Fatah e os que apóiam a Autoridade Nacional Palestina de Abbas. E essa política pode ter impacto: segundo o jornal The Independent, o primeiro-ministro e dirigente do Hamas em Gaza, Ismail Haniyeh, declarou, após se entrevistar com o ex-presidente Jimmy Carter, que aceitaria um Estado palestino baseado em suas fronteiras de 1976 e que o movimento havia “escutado atentamente” Obama no Cairo, cujo discurso reconhecia o apoio do Hamas pelos palestinos, mas também a necessidade de assumir responsabilidades. “Encontramos una nova língua, uma nova linguagem, um novo espírito”, teria declarado Haniyeh.

    O discurso de Obama mantém a estratégia de defender Israel e seu “direito à segurança”, o que significa colonizar e massacrar os palestinos, e limita-se a dar alguns conselhos a seu governo. Mas, mais que pelas palavras, devemos julgar um governo por seus atos. O governo Obama já mostrou a que veio, ao colocar em seu orçamento para 2010 a soma de US$ 2,775 bilhões em ajuda militar a Israel, que serão convertidos em mísseis, aviões ultramodernos e farta munição para manter a prática do terror de Estado contra os palestinos.]

    BOX

    Sionismo significa terror aos palestinos desde suas origens

    Quando os soldados sionistas apareceram na TV usando camisetas com inscrições que defendiam abertamente a morte de mulheres grávidas palestinas como forma de eliminar dois “possíveis terroristas” com um só tiro, a barbárie nazista imperante em Israel ficou estampada aos olhos do mundo e fez crescer a campanha de boicote a Israel.

    O processo de perda da imagem de “única democracia do Oriente Médio” do Estado sionista já vinha desde as décadas de 1970-80. Até então, um ponto de inflexão e símbolo dessa perda de imagem havia sido o massacre de Sabra e Chatila no Líbano, em 1982, quando as milícias cristãs fascistas a serviço de Israel chacinaram os palestinos, sob o comando do então ministro da defesa, Ariel Sharon.  

    O massacre de Gaza fez esse desgaste dar um salto: eram comuns nos atos ao redor do mundo inteiro as bandeiras em que a estrela de David era substituída pela suástica nazista, expressando claramente a real herança política do Estado de Israel. Do mesmo modo, cartazes e discursos comparavam Gaza ao Gueto de Varsóvia, e denunciavam como a ofensiva sionista fazia dos habitantes de Gaza as vítimas de um novo e mais prolongado Holocausto. O crescimento da campanha pelo boicote a Israel (BDS) é uma expressão clara desse salto. Um exemplo desse repúdio foi o protesto contra o jogo entre Israel e a Suécia pela Taça Davis de tênis logo depois da invasão a Gaza. Mais de 7000 manifestantes marcharam da praça principal da cidade de Malmoe até o local onde se jogava aquela partida de tênis. Boicotes de portuários na Austrália e na África do Sul fizeram a força da ação operária ser sentida, na melhor tradição dos boicotes ao regime do apartheid sul-africano. 

    As pesquisas históricas e biografias publicadas mostram que a decisão de expulsar os palestinos e realizar uma limpeza étnica, a Nakba, 6 para criar Israel, foi do primeiro governo do trabalhista Ben Gurion em 1948. Havia naquele momento um grande acordo e uma diferença tática com uma parte das correntes mais fascistas, origem dos atuais Likud e Kadima. Toda a região entre o Mediterrâneo e o Jordão deveria ser usurpada pela expulsão dos árabes para a criação de um estado exclusivamente judeu, batizado de Eretz Israel (Terra de Israel). A diferença era que o Poale Zion, partido de Ben Gurion na época, depois Mapai, aceitava a partilha da ONU com o argumento de que, uma vez instalados, tornariam a vida dos palestinos um inferno, de tal forma que eles seriam obrigados a sair; enquanto os antecessores do Likud, os paramilitares do Irgun e Lehi, recusavam-se a aceitar a partilha e queriam tomar todo o território do mandato da Palestina para o Estado judeu já em sua fundação. 

    Mas em relação ao objetivo final e aos métodos necessários havia um acordo, tanto assim que os massacres de palestinos marcaram a fundação de Israel, seja pela ação do Irgun e Lehi, como em Deir Yassin, como pela ação do Haganah, a organização militar sionista que deu origem ao exército israelense, em Al Dawayema em 1948 e mais tarde em Kybia, em 1953, entre outros. Ben Gurion dizia em 1936: ”um acordo abrangente está fora de questão. Apenas o desespero total da parte dos árabes pode fazer com que eles aceitem a criação de um Eretz Israel judeu”. 7

    Essa mesma lógica de impor a expulsão da população palestina pela força do terror persiste e é essencial para a própria existência do Estado de Israel, cuja razão de ser é a limpeza étnica e o expansionismo. Por isso, continuam os assentamentos na região ocupada em 1967 pelas tropas sionistas, a ampliação da proibição de construir casas em regiões inteiras de Jerusalém pelos palestinos, o avanço na “judaização” da cidade e as propostas de transferência forçada da população árabe, tanto dos territórios de 48 como dos ocupados após 67. As últimas eleições são uma expressão cabal dessa política.

    A jornalista Amira Hass, uma das vozes solitárias que defendem um tratamento humano aos palestinos, indignada com essa realidade, escreveu no jornal israelense Haaretz um artigo dirigido aos setores mais cultos da população israelense:

    O que ocorre com vocês, pesquisadores do nazismo, do Holocausto e dos gulags? Poderiam vocês estar a favor das leis discriminatórias sistemáticas? Leis que colocam de forma clara que os árabes da Galileia nem sequer serão compensados pelos danos de guerra com as mesmas quantias que seus vizinhos judeus terão direito? É possível que estejam a favor de uma lei que proíba um árabe israelense de viver com sua família em sua própria casa? Que estejam de acordo com mais expropriações de terras e com a demolição de mais hortas para instalação de novos assentamentos de colonos e para outra estrada exclusivamente para judeus? Que todos vocês respaldem os bombardeios e os lançamentos de mísseis que matam velhos e crianças na Faixa de Gaza? (…) como judeus, todos nós desfrutamos dos privilégios que Israel nos oferece, o que também nos converte em colaboracionistas.8

    Só existe uma saída para que haja paz: o fim de tal anomalia, de um Estado em que o genocídio de outro povo que ali habitava seja considerado válido. Não há como sair da macabra sucessão de guerras e massacres, a não ser com a destruição do Estado de Israel. E para isso, a saída é a resistência palestina e das massas árabes. Não há como fazer reformas nem como construir “dois estados”, como querem os colaboracionistas da ANP e a maior parte da esquerda mundial. A realidade comprova a cada dia que tal solução é inviável e significa o prolongamento da agonia palestina.

    Notas:

    1. Pappé recebeu ameaças de morte, obrigando-o a renunciar ao cargo de catedrático de ciência política na Universidade de Haifa e deixar o país. ↩︎
    2. A criação de um Estado palestino ao lado do Estado de Israel e uma paz baseada em uma reforma interna em Israel, tornando-o mais favorável à convivência com os palestinos. ↩︎
    3. www.rebelion.org, abril de 2009. ↩︎
    4. Citado em Brenner, The iron wall, 1984 ↩︎
    5. Nota publicada em Gara, 28/5/09: “A Knesset (Parlamento israelense) aprovou ontem em primeira leitura uma proposição de lei que estabelece um ano de prisão para quem peça o fim de Israel como Estado judeu. O texto propõe ainda a toda declaração contra Israel como Estado judeu que «possa levar a atos de ódio, desprezo, ou falta de lealdade em relação ao Estado, suas autoridades governamentais ou sistemas legais». (…) Esta votação ocorreu apenas quatro dias após a aprovação, pelo Governo israelense, de outra proposta destinada a castigar com até três anos de prisão aqueles que participarem de atos comemorativos da Nakba, a catástrofe que para os palestinos supôs a criação do Estado de Israel em 1948”. Uma das formas mais importantes com que os palestinos residentes no território de 1948 contestam o que significa o racismo é justamente a comemoração da Nakba, que vem tendo manifestações cada vez mais importantes nesses últimos anos. ↩︎
    6. Nakba significa catásfrofe. ↩︎
    7. Citado em Shlaim, Avi, The Iron Wall, Israel and the Arab world, p.18-19 ↩︎
    8. www.rebelion.org, 25/5/09. ↩︎

    Publicado em agosto de 2009 na revista Marxismo Vivo N. 21

  • Contribuição à crítica das diferentes interpretações na esquerda sobre a revolução brasileira

    Contribuição à crítica das diferentes interpretações na esquerda sobre a revolução brasileira

    Este artigo é fruto da discussão realizada no seminário do PSTU, cujo tema foi “Teoria da Revolução Permanente e sua aplicação no Brasil”. Por que é importante a discussão sobre o PCB, a Cepal e os teóricos que os criticaram? Porque a interpretação do Brasil moderno que a esquerda em geral definiu para seus projetos vem dessa época, que marca as primeiras visões de conjunto sobre o Brasil.

    Por: José Welmowicki

    A evolução das visões sobre o Brasil desde os anos 1930 

    A primeira tentativa de interpretação da esquerda foi a do PCB. Aqui, cabe explicar o contexto internacional em que foi elaborada. Naquele momento, fins da década de 1920, começo dos anos 1930, os partidos comunistas, já dominados pelo stalinismo, eram hegemônicos no movimento operário do mundo inteiro. No Brasil, entre 1930 e 1964, o PCB foi amplamente majoritário no movimento operário e na intelectualidade de esquerda. 

    A visão que eles tinham do Brasil derivava de uma teoria que a própria Internacional Comunista elaborara como justificativa para sua desastrosa política para a revolução chinesa de 1926-28, no marco da afirmação do socialismo num só país e do combate à teoria da revolução permanente de Trotsky. A teoria stalinista deveria se aplicar a todos os países atrasados, classificando-os como feudais ou semifeudais, para os quais não estaria colocada a revolução socialista, e sim a revolução democrática burguesa. A partir dessa revolução, abrir-se-ia uma etapa de desenvolvimento nacional em que, aí sim, estaria colocada a luta pelo socialismo. No VI Congresso da III Internacional de 1928, essa teoria foi aceita como válida para todo o mundo colonial. 

    Coerente com essa teoria, o PCB classificava o Brasil como feudal, tirando como consequência programática a necessidade de  uma revolução democrática burguesa. Isso gerou a tese de que caberia à burguesia nacional, em aliança com o proletariado e o campesinato, cumprir as tarefas democráticas, acabar com o latifúndio e libertar o Brasil da dominação imperialista. Só a partir daí estariam colocados o desenvolvimento capitalista e a preparação da luta pelo socialismo. Essa compreensão esteve em todas as resoluções desde os anos 1930 (e foi criticada duramente pela Liga Comunista, a primeira organização trotskista brasileira) e continuou dominando a visão do PCB até a década de 1960, como mostra a resolução política do V Congresso, de 1960:

    […] Nas condições atuais, entretanto, o Brasil tem seu desenvolvimento entravado pela exploração do capital imperialista internacional e pelo monopólio da propriedade da terra em mãos da classe dos latifundiários. As tarefas fundamentais que se colocam hoje diante do povo brasileiro são a conquista da emancipação do país do domínio imperialista e a eliminação da estrutura agrária atrasada, assim como o estabelecimento de amplas liberdades democráticas e a melhoria das condições de vida das massas populares. Os comunistas empenham-se na realização dessas transformações, ao lado de todas as forças patrióticas e progressistas, certos de que elas constituem uma etapa prévia e necessária no caminho para o socialismo […] em sua etapa atual, a revolução brasileira é anti-imperialista e antifeudal.

    Houve outra corrente influente entre 1945 até a década de 1960, que desenvolveu uma compreensão que se aproximava da visão do PCB. Tratava-se de uma corrente articulada pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), a comissão da ONU dedicada a estudar a economia na América Latina, que serviu como instituição para uma serie de pensadores que tentavam entender nossa realidade a partir da dicotomia desenvolvimento/subdesenvolvimento. Segundo eles, o problema de países como o Brasil seria que seu desenvolvimento econômico tinha ficado retardado por uma série de barreiras por sua localização subordinada entre as nações e pelo tipo de estrutura produtiva, em que a produção agrícola e de matérias-primas eram o centro, ao contrário das nações mais desenvolvidas, que tinham como centro a indústria. Dessa tese, decorria a proposta de fomentar a industrialização como superadora do subdesenvolvimento. Essa corrente foi chamada de desenvolvimentista ou nacional-desenvolvimentista, pois pregava a luta pelo desenvolvimento autônomo da nação. Para garantir trilhar esse caminho, dever-se-ia fazer uma aliança entre a burguesia nacional, os trabalhadores e os camponeses. Celso Furtado era um dos principais teóricos da Cepal.

    Nos anos 1930, já estávamos na época imperialista. A partir da época imperialista, a economia já é mundial. Não há mais como separar nenhuma sociedade, nenhuma economia de um país do resto do mundo. O mesmo vale para a luta de classes: é um processo internacional. Já não era mais possível um desenvolvimento capitalista autônomo sob o imperialismo. Só a revolução socialista poderia emancipar o país. Como explica Trotsky em A Revolução permanente, “com a criação do mercado mundial, da divisão mundial do trabalho e das forças produtivas mundiais, o capitalismo preparou o conjunto da economia mundial para a reconstrução socialista”. 

    Por outro lado, não havia mais espaço para um desenvolvimento autônomo que rompesse com o imperialismo mantendo-se capitalista. Ao longo do século 20, o Brasil permaneceu uma semicolônia. Primeiramente, da Inglaterra e, depois, dos EUA, como é até hoje.

    Com o golpe de 1964, houve uma crise muito forte no PCB e nas forças que se apoiavam nas suas elaborações, assim como na visão cepalina, muito presente no PTB de João Goulart e Leonel Brizola. A capitulação do stalinismo ao governo Goulart e a derrota frente ao golpe militar geraram uma serie de dissidências e surgiu uma série de críticas às teorias que haviam embasado a prática de colaboração de classes da esquerda no período de 1945 a 1964.

    Uma série de autores ajudou a construir uma visão crítica do PCB e da Cepal nas décadas de 1970 e 1980. Estudamos e valorizamos muito as elaborações que existem. Mas, ao utilizarmos como marco teórico a revolução permanente, vemos importantes limitações e equívocos em suas elaborações. Até hoje, não foram elaboradas ou publicadas visões críticas e dialéticas sobre elas. Há, por exemplo, uma tendência a reivindicar, de maneira acrítica e sem apontar seus limites, Caio Prado Junior, por ele expressar uma visão crítica à interpretação do PCB ou a reivindicar acriticamente Florestan Fernandes e outros autores, como Chico de Oliveira. Nossa proposta aqui é analisar suas interpretações com um olhar crítico, valorizando o que na nossa maneira de ver são importantes acertos, mas também apontar seus limites e erros.

    A contribuição e nossa crítica a Caio Prado Junior

    Ronald Leon já analisou, na Marxismo Vivo nº 9, os avanços e os limites de Caio Prado. Ele teve grande importância na análise do Brasil e contribuiu para destruir o velho argumento de seu partido, o PCB, sobre a suposta formação feudal e também por mostrar a relação entre a burguesia nacional e o imperialismo. Nessa contribuição, entretanto, persistiam grandes contradições. Caio foi militante comunista a partir de 1931 e por toda sua vida membro do PCB e adepto da URSS e das teorias do stalinismo. Apoiou a política internacional de Stalin e a orientação da burocracia russa pós-morte de Stalin, com Nikita Kruschev e a linha da coexistência pacífica com o imperialismo.  Caio Prado Jr. não tinha diferenças com a estratégia de conciliação de classes aplicada pelo stalinismo em escala mundial –  e no Brasil também – e o demonstrou em sua participação como parlamentar no pós-guerra e intelectual de destaque nos anos 1950.

    Isso esteve na raiz de uma incoerência entre a análise que fazia da formação do Brasil e o programa. Apesar de no texto A Revolução Brasileira dizer que o Brasil já era capitalista em suas relações de produção no campo e na cidade e também afirmar o caráter submisso da burguesia brasileira em sua relação com o imperialismo, sua perspectiva era a revolução que tiraria o Brasil do atraso colonial, abrindo passo ao desenvolvimento nacional: “A revolução brasileira está marcada pelo processo geral que vai do Brasil colônia de ontem ao Brasil nação de amanhã, e que se trata hoje de levar a cabo. Tarefa essa que constitui a essência da revolução brasileira”. 

    Assim, mantinha-se nos marcos da proposta de revolução democrática burguesa, embora sem acreditar na necessidade de superar supostos restos feudais, mas sim os aspectos coloniais do país.

    Embora analise o caráter submisso da burguesia brasileira, ele não define quem é a classe capaz de assumir o projeto de desenvolvimento nacional autônomo, o Brasil nação. Mas o fato de não definir coloca-nos uma hipótese implícita e, em alguns de seus textos programáticos, ele fala em projeto nacional com a iniciativa privada. Qual classe social tem a iniciativa privada? A burguesia. Contraditoriamente, ele levanta a hipótese da burguesia nacional cumprir a tarefa de libertação nacional, que ele mesmo analisa como associada ao imperialismo. Essa contradição em seus textos tem a ver com a não superação programática e com uma concepção mais geral que não rompeu com as teses internacionais do stalinismo e, portanto, opostas à teoria da Revolução Permanente. Para essa teoria, a saída para a superação do caráter colonial ou semicolonial do capitalismo brasileiro é a revolução encabeçada pela classe operária que, ao tomar o poder, imporá a ditadura do proletariado que cumprirá as tarefas democráticas das quais a principal é a liberação nacional do imperialismo, mas essa revolução se fará contra a burguesia nacional.

    A contribuição e a crítica a Chico de Oliveira

    Francisco (Chico) de Oliveira chegou a trabalhar com Celso Furtado na Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) durante o período de 1959 a 1964.

    Para a Cepal, havia um Brasil moderno e um Brasil arcaico. Para eles, o Brasil arcaico, que era associado ao campo, ao latifúndio, impedia o desenvolvimento do país. Portanto, ele considerava que se o Brasil se industrializasse, iria se desenvolver, e superaria esse atraso se o Estado e um setor progressista da burguesia aceitassem essa proposta. Por isso, Celso Furtado criou e dirigiu a Sudene nos governos Juscelino Kubitschek e João Goulart, do qual foi ministro do Planejamento, com o objetivo de levar o desenvolvimento ao Nordeste atrasado. 

    Chico de Oliveira, no Crítica à razão dualista, faz uma crítica frontal a essa ideia de “dois Brasis” e demonstrou que há uma articulação entre ambos, porque esse Brasil atrasado é fundamental para o Brasil moderno, essa agricultura atrasada, que vende barato os produtos alimentícios, e esse tipo de propriedade são funcionais para o moderno, inclusive para as indústrias estrangeiras. Não há uma contradição entre nacional e estrangeiro nisso e não há uma contradição decisiva entre a burguesia industrial e os latifundiários do campo atrasado. Ele desmistifica a ideia de um desenvolvimentismo do Brasil a partir do avanço da indústria.

