Autor: Zezoca

  • A luta pela reconstrução da IV e o papel do revisionismo trotskista (parte I)

    A luta pela reconstrução da IV e o papel do revisionismo trotskista (parte I)

    Uma corrente revisionista assumiu a direção e foi o maior obstáculo para a construção da IV

    A IV Internacional, algum tempo depois de fundada, teve de enfrentar pressões violentas contra seu programa e sua existência. Mesmo em vida de Trotsky, a luta contra os “antidefensistas” polarizou o caminho da Internacional. Mal havia sido fundada e já se iniciava uma luta contra o revisionismo, que ameaçava a existência da IV. Mas, terminada a polêmica interna no SWP com a vitória da posição marxista, os problemas não cessaram. Logo após o fim da Segunda Guerra, surgiram posições com consequências desastrosas para o desenvolvimento da IV, que levaram à sua dispersão e que, ainda hoje, atuam contra ela.

    Por: José Welmowicki


    Os novos processos do pós-segunda guerra e a IV Internacional

    O pós-guerra se abriu com vitórias espetaculares do movimento de massas mundial: por um lado, a derrota completa do nazifascismo e, por outro, um ascenso operário e popular – que só não chegou à expropriação da burguesia em países centrais, como França e Itália, devido às traições de Stalin, que impôs que os partidos comunistas pactuassem com suas burguesias e entregassem o poder. Tais traições impediram a tomada do poder que teria mudado o mundo.

    O imperialismo manteve o controle da Europa Ocidental graças aos pactos de Yalta e Potsdam, firmados entre Stalin, Roosevelt e Churchill, mas novos Estados operários burocráticos surgiram na Europa Oriental, e, em 1949, na China e na Coreia, apesar da política traidora dos partidos comunistas. A dissolução da III Internacional fora decretada por Stalin em 1943, deixando o movimento operário sem uma referência internacional.

    O assassinato de Trotsky, em 1940, descabeçou a recém-fundada IV Internacional, poucos instantes antes de se abrir uma situação revolucionária que deixava para trás os 20 anos de derrotas desde 1924, quando o ascenso do nazismo e do stalinismo impunham um retrocesso geral. Não havia nenhum dirigente que se aproximasse sequer da experiência de seu fundador. Ao contrário do que previa Trotsky, a IV não se popularizou. A jovem direção da IV, depois de adotar uma postura sectária ao não reconhecer a nova realidade dos Estados, fez uma virada para não só reconhecer esse fenômeno, mas também para estabelecer uma política completamente contraditória com a própria razão de ser da IV: enfrentar os aparelhos burocráticos, como está expresso na introdução do Programa de Transição.

    Nesse período, a vitória sobre o nazifascismo levou a um fortalecimento do stalinismo. Devido ao papel decisivo das massas soviéticas na resistência ao nazismo e do Exército Vermelho na derrota de Hitler, o prestígio dos partidos comunistas cresceu enormemente, mesmo que o stalinismo o utilizasse para trair a revolução operária na França, na Itália e na Grécia.


    O surgimento do pablismo

    O nome “pablismo” deriva do dirigente principal dessa corrente, o grego Michel Pablo. Essa direção da IV, fraca e sem experiência na luta de classes, foi incapaz de responder à nova situação e, pior, cedeu à imensa pressão do pós-guerra. Abandonou, assim, a base fundacional da IV: combater o stalinismo e avançar na construção da direção revolucionária, tanto nacional quanto internacional. Em 1951, durante o período da Guerra Fria, todos os comentaristas internacionais afirmavam que um confronto armado entre os Estados Unidos e a URSS era inevitável. Pablo e Mandel, impressionados com as análises da imprensa burguesa, chegaram a uma conclusão funesta para a Internacional: para eles, a Terceira Guerra Mundial era inevitável. Sustentavam que, diante do ataque imperialista, os partidos comunistas, em seu afã de defender a URSS, adotariam métodos violentos para enfrentar os EUA, o que os levaria a lutar pelo poder em diversas partes do mundo; o mesmo ocorreria com os movimentos nacionalistas burgueses nos países dependentes.

    Com base nesse panorama, Pablo e Mandel propuseram o “entrismo sui generis” nos partidos comunistas e nos partidos nacionalistas burgueses, e acompanhá-los sem críticas mesmo depois da tomada do poder. Eles enxergavam um processo revolucionário irreversível, liderado pelas direções burocráticas e pequeno-burguesas do movimento de massas, e não se propunham a construir novas direções que derrotassem as tradicionais – algo que é a verdadeira razão de ser da IV Internacional. Tal posição abandonava a definição da burocracia stalinista como contrarrevolucionária e, consequentemente, abdicava da luta contra ela. Essa revisão foi um completo revisionismo de um dos pontos essenciais do programa trotskista, que parte do princípio de que a humanidade se encontra em crise em razão da crise de direção do movimento de massas. Ou seja, o principal obstáculo para o avanço da humanidade rumo ao socialismo é que as massas estão sob a direção de organizações contrárias à revolução, como o stalinismo, a social-democracia e o nacionalismo burguês.

    Essas definições tiveram consequências graves para a IV Internacional durante a revolta em Berlim Oriental e na revolução boliviana.

    Com essa caracterização, Pablo opôs-se a exigir a retirada dos tanques russos que confrontaram o levante dos trabalhadores de Berlim em 1953 – ou seja, apoiou, de fato, a burocracia soviética.

    Contudo, a consequência mais trágica dessa política foi a traição à revolução boliviana. Em 1952, na Bolívia, ocorreu uma típica revolução operária. Trabalhadores organizaram milícias, derrotaram militarmente a polícia e o exército, e surgiu a COB (Central Operária Boliviana) como um organismo de poder dual. As minas foram nacionalizadas e irrompeu a revolução camponesa, que invadiu os latifúndios e ocupou as terras. Até 1954, a principal força armada da Bolívia era formada pelas milícias operárias dirigidas pela COB.

    Desde a década de 1940, a organização trotskista boliviana (POR) vinha conquistando enorme influência no movimento operário, contando com importantes dirigentes do setor minerador, fabril e camponês. Seu principal dirigente, Guillermo Lora, foi o articulador das Teses de Pulacayo – uma adaptação do Programa de Transição à realidade boliviana, adotada pela Federação dos Mineiros. Lora foi eleito senador por uma frente dirigida pela Federação dos Mineiros, nas eleições de 1946. Na revolução de 1952, o POR codirigiu as milícias e foi cofundador da COB, detendo considerável peso de massas na Bolívia.

    Infelizmente, o POR, seguindo a orientação do Secretariado Internacional da IV Internacional, liderado por Pablo, não insistiu na política de que a COB tomasse o poder. Ao contrário, apoiou criticamente o governo burguês do MNR (movimento nacionalista burguês). Sem a orientação revolucionária, o movimento de massas foi gradualmente desarmado e desmobilizado, e a revolução foi desmontada em poucos anos. Como consequência dessa traição, o trotskismo boliviano deteriorou-se, entrando em um processo de sucessivas divisões.

    Junto a essa política, a direção internacional, conduzida por Pablo, adotou um método nefasto: interveio no partido francês, destituindo sua direção – que não estava de acordo com sua política – e tentou formar uma fração secreta no SWP norte-americano.

    Repudiando a linha do “entrismo sui generis” e os métodos burocráticos e desleais de Pablo, a maioria dos trotskistas franceses (liderados por Lambert) e ingleses (liderados por Healy), do SWP (EUA) e dos trotskistas sul-americanos (com exceção do POR boliviano e do grupo de Posadas na Argentina), romperam com o Secretariado Internacional (SI) dirigido por Pablo e criaram, em 1953, o Comitê Internacional (CI).

    Seguem-se anos de dispersão, pois, embora uma minoria tenha permanecido com Pablo e Mandel, a maioria não se organizou de forma centralizada para dar resposta – especialmente o SWP, que não assumiu como tarefa central reorganizar e reconstruir a IV. Dessa forma, a crise persistiu desde 1953, e, por isso, foi proposta a tarefa de reconstrução da IV Internacional.


    A revolução cubana impulsiona a reunificação: nasce o SU

    Em 1959, um novo processo revolucionário sacudiu o mundo. A insurreição armada liderada pelo Movimento 26 de Julho derrubou a ditadura de Batista em Cuba; iniciou-se um processo que, apesar de sua direção pequeno-burguesa, culminaria na expropriação da burguesia. O reconhecimento e apoio à revolução cubana foram a base para a reunificação da IV Internacional em 1963. Assim, nasceu o SU (Secretariado Unificado da Quarta Internacional), liderado por Mandel e pelo SWP – enquanto Pablo havia se desligado da IV e se tornado assessor do governo burguês de Ben Bella, na Argélia. No SU, integraram-se todas as forças trotskistas que viam em Cuba um novo Estado operário. Ficaram de fora os grupos ingleses e franceses que não reconheceram esse significado da revolução cubana. Esse foi um ponto de avanço para reagrupar os grupos dispersos que se reivindicavam trotskistas. Contudo, essa unificação já nasceu com graves problemas, evidenciados pelo fato de não se aceitarem quaisquer balanços das divisões nem dos graves erros do período anterior do SI de Pablo e Mandel.

    Isso foi ainda mais grave pelo fato de que essa reunificação teve uma direção com Mandel à frente. Mais tarde, verificou-se que essa direção, em vez de revisar e superar as posições anteriores, representava uma continuidade da metodologia de adesão às direções burocráticas do movimento de massas. Não se fez um balanço dos graves erros do período anterior e manteve-se a mesma linha impressionista, capitulando a qualquer fenômeno “progressista” que aparecesse e impactasse a “vanguarda”. Isso começou a se manifestar logo com relação à direção cubana. Mais uma vez, confundia-se o movimento de massas com sua direção, vista como revolucionária.

    Foi, então, a vez de capitular diante da direção castrista e dos movimentos guerrilheiros – novamente com resultados desastrosos para o trotskismo, que alimentou ilusões e, posteriormente, perdeu preciosos militantes para o aventurismo guerrilheiro. Mas a lógica era a mesma: diante de uma direção prestigiosa como a cubana, o SU aderiu à linha foquista, propondo a criação de “focos” guerrilheiros em toda a América Latina junto aos guevaristas, e, se necessário, de forma isolada. Isso levou seus grupos a se envolverem em aventuras desvinculadas do movimento operário e de massas – como o PRT-ERP argentino e o POR (C) da Bolívia – entre os quais muitos se afastaram do trotskismo ou se integraram ao aparato castrista.

    A adaptação às direções do movimento de massas na revolução portuguesa e em relação ao eurocomunismo

    Uma revolução derrubou o império português em 1974. Como resultado da profunda crise nas Forças Armadas, obrigadas a manter a guerra nas colônias africanas, o 25 de abril foi deflagrado por um levante de oficiais do exército, cansados da interminável guerra colonial e da ditadura que os obrigava a lutar em uma guerra sem futuro. Dessa forma, emergiram setores rebeldes da oficialidade – inclusive de alta patente – que formaram o MFA e organizaram um levante que expulsou do poder o ditador Caetano. Contudo, a queda da ditadura gerou um profundo processo revolucionário operário e popular, que propiciou formas de poder dual, semelhante ao processo da revolução russa. As sucessivas ondas de lutas levaram a governos burgueses com crescente influência do MFA e do Partido Comunista, com um discurso radical. Nesse processo, o ativismo e as tendências maoísta e ultraesquerdista apoiavam o Movimento das Forças Armadas – uma organização pequeno-burguesa pró-imperialista, mas que se autodenominava de esquerda. Na realidade, o MFA era o pilar que sustentava o Estado burguês contra a revolução. A LCI, organização que seguia a linha de Mandel, assumiu as posições dos maoístas e ultra-esquerdistas, apoiando até mesmo o MFA que governava ou cogovernava o império português. Mais uma vez, capitulavam à direção do movimento de massas.

    Mais tarde, o seguidismo do SU assumiu outra faceta, acompanhando o chamado eurocomunismo. Surgido nos partidos comunistas da Europa Ocidental – especialmente o italiano e o espanhol –, na década de 1970, o eurocomunismo representava, nesses partidos, sua crescente integração às instituições da democracia burguesa, seja a nível parlamentar ou na administração municipal. Assim, passaram a depender, inclusive economicamente, da burguesia de seus países, enfraquecendo sua dependência tradicional em relação à URSS. Isso era positivo apenas no sentido de aprofundar a crise do stalinismo como aparato mundial. Na prática, transformavam esses partidos comunistas “de servos do Kremlin em servos de sua burguesia imperialista” (declaração da Fração Bolchevique, de 1979). Por essa razão, eles não podiam originar nenhuma tendência progressista, muito menos revolucionária. Contudo, Mandel atribuía a eles um caráter progressista – ou quase progressista.

    No processo de adaptação à democracia burguesa, o eurocomunismo repudiou a expressão “ditadura do proletariado”. Exaltava a “democracia como valor universal” e, na prática, defendia a democracia burguesa, a democracia imperialista, com argumentos semelhantes aos de Kautsky contra os bolcheviques, entre 1918 e 1920.

    Mandel saiu em defesa da expressão “ditadura do proletariado” em um texto intitulado Democracia socialista e ditadura do proletariado, posteriormente aprovado pelo congresso do SU, no qual, ao alegar defendê-la, cedeu totalmente às pressões dos eurocomunistas. Acabava por apresentar um modelo de ditadura do proletariado que era, na verdade, uma capitulação ao eurocomunismo e à social-democracia. Mais uma vez, adaptava-se ao fenômeno político da hora. Contra esse texto, Moreno escreveu Ditadura revolucionária do proletariado.

    Cabe destacar que, naquele momento, o SU começava a mudar o enfoque de sua capitulação. Como se veria mais tarde de forma plena e aberta, as pressões mais intensas passaram a vir da democracia burguesa europeia.