    Mas Chico de Oliveira, que teve o mérito de demonstrar que de-positar as esperanças num desenvolvimento industrial que pudesse superar o atraso do latifúndio era um projeto sem fundamento que levaria a fracassos seguidos, como os da aliança populista e do governo João Goulart, caiu num erro ao analisar os caminhos alternativos possíveis: ele também nutriu esperanças num caminho endógeno ao não dar a devida importância ao papel do Brasil no mundo, que, mesmo havendo um processo de industrialização, nunca deixou de ser uma semicolônia. Na época imperialista, já não existe essa possibilidade. Ele parte de um fato real: na década de 1930, entre as duas guerras mundiais, em particular após a crise de 1929, houve um momento, o período de passagem de semicolônia inglesa para semicolônia norte-americana, que permite às burguesias latino-americanas, entre as quais a brasileira, apoiarem-se nos seus proletariados para conseguir algumas concessões do imperialismo.

    Trotsky analisa esse processo em seus textos sobre a América Latina escritos no México. Esse processo, no entanto, não significou uma via autônoma ou independente e, quando o imperialismo norte-americano voltou a impor sua hegemonia na região, recortou as concessões. Para isso, recorreu a pressões duras e inclusive a golpes militares quando havia alguma ameaça maior.

    Ou seja, ele acerta em mostrar a relação de funcionalidade entre os setores atrasado e moderno, inclusive cita a teoria do desenvolvimento desigual e combinado de Trotsky, mas interpreta o crescimento da indústria como um processo endógeno, sem integrá-lo de forma submetida à economia mundial. Que sem uma revolução socialista era impossível sequer manter esses processos. O processo posterior no Brasil comprovou esse limite dado pela submissão da burguesia ao imperialismo. 

    No terceiro governo de Getúlio Vargas, houve um processo de ascenso operário que preocupou a burguesia e o imperialismo, e a maioria da burguesia nacional passou a articular um golpe. Getúlio suicida-se para evitar o golpe em preparação e, depois de uma série de crises, Juscelino Kubitschek (PSD) é eleito com o apoio do PTB e do PCB, que permitiram desviar o ascenso e ter um período de relativa estabilidade. Juscelino implementou o modelo de industrialização nas áreas de bens duráveis com a participação das empresas imperialistas e o Estado como garantidor da infraestrutura e de determinados insumos básicos, como a eletricidade e o aço. Em 1955, já era o modelo que posteriormente a ditadura viria a intensificar, com a entrada do imperialismo na área produtiva industrial. Aplicou-se o famoso tripé: burguesia imperialista no setor mais avançado, burguesia industrial brasileira nos setores de menos tecnologia – aproveitando a mão de obra migrante (em especial nordestina) para terem uma taxa de lucro altíssima – e o Estado entrando com toda a parte estrutural. Nenhum governo posterior à ditadura modificou esse modelo, ao qual a burguesia nacional adaptou-se. Tanto Fernando Collor, quanto FHC, que foram seus grandes entusiastas, e também os governos do PT, que inventaram o nome de neodesenvolvimentismo, aplicaram-no.

    Essa contradição de Chico de Oliveira, ao ver centralmente uma dinâmica interna para explicar o processo, levou-o a pensar que não era imperioso o caminho revolucionário e a admitir um caminho reformista para o desenvolvimento nacional. Por isso, mais adiante, nos anos 1990, defendeu um welfare state brasileiro para alcançar uma melhor distribuição de renda, e viu no PT o sujeito político para instalá-lo. Em Os Direitos do antivalor (1992), ele propõe uma série de reformas emulando o welfare state europeu. Mas aconteceu justamente o oposto: um ataque permanente aos poucos direitos sociais conquistados a duras penas. Como Chico não via essa contradição estrutural, pensava ser isso possível, a partir de uma decisão interna de um sujeito político decidido a dar passos nessa direção de reformas substanciais no marco do capitalismo brasileiro. Uma visão reformista que o próprio PT decepcionou no campo dos direitos sociais, e fez Chico romper com esse partido, depois de militar nele por anos, quando Lula chegou ao governo e avançou na implementação da reforma da Previdência.

    A contribuição de Florestan Fernandes e nossa crítica

    Florestan Fernandes tem o grande mérito de ter caracterizado a incapacidade congênita da burguesia nacional de lutar pela revolução democrática burguesa no Brasil. Em seu texto A revolução burguesa no Brasil, aponta isso em vários momentos. Ele também recusa a ideia da formação feudal do país presente no PCB e aponta o caráter subordinado do capitalismo e a submissão da burguesia nacional em relação ao imperialismo.

    Por isso, quando se constitui, consolida-se e tal economia competitiva se expande, tende a redefinir e a fortalecer os liames de dependência, tornando impossível o desenvolvimento capitalista autônomo e autossustentado. 

    Florestan afirma que a burguesia é incapaz e, mais ainda, que ela necessita da contrarrevolução, e trata de mostrar que isso é estrutural. Em O que é revolução, de 1981, ele afirma:

    Os últimos 25 anos compreendem uma vasta transferência de capitais, tecnologia avançada e quadros empresariais técnicos e dirigentes, pela qual a economia e a sociedade brasileira foram multinacionalizadas através de uma cooperação organizada entre capitalistas, militares burocratas brasileiros com a burguesia mundial e seus centros de poder. […] o que interessa ressaltar nesse quadro? Primeiro, a relação siamesa entre a burguesia nacional e a burguesia externa, que não são mais divididas e opostas entre si quando o capitalismo atinge o seu apogeu imperialista.

    Porém, a contradição que ele não consegue superar – como outros autores – é sobre a atualidade e a afirmação do sujeito social da revolução socialista. Para ele, a classe operária brasileira arrasta um atraso cultural tão profundo que não teria condições por um longo período de se colocar como cabeça de uma revolução. Por isso, chega a prever um processo longo de amadurecimento tomando a tarefa da revolução democrática em si até que se possa colocar no horizonte a revolução proletária, mesmo que ela já esteja colocada em escala internacional. Ele localiza esse atraso na formação do proletariado após a abolição da escravatura:

    De um lado, fica patente que o negro ainda é o fulcro pelo qual se poderá medir a revolução social que se desencadeou com a Abolição e com a proclamação da República (e que ainda não se concluiu). De outro, é igualmente claro que, no Brasil, as elites não concedem espaço para as camadas populares e para as classes subalternas de motu próprio (de livre e espontânea vontade). […] Cabe às classes subalternas e às camadas populares revitalizar a República democrática, primeiro para ajudarem a completar, em seguida, o ciclo da revolução social interrompida e, por fim, colocarem o Brasil no fluxo das revoluções socialistas do século XX.

    O argumento para afirmar que a classe operária não tem condições de encabeçar esse processo é o atraso cultural, a falta de um período de formação. E não faz a comparação que deveria com a Revolução Russa. Afinal, se, como ele enfatiza, no Brasil havia a escravidão recente, que era um fator imenso de atraso, a classe operária da Revolução Russa também vinha do campo, dos servos recém-libertados, também era jovem, também tinha baixo nível cultural, mas devido ao seu papel objetivo na sociedade russa e à existência do Partido Bolchevique, cumpriu um papel revolucionário em outubro de 1917. 

    Outro elemento débil em Florestan é a associação direta entre classe operária e suas direções, como se essas refletissem imediatamente aquela. Não via a questão da direção como um problema central para impedir o desenvolvimento da classe em direção a ser uma alternativa de poder:

    Numa sociedade de classes, se a classe trabalhadora não amadurece politicamente, se não se desenvolve como classe independente, o intelectual que se identifica com ela não pode ser instrumental para nada. A menos que ele queira ser instrumental para as suas inquietações, para o seu nível de vida, para um trabalho pessoal criador. Mas, se você vai além disso, você se esborracha. O que aconteceu comigo foi que eu me esborrachei e daí o fato de que, até hoje, não me conformo com o nosso padrão de radicalismo e de socialismo.

    Para resumir essa primeira síntese sobre alguns dos mais importantes intérpretes do Brasil, é importante ressaltar que eles fizeram aportes muito importantes, mas parciais, para a superação da visão do PCB e da Cepal. Valorizamos muito essas elaborações. Mas todos tinham a limitação de não pensar a partir da revolução permanente e, por essa via, não conseguiam apresentar uma alternativa, mantendo um ceticismo sobre o papel da classe operária como sujeito social.

    Cabe agora basear-se na teoria da Revolução Permanente para fazer avançar a elaboração marxista sobre nossa formação social e a resposta que necessitamos: o programa revolucionário.

    Publicado em outubro de 2017 na revista Marxismo Vivo N. 10  

  • A 70 anos da Nakba: debate sobre a questão nacional

    A 70 anos da Nakba: debate sobre a questão nacional

    Aos 70 anos da proclamação do Estado de Israel, que para os palestinos significou a Nakba (catástrofe), é necessário fazer uma discussão teórica e programática sobre as visões fundamentais relacionadas.

    Por: José Welmowicki

    Começamos pelos fundamentos do sionismo, a corrente política que produziu essa catástrofe – a criação de um Estado fundado sob o pretexto de abrigar o povo judeu, que sempre foi baseado numa definição racial excludente. Essa definição, na prática, necessariamente geraria uma situação catastrófica, pois tinha como pressuposto que a maioria da população desse território, a Palestina, deveria ser judia. Se a ampla maioria era árabe, como tornar realidade esse pressuposto básico do sionismo? Isso só seria possível se fosse garantido aos judeus essa maioria, ou seja, se se expulsasse a maioria da população existente, palestinos, e se garantisse que eles não poderiam voltar.

    A Nakba não foi o produto fortuito de uma guerra que estalou devido à reação dos governos “feudais” árabes, como sempre afirmaram os líderes sionistas, que até hoje chamam essa operação de Guerra da Independência, mas sim o resultado de uma operação de limpeza étnica autorizada pela recomendação de partilha da ONU de 1947. Essa operação foi planejada com várias fases, para garantir que os árabes residentes há séculos no território do antigo mandato do imperialismo inglês sobre a Palestina fossem retirados rapidamente, para permitir que os judeus se tornassem franca maioria. O planejamento minucioso dessa operação pelo quartel-general sionista encabeçado por David Ben Gurion está muito bem documentado no livro A limpeza étnica da Palestina, de Ilan Pappé, historiador israelense que teve acesso aos arquivos e pôde revelar os detalhes em toda sua extensão, os quais desmentem, uma a uma, as inúmeras versões difundidas pelos que hoje governam o Estado de Israel.

    A evolução desse Estado, seu caráter racista de enclave militar aliado do imperialismo e potência dominante, hoje os EUA, sua completa impossibilidade de ter uma evolução democrática ou de aceitar uma solução do tipo “dois estados” que fosse realmente em igualdade de condições, tem sua base teórica e programática na própria concepção elaborada pelo fundador do sionismo político, Theodor Herzl, desde sua organização no final do século XIX.

    Nestes artigos, temos o objetivo de confrontar essas bases, mostrar como os marxistas da III e da IV Internacionais responderam e previram sua evolução e qual programa apresentavam em contraposição ao sionismo e, mais tarde, à sua concretização, o Estado de Israel. A história dos 70 anos que se seguiram à criação do Estado de Israel e a realidade atual na Palestina permitem confirmar a visão marxista revolucionária e a luta contra o sionismo e o Estado, que é sua expressão e segue aplicando a limpeza étnica até hoje. 

    A origem da questão judaica

    Abraham de Leon foi um jovem dirigente que rompeu com o sionismo (grupo Hashomer Hatzair) e aderiu à IV Internacional às vésperas da II Guerra Mundial. Escreveu um texto que teve um mérito enorme: aplicar o marxismo para entender a questão judaica. Frente às explicações do sionismo ou da religião, ele atribuía a especificidade do judeu, sua localização, a perseguição da qual era vítima, não à religião nem a uma essência genética racial, mas às condições materiais com as quais se inseria na realidade econômica e social em que vivia. Em seu livro A concepção materialista da questão judaica, localizou quais eram as bases para entender a especificidade dos judeus. Ela estaria vinculada ao papel assumido pelos judeus nas sociedades pré-capitalistas, de comerciantes e usurários, nas quais o capital ainda não dominava em forma plena. Sobre essa base, teria se constituído uma superestrutura cultural e uma religião adequada a esse papel. Formara-se, assim, um “povo-classe”.

    Embora se possa questionar a aplicação tão generalizada da tese de Leon, essa localização é chave para se entender – em particular para a Europa feudal – como os judeus tinham um papel de intermediários, no comércio e na usura, para lidar com o dinheiro e estavam sempre na linha de confronto quando os senhores queriam colocar um bode expiatório para desviar a indignação popular contra a miséria social reinante. Na Europa Oriental, em especial onde havia uma concentração de judeus “asquenazes” com esse papel, encontramos a discriminação, os guetos, a grande base do antissemitismo moderno.

    Para comprovar, porém, que esse não era um destino inelutável nem fruto da religião, houve comunidades judaicas que ganharam igualdade de direitos já no século 19: na Europa Ocidental, após a revolução francesa e no governo de Napoleão Bonaparte, os judeus foram emancipados, e as ideias de liberdade da Revolução Francesa estenderam-se a eles. Napoleão suspendeu velhas leis que os restringiam a residir em guetos, bem como leis que limitavam os direitos dos judeus à propriedade, ao culto e a certas ocupações. 

    O sionismo

    O sionismo surgiu como um movimento baseado numa falsa teoria e numa falsa visão da história. Partia de um problema grave: a perseguição aos judeus, nessa época espalhados por vários países, reprimidos e perseguidos, em especial na “terra Yidish” (onde se falava o ídiche, na Europa Oriental). Contudo, atribuía todo o problema a uma incompatibilidade de convivência originada pela religião ou pela raça e, por isso, a tese do sionismo baseava-se em que só havia uma saída para os judeus de todo o mundo: isolar-se numa nação-território em que fossem maioria exclusiva e permanente.

    Nesse primeiro momento, virada do século XX até os anos 1930, os sionistas não conseguiram agrupar a maioria das comunidades judaicas. Tinham que disputar com os marxistas que defendiam o socialismo e o fim da discriminação a todos os oprimidos e que se fortaleceram quando a revolução russa derrubou o czarismo e instalou o primeiro Estado operário. Sua posição em defesa da imigração para a Palestina não encontrou eco importante até os anos 1930 e o surgimento do nazismo, além do retrocesso stalinista na URSS.

    As alas do sionismo 

    O sionismo dito socialista era um movimento com uma aparência popular e social, devido ao fato das primeiras camadas de judeus que imigraram para a Palestina no século XX serem oriundos da Europa oriental e influenciados por movimentos socialistas e sindicais. Porém, ao assumirem a posição sionista, voltaram-se contra qualquer unidade com os trabalhadores já residentes lá, os palestinos.

    Essa geração produziu a primeira liderança do sionismo na Palestina. Dela viriam os partidos que encabeçam Israel, como o Mapai e suas rupturas, até conformar-se, mais tarde, o Partido Trabalhista. Eles organizaram a Histadrut, que ainda hoje se intitula central sindical, mas, na verdade, é uma organização que foi criada para assegurar que os empresários judeus só empregassem trabalhadores judeus e para separar completamente esses últimos dos trabalhadores palestinos.

    Os kibutzim são apresentados como comunidades coletivistas, mas, na verdade, são colônias a serviço da expansão e da defesa dos territórios ocupados pelos agricultores judeus, que também não admitem nenhuma coexistência ou associação com os agricultores árabes. Assim, o sionismo socialista, ao invés de lutar por “proletários do mundo, uni-vos”, organizou-se para dividir proletários judeus e árabes.

    Jabotinsky, o fundador da corrente sionista revisionista e autor de A muralha de ferro, tinha uma posição racista: dizia que era impossível a assimilação entre judeus e outras raças devido a um problema de sangue. Para ele, a preservação da integridade nacional futura do estado judeu só seria possível se tivesse pureza racial. Assim como os racistas afrikaners do sul da África, considerava os palestinos uma raça inferior com a qual era proibido mesclar-se.

    A ideia da “transferência” dos palestinos unia todas as alas – consenso entre a maioria dos sionistas trabalhistas (identificados como esquerda) e a minoria revisionista (direita). Os palestinos deveriam ser expulsos e suas terras, tomadas pela força. Contudo, para fazer isso, os sionistas deviam primeiro adquirir soberania, ou seja, um Estado. O decisivo era que as duas alas coincidissem em que o Estado deveria ser exclusivamente judeu, livre da população árabe autóctone. Daí o slogan “Uma terra sem povo para um povo sem terra”. Por isso, foi possível a laboristas e revisionistas não só conviverem, como se unirem num só exército e, uma vez instalado o novo Estado, sucederem-se no exercício do governo, sem que se possa distinguir nos traços fundamentais as gestões de cada um: no que diz respeito à limpeza étnica, ao papel do exército e da indústria militar e de segurança. Pela mesma razão, a partir dos anos 1980, houve vários governos de coalizão entre trabalhistas e Likud. As diferenças sempre foram de ordem tática, não estratégica.

    Esse caráter do sionismo esteve na base da fundação de Israel. Ilan Pappé demonstra de forma exaustiva como houve uma limpeza étnica planejada. Esse plano foi elaborado bem antes e já tinha como meta desalojar a imensa maioria dos palestinos de sua terra. Para isso, o sionismo aproveitou-se da comoção mundial causada pelo genocídio nazista contra o povo judeu para impor a limpeza étnica dos palestinos, que não tinham nenhuma responsabilidade no massacre dos judeus europeus. Para levar a cabo seu plano de implementar seu Estado com maioria judaica pela expulsão da população árabe palestina existente, os sionistas candidataram-se a formar parte ativa na defesa do sistema mundial de dominação e construíram alianças com os imperialismos dominantes.

    Israel, um cão de guarda do imperialismo: a dependência profunda dos EUA desde 1948 é cada vez maior

    Desde o início do movimento sionista, com Theodor Herzl e suas tratativas com o Kaiser, o czar russo e, a partir da vitória dos impérios inglês e francês na I Guerra Mundial, o sionismo sempre buscou e teve sustentação do imperialismo. A fundação do Estado de Israel, em 1948, só pôde realizar-se devido ao apoio do governo norte-americano. No entanto, foi a partir dos anos 1960 que a relação alcançada com o imperialismo hegemônico, os EUA, tornou-se total e decisiva. Com a consolidação dos EUA como a potência hegemônica indiscutível, os sionistas armaram-se para se tornarem fiéis guardiões da ordem imperialista na região e no mundo. Foi assim na intervenção de tropas israelenses em aliança com os impérios inglês e francês em 1956, em Suez, na guerra de 1967, no papel de perseguição e repressão em todo o Oriente Médio (como no Líbano) e até mesmo na América Central e do Sul na década de 1980-1990. Assim, Israel conseguiu se tornar um país armado até os dentes. Inclusive, é um dos que recebem a última geração dos modernos armamentos dos EUA e é subcontratante de seus monopólios armamentistas. Em especial a partir da Guerra dos Seis Dias, de 1967, essa associação avançou a ponto tal que hoje a principal indústria israelense é armamentista ou vinculada a ela, como a tão proclamada indústria de tecnologia. 1

    Desde 2008, qualquer venda de armas dos EUA para outros países na região não pode ser realizada a não ser que os governos provem que não serão usadas contra Israel. Os valores da ajuda militar dos EUA a Israel crescem a cada ano, independentemente de o governo ser democrata ou republicano. No período de Clinton, foi de US$ 26,7 bilhões; no de George Bush, US$ 30 bilhões; no de Obama, US$ 36 bilhões. Uma porção importante da ajuda foi fornecida em forma de acordos de coprodução, como em 2014, em que fabricantes das indústrias militares de Israel e EUA concordaram em trabalhar juntos para desenvolver os foguetes do sistema de defesa de Israel, o Iron Dome.

    O papel de Israel na divisão internacional do trabalho tem como centro ser um fornecedor de armamentos e instrutor mundial da segurança empresarial e da repressão aos povos. Vejamos o que diz o texto da Rede Internacional de Judeus Antissionistas:

    A habilidade única de Israel em dispersão de multidões, vigilância, desocupações e ocupações militares resultou em sua posição na vanguarda da indústria global da repressão: desenvolve, monta e comercia tecnologia que é utilizada por exércitos e forças policiais ao redor do mundo com o propósito de reprimir. O papel de Israel nessa indústria começou com o exército israelense, que primeiro usou suas armas contra o povo palestino na Palestina histórica e, depois, contra os países vizinhos. Nos últimos anos, conforme cresceu o interesse pela vigilância e pelo controle policial entre os governos do mundo, um serviço privado israelense pôs à prova (no campo) instrumentos que emergiram de ‘segurança doméstica’ e os exportaram de acordo com seu interesse. A indústria inclui agências governamentais, o exército israelense e uma rede de corporações privadas que produziram mais de US$ 2,7 bilhões em 2008.” 2

    Esta área econômico-política especial de Israel teve e tem uma presença importante na América Latina. Durante o período das ditaduras do fim dos anos 1970 e anos 1980, Israel forneceu suas armas mais conhecidas, a metralhadora Uzi e o rifle Galil, para os regimentos da morte na Guatemala, para os Contras da Nicarágua e para o Chile de Pinochet. Nesse período, Israel ganhou mais de US$ 1 bilhão com a venda de armamento para as ditaduras da Argentina, do Chile e do Brasil. A ditadura de Pinochet, de 1973 a 1990, comprou armas de dispersão de massas de Israel, incluindo equipamentos adequados para canhões de água.

    O próprio Ministério Israelense da Indústria, Comércio e Trabalho publicou em sua página na Internet:

    Israel tem mais de 300 empresas de segurança doméstica que exportam uma ampla gama de produtos, serviços e sistemas… Estas soluções nasceram da necessidade de sobrevivência de Israel e amadureceram conforme a realidade das contínuas ameaças terroristas (sic) ao país… Nenhum outro país tem um acúmulo tão grande de polícias, soldados e vigilantes na reserva e nenhum outro país foi capaz de pôr a prova seus sistemas e soluções em tempo real.

    O governo israelense e suas corporações cumprem um papel importante na política nacional do Brasil, na dispersão de multidões, nos sistemas de vigilância, nas prisões e nas fronteiras militarizadas. Junto a outras políticas de repressão doméstica, o treinamento da polícia e seu armamento são parte da campanha antifavela do Brasil.3

    A companhia israelense Elbit, uma das implicadas na construção do Muro do Apartheid na Palestina, participou no projeto e abasteceu com tecnologia de vigilância o muro fronteiriço entre EUA-México, mais conhecido como o Muro da Morte. 4

    O que é Israel hoje? A comparação com a África do Sul 

    Na mesma época da fundação do Estado de Israel, foi fundada a África do Sul como Estado racista, branco, apoiado nos colonos afrikaners. Era a mesma base teórica e material do sionismo: um grupo de colonos brancos europeus instalara-se no território africano habitado por uma população negra, e impôs um Estado baseado em leis racistas, o apartheid, excluindo a maioria da população dos direitos, buscando criar um regime permanente que garantisse uma maioria branca às custas de tornar os negros cidadãos confinados em bantustões (reservas nativas), sob repressão fortíssima.

    A África do Sul era muito semelhante a Israel. Lá, os negros eram mantidos à força em bantustões. Em Israel, havia as chamadas leis de Regulações Administrativas baseadas nas leis racistas do apartheid da África do Sul. Em Israel, essa lei confinava os palestinos em determinados lugares, dos quais não podiam sair sem ter um passe, e estabelecia zonas proibidas a eles, pois estavam reservadas para a “raça” dominante no Estado, os sionistas. Colocava, ainda, os palestinos à mercê de comissários com plenos poderes para prender, transferir e deportar os habitantes de áreas árabes, tomar posse de qualquer objeto pertencente a um árabe, fazer investidas nas casas a qualquer momento, impor restrições sobre emprego ou negócios, confiscar qualquer terreno ou casa e assim por diante. Violações a essa lei seriam submetidas à jurisdição de tribunais militares. Essa era apenas uma de muitas leis racistas aplicadas aos palestinos.

    O papel da África do Sul na repressão aos movimentos negros pela independência na África dos anos 1960-1990 também se assemelha ao papel de Israel como polícia desde sua fundação: enquanto a África do Sul interveio diretamente em Angola, Moçambique, Namíbia e apoiou os racistas da ex-Rodésia, Israel fazia e faz o mesmo na sua região. Por isso, os movimentos antirracistas da África do Sul identificaram-se sempre com a luta dos palestinos. Houve uma colaboração estreita entre a burguesia branca racista sul-africana e a liderança sionista desde 1948. Israel cumpriu o papel de armar e treinar os regimes de apartheid da África do Sul e da Rodésia. Em contraposição, construiu-se uma solidariedade entre os movimentos de resistência ao apartheid, na África do Sul, e na Palestina que dura até hoje. Da África do Sul, veio o exemplo para o movimento de boicote ao Estado racista, que golpeou fortemente os racistas afrikaners, e que, com o movimento BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções), transforma-se num poderoso instrumento contra o racismo sionista.

    Um enclave racista

    Essa definição era muito combatida nos anos iniciais do Estado sionista. Ainda persistia a imagem do sionismo progressista, de seus fundadores e dos kibutzim como colônias socialistas. Esse suposto caráter progressista ou democrático era contraposto pela mídia e até pela esquerda reformista ao caráter supostamente atrasado dos palestinos e dos árabes. Também contribuía para isso o mito de que Israel teria empreendido uma luta de “Davi contra Golias”, baseado no tamanho da população e do território. No entanto, Israel não parou de se expandir e de estender sua natureza racista a novos territórios. De trazer colonos de fora do país ou de áreas internas e fazer com que eles ocupassem terras palestinas. De jamais aceitar a volta dos refugiados criados pela limpeza étnica em todos esses anos.

    A Nakba de 70 anos atrás continua hoje. A natureza do Estado criado com base na concepção sionista impede qualquer via democrática, pois está baseada numa definição estatal racista e, assim, numa maioria demográfica judaica que é a única aceita como cidadã desse Estado. Não há a menor perspectiva de que as correntes que dirigem Israel aceitem qualquer solução intermediária, com concessões mútuas aos palestinos. A única solução possível aos olhos dos sionistas de todas as facções é que os palestinos aceitem sua expulsão, e que os poucos que ficarem sejam cidadãos de segunda classe.

    Agora, a posse de Donald Trump nos EUA, que tem um acordo mais estreito com o governo de Netanyahu, permite que Israel deixe de lado o discurso demagógico e apresente claramente seu projeto e o transforme em instituições e leis. O caráter de Israel se desnuda, o projeto de Ben Gurion e dos fundadores torna-se explícito.

    Como expressão dessa política para institucionalizar o projeto sionista até o fim, Netanyahu já havia posto em prática a definição de Jerusalém como capital exclusiva em novembro de 2017. Pela resolução da ONU na partilha de 1947, Jerusalém teria de ser internacionalizada para permitir o acesso das três religiões que a consideram sagrada – e ter a administração dividida entre os dois estados. Trump, então, decidiu anunciar a mudança de sua embaixada para Jerusalém.

    A definição final de Israel como Estado baseado em apartheid foi votada no Knesset (parlamento israelense) no dia 19 de julho de 2018. Essa já era a realidade na prática, mas agora está no papel. A mudança legal define Israel como um Estado exclusivamente judeu. Segundo essa lei, os assentamentos judaicos em todo o território da Palestina são considerados parte do Estado de Israel e devem ser defendidos. A população árabe é relegada à condição de não-cidadã, e seu idioma não é reconhecido como uma das línguas. Essa lei gerou uma reação ampla dos árabes que vivem no território palestino de 1948 (que hoje se denomina Israel) e até dos drusos, pois oficializa o Estado racista de Israel.

    Os drusos compõem um setor minoritário que os sionistas atraíram desde a Nakba, para separá-los dos demais palestinos, tanto que muitos deles são recrutados e servem ao exército israelense, ocupando, inclusive, altos cargos oficiais. Mesmo assim, ficaram também excluídos da cidadania. Daí seu protesto contra a lei. 

    Nas palavras de uma diretora da organização de esquerda norte-americana Jewish Voice for Peace (Voz Judaica para a Paz), a rabina Alissa Wise:

    Hoje, abandonamos de uma vez por todas a ilusão de que Israel é uma democracia. O projeto do Estado-nação que Israel aprovou hoje consolida Israel como um Estado de apartheid – da Cisjordânia a Gaza, a Jerusalém e a Haifa. Os palestinos, não importa onde morem, são controlados por um governo e por forças armadas israelenses que os privam dos direitos e de liberdades fundamentais.5

    A perda de apoio entre os intelectuais

    Em 1948, boa parte da intelectualidade de esquerda europeia da época apoiava o Estado de Israel. Nomes como o filósofo Jean-Paul Sartre, em 1949, comovidos pelo genocídio dos judeus europeus pelos nazistas, tornavam sua fundação um avanço da democracia e do progresso, dizendo que um Estado de Israel autônomo legitimava os combates do povo judeu e “era um dos mais importantes acontecimentos de nossa era […] para todos nós significa um progresso concreto em direção a uma humanidade onde os homens serão o futuro do homem”. 6 Saudavam a libertação dos sobreviventes de um povo chacinado sem se aterem ao que a fundação de Israel significava para os palestinos e para os próprios judeus que, atraídos pela ideia sionista, caíam assim numa armadilha.

    O BDS

    Hoje existe um desencanto crescente, pois a realidade golpeou os mitos divulgados pelo sionismo e pela mídia imperialista. Em vez da ideia de 1948-1949, do resgate de um povo perseguido, aparece a imagem real de um estado militarista com líderes racistas, praticando massacres, matando crianças etc. Existe uma campanha ampla e democrática de boicote a Israel que começou em 2005, a partir de uma frente de organizações sindicais e democráticas palestinas e inspirada no boicote contra o regime de apartheid da África do Sul.

    A campanha tem como um dos centros o reconhecimento do direito de retorno aos palestinos expulsos de suas terras. Já atingiu alguns sucessos, como o grande físico Stephen Hawkings, que se recusou a comparecer a um evento em Israel depois dos massacres de Gaza. Teve a adesão de artistas como os atores Javier Barden, Danny Glover, Penelope Cruz, o diretor Pedro Almodóvar, os músicos Roger Waters, Santana e muitos outros. No futebol, a seleção argentina de 2018 acabou desistindo de jogar uma partida em Israel diante da pressão dos ativistas do BDS. O chamado ao boicote cumpre um papel muito importante, como o foi na África do Sul do apartheid, e começou a preocupar seriamente Israel e o stablishment sionista. Já existe um dispositivo de espionagem do governo sionista articulado com seus representantes nos países para tentar criminalizar as ações de boicote, acusando-as de antissemitas.

    A perda de apoio de Israel na comunidade judaica em todo o mundo

    Israel conseguiu, durante muitos anos, apoiar-se, por um lado, na principal potência imperialista, os Estados Unidos, e, por outro, na comunidade judaica, em especial na burguesia que sustenta o projeto sionista com o apoio financeiro e político-midiático. De todo o mundo, a principal fonte de sustento é a colônia judaica norte-americana, por sua força econômica e política. Calcula-se em três milhões o número de judeus nos EUA. Pesquisas recentes mostram um afastamento crescente dos jovens de origem judaica de Israel, em especial por conta das práticas racistas explícitas de massacres de civis desarmados em Gaza. Diante desses ataques, a atriz israelense Natalie Portman recusou-se a receber um prêmio israelense.

    Nesse sentido, Israel vem perdendo terreno e sua imagem desgasta-se cada vez mais com a ruptura de judeus com o sionismo e o surgimento de grupos cuja ação dirige-se contra os abusos de Israel. Existe uma série deles, como a rede Ijan. O grupo Jewish Voices for Peace, que sempre denuncia os abusos e aderiu ao BDS, alega ter mais de 60 mil filiados e 250 mil seguidores. Ao se colocar a favor do direito de retorno dos palestinos, desafia diretamente um dos postulados do sionismo: não permitir a volta dos palestinos às suas terras, o que geraria uma maioria de árabes em relação aos judeus na Palestina.

    Os dirigentes do establishment sionista estão alarmados. Ronald Lauder, presidente do Congresso Judaico Mundial, figura importante do lobby sionista, declarou-se preocupado com a perda de legitimidade de Israel e a dificuldade de seus apoiadores judeus tradicionais nos EUA e em outros locais do Ocidente em defenderem suas ações, o que poderia “levar a uma divisão entre o Estado judeu e seus apoiadores”. 7 Entre suas preocupações, a maior é com a juventude judaica que “não quer mais se associar a uma nação que discrimina judeus não ortodoxos, minorias não judaicas e a comunidade LGBT” e até mesmo quer “deixar de combater o BDS, deixar de sustentar Israel em Washington” e deixar de garantir a “retaguarda estratégica que Israel tanto necessita”. Isso não modifica a relação estreita entre as altas esferas do Estado norte-americano, seu Congresso e a força do lobby sionista, como o AIPAC, 8 mas mostra sua perda de legitimidade crescente.

    Outra fonte de desprestígio é a ação cada vez mais repressiva do Estado de Israel contra os ativistas de direitos humanos e contra os dissidentes judeus de dentro e de fora. Nas últimas semanas, aumentaram as medidas contra advogados, como o diretor da Human Rights Watch para Israel e Palestina, Omar Shakir, um norte-americano de origem palestina que foi impedido de permanecer em seu escritório em Ramallah, na Cisjordânia, e teve de deixar o país. Assim como os abusos na entrada do aeroporto contra dissidentes e ativistas de direitos humanos e até jornalistas judeus liberais que se tornam suspeitos por fazerem críticas, como Peter Beinart, da rede de TV CNN. Cem advogados ligados aos direitos humanos fizeram uma carta protestando contra esses abusos.

    Notas:

    1. Dados de J. Nitzan e S. Bichler, “The global political Economy of Israel”, cap. 5: The Weapondollar-Petrodollar Coalition. ↩︎
    2. Extraído do site da Ijan – Rede Internacional de Judeus Antissionistas, “El Rol de Israel en la Represión Mundial”, publicado em fevereiro de 2013. ↩︎
    3. Idem ↩︎
    4. Idem ↩︎
    5. Extraído do site da Jewish Voice for Peace. Declaração publicada em 19 de julho de 2018. ↩︎
    6. Extraído do texto “O nascimento de Israel”, de Jean-Paul Sartre, publicado em junho de 1949. ↩︎
    7. Haaretz, 8/8/2018. ↩︎
    8. Comitê de Assuntos Públicos EUA-Israel, fundado na década de 1950, com mais de cem mil membros ativos. ↩︎

    Publicado em junho de 2018 na revista Marxismo Vivo N. 12.

  • Como marxistas e reformistas abordaram a questão judia e o sionismo

    Como marxistas e reformistas abordaram a questão judia e o sionismo

    Os revolucionários

    Lenin foi o autor da política para as nacionalidades presente no programa do POSDR 1 e colocada em prática pelo Partido Bolchevique ao assumir o poder após a Revolução de Outubro. Uma das consequências foi a abolição de todas as leis e restrições contra os judeus na Rússia, pois essa política propunha, como tarefa fundamental, a luta contra a opressão aos judeus utilizada pelo império czarista para dividir os trabalhadores e manter sua dominação.

    Por: José Welmowicki

    Assim como Lenin havia formulado, somente com a tomada do poder pelos bolcheviques foi possível acabar com mais de 500 leis discriminatórias contra os judeus e integrar os quadros proletários e intelectuais ao nascente Estado operário russo. Uma expressão disso é que muitos dos principais quadros bolcheviques, como Sverdlov, Trotsky, Kamenev… eram de origem judaica.

    Ao mesmo tempo, Lenin tratou da questão da organização dos proletários judeus no partido a partir da polêmica com o Bund. O Bund era a organização de operários judeus da Rússia, Polônia e Lituânia – todas pertencentes ao império czarista. Fundado em 1897, participou da formação do POSDR. Com sua base de artesãos, semiproletários, operários de pequenas manufaturas, eles defendiam a posição de se manterem como uma organização à parte dentro do Partido e como os únicos representantes dos proletários judeus dentro e fora do partido.

    Lenin, assim como Trotsky, travou uma batalha contra essa posição. Lenin também identificava e combatia as tentativas do sionismo de retirar o proletariado judeu da luta contra o império russo e conduzi-lo a um projeto de emigração para a Palestina. Tentava demonstrar aos militantes do Bund que sua equivocada concepção de organizar separadamente os proletários judeus derivava da mesma falsa ideia de que os judeus da Rússia seriam uma “nação à parte”, o que, em essência, era semelhante ao ideário sionista.

    Em vez de proclamar a guerra contra essa situação de isolamento historicamente surgida (agravada ainda mais pela desunião geral), 2 eles a elevaram a um princípio, amparando-se, para esse propósito, na sofisticação de que a autonomia é inerentemente contraditória e na ideia sionista de uma nação judaica. Somente se eles admitissem franca e resolutamente seu erro e se preparassem para avançar em direção à fusão, o Bund poderia se afastar do falso rumo que tomou. E nós estamos convencidos de que os melhores aderentes das ideias social-democratas dentro do proletariado judeu, mais cedo ou mais tarde, obrigarão o Bund a abandonar o caminho do isolamento para vir à fusão. 3

    Trotsky tinha a mesma orientação que Lenin: no congresso do POSDR de 1903, foi ele quem pessoalmente travou a batalha contra a posição do Bund, de exigir autonomia para representar o proletariado judeu dentro do partido. E sempre combateu, por um lado, o Bund e sua proposta de separar o proletariado judeu do restante, assim como combateu o sionismo como saída para o povo judeu.

    Por outro lado, desde 1903 – passando pela denúncia e luta contra os pogroms organizados pelo czar, como durante o caso do judeu Beilin, acusado de crime ritual na Rússia em 1911 – Trotsky clamava por uma luta pelos direitos básicos dos judeus e defendia que somente a luta revolucionária poderia libertar os judeus da opressão.

    Durante as guerras civis balcânicas (1913), após realizar uma análise do regime da Romênia, chegou à conclusão de que era obrigação do partido do proletariado lutar para integrar em suas fileiras – e, de um ponto de vista político, de todos os elementos “cuja existência e desenvolvimento não se enquadram no regime existente”. Na Romênia havia uma comunidade judaica importante e muito perseguida pelo Estado monárquico. Para ele, a social-democracia era a única defensora dos direitos dos judeus, pois, devido às características de sua burguesia, os partidos existentes – conservadores e liberais – nem sequer garantiriam a luta pela democracia na Romênia.

    Baseava essa análise em sua visão da Revolução Russa e do papel da burguesia russa, incapaz de assumir as tarefas democrático-burguesas.

    A III Internacional, em seus primeiros congressos, manteve a visão dos bolcheviques. Nas “Teses sobre a Questão Nacional e Colonial”, do II Congresso da Internacional Comunista (1920), cujo objetivo central era apoiar a luta pela libertação no mundo colonial e contra o imperialismo, já se fazia referência ao sionismo como um instrumento a serviço da dominação do imperialismo inglês sobre a população árabe local.