    Nicarágua: o salto adaptativo que dividiu o SU

    No final da década de 1970, um processo revolucionário se abriu na Nicarágua e na América Central. Na Nicarágua, em 1979, o conflito estendeu-se pelo interior do país e pelas cidades, e a ditadura de Somoza não resistiu à guerrilha sandinista; as Forças Armadas foram dizimadas e o FSLN entrou em Manágua e tomou o poder. Contudo, apesar de terem o poder em mãos, os sandinistas formaram um governo de “unidade nacional” com a burguesia opositora – integrando nomes como Violeta Chamorro, Alfonso Robelo, entre outros. A corrente morenista, então organizada como Fração Bolchevique (FB) no SU, organizou a Brigada Simón Bolívar para atuar na Nicarágua – oficialmente reconhecida pelo PST colombiano, tendo alcançado mais de mil inscritos. Essa brigada dirigiu-se à Nicarágua e participou da luta armada, e, após a derrota da ditadura, estabeleceu-se na capital para defender a formação de sindicatos independentes. A FB criticava a participação da burguesia no governo. O SU apoiou esse governo, defendendo-o como “governo operário e camponês”. Aí se configurou o fato crucial: a FSLN deteve e expulsou os integrantes da Brigada Simón Bolívar, entregando-os à polícia panamenha, que os torturou. O SU enviou uma delegação à Nicarágua que apoiou a decisão do governo e não defendeu os integrantes da brigada. Mais uma vez, o apoio vergonhoso foi direcionado às direções pequeno-burguesas, qualificando-as como revolucionárias – desta vez, com dois agravantes: em termos de princípios – pois se recusaram a construir uma organização trotskista no país e em Cuba e El Salvador, alegando que já existia uma direção revolucionária – e, moralmente, por se negarem a defender os revolucionários perseguidos e apoiarem sua expulsão. Foi a esse ponto que chegou o apoio vergonhoso à FSLN.

    Além dessa falta de moral e princípios, tais atitudes entravam em contradição com a própria tese sobre “democracia socialista e ditadura do proletariado”. Em menos de um ano, os defensores renegaram suas teses sobre “democracia socialista” e apoiaram a decisão da FSLN de expulsar os revolucionários brigadistas simplesmente por quererem adotar uma política distinta na revolução nicaraguense. Nesse momento, a FB decidiu romper com o SU.

    Havia um traço permanente em toda essa trajetória de capitulação, que as Teses de Fundação da LIT definiram claramente: no curso dessa longa marcha, cada grande acontecimento da luta de classes – sobretudo cada grande triunfo revolucionário de dimensão mundial – provocava, em determinado setor do nosso movimento, uma tendência de adaptação à direção burocrática ou nacionalista desse triunfo.

    A luta pela construção de uma direção revolucionária internacional implica também a luta pela destruição de todas as direções burocráticas ou nacionalistas que competem entre si para dirigir as massas. O processo de edificação de uma direção revolucionária significa, ao mesmo tempo, uma “guerra implacável” (como diz com razão o Programa de Transição) contra qualquer corrente burocrática e/ou pequeno-burguesa do movimento de massas.

    O apoio a Gorbatchov

    Entre as adaptações não mais de processos revolucionários, mas sim de processos reacionários – como a restauração na União Soviética –, destacou-se a posição de Mandel e do SU sobre a perestroika e a glasnost de Gorbatchov. Partindo do pressuposto de que a burocracia jamais poderia restaurar o capitalismo, o SU embarcou em apoio à ala restauracionista, declarando-a progressista por ser democratizante. Mais uma vez, apoiavam setores reacionários em nome de supostamente serem uma ala progressista. Dessa vez, isso conduziu a uma adaptação à nova direção do Kremlin, que liderou a restauração no Leste europeu utilizando a chamada “reação democrática”, atraindo a velha esquerda de origem stalinista, que se reconverteu em escala mundial.

    A partir daí, após a queda do muro de Berlim, a adaptação do SU intensificou-se cada vez mais, passando de se relacionar com direções de processos revolucionários para seguir o que acontecia na esquerda em geral; o foco passou a ser a adaptação aos fenômenos eleitorais.

    Leia a segunta parte dessa série.

  • O surgimento e o papel do reformismo stalinista e social-democrata

    O surgimento e o papel do reformismo stalinista e social-democrata

    A III Internacional, com a força da vitória da Revolução Russa, rapidamente adquiriu influência de massas em uma disputa frontal com a social-democracia. Sua estratégia era a revolução mundial, a luta pela destruição do Estado burguês e pelo poder operário como transição para o socialismo.

    Por: José Welmowicki

    No entanto, o isolamento da Revolução Russa, a destruição causada pela guerra civil contra o poder operário devido às invasões dos mais de 20 exércitos mantidos pelas potências imperialistas em um país atrasado e com um grande peso do campo, gerou um processo de burocratização do Estado e do partido comunista, levando a uma contrarrevolução política. Encabeçada pela fração dirigida por Stalin, esta assumiu o controle do poder e do partido e imprimiu uma orientação oposta à de Lenin.

    Em primeiro lugar, mudou a política de Lenin e a visão marxista de que, para triunfar, o socialismo precisava ser mundial. Também acabou com a democracia no Estado e no partido. Esses princípios foram substituídos pela defesa do “socialismo em um só país”, pela burocratização do aparato estatal, pela perseguição aos opositores no partido e no Estado e pela opressão das nacionalidades e de todos os setores oprimidos. Coroando esses retrocessos, surgiu a nova doutrina, o stalinismo, que assumiu como política, para os países coloniais e semicoloniais, a aliança estratégica com as burguesias nacionais ou seus setores supostamente progressistas.

    O stalinismo passou a defender os governos de colaboração de classes, as chamados frentes populares com a burguesia, como na França e na Espanha da década de 1930.
    Como afirmava Trotsky no Programa de Transição, em 1938:

    A Internacional Comunista alinhou-se no caminho da social-democracia na época do capitalismo em decomposição, quando não há mais lugar para reformas sociais sistemáticas nem para a elevação do nível de vida das massas, quando a burguesia retoma sempre com a mão direita o dobro do que deu com a esquerda, quando cada reivindicação séria do proletariado, e até mesmo cada reivindicação progressista da pequena burguesia leva, inevitavelmente, além dos limites da propriedade capitalista e do Estado burguês.

    A partir daí, o stalinismo assumiu as posições essenciais do reformismo e passou a defender a via das reformas e a confiança na democracia burguesa, abandonando de vez a independência de classe.


    Colaboração com a burguesia. O pós-Segunda Guerra e o Estado de bem-estar social

    Na Segunda Guerra Mundial ocorreu uma das maiores batalhas e uma das maiores vitórias dos trabalhadores e dos povos do mundo: a derrota do nazifascismo. Isso, apesar de todas as traições, dos acordos da Inglaterra e da França com o nazismo, dos pactos de Stalin com Hitler em 1938 – o papel das massas na URSS, como em Stalingrado, foi decisivo nessa luta e nessa vitória, apesar da sua direção. Por essa razão, os partidos comunistas saíram prestigiados pela resistência e pela vitória final contra os nazistas.

    Isso possibilitou aos partidos comunistas uma situação privilegiada. Frente à colaboração das burguesias locais com Hitler e Mussolini, após a invasão da URSS pelos alemães em 1941, os comunistas desempenharam papel destacado na guerrilha iugoslava, nas resistências francesa e italiana, na resistência grega, na China e no Vietnã.

    Ao final da Segunda Guerra Mundial, abriu-se uma situação revolucionária em toda a Europa. A resistência assumia o controle de países decisivos. Estava-se cogitando a possibilidade de tomar o poder em países-chave. Uma revolução operária e popular abriu-se na França, na Itália e na Grécia. Os trabalhadores armados e vitoriosos haviam destruído o ocupante nazista e o Estado burguês.

    Sob as ordens de Stalin, ele apostou totalmente nos pactos de Yalta e Potsdam e na coexistência com o imperialismo, inclusive dissolvendo a III Internacional em 1943, a pedido de Winston Churchill. Essa traição histórica à revolução e ao legado de Lenin permitiu, por exemplo, o massacre da resistência grega por parte do exército inglês, e os partidos comunistas entregaram o poder à burguesia na França e na Itália.

    Diante de uma situação explosiva na Europa, o imperialismo foi forçado a fazer uma série de concessões aos trabalhadores e permitir que a social-democracia e os partidos comunistas justificassem seu apoio aos novos governos de “unidade nacional pela paz”. O imperialismo estadunidense organizou o Plano Marshall para financiar a reconstrução capitalista da Europa Ocidental, arrasada pela guerra.

    Uma série de medidas de proteção social, antes rejeitadas pelas burguesias imperialistas, acabou sendo implementada, como a legalização de diversos direitos trabalhistas e a criação ou ampliação da seguridade social. Esse foi o chamado welfare state (Estado de bem-estar social), que, ao trazer melhorias no nível de vida, passou a ser apresentado como “prova” da possibilidade de uma reforma gradual do capitalismo – um modelo que poderia ser mantido e expandido.

    Nesse processo, os reformistas conseguiram retomar seu prestígio ao capitalizarem o período em que, devido à destruição causada pela guerra e ao medo de uma revolução operária, a burguesia viu-se obrigada a permitir uma melhora importante nas condições de trabalho e nos direitos sociais. A social-democracia e os partidos comunistas apresentaram-se como defensores dos direitos sociais, reestruturaram-se na Europa Ocidental e passaram, com frequência, a integrar os governos da Alemanha, da Inglaterra, da França, entre outros países. Isso ocorreu nos anos 1950 e perdurou até o final da década de 1960, com fortes partidos reformistas – fossem eles socialistas ou comunistas – em toda a Europa Ocidental.

    À medida que avançavam os anos 1940 e começavam os anos 1950, a pressão do imperialismo anglo-americano na chamada Guerra Fria gerou um discurso mais duro por parte da burocracia stalinista. No entanto, o stalinismo nunca rompeu seu compromisso com a ordem mundial definida em Yalta e Potsdam. Ele passou a adotar uma postura de colaboração aberta e de “coexistência pacífica” com o imperialismo. A partir dessa doutrina, os discursos passaram a defender o diálogo e a conciliação, com os partidos comunistas contribuindo para a manutenção da dominação imperialista no mundo e do Estado burguês.

    A partir do final dos anos 1950, os partidos comunistas passaram a ser campeões no apoio a governos burgueses supostamente progressistas em todos os continentes. Na Itália, por exemplo, defenderam o “compromisso histórico” entre o Partido Comunista – o maior partido comunista do Ocidente – e a Democracia Cristã, o maior partido burguês do país.

    América Latina: fracasso do reformismo e do nacionalismo burguês no mundo semicolonial

    Na América Latina, entre os anos 1950 e 1970, as presenças do reformismo e do nacionalismo burguês seguiram o caminho de chegar ao poder para tentar desviar os processos revolucionários: desde a Bolívia, em 1952, até a Argentina, com Perón. Nesses processos, em nome da aliança com a burguesia, os partidos comunistas apoiaram os chamados governos progressistas, como o de João Goulart, no Brasil (1962–1963), e a Unidade Popular de Allende, no Chile (1970–1973). Em nome dessas alianças, passaram a defender a legalidade e o Estado, e invocaram a confiança nas forças armadas – consideradas patrióticas –, desarmando, assim, a resistência aos golpes, tanto no Brasil quanto no Chile.

    Neoliberalismo. A crise na social-democracia e no stalinismo

    A social-democracia, que se havia fortalecido na reconstrução do pós-guerra e por sua identificação com o Estado de bem-estar social, começou a sofrer um forte desgaste no final dos anos 1960. Nesse momento, iniciaram-se os ataques a esses direitos sociais – ataques que vieram tanto da direita quanto dos próprios social-democratas, quando estes estavam no governo.

    Na França, na Alemanha e na Espanha do pós-Franco, a partir dos anos 1970 e durante os anos 1980, esse desgaste se aprofundou com a implementação do chamado “neoliberalismo”. Essa política econômica consistia em reduzir os direitos conquistados em nome de um “Estado menor” e da “liberdade de iniciativa”. Iniciado por Margaret Thatcher (Reino Unido) e Ronald Reagan (Estados Unidos) e experimentado na ditadura chilena de Augusto Pinochet, o neoliberalismo acabou sendo adotado também por governos social-democratas – Mitterrand, na França (1981–1988); Felipe González, na Espanha (anos 1980); os laboristas, na Inglaterra; e os social-democratas, na Alemanha. Desse processo surgiu a terceira via, defendida pelo laborista Tony Blair, primeiro-ministro britânico (1997–2007).

    Surgiu, então, o fenômeno do eurocomunismo, tendo como carro-chefe o Partido Comunista italiano. Levando até o fim a política de aceitar o Estado burguês em nome da democracia, formulou-se a doutrina da “democracia como valor universal”. Para esses, a evolução da democracia conduziria ao socialismo sem a necessidade de revoluções sociais – ou seja, adotaram um programa similar ao que a social-democracia havia defendido no passado.

    Outras vertentes do stalinismo, como o maoísmo e o castrismo, apesar da estratégia guerrilheira que, num primeiro momento, atraiu a simpatia de milhares de militantes, acabaram por se tornar a expressão das burocracias que governam a China e Cuba. Em pouco tempo, passaram a apoiar as mesmas burguesias progressistas e colocaram-se contra a tomada do poder pelos trabalhadores em uma série de revoluções. Fidel Castro demonstrou isso ao apoiar a aliança de Allende com a burguesia no Chile e também ao dizer, aos sandinistas, durante a Revolução de 1979, que não se deveria expropriar a burguesia, mas sim aliar-se a ela. “A Nicarágua não deveria ser uma nova Cuba”, afirmou.

    Tanto a burocracia chinesa quanto a cubana foram a linha de frente na restauração do capitalismo em seus países. Hoje, o Partido Comunista cubano representa a nova burguesia que restaurou o capitalismo na Ilha. Por sua vez, o Partido Comunista chinês transformou-se em um partido que governa, de maneira totalitária, o Estado capitalista chinês.

    Após a restauração do capitalismo na ex-URSS, partidos eurocomunistas como o Partido Comunista italiano completaram um processo de reconversão em partidos burgueses.