    «6° (…) Como exemplo flagrante dos enganos praticados com a classe trabalhadora nos países submetidos pelos esforços combinados do imperialismo dos Aliados e da burguesia de determinada nação, podemos citar o caso dos sionistas na Palestina, país no qual, sob o pretexto de criar um Estado judaico onde os judeus são uma minoria insignificante, o sionismo entregou a população autóctone dos trabalhadores árabes à exploração da Inglaterra. Na conjuntura internacional presente, não há para as nações dependentes e fracas outra salvação senão a Federação das Repúblicas Soviéticas.» 4

    Mais adiante, já com o stalinismo no poder na URSS e com Hitler na Alemanha, Trotsky denunciava a utilização, por parte do stalinismo, do antissemitismo contra a oposição, alertava sobre a possibilidade de um genocídio perpetrado por Hitler e clamava por combater o nazismo com todas as forças. Mas nem mesmo por isso ele mudava de posição em relação à questão do sionismo.

    «O primeiro ponto que posso afirmar sobre a questão judaica é que ela não será resolvida no âmbito do capitalismo. Tampouco será solucionada pelo sionismo. Antes, eu acreditava que os judeus se assimilaríam às culturas e aos povos nos quais viviam – como ocorria na Alemanha e nos Estados Unidos –, e por isso meu prognóstico era lógico. Mas agora isso se mostra impossível de afirmar. A história recente nos deu algumas lições a esse respeito. O destino dos judeus é hoje um problema candente, sobretudo na Alemanha, onde aqueles judeus que haviam esquecido sua origem tiveram oportunidade de relembrá-la. (…) O desenvolvimento cultural exige concentração, pois isso facilita a difusão da cultura entre as massas amplas, por meio de uma imprensa forte, de um teatro, etc. Se isso é o que os judeus desejam, o socialismo não terá o direito de negá-lo. Quero enfatizar que não afirmo que os judeus devam, necessariamente, possuir um território, porque sob o socialismo os judeus, como todos os povos, poderão residir onde quiserem com plena liberdade e segurança. Somente a revolução proletária pode resolver a questão judaica em todas as suas ramificações. Por isso, as massas trabalhadoras judaicas devem trabalhar e lutar lado a lado com os operários de todos os países para alcançar esse fim.» 5

    O stalinismo recua da posição marxista e trai a causa palestina

    Desde a tomada do controle do partido, Stalin impôs ao PCUS uma linha oposta ao leninismo e à III Internacional. Por um lado, capitulava às burguesias nacionais, como na China; por outro, na URSS começava a perseguir as nacionalidades e retomar a opressão nacional de grande escala russa. Isso se refletiu fortemente na questão judaica e na política para o sionismo.

    Na Palestina, o partido local sofreu um duplo desvio: nos anos 20 e 30, uma política semelhante à da China no período em que o Kuomintang era considerado revolucionário por Stalin e Chiang Kai-Shek, incorporado ao Comitê Executivo da III Internacional. No caso palestino, essa relação se dava com o mufti Haj Amin al-Husayni, dirigente da oligarquia local que contribuiria para levar a revolução dos anos 1936-1939 à derrota. Por outro lado, não denunciava o sionismo como um projeto de formar um Estado racista que excluiria os palestinos.

    Na segunda metade dos anos 1940, a partir dos Pactos de Yalta e Potsdam, o partido palestino apoiou a divisão da Palestina em dois Estados.

    Em 1947-1948, o stalinismo, empenhado em acordos com o “imperialismo democrático”, abandonou a visão de Lenin e da III Internacional sobre o sionismo e passou a influenciar o futuro Estado judeu a ser fundado.

    Para justificar o apoio a Israel, chegou a aceitar a versão de que o sionismo seria “progressista” e até “socialista”, em oposição aos “feudalismos” árabes. Segundo relata o dirigente palestino Ghassan Kanafani, em 1946 o jornal oficial Izvestia, da União Soviética, “ousou comparar a luta dos judeus na Palestina com a luta dos bolcheviques antes de 1917”. 6

    Trotsky defendia, desde 1903, os direitos básicos dos judeus e que somente a luta revolucionária os libertaria da opressão. Durante as guerras civis balcânicas (1913), depois de analisar o regime da Romênia, concluiu que era obrigação do partido do proletariado lutar para integrar, em suas fileiras – tanto política quanto praticamente – todos os elementos “cuja existência e desenvolvimento não se enquadram no regime vigente”. Na Romênia, havia uma comunidade judaica importante e severamente perseguida pelo Estado monárquico. Para ele, a social-democracia era a única defensora dos direitos dos judeus, pois os partidos existentes – conservadores e liberais – não garantiriam sequer a luta pela democracia naquele país.

    Esse mesmo stalinismo havia usado, de forma cínica, os preconceitos antissemitas para perseguir a oposição de esquerda dentro da URSS. Como Trotsky citou em sua entrevista de 1937 ao jornal Forward, havia muitos líderes da Oposição de origem judaica; Stalin insinuava que sua suposta “origem estrangeira”, por serem judeus, qualificava-os como inimigos da União Soviética. Após a Segunda Guerra, o stalinismo continuou a usar o preconceito antissemita para perseguir seus adversários. 7

    A política dos partidos comunistas ajudou a angariar apoio para o projeto sionista no movimento operário e entre a intelectualidade mundial. Por outro lado, colocou o partido palestino ao lado dos colonizadores, o que impossibilitou sua recuperação na comunidade palestina. Assim, os stalinistas posicionaram-se de forma conciliadora com os sionistas nas comunidades judaicas, sempre defendendo o “direito de Israel de existir como Estado judaico”. O partido havia conquistado prestígio nessas comunidades judaicas devido à luta contra o nazifascismo – com a derrota de Hitler na Rússia, a ação das tropas russas e das resistências, onde os comunistas tiveram papel decisivo na derrota final.

    A social-democracia patrocina o sionismo ‘socialista’

    A social-democracia sempre apoiou o projeto sionista, e o Partido Trabalhista – que foi o principal partido desde a fundação de Israel até os anos 70 – é e continua afiliado à Internacional Socialista (a organização internacional da social-democracia), ajudando assim a dar um viés “socialista” aos primeiros dirigentes de Israel, responsáveis pela limpeza étnica praticada desde sua fundação. Ben Gurion, dirigente dessa operação e primeiro-ministro de Israel por quinze anos, era um membro destacado da social-democracia. Nesse aspecto, a social-democracia mostrava coerência ao apoiar os empreendimentos coloniais das potências imperialistas na Ásia e na África, durante a Primeira Guerra Mundial, e posteriormente, após a Segunda Guerra, quando, entre outros casos, o governo francês reprimiu a luta da Argélia pela independência, nos anos 50.

    O trotskismo manteve a defesa da posição revolucionária para a Palestina

    Somente a IV Internacional seguiu a tradição revolucionária da III Internacional. A IV Internacional foi a única organização de esquerda efetivamente antisionista na época da Nakba, e em 1948 manteve-se firme contra a divisão.

    Abaixo a partição da Palestina! Por uma Palestina árabe, unida e independente, com plenos direitos de minoria nacional para a comunidade judaica! Abaixo a intervenção imperialista na Palestina! Fora do país todas as tropas estrangeiras, os ‘mediadores’ e ‘observadores’ das Nações Unidas! Pelo direito das massas árabes de dispor de si mesmas! Pela eleição de uma Assembleia Constituinte com sufrágio universal e secreto! Pela revolução agrária!8

    Naquele momento, o grupo trotskista palestino, RCL (Liga Comunista Revolucionária), denunciava:

    O imperialismo norte-americano conquistou um agente direto – a burguesia sionista – que, por esse fato, tornou-se completamente dependente do capital norte-americano e da política dos EUA. Daqui por diante, o imperialismo norte-americano terá uma justificativa para intervir militarmente no Oriente Médio sempre que julgar conveniente… a consequência inevitável dessa guerra será a total dependência do sionismo em relação ao imperialismo norte-americano.9

    A posição dos trotskistas estava em consonância com a posição da Terceira Internacional e já previam o que ocorreria caso o Estado de Israel se consolidasse.

    Nossa corrente, desde a FLT [Fração Leninista Trotskista] dentro do Secretariado Unificado (SU) – com o SWP dos Estados Unidos – dos anos 1969 a 1976, a TB [Tendência Bolchevique] e a FB [Fração Bolchevique dentro do SU até 1979], até chegar à LIT-CI em 1982, é a linha de continuidade com essa posição dos revolucionários, da III Internacional.

    Já em 1973, logo após a Guerra do Yom Kippur, tomou-se uma posição clara por meio de uma Revista da América dedicada ao tema: “Israel, História de uma Colonização”.

    O jornal Avanzada Socialista, do PST argentino, publicou em 1973 um artigo que sintetizava a posição explicada na Revista da América e que marcava uma modificação em um aspecto: antes, e até a Nakba, ao mesmo tempo em que a IV Internacional denunciava e se opunha à divisão, reivindicava-se o respeito à autodeterminação de todos os povos presentes na Palestina. O artigo de 1973 esclarecia um aspecto muito importante: era necessário diferenciar claramente o caráter do nacionalismo do opressor (o sionismo) do nacionalismo do oprimido (os palestinos), pois, nesse caso, o projeto sionista dependia da opressão dos palestinos. Portanto, os judeus não teriam o direito de possuir um Estado próprio, como, por exemplo, os palestinos.

    «A Autodeterminação é um direito dos oprimidos, não dos opressores»

    No Avanzada Socialista nº 79 (10/10/73) dizíamos, a respeito do conflito no Oriente Médio:

    Aos companheiros judeus, pedimos que não caiam na demagogia racista e reacionária do Estado de Israel e do imperialismo, e que apoiem a justa guerra dos árabes contra um dos Estados mais reacionários que a história já conheceu: Israel.

    Aos companheiros árabes, convidamos a apoiar os trabalhadores judeus na luta contra seus patrões e o imperialismo. Apoiamos o direito do povo judeu à autodeterminação e a ter seu próprio Estado no âmbito de uma Federação de Estados Socialistas do Oriente Médio.

    «Essa posição é, em termos aproximados, a que defendíamos no La Verdad 10 durante a “guerra dos seis dias” em 1967. A direção do nosso partido discutiu e revisou essa posição quanto ao direito dos judeus de ter um Estado próprio na Palestina. Entendemos que o mais correto é apoiar a criação, em todo o território – que hoje ocupa o Estado sionista – de um único Estado Palestino, laico, não racista e com amplos direitos democráticos para todos os seus habitantes. Estado laico significa que não estará baseado nem sustentará nenhuma religião “oficial”, nem islâmica nem cristã. Ao mesmo tempo, garantirá a cada um de seus habitantes total liberdade para praticar o culto que desejar ou para não ter religião, se assim preferirem.«

    «Esse Estado Palestino laico eliminará os privilégios, as discriminações e as perseguições raciais que hoje existem no Estado sionista, garantindo a todos os cidadãos – sejam de origem árabe, judaica ou drusa – direitos democráticos iguais: liberdade para falar em sua língua nativa e para publicar sua imprensa e livros, não haver discriminação em empregos públicos ou privados, igualdade salarial, e o direito de eleger e ser eleito para cargos públicos ou sindicais, etc.«

    «Alguns leitores poderão nos apresentar a seguinte objeção: ‘Estamos de acordo que é preciso acabar com Dayán, Golda Meir e companhia. Mas, por que defendemos a ideia de um único Estado palestino? Isso, evidentemente, garantiria a autodeterminação dos árabes, já que eles poderiam ser maioria nesse Estado Palestino. Mas isso não feriria o direito à autodeterminação dos judeus, a quem não devemos colocar na mesma categoria que Dayán e seu grupo?’
    A resposta é muito simples: os marxistas revolucionários defendem o direito à autodeterminação dos oprimidos, não dos opressores.
    «

    «O direito à autodeterminação é um problema concreto; não se resume a uma simples questão aritmética de maioria ou minoria. Defendemos o direito à autodeterminação da minoria nacionalista “católica” no Ulster contra a maioria “protestante” inglesa, porque a primeira é oprimida pela segunda. Pela mesma razão, apoiamos a maioria negra da Rodésia, da África do Sul e das colônias portuguesas, contra a minoria branca que os escraviza de maneira brutal. O que proporíamos, por exemplo, para a África do Sul? A autodeterminação dos negros… e também a dos brancos que lhes negam até mesmo a condição de seres humanos?«

    «O caso de Israel é similar ao da Rodésia, ao da África do Sul ou ao da Argélia antes da revolução. Assim como nesses casos o imperialismo “importou” uma minoria colonizadora, que despojou milhões de palestinos de suas terras e de seus direitos nacionais e humanos. Assim como na África do Sul, onde os negros são confinados como gado em “reservas indígenas”, milhões de palestinos vivem na miséria dos “acampamentos de refugiados” no Líbano, Síria e Jordânia.
    Além disso, são vítimas de massacres perpetrados pelos sionistas ou por seus cúmplices árabes – os governos reacionários do Líbano e da Jordânia. Os palestinos que ficaram em Israel são submetidos a um regime de terror nazista.
    (…)»

    «Então, quem são os opressores e quem são os oprimidos? Quem tem direito à autodeterminação? A questão é simples e concreta. O primeiro e imediato passo é restituir aos oprimidos suas terras e seus direitos nacionais e democráticos. Ao mesmo tempo, é preciso garantir a todos os judeus que desejem viver em paz e fraternidade com os árabes – e que não queiram ser carne de canhão de Dayán e do imperialismo norte-americano – a completa igualdade de direitos democráticos como cidadãos de uma Palestina laica e não racista.» 11

    A LIT manteve esse programa de 1973 e o reafirmou nos anos 2000, na revista Marxismo Vivo nº 3 de 2001 e por meio de uma série de publicações, como o Correio Internacional, frente às permanentes agressões de Israel e à resistência contra suas invasões, como no Líbano, à resistência heroica palestina por meio das Intifadas e ao novo processo que começou em 2011 em toda a região.

    No entanto, isso não ocorreu em muitas correntes que se autodenominam trotskistas. Na verdade, houve, nessas correntes, um retrocesso em relação às posições da Terceira e da Quarta Internacionais, pressionadas na prática pela adaptação da esquerda às posições sionistas.

    O Secretariado Unificado, nos anos 90, passou a aceitar a imposição dos “dois Estados” e a sugerir uma saída que depositava esperanças em uma intervenção da ONU (a mesma que respaldou a divisão e permitiu a imposição da Nakba), com tropas de paz. Seu grupo na Palestina, como mostram os artigos do dirigente Michel Warshawski, passou a defender os “dois Estados” e uma negociação “não sob o ditame israelense-americano”, mas sob os auspícios da ONU, alegando ser a única forma de pôr fim aos massacres dos palestinos e à guerra.

    Por sua vez, as correntes oriundas do tronco do dirigente britânico Ted Grant (TMI e CIO) tratavam tanto judeus quanto palestinos como nacionalidades oprimidas. Com uma posição semelhante à defendida para a Irlanda – onde se diferenciava os trabalhadores ingleses (“protestantes”) dos irlandeses (“católicos”) – passaram a defender um Israel socialista ao lado de um Estado Palestino socialista, aceitando, assim, a divisão de 1947 e abandonando, com isso, a luta pelo direito de retorno dos palestinos expulsos em 1948. As ações de Israel demonstram, a cada dia, que a solução dos dois Estados significa aceitar a continuidade do roubo de terras e do racismo.

    Ainda hoje, após uma série de ativistas de esquerda e de direitos humanos terem passado a defender um único Estado com direitos iguais para todos, esses grupos continuam a defender “dois Estados socialistas com plenos direitos para as minorias que vivem dentro deles”. 12

    Hoje, há 70 anos da fundação de Israel, o programa para a revolução continua a se apoiar nas concepções da III e da IV Internacionais. E hoje isso se materializa na bandeira: “Pelo fim do Estado racista de Israel”, “Por uma nova Intifada que tenha no centro os trabalhadores e lute por um Estado único, laico, democrático e não racista em todo o território da Palestina”.

    Não é uma tarefa fácil, mas pode ser alcançada com a luta dos trabalhadores. O caminho passa pela revolução palestina e por uma luta internacional, para a qual é fundamental a participação dos demais trabalhadores árabes, contando com a ação solidária dos trabalhadores e dos povos em todo o mundo, especialmente nos países imperialistas.


    Notas:

    1. Partido Social-Democrata Russo. ↩︎
    2. Refere-se à desunião do partido. ↩︎
    3. Citado do texto de Lenin, “A posição do Bund no partido”, da seleção de textos On the Jewish Question, organizada por Hyman Lumer, International Publishers, 1974, pp. 50-51. ↩︎
    4. Teses da III Internacional sobre a questão nacional. ↩︎
    5. Extraído da entrevista a Trotsky pelo jornal judeu Forward, 12 de janeiro de 1937. ↩︎
    6. KANAFANI, Ghassan. La revuelta de 1936-1939 en Palestina, p. 23. ↩︎
    7. No pós-guerra, e valendo-se do clima da Guerra Fria, a onda de perseguições da burocracia aos dissidentes formou o pano de fundo quando Stalin lançou uma campanha antissemita em 1948-1953, destinada a eliminar os “cosmopolitas sem raízes”. Houve um episódio em que toda a equipe médica que cuidava do próprio Stalin foi acusada e julgada como traidora. Segundo a versão oficial do regime stalinista, tratava-se de uma conspiração dos médicos judeus, sob as ordens da inteligência estadunidense, com o objetivo de assassinar os principais quadros do Partido Comunista da União Soviética, incluindo o próprio Stalin. Os partidos comunistas do Leste europeu usaram o preconceito antissemita contra dissidentes – como no caso de Slansky na Tchecoslováquia – e contra militantes das revoluções políticas, como na Polônia. ↩︎
    8. Manifesto da IV Internacional. ↩︎
    9. Extraído de “Israel, Historia de una colonización”, Revista de América, 1973. ↩︎
    10. Refere-se ao periódico anterior da corrente morenista, época em que era o órgão do PRT-La Verdad. ↩︎
    11. Avanzada Socialista nº 81, 24 de outubro a 4 de novembro de 1973. ↩︎
    12. Declaração “70 años de la fundación de Israel”, disponível no site do CWI. ↩︎
  • Palestina: Genocídio e guerra de libertação

    Palestina: Genocídio e guerra de libertação

    Quando esse artigo estava sendo escrito (novembro de 2024), completavam-se 420 dias do genocídio promovido pelo Estado nazista de Israel contra a população de Gaza resultando em 44 mil mortos e 104 mil feridos. A estes crimes podemos acrescentar 800 mortos na Cisjordânia, 3.600 no Líbano; 11.700 palestinos presos por Israel na Cisjordânia e muitos milhares mais em Gaza (não existe uma contagem conhecida).

    Por: José Welmowicki e Bernardo Cerdeira

    O genocídio atual (o genocídio histórico contra os palestinos já dura mais de 70 anos) é fruto de uma guerra que começou com o ataque do Hamas a Israel em 7 de Outubro de 2023, mas que Israel aproveitou para desencadear o massacre da população civil em Gaza e uma guerra regional atacando em 7 frentes, algumas com mais intensidade e confrontos diários (Gaza, Líbano e Cisjordânia) outras com bombardeios mais esporádicos de parte a parte (Iêmen, Iraque e Irã) e ataques à Síria por parte de Israel.

    Em artigos anteriores, a LIT havia assinalado alguns elementos centrais da situação da guerra em curso:

    Primeiro que havia “…um relativo fortalecimento de Netanyahu e Israel imediatamente após a ofensiva no Líbano, o assassinato de Nasrallah e a maior parte da liderança do Hezbollah e de Sinwar, o principal líder do Hamás”.

    Ao mesmo tempo, prevenia que: «(…) esse fortalecimento é relativo, porque a resistência palestina e do Hezbollah não foi derrotada. Embora as vitórias israelenses tenham sido o produto de sua superioridade militar, particularmente no ar e no campo da inteligência, Israel também está sofrendo perdas (mais do que afirma)».

    «Além disso, Israel não conseguiu estabilizar sua ocupação terrestre em Gaza e no sul do Líbano. A história já mostrou que as guerras de libertação nacional envolvendo milhões de pessoas podem derrotar as ocupações terrestres até mesmo pelos exércitos mais fortes, como no caso do Vietnã, Iraque, Afeganistão ou mesmo a derrota de Israel pelo Hezbollah no Líbano em 2000 e 2006.«

    Por outro lado, alertava que: “(…) as vitórias israelenses exigem uma política de contrarrevolução permanente, de expansão da Nakba no plano da “Grande Israel”. Externamente, Israel continua a perder a batalha pelos corações e mentes das classes trabalhadoras e da juventude, com uma crescente rejeição de Israel entre uma parte significativa das massas do mundo e tensões entre as massas árabes contra a capitulação dos governos da região ao genocídio sionista”.

    Apenas 15 dias depois desses acontecimentos, confirmou-se o acerto da caracterização de que o fortalecimento do governo de Netanyahu era relativo e que as vitórias de Israel com o assassinato da maior parte da liderança do Hezbollah e de Sinwar do Hamas, embora muito importantes, eram táticas e não superavam as agudas contradições de Israel. Na verdade, a realidade mostrou que essas contradições são mais profundas.

    Recuperação do Hezbollah e guerra regional

    Como em toda guerra, é preciso analisar, em primeiro lugar, a situação no campo de batalha. O ataque de Israel ao Líbano e a tentativa de invadir e ocupar o Sul deste país, marcaram um novo patamar para a guerra, que já pode ser caracterizada como uma guerra regional. Apesar do Hezbollah ter sofrido um duro golpe com o assassinato de seu secretário-geral e da maior parte da sua liderança, os dias seguintes mostraram que isso não destruiu suas capacidades militares.

    Ao contrário, o Hezbollah intensificou sua ação militar nos dois terrenos: bombardeios no norte e no centro de Israel e o confronto terrestre com as divisões de Israel que tentaram ocupar o sul do Líbano, mostrando uma alta capacidade de recuperação.

    Na guerra aérea, os drones e mísseis estão cumprindo um papel fundamental. O Canal 12 da TV israelense destacou que, desde o início de novembro de 2024, foi lançado um número recorde de drones em direção a Israel, em meio a uma guerra em várias frentes, observando que “nas últimas semanas, os lançamentos de drones tornaram-se rotina”.

    O canal relatou que, nos primeiros 13 dias deste mês, houve 40 ataques de drones, uma média de 3,3 ataques por dia, com vários drones em cada ataque totalizando “1.300 drones lançados de todas as frentes” em direção a Israel desde o final de outubro de 2024. O canal ainda observou que 61% dos drones lançados em direção a Israel em novembro tiveram origem no Líbano, com um grande número também vindo do Iêmen e do Iraque.

    O mesmo canal relatou que, desde o início da guerra, mais de 200 drones penetraram com sucesso nas defesas aéreas e atingiram alvos, confirmando que esses drones causaram grandes perdas e danos nos últimos meses. Em outubro, por exemplo, um drone do Hezbollah atingiu o campo de treinamento da Brigada Golani em Binyamina, cidade ao norte de Telaviv, matando 4 soldados e ferindo 61 integrantes da tropa.

    No dia 14/11, o Hezbollah anunciou que, pela primeira vez, lançaram um enxame de drones unidirecionais contra a base de Kirya, na cidade de Tel Aviv, que abriga a sede do Ministério da Segurança de Israel, o Estado-Maior, a Sala de Gerenciamento de Guerra e a autoridade de monitoramento e controle de guerra da Força Aérea.

    Em 16/11 o Hezbollah atacou Haifa, a terceira maior cidade de Israel, com mísseis e drones atingindo várias bases militares, entre as quais o quartel-general do comando naval Shayetet 13 em Atlit, ao sul de Haifa, a Base Naval Stella Maris, as Bases Técnica e Naval de Haifa, a Base Tirat Carmel e, pela primeira vez, a Base de Combustível Nesher. 

    A situação da frente de guerra libanesa mudou. Israel tentou ocupar o Sul do Líbano para criar uma zona de exclusão que impedisse o Hezbollah de lançar mísseis e drones contra objetivos militares e cidades do norte e centro de Israel, que provocaram o deslocamento de 100 mil refugiados internos.

    Para isso enviou 50 mil soldados e suas melhores divisões, entre elas a Brigada Golani, para tentar invadir e ocupar o Sul do Líbano. A tentativa de invasão foi confrontada por uma forte resistência do Hezbollah, gerando combates diretos. Israel foi repelido com fortes perdas e não conseguiu ocupar, limitando-se a incursões sobre alguns vilarejos. A partir daí, recuaram para Israel e até a data em que esse artigo foi escrito não conseguiram mais ocupar e somente bombardear o Líbano.

    Guerra no solo: mortos e feridos no exército de Israel

    Embora frequentemente o comando das Forças armadas de Israel oculte números de baixas como parte de uma política sistemática sob o pretexto de “censura militar”, o exército israelense reconhece a morte de 793 soldados desde o início da guerra.

    Os dados também revelam que 192 oficiais israelenses foram mortos, indicando que um em cada quatro oficiais mortos era um comandante. Entre os mortos estão 67 comandantes de pelotão, 63 comandantes de companhia, 20 vice-comandantes de companhia, 7 vice-comandantes de batalhão, 5 comandantes de batalhão e 4 comandantes de brigada. Do total de fatalidades, 48% eram recrutas, 18% serviram em “serviço permanente” e 34% eram reservistas.

    Em 14/11, o Canal 14 informou que, em 48 horas, 11 oficiais e soldados israelenses foram mortos e mais de 10 ficaram feridos em batalhas em Gaza e no Líbano. A tendência a um aumento de baixas com a nova frente do Sul do Líbano é demonstrada pela decisão das Forças Armadas de Israel de abrir 600 novas sepulturas no cemitério militar.

    Pelos dados fornecidos pela imprensa israelense e por algumas midias árabes, como o Al Mayadeen e o Al Jazeera, as baixas na frente do sul do Líbano já passaram de 98 mortos e mil feridos somente nas primeiras 4 semanas da tentativa de invasão terrestre das forças militares sionistas, atingindo fortemente seu dispositivo militar.

    Tão ou mais importante que o número de baixas fatais é o número de feridos das Forças Armadas de Israel nesse ano de guerra, porque afetam a sua capacidade operacional e o moral da tropa. O Ministério da Saúde de Israel anunciou, em 14 de novembro, que o número total de internações hospitalares desde 10 de outubro de 2023 chegou a 22.047.

    Desse total, o Departamento de Reabilitação do Ministério da Segurança de Israel revelou recentemente que recebeu para reabilitação pelo menos 12.000 soldados desde o início da guerra em outubro de 2023, incluindo aqueles diagnosticados e sofrendo de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT).

    Aproximadamente 43% dos 12.000 soldados sofrem de TEPT, enquanto 14% sofreram ferimentos moderados a graves, incluindo 23 casos de traumatismo craniano grave, 60 casos de amputação e 12 que perderam permanentemente a visão. 

    Apenas durante a semana de 7 a 14 de novembro, o ministério registrou 321 feridos. Entre estes, 21 casos foram registrados no norte de Israel (em 24 horas), e 202 feridos foram registrados desde essa última atualização.

    As internações atingem pouco mais de 5% do IOF composto por aproximadamente 450 mil efetivos – 150 mil efetivos permanentes e 300 mil reservistas, ou seja, 66% dos soldados da ocupação são reservistas sendo que dezenas de milhares são de função de apoio, não de combate.

    Entre mortos e feridos durante esse ano de guerra, a Força de Defesa de Israel perdeu quase duas divisões, enfrentando uma grave escassez de soldados. Segundo o alto comando, o exército necessita urgentemente de 7.000 recrutas

    Há um nítido desgaste e descontentamento entre as fileiras do exército motivados pela duração da guerra (1 ano e 1 mês), a mais longa da existência de Israel; pelas falhas no dispositivo militar israelense e pela extensão dos combates no solo em 3 frentes (Gaza, Líbano e Cisjordânia). Essa realidade obriga os reservistas a se revezarem continuamente para cobrir as lacunas nas distintas frentes. Começou a haver um movimento de reservistas para não retornar ao front (em Israel todos são reservistas até os 50 anos). Tudo isso pressiona fortemente o próprio comando militar para que faça uma pausa na guerra.

    Avi Ashkenazi, correspondente militar do jornal israelense Maariv, destacou uma crise crescente no exército israelense que pode minar os esforços para pressionar o Hezbollah. Ele enfatizou que a escassez de combatentes da reserva enfraqueceria a capacidade do exército israelense de aplicar pressão militar sobre o Hezbollah, potencialmente dificultando quaisquer esforços para resolver a guerra.

    Ashkenazi citou uma conversa com soldados da reserva na Brigada Golani, que falaram sobre as “dificuldades econômicas e familiares” que enfrentaram após mais de um ano de combate, com alguns já tendo servido mais de 250 dias.

    Os soldados expressaram frustração com a forma como os líderes israelenses os tratam:

    Estamos enfrentando ruína financeira, os negócios estão à beira do colapso e os soldados estão sobrecarregados com dificuldades pessoais e profissionais. Nós nos alistamos por um senso de dever, mas parece que o governo demonstra pouca consideração por nossos sacrifícios ou bem-estar”.

    Por outro lado, o jornal israelense Yedioth Ahronoth relatou que os militares estão preocupados com um declínio de 15% a 25% na participação no serviço de reserva.

    A essa situação soma-se o problema dos Haredim, judeus ortodoxos dispensados por lei de servir o Exército e de trabalhar, para dedicar-se ao estudo da Torá, recebendo subvenções permanentes do Estado para isso. Todos os anos, muitos também viajam para Uman, na Ucrânia, para celebrar o Ano Novo Judaico.

    A comunidade Haredim tem um grande peso em Israel, constituindo aproximadamente 13% da população de Israel. Em uma situação grave como esta, uma parcela cada vez maior dos israelenses indigna-se contra esses privilégios dos religiosos. Em junho de 2023, a Suprema Corte de Israel decidiu que os judeus ultraortodoxos devem ser submetidos ao recrutamento como outros cidadãos israelenses, intensificando as tensões.

    Após essa decisão, o regime começou a emitir ordens de recrutamento para homens Haredim com idades entre 18 e 26 anos. Relatórios iniciais indicaram resistência significativa, com muitos indivíduos não respondendo aos comunicados de notificações. Na sexta-feira, o Ministério da Segurança de Israel anunciou planos para o alistamento gradual de 7.000 judeus ultraortodoxos nas forças armadas.

    O problema para o governo é que os partidos que representam os Haredim são fundamentais para sustentar a coalizão governamental. Por isso, Netanyahu está articulando uma lei que permita manter essa isenção.

    Yair Lapid, o líder da oposição israelense, pediu à liderança e às instituições do regime que neguem financiamento público, passaportes e privilégios de viagem aos haredim que se recusem a servir nas forças armadas.

    Em declarações à rádio do Exército de Israel, Lapid exigiu: “O recrutamento dos Haredins é uma questão de valores, e eles devem se alistar. (…) Se não o fizerem, não devem receber verbas, não devem obter passaportes e não devem ser autorizados a viajar para Uman (Ucrânia)”. Mas até agora os haredim têm recusado a se alistar.

    Genocídio e guerra de resistência

    Não há dúvida de que o genocídio perpetrado por Israel em Gaza, a resistência palestina liderada pelo Hamas e a resistência do Hezbollah, estão no centro da luta de classes mundial e tem atraído um movimento internacional de repúdio a Israel e apoio aos palestinos.

    No entanto, entre os que denunciam o genocídio praticado por Israel, existem muitos setores pacifistas, inclusive setores da esquerda, que opinam que o atual conflito que se desenvolve na Palestina é essencialmente um genocídio da população palestina e não uma guerra, porque somente um lado (o de Israel) ataca e a desproporção de forças é brutal.

    Sem dúvida, o genocídio praticado por Israel é um fato. O objetivo de Israel é aterrorizar a população civil, destruir o Hamas e o Hezbollah, avançar na limpeza étnica para se apropriar dos territórios de Gaza e da Cisjordânia e criar uma zona tampão no Sul do Líbano. E claro, a desproporção militar de forças é enorme. Isso também é um fato.

    Mas só dizer que há um genocídio é unilateral. Também há uma forte guerra de resistência, não só do Hamas, mas de toda a Resistência palestina unificada: Jihad islâmica, Al Fatah, FPLP, FDPLP, Movimento Mujahideen Palestino e vários outros grupos menores. Quais são os elementos que demonstram que há um enfrentamento militar?

    Há enfrentamentos diários, documentados em vídeos e divulgados nas redes sociais, entre as forças da Resistência e as tropas israelenses. É uma guerra de guerrilhas onde a Resistência sai dos túneis, arma emboscadas para as tropas de Israel e retorna aos túneis. Só nos primeiros quinze dias de novembro, a Resistência matou 24 soldados israelenses.

    Essa resistência militar é um elemento decisivo para que Israel não tenha conseguido derrotar, e muito menos erradicar, o Hamas e a Resistência depois de mais de um ano de uma ação militar brutal em Gaza, bombardeios constantes, destruição de 70% das residências, invasão, cerco e pressão pela fome, falta de eletricidade, água, esgotamento sanitário, etc. O simples fato de não ter conseguido eliminar a Resistência depois de mais de um ano de guerra é uma derrota para Israel

    Por outro lado, se fosse certo o que Israel apregoa, que o Hamas e a Resistência já perderam 80% ou 90% dos seus efetivos e não podem opor resistência, por que o Hamas sente-se com forças para recusar o cessar-fogo nas condições de Israel, que pretende impor a continuidade da ocupação militar? Evidentemente porque pode sustentar a guerra de guerrilhas por mais um tempo considerável.

    Se fosse certo que quase não há resistência armada, por que Israel não consegue acabar de vez com a guerra?  Há uma combinação de aspectos políticos internacionais e nacionais que abordaremos mais adiante e que impediram, até agora, o triunfo de Israel, mas, do ponto de vista militar, a resistência palestina é um elemento decisivo.

    O Hamas e a Resistência palestina encontram-se em uma posição político-militar defensiva, o que lhes permite manter a luta. Não só os combatentes se protegem nos túneis, mas defendem sua terra e seu povo de um agressor genocida e estão indissociavelmente mesclados com a população de onde recebem apoio e a adesão de novos contingentes de combatentes. Isso é típico das guerras de libertação.

    Uma vitória militar de Israel exigiria que o exército israelense invadisse e ocupasse definitivamente Gaza e simultaneamente destruísse os 700 km de túneis para caçar e eliminar os soldados da Resistência. O problema é que, além do resultado dessa ação implicar em um alto custo militar, certamente provocaria a morte dos aproximadamente 100 reféns em poder do Hamas e mais dezenas ou até centenas de milhares de baixas civis palestinas, o que exacerbaria a indignação da opinião pública internacional e a preocupação crescente de parte da opinião pública interna de Israel com o resgate dos reféns.

    A esse elemento agrega-se o problema do baixíssimo moral de uma tropa de ocupação que só está acostumada a reprimir covarde e cruelmente manifestantes desarmados, crianças e adolescentes, protegidos por intensos bombardeios. Entrar em um túnel para enfrentar combatentes altamente motivados, dispostos a morrer como mártires porque não têm outra opção é algo muito diferente e exigiria um moral que o exército israelense, que já se encontra esgotado depois de um ano de guerra, está longe de ter.

    Outro problema crescente para Netanyahu é a mobilização das famílias dos reféns, furiosas porque ele não aceita nenhuma proposta de cessar-fogo e trocas dos reféns pelos prisioneiros palestinos nos cárceres de Israel.

    Além disso, existe uma situação de guerra também na Cisjordânia. Em resposta às operações militares do exército israelense, cresce a resistência armada, principalmente no norte da região em cidades como Jenin, Tulkarm, Nablus, Tubas e nos campos de refugiados ao redor, mas que também está se estendendo a cidades do centro e do sul como Hebron, Ramallah e Belém.  É uma resistência diferente e superior às Intifadas, porque dessa vez há uma organização de vários grupos de combatentes armados com armas leves e dispositivos explosivos improvisados.

    Todas essas dificuldades de Israel nessa, repetimos, mais longa guerra de sua história, não demoveram o governo Netanyahu de seu plano sinistro: promover uma limpeza étnica no norte de Gaza para permitir uma ocupação militar permanente do Exército; construir uma faixa militarizada com fortificações no corredor de Netzarim que cruza a Faixa de Gaza de leste a oeste dividindo Gaza ao meio e ocupar também o corredor Filadélfia na fronteira do Egito. Tudo isso está em curso, mas sua implementação depende do desfecho da guerra e da luta de classes internacional e nacional.

    A mobilização internacional e a crise de Israel

    Na primeira parte desse artigo nos preocupamos em demonstrar que a ação militar de Israel está longe de ser um passeio que não encontra resistência, ao contrário. Mas agora temos que ver o que está passando em Israel.

    Segundo Carl von Clausewitz, o general prussiano que foi um dos mais importantes teóricos militares, “a guerra é a continuação da política por outros meios”. Concordando com essa frase, não podemos isolar o genocídio em Gaza e a resistência armada dos palestinos do contexto internacional e da situação interna em Israel.

    O massacre praticado por Israel desencadeou mobilizações ao redor de todo o mundo contra o genocídio, em defesa dos palestinos e por um cessar-fogo. Os protestos foram muito além dos países muçulmanos e ganharam importância principalmente nos Estados Unidos e Europa. Israel nunca esteve tão desprestigiado internacionalmente em toda sua história.

    Quando Israel reage ao ataque do Hamas e começa a guerra, o governo Netanyahu estipulou 3 objetivos: trazer de volta os reféns; acabar com as “capacidades militares e de governo” do Hamas e “garantir que Gaza não represente uma ameaça local a Israel” no futuro, ou seja, ocupando ou controlando o território. Mais recentemente, o governo passou a falar em um quarto objetivo que seria garantir o retorno seguro dos habitantes do norte de Israel que tiveram que abandonar a região por causa dos ataques do Hezbollah.

    É importante ressaltar que, ao princípio, o ataque do Hamas provocou uma reação violenta da população e que a maioria absoluta apoiou a guerra, a destruição do Hamas e da resistência palestina e inclusive o genocídio. Os partidos políticos, a burguesia e as forças armadas uniram-se em torno de um governo de unidade nacional com Netanyahu à frente.