    A social-democracia e o que restou dos antigos partidos stalinistas, como os de Portugal ou da França, transformaram-se em partidos do “establishment”, cujo programa é a defesa do Estado burguês. Dessa forma, tornaram-se instrumentos auxiliares para que a burguesia implementasse sua guerra social e destruísse o Estado de bem-estar social.

    Artigo publicado em www.pstu.org.br

  • A moral revolucionária e a batalha pela reconstrução da IV Internacional

    A moral revolucionária e a batalha pela reconstrução da IV Internacional

    O problema moral torna-se a cada dia mais candente em todos os âmbitos da vida, mas principalmente na militância de esquerda. A moral das organizações revolucionárias está sob permanente pressão da moral burguesa, sobretudo em uma época de decadência como a que vivemos. Recuperar e manter a moral revolucionária é uma necessidade de vida ou morte para a luta por superar a crise de direção revolucionária mundial e parte essencial na batalha pela reconstrução da IV Internacional. Nesse sentido, a LIT apresenta em seu próximo Congresso essa discussão tão fundamental, da qual publicamos aqui os pontos essenciais.

    Por: José Welmowicki

    «A Quarta Internacional despreza os magos, charlatões e professores da moral. Numa sociedade baseada na exploração, a moral suprema é a da revolução socialista. Bons são os métodos que elevam a consciência de classe dos operários, a confiança em suas forças e seu espírito de sacrifício na luta. Inadmissíveis são os métodos que inspiram o medo e a docilidade dos oprimidos contra os opressores, que afogam o espírito de rebeldia e de protesto ou que substituem a vontade das massas pela dos chefes, a persuasão pela coação e a análise da realidade pela demagogia e pela falsificação. Eis aqui por que a social-democracia, que tem prostituído o marxismo tanto quanto o stalinismo, antíteses do bolchevismo, são os inimigos mortais da revolução proletária e da moral da mesma.» (Leon Trotsky, Programa de Transição)

    INTRODUÇÃO

    A importância da questão moral

    Provavelmente, muitos companheiros se surpreenderão por termos colocado na pauta do nosso Congresso Mundial a discussão de um documento sobre a questão moral. Nossos congressos sempre discutem documentos políticos, balanços e projetos de atividades. E sempre há um ponto onde a Comissão de Controle Internacional (CCI) apresenta um informe dos problemas morais concretos do último período e as possíveis apelações sobre os processos decididos por ela. Mas a discussão teórica e política do tema moral não costuma ser parte da pauta dos nossos congressos.

    O que nos levou a introduzir um ponto sobre este tema no próximo congresso? Em primeiro lugar, é claro que existem sintomas cada vez mais evidentes da decomposição moral não só na sociedade capitalista, mas também nas organizações operárias. Mas isso, mesmo que seja um tema importante, não nos levaria necessariamente a colocá-lo na pauta do Congresso. Entretanto, no último período detectamos várias evidências de que esta decomposição moral vem afetando nossa Internacional. Apesar da nossa tradição em tratar com muita seriedade os problemas morais, constatamos a existência de graves problemas neste terreno também na LIT: casos de quadros que se apoderaram do patrimônio da organização; agressões morais e até físicas a companheiras e, inclusive, o caso de um dirigente que se recusou a comparecer perante à CCI para responder a uma grave denúncia de violência contra sua ex-companheira, chegando a fazer com que uma seção da LIT, o MST boliviano, rompesse com a Internacional.

    Este não é um problema interno. Reflete um processo mais geral: a decadência da sociedade capitalista. Vemos que este tipo de problema tem uma expressão generalizada na esquerda, inclusive a que se reivindica revolucionária.

    Vemos uma realidade lamentável nas organizações de esquerda, praticamente em todos os países, com brigas, inclusive físicas, para controlar entidades em função de seus aparatos, corrupção, fraudes e todo tipo de manobras desleais e ações destrutivas.

    Vemos que essas discussões na esquerda raramente são esclarecidas e aparecem como lutas surdas que, de repente, explodem em rupturas ou lutas fracionais com acusações morais etc. Ou são varridas para “baixo do tapete”, em especial se envolvem dirigentes.

    Acreditamos que nossa preocupação pode causar dúvidas em muitas organizações, inclusive aquelas com as quais temos acordos políticos importantes. Mas queremos abrir francamente a discussão, reconhecendo nossos problemas e chamando para uma reflexão. Poderíamos evitar abrir estas discussões publicamente e optar por discuti-las somente entre nós. Porém queremos que aqueles que têm relação conosco nos conheçam em todos os aspectos, com nossos problemas reais e que, se temos um mérito, é o de não ocultá-los, de identificá-los e buscar combatê-los de forma aberta.

    Sabemos que a moral das organizações revolucionárias está sob permanente pressão da moral burguesa, ainda mais numa época de decadência na qual vivemos.

    Temos orgulho da nossa trajetória e, também neste terreno, reivindicamos os ensinamentos de Trotsky. Sendo assim, se não abrirmos com clareza e firmeza este tipo de discussão e não enfrentarmos os problemas, se baixarmos a guarda e não batalharmos por uma moral comunista em nossas organizações, provavelmente as pressões crescerão ainda mais e poderão destruir nossas organizações revolucionárias.

    Por isso, acreditamos que, para cada um de nossos militantes e para todas as forças que se aproximam na batalha pela reconstrução da IV Internacional, esta discussão é fundamental.

    Sem ela, não haverá uma construção sólida de um partido revolucionário nacional nem da Internacional que tanto aspiramos.

    Alguns problemas morais que afetaram a LIT no último período

    Nosso último congresso reafirmou, por unanimidade, a expulsão de um ex-dirigente de uma seção por se apoderar de dinheiro que um simpatizante havia doado ao partido. Pouco depois do congresso de 2005, a CCI teve de investigar uma gravíssima acusação contra um ex-membro do CEI e da SI, que incluía agressões contra sua companheira. Este companheiro tinha sido enviado para militar na seção boliviana e, nesse momento, era seu principal dirigente. Ele negou-se a responder à CCI e teve o apoio de toda a direção da seção, inclusive do membro da CEI daquele país, que se colocou incondicionalmente em defesa desse dirigente e da sua negação em se submeter à CCI.

    A ampla maioria da LIT reagiu de forma principista em todos esses casos. É importante sinalizar que somos uma organização revolucionária que pode se orgulhar de ter tido uma posição principista em defesa da moral revolucionária quando a maioria das organizações de esquerda, inclusive as que se reivindicam trotskistas ou revolucionárias, sucumbiram às pressões oportunistas também neste terreno. Entretanto, temos de reconhecer que não havíamos identificado o fenômeno de conjunto e nem lhe demos a devida importância. Da mesma forma, não hierarquizamos a necessidade de enfrentá-lo.

    Por que a moral revolucionária é decisiva na construção do partido revolucionário e da IV?

    Inclusive constatando esta realidade, é preciso entender por que devíamos hierarquizar esta discussão neste congresso da LIT. Muitas vezes, encontramos entre os companheiros mais jovens a ideia de que os comunistas não têm uma moral, que este é só um discurso da classe dominante. Definamos então que é moral e o que queremos dizer com “moral revolucionária”.

    O que é moral?

    A moral é uma necessidade para qualquer agrupamento humano, como explicava Nahuel Moreno. 1 Toda estrutura social tem necessidade de normas para sua sobrevivência e sua defesa. Por sua vez, a moral é fruto do desenvolvimento social. Ao contrário do que dizem os ideólogos da burguesia, não existe uma moral universal e eterna, já que ela muda de acordo com as distintas formações sociais, suas relações de produção e as respectivas formas ideológicas e normas morais ao longo da história da humanidade. Isso é o que explica as diferenças entre a moral dominante em sociedades como as escravistas, as feudais ou as capitalistas. Explica, também, por que toda classe dominante necessita impor sua moral aos explorados para garantir seu domínio sobre a sociedade.

    Esta questão leva à discussão sobre a existência ou não de normas universais aceitas desde sempre pelo ser humano. Como se perguntava Trotsky em A moral deles e a nossa:

    Não existem regras elementares de moral, desenvolvidas pela humanidade em sua totalidade, e necessárias para a vida de todo o coletivo?«

    E respondia:

    Existem, sem dúvida, mas a virtude de sua ação é extremamente limitada e instável. As normas ‘universalmente válidas’ são tanto menos atuantes quanto mais agudo é o caráter que toma a luta de classes. Sua validade está ligada à situação da luta de classes. Em tempos de ‘paz’, o homem ‘normal’ observa o mandamento ‘não matarás’; mesmo assim mata em condições excepcionais de legítima defesa. Em tempos de guerra, seja guerra entre estados, seja civil, o Estado muda as normas ‘universalmente válidas’ de ‘não matarás’ para seu contrário.2

    Ou seja, as normas morais «universalmente válidas» são carregadas de um conteúdo de classe. Isso é o mesmo que dizer que são antagônicas. Nas palavras de Trotsky: «A norma moral torna-se mais categórica quanto menos ‘universal’ é”.

    A burguesia tem um interesse vital em impor sua moral às classes exploradas. Como todas as classes dominantes anteriores, utiliza a moral como instrumento de conservação da sociedade e a impõe para demonstrar que é «eterna». Necessita impor sua moral à classe explorada, mas existe uma incoerência entre o que prega e sua prática.

    Aí entra em cena a questão da «dupla moral», que se expressa na hipocrisia típica das igrejas. A burguesia utiliza uma dupla moral que fala de «igualdade» e «bem comum», mas estimula o individualismo e o egoísmo. Reivindica que todos sejam cidadãos exemplares em suas vidas privadas e preocupados com o bem comum enquanto explora e vive da miséria de milhões. Fala-se de uma norma… mas não é para eles. É o famoso «faça o que eu digo, não faça o que eu faço

    Toda a classe explorada, sobretudo a classe operária, que é o sujeito social da revolução socialista, necessita de um programa e de uma organização e também de uma moral oposta pelo vértice à moral burguesa dos exploradores. Respondendo às acusações dos burgueses e dos kautskistas de que os bolcheviques não têm moral, Lênin reafirmava: «quando nos falam de moral, dizemos: para um comunista, toda moral reside nesta disciplina solidária e unida e nesta luta consciente das massas contra os exploradores. Não acreditamos numa moral eterna, denunciamos a mentira de todos os contos sobre moral. A moral serve para que a sociedade humana se eleve à maior altura, para que se desembarace da exploração«

    A moral proletária

    A classe operária necessita de uma moral própria para lutar por seus interesses de classe. Os trabalhadores foram aprendendo com sua experiência nas greves e nos primeiros sindicatos que, sem um forte espírito coletivo, sem uma moral de classe, seria impossível enfrentar a burguesia com sua força econômica e seu aparato repressor. No começo do movimento operário na Europa, foi construída uma moral típica da classe proletária: a noção da solidariedade de classe no âmbito de uma fábrica, de um país e à escala internacional. Ela está extremamente ligada à experiência histórica e concreta da classe operária: sem unidade, é impossível derrotar a burguesia, seja nas lutas cotidianas, seja nas lutas decisivas de um país. Quanto mais se desenvolvem as lutas, mais é necessário ter solidariedade com os irmãos de classe, saber impor a disciplina através de piquetes e investir contra os que querem romper essa unidade e solidariedade, como os fura-greves. Assim, noções básicas da moral da classe são deduzidas: acatar a disciplina dos trabalhadores de sua empresa, cercar de ajuda os companheiros atacados pela patronal, isolar e, se for o caso, reprimir os fura-greves etc.

    A burguesia é consciente da importância desta unidade e disciplina operárias. Sabe que é uma ínfima minoria e sabe que a classe mais perigosa para sua dominação é a classe operária. Por isso, a todo o momento, trata de dividir esta classe, de cooptar indivíduos e setores dela, de opor o individualismo e o egoísmo burguês à moral da classe operária em luta, de corromper dirigentes e estimular a traição. Apoia-se na competição entre os trabalhadores para fomentar a divisão e também para impedir a constituição da moral proletária. Trata de manter a classe operária acreditando num Deus e na possibilidade de ascensão individual como saída para sua situação. Por isso, quando a classe operária entra em combate como classe, começa a romper, na prática, com a moral burguesa.

    Para resumir, a moral proletária é a moral da classe operária em luta contra a burguesia. Sua base é a solidariedade e a unidade frente à classe inimiga, da qual se deduz uma série de normas, como:

    • Cada trabalhador protege e apoia o companheiro de sua classe contra as perseguições da burguesia.
    • Nunca se entrega nem se permite que um companheiro seja prejudicado.
    • Mesmo que existam divergências, atua como classe unida diante do Inimigo. Se um indivíduo da classe viola isto, deve-se impedir e, se é necessário, reprimi-lo com a disciplina do coletivo.
    • Nas relações entre companheiros, e também entre as organizações operárias, deve haver lealdade, honestidade, fraternidade e franqueza.
    • Não se utilizam meios violentos para dirimir diferenças entre membros da classe ou de suas organizações.

    A moral partidária

    Também existe uma moral específica do partido revolucionário, chamada de «moral partidária» por Moreno. O que significa isso? O partido, um instrumento que luta para derrubar a burguesia e construir a ditadura do proletariado, precisa ainda mais de uma disciplina de ferro e uma moral superior à simples moral proletária, mesmo que parta dela.

    A confiança entre todos é seu cimento essencial, é a «confraria dos perseguidos», dos que querem destruir o capitalismo e, por isso, são perseguidos e podem pagar o preço com a própria vida. Portanto, é necessária uma moral superior para manter a força deste tipo de organização, para resistir às prisões, torturas etc. A solidariedade neste campo é muito mais profunda: o companheiro é mais importante que minha própria vida. No partido, o coletivo é tudo. É o oposto à ideia típica do capitalismo: o individualismo e o egoísmo.

    Ao mesmo tempo, se a moral operária exige que um membro da classe acate a decisão da maioria na luta contra a patronal, que cumpra a greve e que os fura-greves sejam freados e castigados, a moral partidária é muito mais exigente, pois é a moral dos que lutam conscientemente para destruir o imperialismo, para fazer a revolução. Ela começa pelos ensinamentos básicos da mesma moral operária, mas não basta cumprir a decisão da greve. Deve-se ser o melhor ativista, deve-se pensar no conjunto, organizar a vanguarda para que garanta a greve etc.