    Netanyahu falava em acabar com o Hamas em dias ou, no máximo semanas. É evidente que, se os objetivos de guerra estivessem sendo alcançados, ou seja, se houvesse apenas o genocídio, um passeio militar e houvesse a libertação progressiva de vários reféns, produto da ofensiva militar, a população, os partidos políticos e a burguesia continuariam unidos em torno do governo.

    Mas está acontecendo exatamente o contrário: há uma profunda crise em Israel provocada pelo impasse depois de um ano de guerra e o governo Netanyahu continua questionado por todos os lados. Os assassinatos de Sinwar, de Nasrallah e do alto comando do Hesbollah fortaleceram temporariamente o governo, mas a realidade é que nem um dos objetivos traçados por Netanyahu foi alcançado.

    Os reféns não só não foram resgatados como a morte de 6 reféns provocou mobilizações massivas de centenas de milhares de manifestantes, inclusive uma greve geral, contra o governo de Netanyahu e a favor de um acordo de cessar-fogo que permita a sua libertação. Fato inédito em Israel no meio de uma guerra.

    O Hamas está longe de ser destruído e a ofensiva israelense no sul do Líbano, tentando ocupar uma zona tampão que impeça o lançamento de mísseis e drones pelo Hezbollah, depois de mais de um mês de tentativas, não conseguiu qualquer ganho territorial de importância e o bombardeio a Israel aumentou. Chegou a atingir Telavive e Haifa sem que as defesas de Israel conseguissem evitá-lo.

    Os gastos militares de uma guerra prolongada e que não alcança nenhum dos seus objetivos, a inflação e a crise econômica, somados à política do governo Netanyahu, abriram uma crise econômica e política. Há uma divisão na burguesia israelense (entre os setores burgueses e partidos dos centros econômicos do país e os partidos das colônias da Cisjordânia) e atritos entre o governo e as Forças Armadas, Mossad e Shin Bet.

    Um dos temas centrais de divergência é o acordo de cessar-fogo com o Hamas e uma troca de reféns por prisioneiros ou a continuidade da guerra. Netanyahu quer continuar a guerra e é apoiado pelos partidos dos colonos que pressionam para estender a ofensiva militar à Cisjordânia. Alguns dos seus ministros, como Itamar Ben Gvir, ministro da Segurança Interna, falam em anexar a região, que ele chama de Judeia e Samaria.

    No entanto, há um choque crescente entre o governo Netanyahu e a cúpula militar e de segurança. A demissão do ministro Gallant e as notícias saídas na imprensa sobre uma possível demissão dos chefes do Shin Beth e do Estado Maior as Forças Armadas (IDF) aprofundaram a crise em plena guerra.

    Recentemente, o Fórum Empresarial Israelense, que reúne as 200 empresas líderes do país, pronunciou-se contra a demissão do ministro da Segurança (Ministro da Defesa), Yoav Gallant pouco antes que ela acontecesse: “O Primeiro-Ministro sabe melhor do que ninguém que todos os indicadores econômicos mostram que Israel está caminhando para um abismo econômico e afundando em uma recessão profunda. A última coisa de que Israel precisa agora é da demissão de um ministro [de segurança], o que desestabilizaria o [país].”

    O imperialismo pressiona para um acordo de cessar-fogo e continua acenando com alguma forma de solução de “dois estados”, mas o governo, os partidos dos colonos e inclusive a ampla maioria dos setores da oposição estão radicalmente contra um estado palestino, mesmo que sem nenhuma autonomia. A única política de todos esses setores é manter mais de 5 milhões de palestinos sob uma ditadura e um regime de confinamento em enormes guetos. Isso só é possível com um regime de guerra permanente que, depois de um ano, mostra claramente seu esgotamento. O custo econômico da guerra já atinge US$ 68 bilhões e a continuidade da ação militar de Israel depende do fornecimento militar dos EUA e dos países europeu.

    À medida que o tempo passa e a guerra continua, a situação vai ficando mais difícil de sustentar por Israel, cuja economia e a atividade produtiva tiveram uma redução significativa, gerando, juntamente com a insegurança crescente devido à guerra, uma onda de migrações de profissionais de nível superior. O historiador Ilan Pappé afirmou que o êxodo é de aproximadamente 600 mil israelenses, inclusive de médicos judeus das cidades mais prósperas, como Tel Aviv, para a Europa Ocidental e EUA.

    Por outro lado, Israel realizou uma nova agressão militar ao Irã, com um ataque aéreo a suas bases militares. O ataque foi cuidadosamente planejado com o imperialismo norte-americano, que reforçou a defesa antiaérea israelense e definiu os objetivos limitados dos ataques, mas agora já estamos em uma guerra regional. Esta regionalização da guerra é uma política de Netanyahu, que tem a ver com o projeto da Grande Israel e com o papel de polícia do imperialismo norte-americano, embora haja diferenças táticas com o governo Biden sobre até onde a guerra deve ir.

    A conclusão desse quadro é que há uma polarização: Israel alimenta a guerra e a agressão buscando redefinir o mapa do Oriente Médio, mas com isso aumenta brutalmente as tensões e o país vive a maior crise da sua história. Não só sua imagem está questionada diante do mundo, mas a própria existência do Estado de Israel, um projeto colonialista e racista. E isso questiona e põe em risco o controle dos imperialismos estadunidense e europeu na região. A guerra na Palestina é o centro da luta de classes mundial.

    O ataque do Hamas em 7 de outubro foi um acerto e um marco na luta pela libertação da Palestina

    Se houvesse somente um genocídio e não existisse uma guerra de libertação, teríamos que chegar à conclusão que o ataque do Hamas em 7 de outubro foi uma provocação contra um inimigo poderosíssimo. Essa provocação seria corresponsável pela brutal retaliação de Israel e pelo genocídio, como também potencialmente por uma derrota histórica da causa palestina. Isso é verdade? Pensamos que a conclusão é oposta, mesmo que com todas as suas contradições.

    Antes de mais nada, é preciso ter claro que o Hamas é uma organização nacionalista burguesa com todas as limitações do seu caráter de classe. No entanto, no momento atual é a organização que as massas palestinas e principalmente sua vanguarda se apropriam para organizar sua luta pela libertação nacional.

    Do ponto de vista da luta nacional pela libertação da Palestina, o ataque do Hamas foi um acerto político e militar. Conseguiu capturar 250 reféns. Colocou a luta do povo palestino de novo na ordem do dia. Unificou as forças da Resistência. Mostrou o verdadeiro caráter fascista e genocida do Estado de Israel. Mobilizou massas do mundo inteiro em favor dos palestinos. Obrigou Israel a travar a mais longa e custosa guerra da sua história, colocou em crise o Estado sionista e questionou a sua viabilidade.

    É possível a derrota militar/política de Israel

    A resolução de uma guerra não se dá somente pelos números de baixas e a destruição do adversário. Se fosse assim, o resultado já estaria definido a favor de Israel ou do imperialismo antes da guerra começar. No caso de guerras de libertação anticoloniais, as vitórias e derrotas se medem pela capacidade do invasor ou potência de impor uma ordem estável aos colonizados e que eles deixem de lutar para que o exército colonial não tenha que manter uma guerra permanente com perdas humanas que ameacem sua coesão interna.

    No caso do Vietnam, mais de um milhão de vietnamitas perderam a vida e os EUA “apenas” cerca de 50 mil soldados além de dezenas de milhares de lesionados e portadores de transtornos mentais. No entanto, quem saiu derrotado foram os EUA. O papel dos grandes movimentos contra a guerra no interior dos EUA foi decisivo para essa derrota.

    No caso atual, um dos maiores problemas de Israel é o movimento mundial contra o extermínio dos palestinos. Em especial a perda de apoio a Israel da juventude da maior colônia judaica, a norte-americana. As organizações Jewish Voices for Peace (Vozes Judaicas pela Paz), e If Not Now (Se não agora…) agrupam mais de 700 mil seguidores em suas páginas e dezenas de milhares de ativistas.

    Israel nunca esteve tão desprestigiado internacionalmente em toda sua história. O BDS (nome da campanha internacional de boicote a investimentos e por sanções ao estado sionista, nos moldes da que foi realizada em relação ao apartheid sul-africano nas décadas de 80 e 90 do século passado) está tendo uma repercussão cada vez maior. Empresas importantes, como a INTEL, suspenderam investimentos econômicos em Israel. 4.500 escritores como Arundhati Roy, Sally Rooney e outros decidiram fazer um boicote à edição de suas obras por editoras israelenses que apoiem o genocídio.

    Na guerra atual, assim como na guerra do Vietnam, a superioridade de armamentos de Israel é avassaladora no que diz respeito à força aérea, naval, mísseis e carros blindados. E o apoio do imperialismo estadunidense permite um suprimento de armamentos quase inesgotável. Por isso, a derrota de Israel é muito difícil, mas como a derrota dos Estados Unidos, o chefe do imperialismo no mundo, demonstrou no Vietnam, isso não é impossível.

    Devido a essa luta desigual, não podemos descartar que o Hezbollah negocie um acordo de cessar-fogo por separado, abandonando a resistência palestina. No momento em que escrevemos esse artigo, o imperialismo está pressionando a direção do Hezbollah nesse sentido e, aparentemente, o governo de Israel aceitaria negociar uma proposta desse tipo. Apesar da combatividade demonstrada até agora pelo Hezbollah, não é possível confiar em uma direção nacional burguesa que tem interesses próprios como classe proprietária no Líbano e na região.

    O mesmo se aplica ao Irâ. Apesar do Irã ter evitado um confronto generalizado com Israel, sem dúvida por temor à reação do imperialismo estadunidense, é inegável que seu governo tem fornecido todo tipo de armamento ao Hezbollah, aos Huthis e anteriormente ao Hamas. Mas, não é possível ignorar que a burguesia iraniana que sustenta o regime dos aiatolás tem objetivos nacionais próprios como potência regional e pode a qualquer momento subordinar a causa palestina a seus próprios interesses, negociando ou pressionando para um acordo que obrigue os palestinos a aceitar concessões maiores ao imperialismo, sob pena de que fiquem mais isolados.

    No entanto, a proposta que está na mesa de negociação, de um cessar-fogo de 60 dias entre Israel e o Hezbollah, com o estabelecimento de uma força multinacional no Sul do Líbano, está longe de resolver a situação. Todas as contradições levantadas acima continuarão colocadas enquanto a questão palestina estiver no centro do problema. E a crise de Israel irá seguir.

    A situação não está definida, mas reafirmamos que a derrota do Estado sionista é possível e que o problema é político-militar e depende não só da sua superioridade militar, mas da resistência palestina e libanesa, da situação interna em Israel e da luta de classes internacional.

    Revolução socialista e guerra nacional de libertação

    Nós, como socialistas revolucionários, temos diferenças fundamentais com o Hamas. Como dissemos, é um partido nacionalista, islâmico, que defende a concepção de um estado capitalista. Nós, ao contrário, defendemos que a única solução definitiva para a humanidade, e inclusive para o problema da libertação nacional do jugo do imperialismo e da autodeterminação dos povos é o socialismo internacional.

     Isso não significa que ignoramos o problema da libertação nacional da Palestina.  Ao contrário. A luta por uma Palestina livre, laica, democrática e não-racista do rio ao mar é uma demanda democrática cujo significado vai além da aspiração dos 11 milhões de palestinos a retomar o território do qual foram expulsos e constituir uma nação soberana. Também se transformou no símbolo da luta dos povos árabes contra a opressão do imperialismo estadunidense e europeu cujo agente armado é o Estado de Israel.

    A luta pela libertação da Palestina só pode ser vitoriosa se houver clareza que, para conquistar esse objetivo, é preciso destruir o Estado colonialista de Israel, que se sustenta em bases racistas e de ameaças e guerras permanentes sobre os povos do Oriente Médio. Só o fim do Estado de Israel pode dar uma saída permanente para o povo palestino e para os povos da região.

    O que ameaça hoje a Resistência não é só Israel, mas, principalmente, a política de dois Estados à qual o Hamas aderiu recentemente, e que é promovida tanto pelas burguesias árabes pró-EUA e Israel (Arábia Saudita, Egito, Jordânia) quanto as que têm conflitos com Israel (Irã e o chamado Eixo de Resistência).

    Os Acordos de Oslo já mostraram que essa falsa solução não garante nem o território nem a soberania de um Estado palestino e, muito menos, o retorno dos refugiados. Só serviu para que o Estado de Israel e o imperialismo cooptassem uma parte das organizações palestinas, principalmente o Fatah, que controla a Autoridade Nacional Palestina (ANP).

    Por outro lado, a posição dos pacifistas e dos reformistas não só nega a efetividade e até a existência da luta de Resistência palestina e libanesa, mas, na prática, coloca-se contra a ação militar da resistência palestina e dos movimentos árabes.

    No entanto, a realidade, evidenciada pela história de mais de 100 anos do projeto imperialista e colonialista que culminou na ocupação sionista da Palestina, assim como pela longa luta da resistência palestina, mostrou que a luta pela libertação da Palestina só pode ser alcançada pela via militar e revolucionária.

    E hoje, o caminho que leva à libertação da Palestina e, no desenvolvimento da luta de classes revolucionária e a uma dinâmica de revolução permanente em direção à revolução socialista, passa pela resistência armada que confronta o Estado de Israel. Por isso, estamos incondicionalmente ao lado da resistência militar palestina e libanesa, independentemente das divergências e críticas que tenhamos às suas direções nacionalistas como o Hamas, Hezbollah e outras.

    Defendemos que essa resistência armada se estenda internacionalmente a outros países. As ações das organizações de outros países contra Israel são fundamentais para derrotar o estado de Israel. Um exemplo são as ações dos Huthis do Iêmen, com drones e mísseis que têm golpeado o comércio no Mar Vermelho, o que aumenta o isolamento econômico de Israel. Também houve ações de grupos presentes no Iraque e na Síria. Já houve drones que caíram em Eilat no extremo sul de Israel o que golpeia o moral do exército.

    Para isso é preciso denunciar e confrontar os governos árabes que colaboram com o imperialismo e Israel como a Arábia Saudita, a Jordânia, os Emirados, Marrocos e o Egito. Esses governos limitam-se a fazer protestos verbais contra o genocídio, mas mantêm relações comerciais com o estado genocida. A monarquia marroquina permitiu a passagem por seus portos de um navio carregado de armas e munições para Israel, sob protestos dos apoiadores da causa palestina no porto de Tânger. É a mesma posição do governo jordaniano, mas contra o sentimento do seu povo que apoia massivamente a resistência palestina. Na recente eleição para o parlamento, a Irmandade Muçulmana que defendia a ruptura dos acordos com Israel, chegou a quase 30% dos votos.

    É preciso chamar as massas desses países a exigir de seus governos a ruptura imediata de relações diplomáticas, econômicas e militares com Israel, apoio militar à resistência palestina e que permitam que os apoiadores da luta contra o sionismo possam se somar à resistência palestina e libanesa.

    Ao mesmo tempo em que é necessário essa unidade militar com a resistência palestina e libanesa, inclusive com suas direções nacionalistas, é fundamental que as novas camadas de combatentes da Resistência palestina e de outros países se atentem para a necessidade da classe trabalhadora se organizar de forma independente das direções nacionalistas e religiosas, buscando construir o seu próprio partido socialista e revolucionário que lute por transformar a guerra de libertação nacional por uma Palestina Livre do Rio ao Mar em uma Revolução Socialista em toda a região.

    Publicado em novembro de 2024 no site da LIT-QI <https://litci.org/pt/2024/11/27/palestina-genocidio-e-guerra-de-libertacao/?utm_source=copylink&utm_medium=browser>

  • Reforma ou revolução: o embate que decidiu a  vitória em outubro de 1917.

    Reforma ou revolução: o embate que decidiu a vitória em outubro de 1917.

    Na formação do movimento operário, várias teorias foram sendo superadas, como o utopismo dos primeiros socialistas, que ainda continham a visão burguesa em seu seio, pois correspondia à sua “infância”; um fenômeno que vem desde a origem do movimento operário no século XIX.

    Por: José Welmowicki

    Marx e Engels citaram essas ideias na parte final do Manifesto Comunista e, por isso, combateram-nas ideologicamente de forma permanente. Naquele momento, o utopismo e o reformismo eram associados às correntes que ainda preservavam as ideias dominantes anteriores. Em sua trajetória, estreitamente vinculada à organização dos partidos operários na Europa e à Associação Internacional dos Trabalhadores, Marx e Engels tiveram que travar duras polêmicas com os setores sindicalistas que ainda refletiam a imaturidade da classe, ao mesmo tempo em que sofriam as pressões das classes dominantes. Com a conformação da Primeira Internacional, surgiram diversas controvérsias para superar os erros desses setores.

    Como exemplo dessas polêmicas, podemos citar a defesa da Comuna de Paris em 1871 e a conclusão da necessidade de destruição do Estado burguês, ou ainda a discussão do Programa de Gotha (1875), congresso que formou o SPD alemão. Contudo, até aquele momento, a questão do reformismo ainda não havia assumido a importância e as raízes que viria a tomar mais adiante, como um tremendo obstáculo à revolução proletária – determinando derrotas profundas, como a bancarrota da Segunda Internacional e da Terceira Internacional.

    No desenvolvimento da Revolução de Outubro, o papel do reformismo foi muito grande e a revolução só pôde triunfar devido à existência do Partido Bolchevique, que se opôs e derrotou os reformistas na disputa pelo apoio da classe operária e do povo, possibilitando a vitória da revolução socialista.


    I – O reformismo tornou-se predominante e levou à bancarrota da II Internacional

    A primeira vez que um socialista de relevância participou de um governo burguês (o deputado Millerand, na França, em 1899) pôs à prova o programa e a prática dos socialistas, causando uma grave crise.

    Rosa Luxemburgo denunciava o significado dessa participação: relegar os socialistas franceses a serem os sustentadores do governo burguês do Partido Radical, incapazes até mesmo de criticar abertamente ou propor medidas mais radicais no governo em que participavam, por medo de que este renunciasse – justificando que, se o fizessem, outro governo burguês ainda mais reacionário assumiria. Esse episódio gerou repúdio na época, tanto na social-democracia quanto na II Internacional.

    Entretanto, o episódio francês expressava na prática posições já firmemente presentes na direção da social-democracia alemã e da II Internacional, cujo centro dirigente era o SPD alemão. As bases materiais para essa concepção reformista situavam-se no período de crescimento do capitalismo na segunda metade do século XIX, após a Comuna de Paris.

    Esse período possibilitou conquistas importantes ao proletariado, como aumentos salariais, redução da jornada de trabalho, melhores condições laborais e maior liberdade organizacional na Europa Ocidental. Sindicatos e partidos social-democratas cresceram e se fortaleceram, gerando uma perspectiva falsa de uma evolução gradual no capitalismo, com cada vez mais conquistas e poder político. A conquista de direitos políticos – como o do sufrágio – possibilitou que, na Alemanha das últimas décadas do século XIX, o Partido Social-Democrata conquistasse cada vez mais parlamentares. Fruto dessa conquista e da pressão direta que o parlamento e os sindicatos exerciam sobre o partido, uma camada de quadros foi se adaptando ao funcionamento legal e à rotina parlamentar, formando uma burocracia partidária, assim como se consolidava uma burocracia própria nas organizações sindicais.