    Para fortalecer a confiança e afiançar a moral partidária, queremos e fazemos com que cada um cresça, desenvolva-se. O partido revolucionário necessita de uma forte moral porque tem que golpear como um só homem os aparatos do Estado burguês. Tem que ser conspirativo diante do Estado e da burocracia. Isso exige uma total confiança entre os camaradas que militam no partido.

    A moral revolucionária é importante para a construção da IV?

    Muitos companheiros opinam que o problema da moral é importante, mas não é decisivo. Que, em última análise, as questões são políticas. Portanto, o fundamental é a discussão política ou programática e os problemas morais são secundários. Por isso, numa aproximação entre organizações, uma vez que existam acordos programáticos e políticos, não se deve reivindicar este tipo de questões como decisivas. Muitas vezes não se entende por que lhes damos tanta importância. Como mostra a história da IV, essa visão é equivocada, porque os problemas metodológicos e morais são decisivos na hora de definir os rumos e adotar medidas organizativas.

    Na década de 30, a Oposição de Esquerda internacional e a IV tiveram que enfrentar os processos de Moscou, a monstruosa perseguição política e moral contra toda a geração de revolucionários bolcheviques e opositores ao stalinismo. Trotsky não teve nenhuma dúvida: era necessário reivindicar como central a resposta às calúnias e aos amálgamas que buscavam a destruição de toda uma camada de revolucionários. Sua campanha contra a «escola stalinista de falsificações» foi um divisor de águas. Se Trotsky não a houvesse enfrentado à altura, com a política do Tribunal Moral, teria sido ainda mais difícil resistir à ofensiva stalinista de associar o trotskismo ao imperialismo e ao nazismo. Deixou-nos toda uma concepção e uma metodologia que serviram para enfrentar o stalinismo e a todas as correntes que tomaram um rumo semelhante.

    Até 1979, a corrente que deu origem à LIT – a Fração Bolchevique (FB) – era parte do Secretariado Unificado (SU) da IV, encabeçado por Mandel, Barnes e outros dirigentes. Havia diferenças profundas entre as posições da FB e as da maioria do SU. Havia polêmicas em todos os terrenos: sobre a ditadura do proletariado, sobre o guerrilheirismo, sobre o caráter dos partidos, sobre se devia ou não construir partidos trotskistas na Nicarágua, na América Central e em Cuba. Uma delas era sobre o caráter da direção e do governo sandinistas, com suas necessárias consequências políticas e programáticas: devia-se apoiá-los politicamente ou não? Mas a ruptura com o SU só ocorreu em 1979 e o elemento decisivo esteve no terreno dos princípios da moral proletária. A FB rompeu quando as direções do SU e do SWP se recusaram a lutar pela liberdade dos membros da Brigada Simon Bolívar presos pelo regime sandinista. Ou seja, violaram o princípio moral proletário básico de apoio e solidariedade frente à repressão de um governo burguês, neste caso o sandinista.

    Moreno teve uma avaliação semelhante quando fez o balanço da ruptura com Pierre Lambert: enfatizou que, apesar das diferenças abismais sobre o caráter do governo Mitterrand e a política frente a ele, e que ele considerava ser a posição da OCI francesa uma grave capitulação a um governo de frente popular imperialista, foram os métodos stalinistas das calúnias e da expulsão de opositores, para não permitir a discussão no interior da OCI e da IV-CI, que impuseram a ruptura. A campanha da LIT, em 1982, ao redor do tribunal moral em defesa da honra revolucionária de Napurí, atacada por Lambert, foi inspirada na luta de Trotsky e da IV contra o stalinismo nos anos 1930, novamente tendo como divisor de águas a questão dos métodos e da moral.

    O retrocesso moral no movimento operário e suas consequências na esquerda

    Os aparatos impuseram um retrocesso moral ao movimento operário

    A social-democracia foi a primeira organização de massas baseada nos princípios inscritos nos textos do Manifesto Comunista e da I Internacional. Seu crescimento e a extensão de sua influência em toda a Europa era um fato nos finais do século XIX. Junto a esse desenvolvimento da organização política, o movimento sindical da classe trabalhadora cresceu e chegou a ter uma poderosa influência nos países da Europa Ocidental.

    Quando o capitalismo entrou em sua fase imperialista, a burguesia percebeu que necessitava de instrumentos dentro da classe operária que evitassem que esta derrubasse o Estado e o sistema. Surgiram os aparatos contrarrevolucionários do movimento operário para frear e aprisionar o movimento operário numa camisa de força. As burocracias sindicais e políticas, apoiadas na aristocracia operária, passaram a ser os agentes da burguesia no interior das organizações de classe do proletariado.

    Ocorreu uma degeneração da social-democracia na fase imperialista, como expressão da aristocracia operária e da burocracia, que a levou a abandonar completamente não só o programa, mas também a concepção da moral proletária. Em 1914, a defesa da guerra imperialista, da «pátria sagrada», da invasão aos países coloniais e o ataque impiedoso ao novo Estado operário soviético, a partir de 1917, dava-se em nome de «princípios morais eternos» por cima das classes, de «respeito à democracia», de «respeito às leis do Estado» burguês, da «paz» etc., ou seja, a velha moral burguesa que antes denunciavam. Enquanto faziam juramentos à «moral eterna», apoiavam a repressão aos revolucionários e foram mandantes dos assassinatos de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht.

    A III Internacional surgiu contra a falência da II Internacional. Inspirada pela Revolução Russa, que tomaria a bandeira da revolução socialista mundial, retomaria a noção de que é moral tudo o que sirva para unir e dar confiança à causa proletária.

    O aparato contrarrevolucionário mais poderoso foi o stalinismo, expressão da burocracia que controlou o Estado operário russo depois de 1923. Foi agente de uma contrarrevolução não só no regime soviético e no programa, mas também no campo moral. As gerações atuais não têm ideia do que significou a ação do stalinismo. Ele trouxe para dentro do movimento operário a mentira, a falsificação sistemática dos fatos, a perseguição aos lutadores, a volta do patriotismo chauvinista, a divisão da classe a serviço da burguesia. A persuasão foi substituída pela coação. A análise honesta da realidade pela demagogia e pela falsificação. As calúnias e os amálgamas foram introduzidos como método generalizado no movimento operário do mundo inteiro.

    O que significou o amálgama em sua utilização pelo stalinismo? Mesclar conscientemente acusações políticas e morais para manchar a honra do adversário político. Rompia-se com uma tradição moral proletária de quase um século: no caso de acusações à conduta ou à honra pessoal de um militante, estas não deviam ser misturadas com as discussões políticas contra esse militante. Stalin transformou em prática sistemática a metodologia de desqualificar o oponente, em primeiro lugar, com acusações contra seu caráter: «que tinha sido corrompido ou traído a causa», «que estava a serviço do imperialismo» e, por isso, estaria defendendo tais posições.

    Stalin acusava seus adversários de «agentes sabotadores a serviço do imperialismo» e, sem dar-lhes nenhum direito à defesa sobre essa acusação concreta, passava a associar suas posições políticas divergentes ao suposto fato de serem «sabotadores do Estado operário». Portanto, argumentava o stalinismo, suas opiniões seriam simplesmente uma expressão da sua traição com o objetivo de levar a URSS ao desastre. Qualquer posição desses adversários, fosse sobre a revolução chinesa, sobre a política econômica ou outra, não seria considerada como uma divergência legítima a ser debatida, mas sim como consequência direta de sua suposta traição. Stalin fez isso com toda uma geração dos melhores quadros revolucionários da classe operária russa e mundial.

    Para eliminar esses «traidores» valia qualquer método, inclusive um acordo espúrio ou secreto com o inimigo de classe. Entregar um adversário ou deixar que fosse demitido pela patronal passava a ser «parte do jogo». A tortura e o assassinato dos que ousassem contrapor-se à «linha» da burocracia dirigente ficavam assim justificados. Mas não bastava o assassinato físico; era necessário também o «assassinato moral», taxando-os de «contrarrevolucionários», em base a confissões arrancadas por meio de torturas de todo tipo.

    Até o surgimento do stalinismo, esse tipo de calúnia contra os dirigentes era desprezado no movimento operário. Houve um exemplo famoso durante a revolução russa, quando Lênin voltou ao país num trem autorizado pelo governo da Alemanha. Os chacais da burguesia, do governo e do imperialismo acusaram-no de «agente a serviço da Alemanha». Não foi necessária nenhuma campanha para que Martov, líder menchevique e adversário político de Lênin, saísse em defesa de sua honra revolucionária.

    A burocracia stalinista mudou completamente essa situação. A URSS era a referência do movimento operário internacional e a Internacional Comunista era poderosa. A moral proletária sofreu um duro golpe pela ação contrarrevolucionária do stalinismo. Seus crimes entregaram a bandeira para que o imperialismo fizesse uma campanha de desprestígio moral do «socialismo», que se reflete até hoje na consciência da classe operária mundial.

    Esse retrocesso teve repercussões profundas no interior dos partidos e dos sindicatos. As consequências políticas foram nefastas: semeou o ceticismo, a confusão e a desconfiança entre os trabalhadores. Pois, como entender que dirigentes revolucionários de toda uma vida, lutadores de primeira linha fossem, de repente, apontados como frios traidores a serviço do inimigo de classe? Para defender seus privilégios, a burocracia precisava criar justificativas hipócritas. Nas palavras de Trotsky:

    «Quanto mais brutal for a transição da revolução à reação, mais a reação depende das tradições da revolução, ou seja, mais teme as massas e tanto mais se vê forçada a recorrer à mentira e à falsificação3

    A degeneração do movimento operário na etapa do «vale-tudo»

    Hoje, vivemos um novo período de degeneração pela decadência cada vez maior do capitalismo, que já despreza todo tipo de critério moral, inclusive aqueles que defendia em sua fase de ascenso. A decadência do capitalismo em sua fase senil provocou tamanho saque e destruição da natureza que chega ao ponto de justificar qualquer ataque aos mínimos direitos individuais para garantir seus lucros. O resultado é uma decadência moral do imperialismo no terreno das relações humanas que chegou a limites antes inimagináveis.

    Essa decadência penetra no seio dos explorados e oprimidos. E o individualismo mais exacerbado em que vale prejudicar desde o colega até um familiar para conseguir um emprego ou uma vaga na universidade. É o vale-tudo da sobrevivência num mundo decadente, onde não aparece uma saída clara para as massas. A moral decadente expressa-se em «cada um com seus valores, cada um defende seus interesses a qualquer preço«

    Essa situação teve seu reflexo no interior do movimento operário e da esquerda, devido ao que chamamos de «vendaval oportunista», no marco da restauração do capitalismo nos ex-Estados operários, e com o capitalismo apresentando-se como «triunfante». Como a restauração se deu pela via da democracia burguesa, proclamou-se «o fim da história». A esquerda, inclusive aquela que se reivindicava revolucionária, foi afetada profundamente e atraída para o jogo da democracia burguesa, considerada como «valor universal»

    Antigos dirigentes da esquerda entraram nos governos e assumiram cargos nas administrações federais, estaduais ou municipais. Ao mesmo tempo, entraram numa dinâmica de corrupção, semelhante ou pior do que a dos administradores habituais da burguesia. Vide o caso do PT brasileiro, cujos dirigentes, em grande parte oriundos da esquerda revolucionária ou da guerrilha, participaram em sucessivas fraudes, roubos, mentiras e manobras de todo tipo. Ou os ex-guerrilheiros tupamaros, que participam do atual governo do Uruguai. Era um fato que, independentemente de suas concepções errôneas, eles eram combatentes contra o imperialismo e arriscavam a vida por uma causa. Agora, ao assumir o mesmo papel que antes criticavam na social-democracia e nos PCs, incorporaram os padrões morais da burguesia decadente, uma moral putrefata.

    O Parlamento e as facilidades que ele oferece a seus membros são fatores de corrupção. A esquerda, que antes raramente tinha deputados, passou a conquistar postos e ter acesso a seus benefícios, inclusive a esquerda revolucionária. Numa sociedade decadente e com uma esquerda que perdia a referência na revolução, inclusive em setores que têm sua origem no trotskismo, o efeito foi devastador.

    Outra fonte de corrupção são os sindicatos onde, como previa Trotsky, a dependência em relação ao Estado é cada vez maior. A colaboração com as burguesias e os governos, principalmente onde existem frentes populares, pressiona terrivelmente esses dirigentes e afeta inclusive os que vêm da esquerda revolucionária nesse marco de retrocesso. A burocratização e a luta pelos respectivos aparatos e privilégios acabaram por corromper uma ampla camada de antigos ativistas, como está ocorrendo na CUT brasileira, e é um fator de pressão enorme sobre as organizações que se reivindicam revolucionárias. A pressão patronal para entregar os direitos trabalhistas em acordos feitos pelas costas da base do sindicato foi se estendendo. As fraudes nas eleições sindicais são frequentes, assim como a venda de mandatos sindicais para a burguesia, traindo a confiança dos trabalhadores.

    Não estamos falando da burocracia tradicional, mas de organizações e dirigentes com trajetória na esquerda que acabam sucumbindo a essas pressões, no marco da decadência moral, do vale-tudo a que nos referimos. E como houve essa decadência, muitas vezes parece natural para a própria base dos sindicatos que os dirigentes ganhem um «extra», ou seja, «presentes» da patronal ou do governo. Afinal de contas, «é preciso levar alguma vantagem como sindicalista» nos dizem muitos trabalhadores.

    Os efeitos da marginalidade do trotskismo e da pressão do stalinismo no terreno moral

    A luta contra Stalin e seus métodos de calúnia e perseguições marcou a formação da Oposição de Esquerda e a própria fundação da IV Internacional. Entretanto, apesar de toda a batalha de Trotsky, o movimento trotskista arrastou problemas estruturais que marcaram a Oposição de Esquerda e a própria fundação da IV.

    Fundada na contracorrente e em pleno auge do stalinismo, a IV esteve condenada à marginalidade por um longo período. Foi duplamente pressionada: pelo imperialismo decadente e pelo stalinismo. Isso fez com que o movimento trotskista sofresse os efeitos da situação também no terreno moral e metodológico. Depois da morte de Trotsky, esse isolamento manifestou-se com mais força sobre uma direção pequeno-burguesa e frágil. Paralelamente ao revisionismo que capitulava à burocracia stalinista no terreno político, Pablo e a direção da IV dessa época usaram métodos típicos do stalinismo em 1951-53 para abortar a discussão. Em 1952, a direção pablista quis impor à seção francesa, o Partido Comunista Internacionalista (PCI), a política de «entrismo sui generis” nas organizações stalinistas. Para isso, afastou 16 membros da direção do PCI e depois substituiu essa direção, expulsou os opositores e tomou de assalto as sedes da seção, tudo para beneficiar seus seguidores e esmagar a maioria da seção que discordava da política do SI pablista. A explosão da IV e sua dispersão foram fruto direto dessa ação.

    O outro tipo de pressão que sofreu teve a ver diretamente com a marginalidade e a dispersão depois da crise de 1951-53. As seitas de origem trotskista mantiveram várias dessas características nefastas inseridas pelo stalinismo no movimento operário.

    Uma expressão disso ocorreu em grande parte do fenômeno que Moreno denominou «nacional-trotskismo»: organizações que, mesmo que se proclamem trotskistas e a favor da IV Internacional, reivindicam-na como um programa para o futuro, geralmente para quando esse partido nacional tiver forças suficientes para proclamar essa nova Internacional. Na prática, estas organizações buscam só relações com outras organizações e não constroem uma organização internacional superior à qual se subordinem.

    Esse é o caso da LO da França, de Lambert e, anteriormente, Gerry Healy na Grã Bretanha e o SWP dos EUA. Quando constroem algum tipo de tendência ou corrente internacional, essas são apenas apêndices da organização fundadora que condicionam todas as decisões políticas neste terreno aos interesses imediatos da “organização-mãe”.

    Moreno alertava sobre um aspecto deste tipo de organização que, muitas vezes, acarreta graves problemas metodológicos e morais: para elas, a questão mais sagrada é a “defesa da organização”, na realidade, a defesa de seus dirigentes “contra os ataques externos e internos”. Gerry Healy usava a expressão “defesa da segurança da organização”, ou seja, se surge alguma luta política contra a direção, é lícito para estes dirigentes acusar moralmente, caluniar, mentir para sua base, distorcer as discussões políticas com amalgamas, expulsar qualquer quadro que mostre divergências com a direção “ameaçada”. A experiência comprovou que esse tipo de organização muitas vezes se degenera rapidamente no terreno dos métodos e da moral.

    No caso de Healy e de Lambert, ao lado dos métodos burocráticos, desenvolveram um método de destruição pessoal dos quadros e dirigentes que os questionavam. Métodos tipicamente stalinistas, cobrindo-os de calúnias e ataques morais. Não vacilaram frente a nada para defender sua seita nacional e seu papel individual nela. Healy passou décadas acusando caluniosamente a Joseph Hansen, dirigente do SWP dos EUA, de agente da GPU ou da CIA e de haver sido supostamente cúmplice do assassinato de Trotsky. Depois, foi denunciado por dirigentes do WRP por utilizar seu papel de dirigente intocável do partido para assediar e estuprar militantes que eram empregadas do aparato central. Esta degeneração levou à explosão do WRP e ao virtual desaparecimento da corrente healista.

    Esta metodologia era independente de uma tendência política determinada. Healy era sectário nos anos 50 e 60 e se negava a reconhecer os novos Estados operários deformados na China e no Leste europeu. Nos anos 70 e 80, capitulava completamente aos dirigentes burgueses nacionalistas, como Kadafi da Líbia e aos líderes do partido Baath do Iraque.

    Lambert expressou a mesma lógica de Healy. De uma posição similarmente sectária nos anos 60 com respeito aos novos Estados operários deformados passou à adaptação aos aparatos sindicais como a central Force Ouvrière e à capitulação à social democracia, que se mostrou com clareza na posição com relação ao governo Miterrand. Frente à discussão aberta no interior da QI-CI 4 em relação a essa posição, Lambert reagiu com acusações, amalgamas e expulsões na OCI francesa e com acusações públicas ao dirigente histórico peruano Ricardo Napuri, nesse momento senador. Para justificar sua expulsão, acusou-o de não entregar sua cota ao partido, ou seja, de ficar com o patrimônio da organização. Este método seria repetido mais tarde com o próprio Stefan Just, dirigente histórico do lambertismo na França: quando simplesmente tentou defender um militante expulso por ter diferenças políticas, acabou sendo separado da organização francesa por Lambert. O resultado de toda essa degeneração foi a decadência total da corrente lambertista, reduzida apenas a um aparato na França e alguns pequenos apêndices em outros países, com vínculos com aparatos locais, como O Trabalho, até hoje defensor do PT e da CUT no Brasil.

    Vemos que hoje, em várias organizações deste tipo, utilizam-se esses mesmos métodos. Para o PO argentino, qualquer coisa vale para “defender a organização”: em 2001, agrediram os militantes trotskistas do PSTU e da FOS numa marcha contra a ALCA, em Buenos Aires, por ameaçar seu “espaço” em seu “território nacional”.

    Para eles, é lícito utilizar calúnias e falsificações como método permanente. Num artigo de L. Magri no jornal Prensa Obrera 979, o PO acusou Moreno, entre outras barbaridades, de ter apoiado a ditadura de Batista contra Fidel Castro, de apoiar o golpe da direita em 1955 contra Perón, de capitular à burocracia peronista, de apoiar a saída institucional de Lanusse e Perón em 1972 e de vacilar diante da ditadura de Videla.

    É claro que, em cada um destes casos, como lhe respondeu a FOS, eles tinham todo o direito de discordar e polemizar com as posições que a corrente morenista tomou nestes distintos momentos. Mas, em vez de fazer isso, falsificam a realidade a tal ponto que afirmam que Moreno apoiou a Revolução Libertadora (o golpe militar de 1955 contra Perón) ou que o PST argentino capitulou à ditadura de Videla, o que são puras calúnias. Na realidade, a corrente de Moreno esteve à frente da resistência antes e depois do golpe de 1955 e, em 1976, perdeu mais de 100 militantes frente à repressão por resistir ao golpe de Videla e à ditadura de 1976-82.

    Para Jorge Altamira, 5 é lícito falsificar a história e inventar calúnias para desqualificar os adversários políticos. Tudo isso sem sequer dar um exemplo ou um fato comprovado que pudesse justificar tão graves acusações. Eles fazem uma “interpretação” muito semelhante às que o stalinismo costuma fazer, utilizando amalgamas e mentiras para tentar destruir o adversário.

    O método que Lambert aplicou na cisão da CI-CI repetiu-se com o PO e a cisão do Progetto Comunista da Itália. O PO havia formado, em 2004, um organismo internacional com algumas organizações, a Coordenadoria pela Refundação da IV (CRCI). Nela, a única organização nacional fora da Argentina com certa implantação na realidade de seu país era o Progetto Comunista. Entre fins de 2005 e inícios de 2006, um debate que começou pela concepção leninista e sobre o caráter do partido que deviam construir dividiu a organização e sua direção pela metade. Esta discussão foi impedida pela ala de Grisolia e Ferrando, que passa a atacar a outra ala e dividir o partido. O outro setor formou o PC-ROL (hoje PdAC). Mais adiante, incorporou-se a discussão sobre a permanência na Refundação Comunista (PRC), depois que essa tomou a decisão de apoiar e participar do governo burguês de Prodi. O PC-ROL foi separado de todas as instâncias da organização internacional e fez uma contraproposta de realizar uma discussão interna serena e ampla dentro da CRCI. Ao mesmo tempo em que não respondeu a esta proposta do PC-ROL, a direção do PO somou-se à ala Grisolia e escreveu um artigo público contra os outros camaradas, lançando todo tipo de insultos, calúnias e ataques morais, e os separou da tendência internacional sem direito à defesa em nenhum organismo. 

    A refração no trotskismo na fase neoliberal foi mais profunda e generalizada

    Se a pressão do stalinismo e a marginalidade geraram a capitulação ao stalinismo e também características sectárias e aparatistas e uma profunda deformação que levou as organizações trotskistas à degeneração no terreno moral, o processo mais recente teve um efeito mais generalizado e destruidor das organizações que antes se reivindicavam da IV.

    Desde o final dos anos 80, a pressão mais importante sobre o movimento trotskista tem a ver com a decadência moral do imperialismo e com o «vendaval oportunista». A conversão de organizações e partidos ao regime burguês, em nome da «radicalização da democracia», levou a uma degeneração impressionante no terreno metodológico e moral.

    A Democracia Socialista (DS) do Brasil, antes vinculada ao SU, assumiu o ministério da Reforma Agrária no governo Lula, um dos mais pró-imperialistas da América Latina, e é responsável pela implementação da política pró-latifúndio de Lula. Hoje, a DS governa o estado do Pará, onde a repressão aos camponeses é terrível: é o Estado brasileiro que lidera o número de assassinatos de trabalhadores rurais na luta pela terra. A governadora do estado, Ana Júlia, ao assumir o governo, criou um destacamento especial da polícia (a Rotam), denunciada pela Anistia Internacional como uma das mais violentas do Brasil na repressão aos «distúrbios sociais». As ocupações urbanas e as greves dos funcionários públicos, motoristas e operários da construção civil são brutalmente reprimidas. No Dia de Luta promovido pela Conlutas, em maio de 2007, o Pará foi o lugar do Brasil onde a repressão foi mais violenta. Recentemente, um ato dessa governadora levou a DS a se comprometer em um terreno onde sempre tentou aparecer como vanguarda: a defesa dos direitos da mulher. Uma adolescente de 15 anos foi detida pela polícia do Pará e presa numa cela junto a 20 homens para ser estuprada pelos presos como castigo por um suposto roubo. A governadora justificou-se dizendo que «infelizmente, casos de mulheres presas em celas com homens realmente existem» (nesse momento, havia pelo menos mais quatro casos de mulheres nas mesmas condições). Assim, para garantir sua boa relação como administradora do Estado burguês, Ana Júlia, da DS, converteu-se em cúmplice do abuso e da tortura de mulheres nas prisões pelo aparato policial.

    Como expressão dessa decadência, a DS foi arrastada, junto com a direção do PT, à crise do «mensalão» 6 de 2005. A degeneração dessa corrente acelerou-se depois de sua adesão à «democratização do Estado» burguês e é cada dia maior. Ou seja, um fato extremamente positivo, a queda do stalinismo, acabou por trazer todo tipo de pressões a organizações que nunca haviam tido a possibilidade de ocupar espaços nas instituições burguesas. Nesse espaço aberto, inclusive para algumas organizações antes marginais que conseguiram ganhar lugar na institucionalidade burguesa, passaram a sofrer as mesmas pressões e a girar à direita, vivendo um processo de degeneração no terreno metodológico e moral.

    Uma espécie de «moral do aparato» tomou conta das organizações que ocuparam alguns desses espaços. O caso da Argentina, no início do século XXI, é ilustrativo. O movimento de Luiz Zamora, o MST e o PO conquistaram cargos no Parlamento. Correntes que têm sua origem no trotskismo e na LIT, como o MST (MES no Brasil), passaram a construir organizações que giram ao redor dos mandatos parlamentares e fazem de tudo para manter sua presença nessas instituições burguesas que, por sua vez, garantem-lhes sua manutenção financeira.

    Os métodos e a moral dessas correntes parlamentares não têm nada a ver com a moral revolucionária. Seus militantes são educados para girar toda sua atividade em função das eleições e da manutenção dos cargos nas câmaras e prefeituras. A sustentação financeira já não é garantida pela militância, mas pelas várias formas de extrair fundos do Estado (gabinetes, mandatos, planos de trabalho etc.).

    Outro fato surpreendente dos últimos anos é a existência de organizações que se reivindicam de esquerda, e até revolucionárias, que são financiadas, e de fato corrompidas, pelas ONGs ou pela social-democracia, em especial no Leste europeu e em países semicoloniais muito pobres.

    As organizações que aceitam a total dependência financeira dos distintos aparatos do Estado burguês de fato estão sendo corrompidas e podem perder todo critério moral proletário. Um exemplo disso é que fazem acordos e depois não os respeitam, como o MST argentino que, durante sua última ruptura, fez um acordo sobre a legalidade e a divisão de fundos com o setor dissidente, atual Izquierda Socialista. O MST não cumpriu o acordo e apelou para a Justiça burguesa para quebrá-lo.

    Tudo vale para conseguir votos e cargos: alianças policlassistas, levar filiados pagos para as convenções dos partidos, baseados nos mesmos métodos dos partidos burgueses ou reformistas (como fez o MES brasileiro na última convenção do PSOL). Se por acaso vão às lutas operárias e populares, não é para impulsionar a organização e fazer a militância avançar. Só intervêm na luta de classes para construir o prestígio de seus líderes, parlamentares e figuras públicas ou manter algum aparato que permita alcançar melhores resultados. As fraudes nas eleições sindicais são consideradas válidas para fortalecer o peso dessas correntes. Tudo gira em torno dos mandatos e da manutenção dos aparatos que os sustentam.

    Mesmo que as pressões venham dessa adaptação ao Estado burguês, não queremos dizer que haja necessariamente uma degeneração moral em todas as organizações de esquerda que assumem cargos no parlamento ou mesmo naquelas que passam a girar em torno das eleições burguesas. Não se trata de uma consequência inexorável da participação no parlamento, mas de uma combinação entre uma pressão objetiva real e um desarme no terreno moral que permite que essas organizações sejam tragadas pelo vendaval oportunista. Assim como Trotsky dizia que nem toda a social-democracia era moralmente degenerada, este é um terreno específico que se deve analisar caso a caso. Só constatamos que essa barreira de classe moral, infelizmente, tem sido transposta por um número cada vez maior de organizações de origem trotskista. Trata-se, exatamente, de enfatizar a importância de entender esse processo para contrapor-lhe uma moral revolucionária.