    Bernstein foi o dirigente que forneceu a formulação teórica para toda a prática da social-democracia alemã de adaptação ao sistema parlamentarista, à rotina de aprimoramento sindical e à construção de uma burocracia na Alemanha. Assim, criou-se a base para a concepção reformista de que seria possível alcançar o socialismo por meio de reformas, sem a necessidade de rupturas ou da destruição do Estado burguês – ou seja, sem a revolução operária. A tese de Bernstein era que a democracia significava a “ausência de um governo de classe”, isto é, um Estado em que nenhuma classe governaria, e, portanto, prevaleceria uma “vontade popular” abstrata. A conquista dessa almejada democracia ocorreria por meio de mudanças graduais, reformas paulatinas que conduzissem a avanços rumo ao socialismo, sem rupturas nem a necessidade de tomada do poder por meio de uma revolução social. O socialismo seria uma sociedade a ser alcançada via mudanças graduais e pela democratização progressiva do Estado. Bernstein calificava como “blanquismo” qualquer tentativa de tomada do poder pela classe operária, rotulando-a de “terrorismo operário”.

    Rosa Luxemburgo respondeu em seu clássico Reforma ou Revolução:

    Bernstein condena os métodos de conquista do poder político, censurando-os por retomar as teorias blanquistas da violência; ele comete a infelicidade de equiparar o blanquismo a um erro profundamente prejudicial, erro que, desde que existam sociedades de classes, e a luta de classes seja o motor essencial da história, a conquista do poder político sempre foi o objetivo de todas as classes ascendentes, constituindo o ponto de partida e o ponto final de todo o período histórico.

    A Primeira Guerra expôs nitidamente o grau de adaptação da II Internacional e dos partidos social-democratas às burguesias, seus Estados e regimes. Uma vez declarada a guerra, os grandes partidos socialistas europeus decidiram apoiar suas respectivas burguesias numa guerra mundial, o que significava empurrar a classe operária de um país para lutar contra a de outro, matando-se entre si. Isso levou à bancarrota da II Internacional. Apenas uma pequena minoria de dirigentes – como Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, na Alemanha, e os bolcheviques russos – manteve uma posição de princípio, convocando a combater seus respectivos governos, a acabar com a guerra e a transformá-la em guerra civil.

    Todavia, essa catástrofe que atingiu a II Internacional deixou claro que a adaptação ao Estado burguês havia chegado a um ponto sem retorno, e agora as teorias de Bernstein passaram a ser plenamente adotadas, como ocorreu no partido alemão, em um congresso de 1921.

    Os partidos social-democratas passaram a se tornar obstáculos à revolução socialista e demonstraram, durante a onda revolucionária posterior à Primeira Guerra Mundial, seu caráter abertamente contrarrevolucionário. Ao assumirem o governo em alguns países da Europa, como na Alemanha, passaram de um discurso que propunha lutar por reformas para conter a revolução a uma defesa aberta do Estado burguês frente à revolução operária. Quando a Revolução Alemã explodiu em 1918, e a monarquia do Kaiser foi derrubada, a social-democracia assumiu o governo e defendeu o Estado burguês com os instrumentos da repressão. Ficou demonstrado na prática que o discurso das reformas pacíficas e da democracia não conduzia ao socialismo. Passou-se a reprimir os revolucionários dissidentes da Liga Espartaquista – que, posteriormente, formaria o Partido Comunista da Alemanha. Os grandes revolucionários Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht foram assassinados pela polícia do governo social-democrata de Ebert.


    III – Os mencheviques e o caráter da Revolução Russa

    Desde sua fundação, havia, no interior da social-democracia russa, uma polêmica sobre a natureza da revolução, que se aprofundou com a Revolução de 1905. Os mencheviques defendiam que, devido ao atraso da sociedade russa, aos seus resquícios feudais, ao fato de que a imensa maioria da população era camponesa e de que o regime era uma monarquia absolutista, a Revolução Russa seria de caráter democrático-burguês, tendo à sua frente a burguesia nacional, apoiada pelo proletariado e pelo campesinato em sua luta conjunta contra a monarquia czarista. Somente após um longo desenvolvimento do novo regime e das forças produtivas sob o capitalismo, a revolução socialista proletária seria proposta. Nesse período ou etapa de desenvolvimento democrático, caberia ao proletariado e à social-democracia russa assumir o papel de ala esquerda, lutando para aprofundar as reformas e preparando um novo momento em que a tomada do poder estaria em pauta. Ou seja, qualquer tentativa de revolução socialista seria precipitada, um salto sem passar pelas etapas necessárias da luta. Essa concepção equivocada enfraqueceu os mencheviques para a Revolução Russa e, especialmente quando a Revolução de Fevereiro triunfou, tornou-se um poderoso obstáculo ao seu desenvolvimento.


    IV – O papel dos mencheviques durante a Revolução Russa, de fevereiro a outubro

    A queda da monarquia em fevereiro colocou os socialistas diante da disjuntiva de apoiar ou não o governo provisório. Os mencheviques, coerentes com sua visão de que a Revolução Russa deveria inicialmente ter uma etapa democrática-burguês, apoiaram o primeiro governo provisório após a queda do czar.

    Considerando que, por si só, a Revolução de Fevereiro era essencialmente burguesa – havia chegado tarde demais e não possuía, por si, nenhum elemento de estabilidade – estando dilacerada por contradições que se manifestaram desde o início na dualidade de poderes, ela deveria se transformar, ou como uma introdução direta à revolução proletária (o que de fato ocorreu) ou lançar a Rússia, sob um regime de oligarquia burguesa, a um Estado semicolonial.

    Por conseguinte, poderia ser considerado o período subsequente à Revolução de Fevereiro, ora como de consolidação, de desenvolvimento ou de conclusão da revolução democrática, ora como uma etapa preparatória para a revolução proletária (…)” (Trotsky, Lições de Outubro).

    Os mencheviques adotaram a primeira hipótese. Sua antiga tese de que a Revolução Russa seria democrática-burguês parecia estar corroborada pela realidade: segundo sua visão, cabia à burguesia dirigir o país durante toda uma etapa histórica. Seguindo essa lógica, os mencheviques continuaram apoiando – ainda que de maneira crítica – os sucessivos governos de coalizão, desde aquele liderado pelo príncipe Lvov, com figuras destacadas da burguesia, como Miliukov, dirigente do partido cadete (liberal).

    “(…) Durante anos, os líderes mencheviques afirmaram que a revolução futura seria burguesa, que o governo de uma revolução burguesa apenas poderia realizar as aspirações da burguesia, e que a social-democracia não poderia assumir as tarefas da democracia burguesa, devendo, ‘sem deixar de impulsionar a burguesia para a esquerda’, limitar-se a um papel de oposição.” (Trotsky, op. cit.)

    Porém, a realidade forçou os mencheviques a aprofundar as consequências de sua orientação estratégica: diante da velocidade dos acontecimentos – típica de um processo revolucionário em andamento – a própria Revolução de Fevereiro acabou por levar os mencheviques a integrar o governo. Mais uma vez, os socialistas não apenas priorizavam a defesa das instituições democráticas, como chegaram a adotar a mesma posição de Millerand, na França de 1899, aceitando fazer parte do governo e comprometendo-se com a política (burguesa) do governo de coalizão. Como escreveu Trotsky: “De sua posição original, preservaram apenas a tese de que o proletariado não deveria conquistar o poder.

    Posteriormente, os mencheviques passaram a assumir diretamente o governo de coalizão e foram fundamentais para compor o governo Kerensky, mantendo a linha de manter a Rússia na Primeira Guerra Mundial, sem alterar a propriedade burguesa ou o latifúndio secular. Desempenharam um papel essencial na sustentação desse governo, pois, até então, juntamente com os social-revolucionários, constituíam a maioria na direção dos sovietes de operários, soldados e camponeses. Ao ver ministros desses dois partidos no governo – como Tserelli ou Chernov –, e contando com o apoio do soviete de Petrogrado por meio de dirigentes como Chkeidze e Dan, as massas de operários, camponeses e soldados passaram a acreditar que aquele era “seu governo”. Diante dessa realidade, tornou-se necessária uma alternativa revolucionária com estratégia clara, papel que coube aos bolcheviques.


    V – A Revolução de Outubro foi contra o governo liderado pelos reformistas

    Diferentemente do caso francês de Millerand, os reformistas enfrentavam uma revolução proletária em curso. A questão da posição dos revolucionários em relação ao governo Kerensky definiu a trajetória da Revolução Russa e a possibilidade de tomada do poder pelos sovietes em outubro.

    Essa questão não se restringe apenas aos mencheviques e aos social-revolucionários. Dentro do Partido Bolchevique, a maioria do Comitê Central, até a chegada de Lenin em abril, seguia uma orientação semelhante à dos mencheviques. Se não houvesse uma dura batalha de Lenin contra a ala hesitante de Stalin e Kamenev, a revolução poderia ter se perdido. E mesmo após abril, e com a mudança de orientação do partido para preparar a tomada do poder pelo proletariado por meio dos sovietes, houve uma resistência permanente a essa nova orientação por parte de importantes dirigentes bolcheviques.

    Quando a contrarrevolução surgiu, por meio do golpe de Kornilov em agosto, e foi derrotada pela ação dos trabalhadores e camponeses, e quando o Partido Bolchevique assumiu a liderança dessa luta vitoriosa – convocando à unidade e revitalizando os sovietes, de modo que os bolcheviques passaram a conquistar a maioria de alguns dos principais sovietes, a começar pelo de Petrogrado e logo depois pelo de Moscou – aproximou-se o momento oportuno para a insurreição operária que derrubaria o governo e instituiria o poder dos sovietes.

    Kerensky tentou utilizar a derrota de Kornilov para se reacomodar e convocou uma Conferência Democrática, de 14 a 22 de setembro, que originou um “pré-Parlamento”, marcando uma nova etapa no desenvolvimento das divergências. Abriu-se então um novo momento de hesitação. Os mencheviques ligados a Kerensky queriam obrigar os bolcheviques a se submeterem a esse novo órgão, aceitando entregar o poder crescente e o protagonismo adquirido pelos sovietes. A direção bolchevique convocou o boicote ao “pré-Parlamento” e exigiu que o poder fosse transferido aos sovietes. A ala conciliadora, liderada por Zinoviev e Kamenev, defendeu a participação em ambos os fóruns e o estreitamento dos laços com os mencheviques.

    Trotsky explicava:

    A conduta dos partidos conciliadores na Conferência Democrática foi de uma lamentável baixaria. Contudo, nossa proposta de abandonar ostensivamente a conferência – correndo o risco de ficarmos presos nela – colidia com uma resistência categórica dos elementos de direita, que ainda detinham grande influência na direção do nosso Partido. Essas coalizões, nesse caso, serviram de porta de entrada para a luta sobre a questão do boicote ao pré-Parlamento. Em 24 de setembro – isto é, após a Conferência Democrática –, Lenin escrevia: ‘Os bolcheviques devem se retirar como forma de protesto, para não cair na armadilha pela qual a Conferência tenta desviar a atenção popular das questões sérias’.” (tradução nossa)

    Contudo, apesar das hesitações dentro do próprio Partido Bolchevique, prevaleceu a orientação de Lenin, e assim se preparou a insurreição operária, vitoriosa em outubro. Isso significou uma ruptura frontal tanto com os mencheviques quanto com os social-revolucionários, que defendiam permanecer nos marcos da democracia burguesa – o que, por sua vez, ocasionou uma divisão entre os social-revolucionários, na qual uma ala de esquerda aderiu à proposta dos bolcheviques, formando a maioria dos sovietes.

    No congresso dos sovietes, em outubro, foi declarado a transferência do poder para os órgãos soviéticos, expulsando Kerensky e seu governo. Contudo, a insurreição foi planejada para coincidir com a convocação do Congresso. Essa preparação foi realizada pelo Partido Bolchevique, que já liderava os principais sovietes: os de Petrogrado e Moscou.

    A Revolução de Outubro só foi possível por meio da derrota do reformismo, derrubando o governo de colaboração de classes liderado por Kerensky. Esse destino ficou selado naquele mesmo congresso dos sovietes, quando, diante do repúdio à resolução de tomada do poder apresentada por Martov e da retirada da delegação menchevique, Trotsky dirigiu-se a eles afirmando que haviam escolhido seu destino, saindo de cena e indo para “o lixo da história”.


    VI – O reformismo após a Revolução de Outubro

    O reformismo teve um papel desastroso entre as décadas de 1920 e 1940. Sua política na Alemanha, de 1919 a 1933; na França e na Espanha, de 1931 a 1936; juntamente com o novo aparato surgido com a degeneração da URSS – ou seja, os partidos comunistas sob a direção do estalinismo – foi decisiva para infligir derrotas históricas ao proletariado mundial, para o isolamento da Revolução Russa, para o ascenso do nazismo e do fascismo, e para o deflagramento da Segunda Guerra Mundial, de 1939 a 1945.

    Com a derrota do nazifascismo e o fim da Segunda Guerra, a resistência assumia o controle dos países, mas a social-democracia e os partidos comunistas novamente traíram e desviaram a revolução socialista na França e na Itália. Uma vez estabilizada a situação, iniciou-se um período de crescimento econômico, no qual os reformistas recuperaram algum prestígio e conseguiram capitalizar um período denominado Estado de Bem-Estar, em que, devido à destruição causada pela guerra e em meio à revolução operária, a burguesia foi forçada a permitir melhorias significativas nas condições de trabalho, nos direitos sociais, etc. A social-democracia e os partidos comunistas apresentaram-se como defensores dos direitos sociais, reestruturaram-se na Europa Ocidental e integraram os governos na Alemanha, França, entre outros países.
    Frente aos processos que derrubaram regimes ditatoriais, novamente serviram como desvios para a revolução operária na Grécia – com o Pasok de Papandreu; em Portugal – com o PSP de Mário Soares após a Revolução dos Cravos; e até mesmo na Espanha pós-franquista, com Felipe González, que pactuou a transição com a monarquia dos Bourbons.

    Já na década de 1970, iniciou-se uma nova crise capitalista e, a partir daí, com a aplicação das políticas neoliberais de Thatcher e Reagan nos anos 1980, a social-democracia passou a abandonar cada vez mais as bandeiras das reformas parciais do Estado de Bem-Estar, adotando os mesmos planos neoliberais de seus adversários políticos de direita, o que resultou em uma nova grave crise nos partidos que passaram a ser chamados – com razão – de “socio-liberais”, pois não se diferenciam de seus adversários conservadores, excetuando-se apenas elementos retóricos. O mesmo fenômeno ocorreu com os antigos partidos comunistas após a restauração promovida na ex-URSS e em toda a Europa Oriental, os quais foram destruídos pelas revoluções que derrubaram seus regimes políticos no final dos anos 1980 e início dos anos 1990.

    A “Terceira Via” de Tony Blair foi uma das expressões mais claras desse processo: o abandono da defesa do Estado de bem-estar e a aproximação à política dos “planos de austeridade” e dos cortes nos direitos dos trabalhadores. Os governos trabalhista britânico, do Partido Socialista francês e do PSOE espanhol foram fundamentais para o retrocesso nas conquistas operárias, para a implementação dos planos neoliberais e para a construção do Tratado de Maastricht e da União Europeia.

    No entanto, toda essa traição resultou em uma queda violenta no prestígio do velho reformismo social-democrata e estalinista: o PASOK grego mergulhou em profunda crise, reduzindo-se a uma bancada parlamentar fraca; o PSOE saiu desgastado pela gestão da crise econômica, não atraindo mais os jovens nem os dirigentes operários; o PS francês, após governar de 1970 até 2000 e ter tido o último presidente, registrou seu pior resultado histórico devido à desastrosa gestão de Hollande; o Partido Comunista italiano desapareceu, dando origem ao PD, que é um partido burguês, fruto da fusão dos antigos comunistas com os democratas-cristãos, e já não exerce a mesma atração para os jovens e para o movimento operário.

    No Brasil, o PT, que surgiu tardiamente em relação a essas forças, teve um rápido e potente ascenso nas décadas de 1980 e 1990 e, em seguida, passou por um processo igualmente rápido de adaptação: ao assumir o governo, tornou-se também executor da política neoliberal e passou por um desgaste violento em função da implementação desses planos e da estreita colaboração com os bancos e as grandes empresas que o financiavam, o que o envolveu em um gigantesco escândalo de corrupção, ocasionando um profundo desgaste que afetou todos os seus principais quadros, inclusive Lula.


    VII – O neorreformismo

    Diante da profunda crise do velho reformismo, que se transformou no social-liberalismo, e do colapso do estalinismo nas décadas de 1990 e 2000, abriu-se um espaço resultante desse ascenso popular, a partir da reação contra a aplicação dos planos de austeridade da União Europeia. Especialmente a partir da crise de 2008, surgiram novas formações reformistas que tentaram preencher esse vácuo: o primeiro a obter um forte apoio popular foi o Syriza, na Grécia. Contudo, novamente, a lei de ferro da adaptação à democracia burguesa recaiu sobre esses novos partidos. Agora, o ritmo é ainda mais intenso, uma vez que não há espaço nem mesmo para reformas mínimas.

    O caso grego foi o mais revelador. Nesse contexto, a guinada foi completa: o Syriza se apresentou como a oposição frontal ao Pasok, sendo visto como a “esquerda radical contra a austeridade”. Após diversas greves gerais e quedas de governo, o SYRIZA venceu as eleições parlamentares, formando governo com um partido burguês de direita. Logo após assumir o governo, tornou-se o substituto do PASOK, implementando os planos de expolição da Troika e até mesmo a política repressiva da UE contra os refugiados, estabelecendo-se como sócio e aliado de Israel. Em “contrapartida a essa generosidade”, Tsipras implementou a décima quarta onda de cortes contra a classe trabalhadora grega, com novos cortes nos benefícios e mais privatizações.

    Na França, Mélenchon, candidato da “França Insubmissa”, limita-se a abordar – de forma insatisfatória – os efeitos da crise, sem atacar a propriedade das grandes empresas ou dos bancos. Seu economista-chefe vangloria-se de que seu programa é “sério e realista”. Propõe reformas moderadas e a convocação de uma assembleia constituinte para refundar uma VI República parlamentarista, sem sequer propor uma ruptura com o poder burguês. Seu projeto, na prática, não é a revolução operária, mas a “Revolução Cidadã”.

    Na realidade, todas as forças que se identificam com a “nova esquerda europeia” – os neorreformistas do Podemos, do Bloco de Esquerda português, da Die Linke na Alemanha – veem no SYRIZA sua referência. Em comum, essas forças apostam em mudanças por via eleitoral, sem romper com a legalidade burguesa. Não há sequer a perspectiva revolucionária. Elas não propõem a ruptura com a UE, mas apenas negociar para “modificar os tratados”. E, em outras partes do mundo, existem fenômenos semelhantes, como o PSOL brasileiro, que tenta ocupar o espaço deixado pelo PT, mas com um programa muito similar.

    A diferença hoje é que, em geral, esses partidos não possuem as mesmas raízes que o antigo reformismo tinha na classe operária – tanto os social-democratas quanto os ex-estalinistas –, tratando-se essencialmente de fenômenos eleitorais.


    VIII – Uma lição de Outubro: a revolução socialista exige derrotar os reformistas

    Como demonstra a Revolução de Outubro, de forma positiva, bem como a história das revoluções abortadas ou derrotadas dos séculos XX e XXI, os processos revolucionários não se transformam espontaneamente em revoluções triunfantes. É necessário haver um partido, como os bolcheviques, com um programa revolucionário claro, que compreenda a necessidade de enfrentar e derrotar não apenas a burguesia, mas também seus agentes dentro do movimento de massas. Essa é uma das mais importantes lições de Outubro: sem derrotar os inimigos da revolução presentes no seio do movimento operário, não se pode conquistar o poder.