    O efeito na LIT: crises e destruição também no terreno moral

    Uma trajetória moral que reivindicamos

    A corrente fundada por Moreno, que deu origem à LIT, tinha uma trajetória de décadas de provas de moral partidária, educada nas lutas contra as ditaduras, como as da Argentina de 1955-1958, 1969-1973 e 1976-1982, ou a luta dos camponeses peruanos na década de 1960, ferozmente reprimida, que levou à prisão de Hugo Blanco e outros companheiros internacionalistas. Essa trajetória de anos formou uma sólida moral nos quadros, que explica a força dos militantes do PST argentino que caíram presos e foram submetidos a torturas e assassinatos, mas não entregaram seus companheiros.

    Por outro lado, nossa corrente sempre atuou com a metodologia de Trotsky com relação às acusações morais sem provas ou aos amálgamas stalinistas. Repudiamos as calúnias de Healy ou dos «espartaquistas» contra Joe Hansen desde o primeiro instante, tanto quando tínhamos acordo com o SWP dos EUA, quanto quando não o tínhamos

    Além do caso Napuri, já relatado, tivemos outros em que nosso comportamento foi semelhante. Como no caso Bacherer, que é importante citar, pois este dirigente não era da nossa corrente, mas do nosso adversário político na Bolívia (o POR-Lora). Numa polêmica aberta entre ele e a direção lorista, Bacherer enfrentou o mesmo tipo de métodos canalhas de acusações morais para justificar sua expulsão do POR. A LIT estimulou a conformação de um Tribunal Moral que julgasse as acusações contra ele. Nossa seção boliviana assumiu a organização da campanha, com o grupo de Bacherer (nesse momento vinculado ao PO argentino). O camarada Zé Maria do PSTU foi enviado para participar desse Tribunal em La Paz.

    Aprendemos com a forma como Moreno respondeu, em toda sua trajetória, às diferenças de fundo dentro da nossa organização. Para citar um exemplo: a ruptura com Vasco Bengochea quando aderiu ao castro-guevarismo, no início da década de 1960. Neste caso, as diferenças eram tão grandes que foi necessária a separação em organizações diferentes, mas Moreno sempre teve uma atitude muito respeitosa, da mesma forma que Bengochea. O mesmo aconteceu na relação com Kemel George, membro do CEI da LIT, e sua corrente, quando assumiu uma posição guerrilherista e rompeu com o PST colombiano e com a LIT, em 1987.

    Também temos uma tradição de como enfrentar a violação dos princípios por parte dos militantes, sobretudo se são dirigentes ou quadros com tarefas públicas. A então corrente brasileira da LIT, a Convergência Socialista (CS), elegeu dois vereadores em 1982, quando estava dentro do PT. Um deles, de Campinas, comunicou à direção, pouco depois de ser eleito, que o salário de vereador seria dele e não do partido. O CC manteve-se firme na defesa de que todo o ingresso proveniente do parlamento era do partido e não abandonou esse princípio. Como ele não aceitou, foi afastado da organização. Outro caso se deu com o primeiro prefeito eleito pela CS, ainda no PT, em 1988, na cidade de Timóteo. Esse prefeito reprimiu uma greve de funcionários e foi imediatamente afastado e expulso de nossa organização.

    Essa reação de defesa dos princípios ajuda a entender por que a CS conseguiu atravessar o período de atuação no PT e sair com a maior parte de sua estrutura de quadros intacta, ao contrário, nesse aspecto, de outras organizações trotskistas que, na mesma época, praticaram o entrismo no PT e depois se degeneraram completamente. Essas organizações não entendiam como podíamos atuar assim, afastando ou expulsando parlamentares e prefeitos eleitos, com todo o peso que tinham, em particular com os votos que haviam acumulado.

    Acreditamos que essa trajetória moral revolucionária, que formou gerações de quadros da nossa corrente, explica por que, apesar dos graves problemas ocorridos no final da década de 80, a LIT tem tido reservas suficientes para reagir a esses desvios e reconstruir nossa Internacional e continua tendo uma postura moral diferenciada da ampla maioria das demais correntes de esquerda. Inclusive daquelas que provêm do trotskismo, mas entraram num processo de degeneração profunda nesse terreno.

    O efeito da crise da LIT no terreno moral

    A crise da LIT, como concluímos no documento de Balanço de 2005, chegou a torná-la irreconhecível. Estava destruída ao ponto de termos de lutar por sua reconstrução. Abriu-se um retrocesso metodológico e moral com relação a toda a trajetória da corrente, chegando à utilização de mentiras e calúnias, de violência entre camaradas na luta pelos bens e patrimônios do partido que, em nenhuma hipótese, tinham justificativa no grau das diferenças surgidas na luta fracional.

    Como já escrevemos no Balanço do último congresso, a situação política dos anos 90, com a restauração do capitalismo via reação democrática e o abandono do marxismo revolucionário pela ampla maioria das correntes de esquerda, que denominamos “vendaval oportunista”, criaram as bases objetivas para a crise da LIT. Neste marco, em que era inevitável que a LIT passasse por uma forte crise, a morte de Moreno foi decisiva para que, em vez de enfrentar essa crise e superá-la, acontecesse uma verdadeira destruição de nossa internacional. Como dizemos no balanço: “se Moreno não tivesse morrido, dificilmente a crise da LIT teria culminado com sua destruição”.

    Temos de agregar que, se há um campo em que a ausência de Moreno se fez sentir especialmente, foi no terreno metodológico e moral. O retrocesso e a destruição aí se manifestaram de forma generalizada. Houve graves problemas morais no MAS argentino e na LIT, refletindo a profundidade dos desvios que envolviam a revisão do programa, da concepção do partido e uma adaptação profunda à democracia burguesa.

    O espírito do vale-tudo penetrou, a partir de sua direção no interior da Internacional. Valia tudo para derrotar o inimigo interno, manobras, mentiras etc. Lutas duras pelos aparatos do partido, pelos mandatos dos parlamentares, patrimônios e sedes tornaram parte comum da vida interna. O desprezo pelas finanças dos “adversários” fez com que, dependendo de quem dirigia determinada seção, se considerasse válido dilapidar de forma irresponsável seu patrimônio. 

    A crise afetou o regime e debilitou a moral do conjunto da LIT. A moral partidária depende da confiança na organização bolchevique, de que cada companheiro coloque, em primeiro lugar, a defesa do camarada. Está apoiada na confiança em que sua causa, a luta pela revolução socialista, os une frente ao capitalismo imperialista. Com a explosão da crise, no marco da ofensiva ideológica e política do imperialismo, depois da queda dos ex-Estados operários, que afetou o conjunto da esquerda, a convicção na revolução e a identificação programática ficaram debilitadas. Cada uma das frações deixava de ver-se não como parte de um coletivo superior, a LIT, mas sim como uma fração com objetivos próprios e imediatos. Isto foi válido para o conjunto das frações em que a LIT se dividiu. A maioria do PST espanhol formou uma fração com uma organização, SR da Itália, que não pertencia à LIT e atuava na Internacional e fora dela como uma fração pública para dissolvê-la, ou seja, destruí-la, pois “seu projeto tinha fracassado”. Cada setor separado ficava mais vulnerável às tremendas pressões vindas da sociedade e da moral decadente que predominavam nela. 

    Finalmente, se a revolução estava postergada para um futuro distante o fundamental era, como afirmavam algumas das frações, o “estudo e o rearme teórico”. Ou, como afirmavam outras alas, a meta fundamental era ganhar peso no parlamento, confundindo isso com “ter influência de massas”. O objetivo imediato de cada setor ganhava um peso estratégico. O decisivo era ter um deputado ou o fundamental era estudar, buscar um “novo caminho”, revisando o marxismo, montar uma revista para avançar no “rearme teórico-político”. E o partido e a Internacional eram um obstáculo.

    Em muitos países, passaram a existir duas ou até três seções da LIT, ou das distintas frações e correntes em que ela se dividiu. Em muitos casos, a lógica foi a disputa do espaço, buscar destruir a outra organização como se fosse inimiga, baseada em qualquer tipo de justificativa. Usou-se o método que a LIT sempre repudiou e combateu, por exemplo, na luta contra o lambertismo, como as acusações sem provas a militantes de outra fração, ou membros das organizações surgidas na ruptura, para destruí-los.

    Reconstrução e sequelas 

    Apesar de todo esse retrocesso, a LIT tinha reservas, a tradição baseada na trajetória da corrente morenista, e houve uma resistência a este tipo de métodos e ao retrocesso no campo moral. Esta resistência foi ampliada até dar forma, a partir de 1994, a uma luta pelo resgate e reconstrução da LIT, também no terreno metodológico e moral. 

    Depois de várias rupturas e uma dura luta interna, a maioria da Internacional passou a reverter este processo de destruição, a partir do V Congresso, em 1997. Em nossa opinião, a maior prova da existência dessa tradição e dessas reservas morais é que se conseguiu impedir a dissolução e avançar rumo à reconstrução. Esta decisão do congresso de 1997, manter a LIT no marco dos princípios políticos e organizativos do programa da IV Internacional e assumir a batalha por sua reconstrução, foi a chave para todo o processo que veio depois e para poder retomar, também, a metodologia e a reconstrução da confiança entre os quadros, e a moral partidária na nossa Internacional.

    Mas isso não significa ignorar as graves sequelas que ficaram do período da crise e destruição. Este quadro de retrocesso, de perda de confiança não se refletiu somente nos dirigentes e nas frações, mas na camada mais ampla de quadros que havia dedicado sua vida à reconstrução do partido e da Internacional. Por isso, depois do congresso de 1997, em que se vota por pequena margem manter a LIT baseada no seu programa e concepção de Internacional centralizada democraticamente, a batalha pela sobrevivência é vitoriosa, mas as perdas são enormes e as sequelas na coluna de quadros são profundas. Uns 80% dos antigos quadros já não militavam mais nela. 

    Por outro lado, num rápido resumo da evolução posterior da ampla maioria das organizações que romperam com a LIT, podemos dizer que foram degenerando cada vez mais, foram abandonando conscientemente a metodologia e a moral partidária típica do morenismo, voltando a se dividir sucessivas vezes ou, simplesmente, deixando de existir como correntes.

    Nestes processos de rupturas e divisões, muitas vezes apareceram os problemas morais em forma ainda mais agravada pelo isolamento e pela perda da perspectiva revolucionária e internacionalista. As ocupações dos locais voltaram a acontecer, a utilização por um grupo de uma possessão legal circunstancial de um bem do partido para tirar esses bens da organização, em seu benefício, ou, inclusive, a usurpação da legalidade burguesa, em detrimento da maioria. 

    Outra violação básica que se estendeu de forma preocupante foi o não-cumprimento de acordos assinados. Houve casos em que acordos assinados entre duas organizações de trajetórias comuns para uma repartição de bens ou de entradas foram simplesmente descumpridos sem maiores explicações. As manobras de todo tipo para apropriar-se individualmente dos bens do partido, como a legalidade ou sobre a divisão do patrimônio, foram frequentes nestes processos. A posse do nome, do jornal ou do site e até arquivos de um militante ou grupo de militantes que rompiam com seu partido e os tinham em seu nome, reivindicava-se o direito a explorar os direitos de propriedade e inclusive contestar sua ex-organização na justiça burguesa.

    Ouvimos, recentemente, de várias organizações ou grupos, expressões como: “que podemos fazer, vivemos na lei da selva!” ou “que essas purezas morais são coisas do passado”.

    É a expressão do que chamamos “vale-tudo” dentro das organizações que se dizem revolucionárias. Os que hoje são vítimas das manobras, amanhã fazem o mesmo com os outros e, nesse processo, aprofunda-se a perda de referência moral e a degeneração do conjunto.

    Tivemos uma trajetória oposta a estes setores porque não aceitamos a moral do vale-tudo. Buscamos retomar as tradições e a trajetória da IV de Trotsky e de nossa corrente e polemizar com os defensores do vale-tudo. Reconhecemos nossas fragilidades e percebemos as tremendas pressões que a decadência do imperialismo exerce. Mas alertamos nossos quadros de que temos de enfrentar cada uma delas se queremos reconstruir a IV e os partidos revolucionários em cada país. 

    Um exemplo de que se mantinham os critérios morais bolcheviques e que a decisão de 1997 da continuidade da LIT tinha uma expressão direta no terreno moral se expressou através de um episódio pouco conhecido. Aconteceu pouco depois desse congresso, no qual o MAS argentino propôs dissolver a LIT como Internacional centralizada. Ao ser derrotado, esse partido decidiu não acatar a votação e rompeu com a LIT. Nesse momento, uma quantidade importante de dinheiro do MAS estava sob a guarda de um militante que, nessa ruptura, ficou com a LIT e desligou-se do MAS. A direção dessa organização, que acabava de romper com a LIT, procurou a direção da Internacional e solicitou que esse dinheiro fosse entregue. A LIT, cuja situação financeira era difícil, imediatamente garantiu que todo o dinheiro chegasse às mãos da organização argentina, já que não era mais da LIT. A razão era muito simples: esse dinheiro era fruto do esforço da militância do MAS e a esse partido e a sua direção lhes cabia dispor desses recursos para o projeto que decidissem. Esta era a metodologia tradicional da nossa corrente e não fizemos mais do que resgatá-la, mas a ampla maioria das correntes que romperam com a LIT não podem apresentar exemplos como este.

    Por outro lado, no último período, já não nos vemos tão solitários nessa luta. Como contraponto a esta degeneração cada vez maior das organizações de origem trotskista, inclusive as que foram parte da LIT, tivemos a satisfação de encontrar setores que, vindos do morenismo, reagiram a ela. Como o CITO, que hoje já se unificou com a LIT, ou como a Esquerda dos Trabalhadores (IT) da Argentina, que participou da UIT e da ruptura da mesma com o MST, e que já avançou na reaproximação coma LIT, estabelecendo um comitê de enlace com o FOS da Argentina.