  • A luta pela reconstrução da IV contra o «trotskismo» reformista (Parte II)

    A luta pela reconstrução da IV contra o «trotskismo» reformista (Parte II)

    O Leste Europeu provoca um salto de qualidade no SU: do revisionismo ao reformismo

    Hoje, o SU – que ainda se autodenomina “IV Internacional” – deixou de ser trotskista, embora mantenha o nome da IV. E já abandonou o programa revolucionário de tomada do poder, de luta pela ditadura do proletariado. O curso do revisionismo para o reformismo completou-se a partir dos processos do Leste, que caracterizaram como uma profunda derrota do movimento de massas e abriram uma “crise” no “projeto socialista”.

    Por: José Welmowicki

    Dessa forma, o ex-SU deu um “salto” de uma organização revisionista para o reformismo: além de eliminar explicitamente de seu programa a estratégia da ditadura do proletariado, tudo passou a se orientar pela democracia burguesa ou pela “radicalização da democracia”, abandonando inclusive a concepção da centralidade da classe operária no processo revolucionário. A perda de referência a partir do Leste refletiu-se no fato de que passaram a agir como os partidos reformistas social-democratas ou estalinistas.

    A experiência do Brasil

    O que aconteceu no Brasil ilustra bem esse processo. O SU, por meio de sua organização, a DS, esteve presente na formação do PT nos anos 1980, quando caracterizou a direção lulista como clasista ou mesmo revolucionária, acompanhando seus passos como sua ala esquerda, na verdade, uma oposição à “sua majestade”.

    Não se tratava de um entrismo para eles; era uma participação como corrente dentro de um partido estratégico. Já nos anos 1990, a DS integrou-se cada vez mais ao aparato petista. Quanto mais elegiam parlamentares e, posteriormente, prefeitos, mais se integravam, e seus quadros passavam a fazer parte do aparato partidário e do Estado burguês.

    Chegou-se a defender, de forma tática, a participação em governos burgueses de colaboração de classes, como no governo de Lula no Brasil. Quando Lula assumiu o governo federal em 2003, a DS – então seção brasileira do SU – indicou ministros como Miguel Rossetti e uma série de quadros para funções governamentais.

    A partir da prefeitura de Porto Alegre, foram os impulsionadores locais das “políticas sociais” do PT, semelhantes às que a social-democracia havia aplicado anteriormente. O resultado foi que a DS acabou se afastando do SU e um pequeno setor de quadros formou um novo grupo que permaneceu no SU e, mais tarde, foi para o PSOL, passando por novas divisões. Mais uma vez, considerando o PSOL como partido estratégico.

    Uma “mudança de época”

    Os processos do Leste significaram, para a imensa maioria da esquerda, o início – ou o aprofundamento – da bancarrota teórica, programática e política. Influenciada pelo stalinismo e por suas variantes – de modo que o fim da URSS representou, evidentemente, uma derrota histórica –, em diferentes medidas e com diferentes tons, quase toda a esquerda lamentou o “fim do socialismo real”, o epílogo do “bloco socialista”, etc.

    Dessa forma, ficaram ainda mais expostos aos efeitos da brutal campanha ideológica do imperialismo sobre a “morte do socialismo” e a “invencibilidade” do capitalismo e da democracia burguesa. O caso do ex-SU não foi diferente; ele foi, na verdade, vanguarda teórica desse processo.

    Para o ex-SU, a queda do muro de Berlim gerou nada menos que uma “mudança de época”. Daniel Bensaïd, principal teórico dessa corrente após Mandel, intitulou um documento – apresentado no XIV Congresso do SU em julho de 1995 – com esses termos. Nesse texto, Bensaïd define os impactos das mudanças ocasionadas pelo fim da URSS como uma “grande transformação mundial”, especificamente, como uma “mudança de época”. Destaca-se que ele não fala de “período” ou de “etapa”, mas sim de “época histórica”. Concretamente, para o ex-SU, havia terminado a época definida por Lenin como a de “guerras, crises e revoluções”, iniciada com a Primeira Guerra Mundial e a Revolução de Outubro – que o marxismo entende como uma época revolucionária, a época imperialista – dando lugar a outra diferente:

    Não estamos mais no período político de 1968, ainda não saímos da onda longa depressiva e estamos no final de uma época, iniciada com a Primeira Guerra Mundial e com a Revolução Russa.” 1

    Essa “nova época” não só põe tudo em questão, como, para Bensaïd, representa um retrocesso do movimento operário de quase um século, ao identificar o “ponto de partida” dos marxistas numa coordenada anterior a 1914:

    «[…] o laboratório que se abre tem uma amplitude comparável à do início do século, onde se forjou a cultura teórica e política do movimento operário: análise do debate sobre o imperialismo, sobre a questão nacional; debate estratégico acerca da reforma e da revolução, batalha sobre as formas de organização política, social, parlamentar.«

    Essa “nova época” seria essencialmente defensiva, pois, segundo Bensaïd, inaugurou-se com uma derrota profunda do movimento operário: o “desmantelamento da União Soviética sem resultar em uma revolução política”. Dessa forma, delinearam-se os contornos para toda uma época: “o enfraquecimento social dos trabalhadores” e a “crise do projeto socialista”.

    Bensaïd atribuía tais relações de forças desfavoráveis não a fatores objetivos, mas a elementos subjetivos, como o retrocesso ideológico do movimento operário decorrente dos “efeitos profundos da crise do ‘socialismo realmente existente’”.

    Alertamos para o critério metodológico de Bensaïd: ele não defende a abertura de um longo período de desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo, que possibilitaria reformas duradouras e a elevação do padrão de vida das massas. Nada disso. Bensaïd afirma que se inicia uma nova época – que ele considera reacionária – a partir do “retrocesso na consciência” e da “crise do movimento operário”, ou seja, a partir de elementos subjetivos.
    Bensaïd declara:

    As mudanças nas relações políticas globais, depois da queda do Muro de Berlim, do desmantelamento da União Soviética e da Guerra do Golfo, deram o último golpe, causando uma crise aberta – não apenas conjuntural – nas formas de anti-imperialismo radical da fase anterior […] Neste momento, a tendência dominante internacionalmente é o enfraquecimento do movimento social (começando pelo sindical) […] A esquerda revolucionária está hoje mais pulverizada e enfraquecida do que há cinco anos […] Para a reconstrução de um projeto revolucionário e de uma Internacional, partimos de condições deterioradas.

    Em nenhum momento ele ressalta, não somente a importância, mas o próprio fato da destruição do aparato contrarrevolucionário stalinista mundial pelas massas soviéticas. Esse fato colossal sequer aparece na análise de Bensaïd. E o mais importante, ele não responsabiliza a velha burocracia stalinista pela restauração do capitalismo na ex-URSS, mas sim uma “derrota” ou “retrocesso” político-ideológico do movimento operário. O ex-SU respondeu, assim, à grande questão de quem, quando e como o capitalismo foi restaurado, em uníssono com as viúvas do stalinismo: culpando os “limites” das massas trabalhadoras e não a burocracia termidoriana e totalitária do Kremlin.

    A tendência histórica do ex-SU à adaptação e capitulação aos grandes aparatos e à “opinião geral” da esquerda, num momento decisivo da história, levou-o a um novo seguidismo: juntaram-se ao triste coro de lamentos dos nostálgicos do stalinismo.

    O programa da “nova época”

    Tudo isso serve para justificar uma grande mudança na estrutura programática. Para Bensaïd e para o SU, hoje a revolução socialista não está à vista no horizonte.

    A “nova época” exige, nas palavras de Bensaïd, uma “redefinição programática”, a “construção de um novo programa”. Isso, por si só, não é um problema. Qualquer mudança importante na realidade requer uma atualização programática. O problema do ex-SU foram as premissas teóricas a partir das quais se iniciou a elaboração desse “novo” programa, e o método que se empregou para construí-lo.

    Bensaïd e o ex-SU partiram do fato de que a queda da URSS significou um “eclipse da razão estratégica”. Tudo estava “em questão” e eles teriam carta branca para abandonar de vez qualquer legado trotskista. Assim, abandonaram o método trotskista de elaborar o programa a partir das necessidades objetivas da classe trabalhadora, para absolutizar o elemento subjetivo – a consciência das massas – subordinando, dessa forma, o programa à “correlação de forças” que expressaria esse “atraso” da consciência das massas.

    Consistente com a caracterização de que a época de crises e revoluções, iniciada em 1914, havia chegado ao fim, e a nova época estava marcada pelo retrocesso, o problema do poder foi relegado a um futuro incerto, pois as massas não o encarariam como “imediato”.

    Nesse contexto, a conclusão que se tirou foi de “adaptar” o programa a essa nova época sem possibilidades revolucionárias. Bensaïd chegou a propor, em seu texto, as “novas” coordenadas programáticas pós-Leste. Na Europa – o centro histórico do SU – o objetivo estratégico tornou-se a luta por “uma Europa social e solidária”, “uma Europa pacífica e solidária”, em oposição à “Europa financeira e antidemocrática”. Algo muito semelhante às formulações atuais de boa parte da esquerda europeia.

    Depois de descrever o fim da URSS, as “novas instituições” da “globalização”, o problema da “reestruturação produtiva”, etc., na nova ordem unipolar, Bensaïd propôs uma visão e um programa completamente reformista, nos moldes do conceito liberal de “cidadania universal” e da utópica “democratização” e “humanização” do capitalismo – ideias que logo foram divulgadas amplamente em espaços como os Fóruns Sociais Mundiais e diversas ONGs.

    Outra forma de cooperação e crescimento pode ser concebida: organismos reguladores internacionais substituindo o Banco Mundial, FMI, OMC e o G-7; organismos para a promoção do comércio internacional entre países de produtividades similares; transferência planejada de riquezas dos países que as acumularam durante séculos em detrimento dos países pobres; novos mecanismos de regulação dos intercâmbios que permitam projetos de desenvolvimento diferenciados; desconexão parcial e controlada do mercado mundial e uma política de preços justa; uma política migratória negociada neste contexto.” (Citações extraídas do texto “Uma mudança de época”.)

    Como parte da ideia de um mundo “regulado” e “negociado” na tentativa de “reformular os primeiros contornos de uma proposta que responda ao conjunto da ordem estabelecida”, Bensaïd continua enunciando os pontos centrais do que ele chama de “programa de transição”. Contudo, o leitor demora a perceber que o conteúdo de tal programa não passa de um programa mínimo social-democrata, baseado no conceito de “cidadania” e de direitos civis (dentro do Estado burguês), com a ausência marcante de qualquer medida anticapitalista. Por isso, quando fala em programa, refere-se ao que é hoje seu programa de transição… um programa de reformas!

    Esse quadro pode ser utilizado para tudo, exceto para estabelecer um programa para um partido revolucionário e uma internacional que se identifique com a IV Internacional de Leon Trotsky.

    O que é hoje o SU?

    Apesar de utilizar o nome “IV Internacional”, a organização internacional e os partidos do SU funcionam de maneira oposta ao programa e aos estatutos da IV, fundada em 1938, pois se configuram como uma federação frouxa de partidos e movimentos reformistas e centristas. Apesar de terem perdido força nas últimas décadas, em consequência de seu giro político – como se reflete em seu último congresso, em 2018, com uma queda significativa no número de militantes – hoje eles servem como ponto de encontro para grupos, dirigentes ou intelectuais de esquerda que se afastaram das posições revolucionárias e evoluíram para a direita após a queda do stalinismo, em decorrência dos processos do Leste europeu. Mas suas elaborações possuem alcance internacional e hoje servem para justificar, teoricamente, a capitulação da imensa maioria da esquerda à democracia burguesa e ao reformismo. Como é típico das organizações reformistas, as referências políticas do SU atual são seus parlamentares ou dirigentes de partidos como o Bloco de Esquerda e o Podemos.

    O SU foi uma das principais correntes ideológicas impulsionadoras dos partidos “amplos” e “anticapitalistas”, que na realidade apresentam um programa reformista, principalmente na Europa (como o Bloco de Esquerda em Portugal, o Podemos no Estado espanhol, entre outros).

    Sua organização mais importante, a Liga Comunista Revolucionária (LCR) francesa, foi dissolvida para fundar o Novo Partido Anticapitalista (NPA) em 2009, com um programa reformista, abandonando explicitamente a luta pela ditadura do proletariado.

    Também possuem partidos e movimentos na Ásia, como o LPP paquistanês, que evoluiu do trotskismo para um partido amplo reformista no modelo europeu. Em seu grupo italiano, a Sinistra Crítica (Esquerda Crítica), historicamente comandada por Livio Maitán – que teve papel importante no SU e praticou a linha do entrismo sem diferenciação na Refundação Comunista –, chegou a ter parlamentares, inclusive um senador, e acompanhou o fracasso e a decadência da Refundação, devido ao seu apoio ao governo burguês de Romano Prodi. Hoje, após uma queda significativa de sua militância, o Sinistra Crítica dividiu-se em dois, e o SU na Itália ficou reduzido a um punhado de militantes sem intervenção real no movimento.

    Na França, o SU inclui tanto o NPA (a maior parte dos militantes, com alguns setores fora do SU) quanto a Esquerda Anticapitalista, corrente que rompeu com o NPA em 2011-2012 para aderir à Frente de Esquerda, de Jean-Luc Mélenchon.

    Mas não fizeram nenhum balanço crítico da sucessiva decadência dos partidos mais importantes que chegaram a ter, pois para eles a culpa desses fracassos é atribuída à “crise do projeto socialista”, ou ao “retrocesso da consciência das massas”.

    Pior ainda, avançam cada vez mais no sentido da dissolução e da adaptação à democracia burguesa. Foram avançando mais ainda nessa dinâmica e hoje aceitam programas ainda mais amenos do que os iniciais do giro para os partidos amplos. Seu último congresso confirmou a orientação dos anos anteriores. O ex-SU, armado com suas elaborações pós-Leste, transformou-se num entusiástico impulsionador dos partidos neorreformistas, aceitando seus programas, que não defendem o socialismo – nem sequer nos dias de festa – e não só defendem a democracia burguesa, como são diretamente pró-imperialistas. É o caso do Podemos (onde também dissolveram seu partido Esquerda Anticapitalista); do Bloco de Esquerda português, que integravam com uma força muito importante e também acabaram se dissolvendo; ou do SYRIZA na Grécia, no qual continuaram defendendo a participação da DEA mesmo depois que o SYRIZA assumiu o governo, submetendo-se totalmente à União Europeia, apesar de sua ala grega, OKDE-Spartacus, estar ligada ao Antarsya e ser contrária a essa política. E, algum tempo depois, obrigados pela traição de Tsipras ao apoiar a saída da DEA do SYRIZA, não fizeram um balanço sério e continuaram aplicando a mesma política desastrosa em Portugal e no Estado espanhol.
    Os militantes do SU sequer propõem mais o conceito “anticapitalista” para a conformação desses partidos. Basta ser “antiausteridade”.

    Em Portugal, os quadros do SU formam a espinha dorsal da direção do Bloco de Esquerda. O Bloco apoiou o Partido Socialista (PSP) – o velho partido social-democrata português, que se desgastou profundamente quando seu ex-primeiro-ministro Sócrates foi processado e preso – para que pudesse formar um governo, defendendo, assim, o governo burguês do PSP de Antônio Costa, com o argumento de que este adotaria medidas mínimas “antiausteridade” contra a “direita”. Mas esse governo, chamado de “geringonça”, só pode se manter porque se baseia no apoio do Bloco e do Partido Comunista português, e tampouco é “antiausteridade”. Não pode ser antiausteridade se se submete à União Europeia e aos seus ditames. Recentemente, o próprio Bloco, em resolução da direção nacional de 22/04/18, simplesmente pediu que fossem cumpridos certos compromissos – “compromissos para valer. O acordo entre o partido socialista e os partidos de sua esquerda assentou um compromisso. O Bloco de Esquerda e o PCP negociaram sucessivos orçamentos dentro do quadro de restrições impostas pelo governo, sob imposição de Bruxelas, mesmo não concordando com elas”. Em seguida, faz queixas e reclamações sobre medidas, como a ausência de concursos, etc. Ou seja, a política do Bloco é sustentar o governo do Partido Socialista português, que, segundo eles, não rompeu com a austeridade por não ter rompido os ditames da União Europeia.

    O Podemos passou de se declarar “antissistema” e de “não se aliar com as castas” para buscar uma aliança com o PSOE, o velho partido social-democrata, e continua sendo a aposta do Esquerda Anticapitalista, o grupo do SU no Estado espanhol. Os integrantes do Esquerda Anticapitalista não só se dissolveram, como incorporaram o programa e o discurso da direção do Podemos, como Iglesias.

    O caso da França demonstra os resultados dessa estratégia, pois é o país onde o antigo SU possuía seu partido mais importante, a LCR. Depois que o SU implementou a política para que a LCR suavizasse seu programa e se dissolvesse no NPA, ocorreu uma profunda crise, ao ser superado eleitoralmente pelos reformistas da Frente de Esquerda (FDG) de Mélenchon, o que levou ao surgimento de uma ruptura à direita no NPA – a corrente Esquerda Anticapitalista, que aderiu ao FDG. Assim, reduziu-se de forma drástica a força que a LCR chegou a ter no início dos anos 2000, quando contava com cerca de 2.000 a 3.000 militantes e alcançava aproximadamente 5% dos votos em termos eleitorais.

    Contudo, também aparece resistência. Hoje, há uma crise no NPA, com uma disputa entre quadros de várias tendências de esquerda que se opõem ao giro para a direita e aos setores que seguem a direção do SU. Os setores de esquerda chegaram a ter maioria na direção a partir de 2015, com um projeto que contrariava a direção majoritária do SU. Esta fez grandes esforços para construir uma plataforma comum entre os setores que respondiam à maioria. Para conseguir unir esses setores, a maioria sequer defendeu sua política no congresso, aceitando que, na França, o NPA disputasse as eleições com um candidato operário, P. Poutou, e não apoiasse Mélenchon, que está ligado ao Podemos e ao Bloco de Esquerda. Dessa forma, na França, o SU tolerou uma política diferente de sua orientação geral de apoio aos neorreformistas. Mas, ainda assim, não se conseguiu formar uma maioria no último congresso do NPA em 2018, e a crise persiste.

    Após oito anos sem congresso, em 2018 realizou-se o congresso do SU e, mais uma vez, foi votada a política dos partidos amplos e a orientação de construir o Podemos, o Bloco de Esquerda etc. Houve uma plataforma de oposição, com posições enfrentadas à maioria, mas com um voto bastante reduzido.

    O SU, hoje, já não cumpre um papel nem tem qualquer possibilidade de participar da luta pela IV Internacional, pela internacional revolucionária. Aqueles que ainda participam dessa federação e têm outra perspectiva – se ainda desejam lutar pela IV Internacional – veem, cada vez mais, a necessidade de buscar alternativas. O caminho passa pela reconstrução da IV a partir das bases programáticas fundacionais, com todas as atualizações necessárias e com a mesma concepção de partido e de Internacional que esteve na base de sua fundação. Essa é a proposta da LIT.


    Notas:

    1. Todas as citações de Bensaïd correspondem ao seu documento apresentado no congresso de 1995. ↩︎

    Leia a primeira parte desta série.