    Também temos, desde março de 2007, um processo de discussão e reaproximação com a UIT a partir de sua ruptura com o MST. Na nossa agenda de discussão, foram pautadas, de comum acordo, para verificar a possibilidade de convergir, os temas programáticos, de concepção de partido e também de questões de método e de moral. Nossa perspectiva, se houver acordo nos temas essenciais, é confluir numa sólida organização internacional.

    Queremos examinar este processo e tirar as lições junto a todas essas organizações e ao ativismo revolucionário. Acreditamos que, seja para os que vêm do trotskismo e do morenismo, seja para os que vêm de outras tradições, são discussões essenciais para construir uma internacional revolucionária.

    Desde o congresso de 1997, começou um processo de reconstrução da LIT, que envolveu o programa, a concepção de partido e o internacionalismo, que também vem avançando no terreno da moral partidária. Hoje podemos dizer que tivemos avanços em todos estes campos e isso explica a situação atual da LIT e a possibilidade de que venha a cumprir um papel importante na reconstrução da IV Internacional. 

    Neste marco de recuperação e reconstrução da nossa moral partidária, tivemos um erro de avaliação sobre a situação objetiva e suas conseqüências sobre a esquerda revolucionária, o trotskismo e nossa Internacional. Atuamos como se a situação fosse a “de sempre” e não vimos que as pressões de conjunto, a ofensiva neoliberal, desde os anos 90, e a degeneração da esquerda no terreno moral exigiam uma vigilância ainda maior e uma luta mais permanente pela moral revolucionária e contras essas pressões. Atuamos “caso a caso”, sem dar a dimensão devida ao problema no seu conjunto.

    Tivemos, inclusive, um importante atraso, pois só começamos a identificar mais recentemente, desde o congresso de 2005, a gravidade desse retrocesso e dos problemas neste campo na Internacional, ocasionados pelo período de destruição da LIT. Era lógico que se a LIT, no marco do vendaval oportunista que se abateu sobre a esquerda, sofreu uma destruição nos terrenos teórico, programático e organizativo, isto deveria afetar também o terreno moral. Casos como o da seção boliviana nos fizeram refletir mais de conjunto que é necessário dar a devida importância à educação e a uma consciência e atuação permanentes neste terreno, a partir de agora.

    Os últimos tempos na LIT e a necessidade de retomar nossos critérios e combater essas pressões. Como enfrentar esses problemas?

    Somos conscientes de que a situação de decadência da sociedade é cada vez maior, que nossos militantes atuam nesse meio. Sabemos que os novos companheiros do partido trazem a educação moral típica do mundo de hoje e seus preconceitos. Mas o partido revolucionário necessita atuar com clareza sobre essa realidade. Para isso, precisa reconhecer o problema em sua dimensão e estar disposto a enfrentá-lo, sabendo que seremos uma minoria e estaremos na contracorrente das tendências mais profundas da sociedade na qual atuamos e da ampla maioria da esquerda atual. O partido revolucionário não vive numa redoma de vidro e sempre estará exposto às pressões, ainda mais hoje com a decadência moral do capitalismo. A questão é alertar sobre essas pressões e estar disposto a contrabalançar, a educar e a fazer o sacrifício que for necessário para manter os princípios e afastar os que cederem a esse tipo de degeneração.

    Identificar os problemas abertamente e com clareza

    Problemas graves surgem constantemente em nossas fileiras. Um dos mais constantes é a opressão da mulher no partido e no trabalho, incluindo agressões às mulheres na família. Esse tema afeta, em primeiro lugar, a própria moral proletária, pois oprimir a mulher significa oprimir 50% da classe trabalhadora e dividir a necessária unidade proletária diante da burguesia. Significa ser cúmplice da opressão que a sociedade capitalista reproduz a cada dia. Enfim, a ideologia machista é incompatível com a moral revolucionária. Da mesma forma, se penso que meu companheiro de trabalho é inferior porque é negro, não posso lutar efetivamente contra o racismo.

    Se o militante pensa que sua companheira, sua colega de trabalho ou uma companheira do partido são inferiores e que é legítimo aproveitar-se da opressão, está sendo cúmplice da opressão que a sociedade capitalista reproduz em todos os níveis. Seria o mesmo que dizer «sou revolucionário, mas odeio os árabes, ou penso que os negros são inferiores…». Assim como nenhuma classe pode ser vanguarda dos explorados se aceitar a opressão de outros povos ou raças, nenhum partido revolucionário pode apoiar ou tolerar a opressão de uma parte fundamental da classe, as mulheres.

    Esse é um dos terrenos em que a ideologia burguesa causa mais danos à moral revolucionária, pois a opressão da mulher é secular, e boa parte dos problemas aparece no âmbito «privado», na família que, por sua vez, reflete uma discriminação profundamente arraigada na sociedade capitalista. Isto exige uma ampla educação para toda a militância e um combate permanente a todas as atitudes machistas dos militantes e nenhuma tolerância para com a discriminação, o assédio e as agressões à mulher dentro do partido ou na sociedade. Não pode haver nenhuma dúvida com relação a isso: o partido que aceita a opressão machista está condenado a degenerar-se moralmente.

    A direção da LIT e dos partidos não podem ceder nesse tipo de questões

    Em primeiro lugar, deve-se fazer um longo trabalho de educação em nossas fileiras. No entanto, no caso de qualquer violação dos princípios morais, não se pode ceder. É importante recordar a trajetória que vem desde a origem da nossa corrente. O mérito da direção foi apoiar-se na nossa tradição para enfrentar estes novos casos. Em todos os casos comprovados, os envolvidos foram sancionados e, nos mais graves, expulsos do partido. 

    Quer dizer, foi necessária uma rigidez de princípios para defender a moral partidária. Qualquer outra posição que cedesse às pressões do aparato parlamentar ou sindical teria sido fatal para a moral revolucionária. Além de alertar sobre essas pressões e estar dispostos a educar, é necessário fazer o sacrifício necessário para manter os princípios e afastar os que cederam a este tipo de degeneração.

    Para os dirigentes, a exigência de moral revolucionária é muito superior

    Se a defesa da moral partidária e o combate e esse tipo de violações é uma necessidade permanente, ela redobra-se quando se trata dos dirigentes. Em geral, vemos nas correntes de esquerda, inclusive nas que se reivindicam revolucionárias, o comportamento oposto: quando se trata de dirigentes, dizem que é preciso ir com cuidado e tentam buscar saídas que não os afastem das tarefas de direção, independente do grau de violação moral que tenham cometido. Em geral, utiliza-se o argumento de que «quando se toma uma medida contra os dirigentes, quem é punido é o partido», que esse dirigente é «imprescindível» para o partido por sua capacidade etc. O raciocínio deve ser o oposto: o que mais afetaria o partido seria ter como membro da direção alguém que cometeu graves faltas morais.

    A «proteção especial» ao dirigente é típica do stalinismo, que estabeleceu a ideia de que os chefes são intocáveis e devem ter um tratamento diferenciado. Nossa lógica deve ser a oposta: quanto mais responsabilidade tiver um dirigente, mais forte deve ser a exigência. Se o partido encobre uma falta moral, alegando que o envolvido é um dirigente, está semeando a formação de uma burocracia e preparando sua própria destruição como partido revolucionário. Ao contrário, o dirigente tem que ser um exemplo vivo de moral revolucionária que inspire todo militante, e a vanguarda do movimento de massas possa ver nele uma referência nesse terreno frente à degeneração moral do restante das correntes de esquerda. Com o companheiro novo no partido, pelo contrário, devemos ter toda a paciência, ser fundamentalmente educativos e pedagógicos, tentando fazer com que entenda a moral revolucionária. Nossa atitude é completamente diferente no caso de surgirem problemas morais envolvendo dirigentes dos partidos e da LIT.

    Como atuar nos casos em que os dirigentes estão envolvidos em problemas morais graves? Nossa opinião é que aí está uma das grandes provas para qualquer Internacional. No caso recente da Bolívia, a direção do MST não teve dúvida em sancionar um quadro sob uma acusação moral. Mas quando se viu diante da possibilidade de seu principal dirigente ser sancionada pela CCI, preferiram romper com a LIT.

    Durante a discussão do caso, houve manifestações de que deveríamos buscar uma negociação, evitar por qualquer meio a ruptura da seção, mais ainda por se tratar de um país onde a revolução estava num ponto avançado na América Latina.

    Tendo total acordo com a caracterização sobre a Bolívia, acreditamos que foi um acerto importantíssimo não ceder a nenhum tipo de pressão da direção do MST nesse sentido, nem às propostas de “negociação” que nos fizessem deixar de lado os princípios sob a justificativa de manter a seção na LIT. Nossa posição foi exigir que o companheiro se apresentasse à CCI com todos os direitos de defesa como qualquer militante, mas sem condições nem privilégios. Mais ainda por ser um dirigente da seção e ex-membro do CEI e do SI. Buscamos garantir, de todas as formas, os recursos necessários para que a CCI operasse e seus membros pudessem receber a denunciante, viajar e entrevistar-se com o denunciado, os familiares envolvidos e outras possíveis testemunhas. Enfrentamos o boicote do MST e tentamos convencê-los até o final sobre a necessidade de que se submetessem à CCI. Mas, inclusive quando ameaçaram romper com a LIT, não aceitamos nenhum tipo de exceção em função da importância desse dirigente para o MST, como queria sua direção.

    Acreditamos que foi uma decisão corretíssima e que nos dá uma perspectiva de futuro como uma Internacional. Qualquer retrocesso neste terreno levaria a abrir um caminho de crises e dissoluções, porque significaria ceder no terreno da moral revolucionária e ser cúmplices da degeneração moral da seção e, consequentemente, da LIT. Como ser duro com qualquer militante, se se pactua com um dirigente com a justificativa de não perder a seção? Quem cede ou negocia neste terreno destrói o partido na sua base moral, na confiança na solidariedade destes camaradas e, neste caso, na defesa da mulher e no combate à sua opressão. Quem cede numa questão pode ceder em qualquer outra questão de princípios.

    Que tipo de moral queremos construir?

    Para nós, esta não é uma discussão menor. A resposta passa por uma educação sobre a moral revolucionária. Sem uma compreensão marxista, é muito difícil resistir às pressões dos aparatos e da moral burguesa decadente. Devemos incorporar à nossa tarefa de construção a reeducação da militância sobre a moral revolucionária. Temos que recordar que, como qualquer agrupamento humano, é necessário que cada militante tenha clareza sobre a necessidade da moral revolucionária e seus fundamentos.

    Não vamos apresentar um decálogo sobre o que se deve fazer ou não no terreno moral. Mas se a direção da LIT e cada direção nacional encararem essa questão com a devida importância, podem fazer avançar muito a concepção da moral revolucionária da militância, tomando cada caso importante, seja positivo, seja negativo, para tirar as conclusões para o conjunto. Podemos aproveitar cada uma delas para educar a enfrentar os problemas desse tipo no partido e no movimento operário. Uma das consequências disso pode ser não só interna, mas um avanço na relação com a classe operária. Tivemos exemplos de como essa prática pode fortalecer. Vamos citar, neste texto, uma experiência que conhecemos.

    O caso G. na Espanha – Em primeiro lugar, independentemente do fato de ser dirigente da seção espanhola na época, foi tratado com todo rigor frente à grave acusação. Uma vez comprovada a acusação, foi sancionado e expulso do partido, o que depois foi confirmado e reafirmado pelo congresso mundial da LIT. Por decisão do congresso, foi comunicada a situação deste ex-dirigente às organizações da esquerda com as quais temos relações. 

    Com todo o orgulho que devemos ter para manter nossa trajetória e nossos critérios, precisamos socializar essas e outras experiências que tenhamos e que muitas vezes aproveitamos para educar a militância e construir um perfil frente à vanguarda. Devemos começar a fazer conscientemente este tipo de discussões e a divulgação de exemplos a partir de agora em cada um de nossos partidos e em toda a LIT. 

    Mais ainda, acreditamos que nossa intervenção para fora, no movimento operário, deve assumir a recuperação das tradições da moral proletária. Nossos partidos devem ser exemplos vivos e lutar por esse tipo de regime e de moral nas organizações do movimento de massas, lutando contra as burocracias, os stalinistas e os revisionistas do trotskismo nesse terreno. Não se pode lutar consequentemente contra o imperialismo e seus Estados, contra as burocracias, como o PT e os PCs, sem dar esse combate aberto baseado numa compreensão superior desses problemas e princípios.

    Existe todo um terreno em que podemos e devemos dar esse combate: na denúncia da degeneração moral do capitalismo imperialista decadente, dos governos e das direções burocráticas e na afirmação da moral proletária. Se, por um lado, a década de 1990 e a ofensiva ideológica reacionária criaram um telão de fundo que favoreceu a degeneração e a perda de referências da classe no campo moral, a situação revolucionária e a queda do stalinismo abrem um espaço para uma ofensiva nesse terreno.

    A queda do stalinismo abriu um espaço amplo, sob a condição de estarmos à altura em todos os aspectos. Se formos a vanguarda na afirmação desses princípios, se formos um exemplo vivo, vamos atrair o melhor do ativismo, vamos encontrar companheiros que, mesmo que não tenham acordo total com nosso programa, nos admiram por nossa metodologia e nossa força moral, em contraposição ao vale-tudo que impera e à degeneração dos reformistas, dos burgueses e stalinistas.

    O papel da moral na reconstrução da IV

    No nosso último Congresso alertamos para o fato de que não basta ter um programa e uma política revolucionária. É necessária uma concepção e uma estrutura bolcheviques para construir um partido revolucionário. Queremos alertar que também é necessária uma moral partidária bolchevique para que esse partido e a Internacional sejam sólidos. Há uma relação estreita entre ambas.

    É um erro achar que um partido revolucionário é construído somente com política. Se a LIT e seus partidos não forem capazes de demonstrar que têm uma moral revolucionária, que não retrocedem para enfrentar seus problemas, inclusive quando são graves e quando afetam seus dirigentes, não terão futuro. Isso deve ter consequências de fundo na vida cotidiana de nossas organizações, na educação de toda uma nova geração de militantes e no combate às pressões e aos desvios que todo partido sofre por estar inserido na sociedade.

    Que tipo de militante a IV necessita?

    Partimos da visão de Moreno de que nossa moral é uma moral para travar uma luta implacável para derrotar um inimigo não menos implacável: os exploradores e o imperialismo. Por isso, a obrigação moral número um de cada militante, o dever moral mais sagrado, subordinando a isso a própria vida, é fortalecer o partido e o desenvolvimento da organização.

    No partido ocorre uma relação distinta entre o indivíduo e o coletivo: não há nada superior como indivíduo que o camarada do partido. Nossa moral baseia-se em que a vida do companheiro é mais importante que a nossa. Nosso dever de militante para com o partido exige fazer tudo o que possa ajudar a desenvolver cada camarada, cada militante, seja no sentido físico, intelectual ou moral, porque isso fortalece o partido e o nosso objetivo final: a destruição do capitalismo e a construção do socialismo e do comunismo.

    Isso vai exigir sacrifício de cada um de nós (mudar de trabalho, transferir-se de cidade ou país, adiar planos profissionais ou conseguir bens), mas se for necessário para fortalecer e apoiar o desenvolvimento do partido, para lutar por uma vida melhor para todos, então se justifica plenamente. Como dizia Nadeska Krupskaia em A Personalidade de Lênin:

    Com o exemplo de sua vida, Lênin mostrou como se devia proceder. Não podia nem sabia viver de outra maneira. Não era um asceta, gostava de patinar, andar de bicicleta, escalar montanhas, caçar; amava a música, amava a vida em sua beleza múltipla, amava os camaradas, os homens. Todos sabem de sua simplicidade, de seu riso alegre e contagioso. No entanto, subordinou tudo isso à luta por uma vida luminosa, cultivada, cômoda, plena e alegre para todos. Sua maior alegria eram sempre os êxitos nessa luta. Sua personalidade se fundia, sem nenhum esforço, com sua atividade social… «.

    Por que a lealdade, a camaradagem e a franqueza entre camaradas são tão importantes?

    A lealdade entre os revolucionários é uma das características mais importantes na construção de uma moral comunista. A franqueza é a base da confiança. Sem construir a confiança não há como sustentar o centralismo democrático e isso exige um esforço permanente. Sobretudo em um momento em que a LIT passa por reunificações, fusões, incorporações de novas organizações e de toda uma nova geração de militantes jovens, é necessário fortalecer essa moral partidária. E também criar os anticorpos contra todo tipo de intrigas ou calúnias que envenenam o ambiente e destroem a confiança entre todos. Se um companheiro tem uma crítica dura, deve poder fazê-la sem medo nos organismos do partido. As intrigas, mentiras ou calúnias debilitam a moral partidária porque minam a confiança necessária.

    A camaradagem, a preocupação e solidariedade permanentes entre os militantes devem ser cultivadas em nossos partidos e na LIT. A preocupação com os problemas que afetam a vida de cada camarada deve ser parte de nossa vida e isso fortalece a moral partidária: os companheiros sentem-se fortalecidos quando percebem que o partido e seus camaradas se preocupam sinceramente com os demais, e quando têm problemas, o ajudam a encontrar uma saída.

    O papel da Comissão de Moral

    A luta de Trotsky contra as calúnias e amálgamas de Stalin deixou ensinamentos preciosos de como abordar os problemas morais que ocorrem no movimento operário e no partido revolucionário. A tradição do movimento operário internacional, desde o século XIX, é que, em caso de denúncia que envolva aspectos morais, são criadas instâncias próprias do movimento operário, cuja composição se baseia em personalidades com capacidade de juízo e conduta inquestionável, para garantir que sua investigação não seja contaminada por eventuais divergências políticas.

    Trotsky retomou essa tradição para enfrentar a gigantesca onda de ataques morais, amálgamas e calúnias impulsionadas pelo stalinismo contra as organizações trotskistas, contra a figura de Trotsky, os velhos bolcheviques e toda a vanguarda revolucionária. Trotsky pediu a formação de um Tribunal Moral, que se concretizou na Comissão Dewey, onde ele se apresentou para responder às acusações de Stalin diante de uma instância que permitisse dar uma sentença indiscutível sobre as calúnias.

    A IV Internacional também extraiu lições dessa luta contra o stalinismo no terreno moral. O stalinismo utilizava sua maioria nos organismos de direção para que esses julgassem acusações morais contra dirigentes que tinham posições críticas, e esses organismos tomavam para si a «tarefa» de castigá-los. Assim se valiam de uma maioria política para desmoralizar dirigentes opositores naquilo que é mais precioso para um revolucionário: uma moral intocável.

    A partir daí, a tradição da IV Internacional é formar Comissões de Controle ou de Moral especiais para zelar pela moral partidária. Estas comissões são eleitas pelos congressos e só respondem ao próximo congresso, ou seja, são independentes do Comitê Central ou da direção, e têm plenos poderes para tomar resoluções sobre as questões que afetam a moral, que devem ser acatadas por todos os militantes e organismos, inclusive pela direção.

    Na LIT, por estatuto, temos uma Comissão de Controle Internacional (CCI) eleita no congresso com o critério de separar completamente esse tipo de questões e garantir-lhes um tratamento objetivo, cujas decisões têm de ser acatadas por todas as instâncias de direção. Os estatutos da LIT preveem que “o Congresso Mundial elege uma Comissão de Controle Internacional de três membros, (…) gozando de uma ampla reputação de objetividade. Esta comissão, eleita por no mínimo ¾ dos delegados tem a função irrevogável e inapelável de examinar os casos referentes a ações incompatíveis com a moral proletária e revolucionária e decidir sob sua consciência. A Comissão de Controle Internacional só responde diante o Congresso Mundial e todas as demais instâncias nacionais e internacionais estão obrigadas a colaborar com o tema que examina e considera pertinente. As acusações que a Comissão de Controle Internacional examina são assumidas por pedido do CEI, do SI ou por iniciativa própria.” 

    É muito importante para a manutenção da moral revolucionária da LIT a existência de organismos próprios de extrema objetividade e respeitados pelo conjunto da militância da internacional. Esta comissão zela para separar os problemas morais dos problemas políticos e impedir que a justiça burguesa, inimiga de classe, acabe por resolver este tipo de problemas.

    Estes organismos devem também existir nas seções para tomar estas questões. Só um organismo deste tipo pode resolver casos que envolvam violações da moral em litígio ou com versões conflitivas entre militantes. Por exemplo, no caso do MST boliviano, a organização era seção oficial da LIT e não possuía Comissão de Controle. De acordo com uma compreensão mais clara da importância da moral, uma das decisões deste congresso é que cada seção da LIT deve possuir sua própria Comissão de Controle com as características indicadas por esse critério geral do nosso estatuto. Devemos formar essas comissões garantindo que sejam formadas por quadros de trajetória inquestionável e com experiência e discernimento para enfrentar questões que têm a ver com a defesa da moral partidária.

    Para garantir a prioridade, dada a importância das tarefas da CCI e das CCs de cada seção, é fundamental, além da educação proletária no campo moral, o fortalecimento e o apoio de toda a LIT, começando por sua direção e as das seções, ao funcionamento das Comissões de Controle.

    Acreditamos que, levando em conta o processo pelo qual passamos, as dificuldades, a juventude a inexperiência de algumas de nossas seções nesse terreno, é necessário que a Comissão de Controle Internacional tenha uma comunicação com as comissões de controle nacionais para que possam trocar e construir critérios de procedimento e decisões que se apoiem na experiência da IV e da nossa corrente e que sejam comuns a toda a LIT-CI.

    O papel da LIT e da direção dos partidos na questão moral

    Aqui cabe esclarecer uma confusão gerada por não dar a devida importância à questão no último período. Por um erro da direção da LIT, que não tinha tirado todas as conclusões do problema da destruição também no campo moral, ficou a ideia de que os problemas de moral só interessam à Comissão de Controle e que a última tarefa da direção é comunicá-los à CCI. É verdade que quem investiga e resolve estes casos são as CCI ou as Comissões de Moral das seções. Mas existem tarefas da direção internacional neste terreno: uma é que a direção não só encaminha os casos concretos à CCI, como diz o Estatuto, mas também garante todas as medidas, zela para que a CCI tenha todos os meios para resolvê-los, e deve acompanhar os problemas que se apresentarem nessa marcha para identificá-los e ver se estão resolvidos. O mesmo deve ser aplicado a cada seção nacional em relação à direção nacional com a respectiva Comissão de Controle.

    A outra grande tarefa, na qual estivemos débeis no último período é a necessidade de educar teórica e programaticamente a militância na moral revolucionária. O mesmo deve acontecer em todas as seções da LIT. Como parte desta tarefa, e para começar a divulgar nossas posições nesse terreno, devemos divulgar este material e armar nossa militância para que possa fazer esta discussão nos organismo do movimento e junto a toda a vanguarda.

    Notas

    1. N. Moreno, Moral bolche ou espontaneísta?, Caderno de Formação, 1987. ↩︎
    2. Trotsky analisa como parecia haver certas regras elementares de moral na época do capitalismo ascendente e de melhoria relativa das condições de vida da classe operária e certa ‘paz social’. E como a irrupção da guerra mundial fez as instituições da democracia explodirem e, junto com isto, «as frágeis regras elementares da moral». A mentira, a calúnia, a venalidade, a corrupção, a violência, o assassinato tomaram proporções inéditas. Os espíritos simples, confundidos, acharam que tais inconvenientes eram o resultado momentâneo da guerra. Na realidade, eram e continuam sendo manifestações da decadência do imperialismo. ↩︎
    3. L. Trotsky, Moral e revolução. ↩︎
    4. Quarta Internacional – Comitê Internacional, organização conjunta formada em 1980 pela corrente morenista e a lambertista. ↩︎
    5. Máximo dirigente do PO argentino. ↩︎
    6. Nome do sistema de corrupção que envolveu a cúpula do governo, do PT e todos os parlamentares importantes e alas do partido. A DS estava vinculada através do PT do Rio Grande do Sul. ↩︎
  • Antissionismo não é antissemitismo

    Antissionismo não é antissemitismo

    Uma confusão sempre à espreita, que ganhou espaço nos últimos dias, é a de que o antissionismo seria uma forma de antissemitismo. Nada mais falso. Entendemos que existem três tipos de confusão em relação a isso: a primeira é deliberada e, portanto, criminosa, como faz o racista Estado de Israel e suas organizações; a segunda deve-se à desonestidade ou ao oportunismo, e costuma estar ligada à primeira; e a terceira é, por incompreensão ou desconhecimento, fruto de ideologias que muitas vezes permeiam os meios de comunicação de massa e estão na boca de políticos e outras personalidades. O propósito deste artigo é explicar a grande diferença entre antissionismo e antissemitismo.

    Por: José Welmowicki e Soraya Misleh

    O antissemitismo esteve presente nos discursos do apresentador Bruno Aiub (Monark), durante a edição do Flow Podcast de 7 de fevereiro, e do deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP) no mesmo programa, o que é absolutamente condenável. Nosso veemente repúdio à ideia absurda que propagaram de que o nazismo não deveria ser tratado como crime e que, como afirmou Aiub, “está bem ser antijudeu”. Não há nada de aceitável em defender o racismo, a discriminação e a opressão. Portanto, não há nada de aceitável em ser antissemita. Isso significa naturalizar o ódio contra determinadas etnias ou raças.

    O nazismo, com seu abominável histórico de atrocidades cometidas durante o Holocausto contra os judeus (6 milhões de mortos) – e também contra ciganos, comunistas, anarquistas, pessoas LGBT e deficientes físicos, todos os que não fizessem parte da “raça ariana” – durante o século XX, foi um crime contra a humanidade. Defender a legalização de um partido nazista é inaceitável. Infelizmente, Aiub e Kataguiri não são os únicos. O vereador da cidade de São Paulo, o capanga Fernando Holiday (Novo), que disse anteriormente que o racismo contra negros no Brasil não existe, é outro que, do alto de sua inconmensurável idiotice, defendeu a “despenalização do nazismo”, sob a lógica distorcida da “liberdade de expressão”.

    O direito democrático à liberdade de expressão não significa o direito de incitar o racismo sob nenhuma forma. Ele não pode ser usado como muleta para propagar livremente crimes contra a humanidade e discursos de ódio. As consequências – e isso não é novidade – são amplamente conhecidas.

    Ao mesmo tempo, tentando justificar o injustificável, Kim Kataguiri afirmou, em vídeo em suas redes sociais, que não poderia ser antissemita porque “não há ninguém mais pró-Israel no Parlamento do que eu”, para depois remediar dizendo que considera “até divertido que pessoas anti-Israel agora me chamem de antissemita, de nazista”.

    Essa ideologia não tem justificativa alguma. Ela responde à confusão deliberada criada pelo Estado racista de Israel, que equipara coisas que nada têm a ver entre si – uma chantagem que também merece repúdio veemente – para silenciar os críticos do projeto colonial sionista. E isso não é de hoje.

    Mas, o que é o antissemitismo e qual é a sua origem?

    O racismo contra os judeus, o antissemitismo, surgiu na Idade Média, na Europa. Reis, nobres e sacerdotes exploravam os servos em seus feudos na Europa medieval; na sociedade feudal, as transações e atividades comerciais e financeiras, como a usura, eram consideradas pecaminosas e proibidas para os cristãos. Assim, um não cristão tinha de fazê-las. De fato, exercendo essas atividades a serviço da nobreza e do clero – que eram da classe dominante – os judeus passaram a cumprir o papel de comerciantes, artesãos, ourives etc., além de agiotas, uma atividade vetada aos cristãos. Fez-se isso sob o controle dos reis, do clero e dos nobres e, quando surgiam catástrofes como fome e pestes, em cada período desse sistema feudal, as classes dominantes viam a necessidade de um bode expiatório.

    Pelo seu papel na sociedade, como mercadores e como emprestadores de dinheiro cobrando juros, os judeus eram um alvo fácil. Daí surgiram as lendas divulgadas pela Igreja cristã, como o mito de que “os judeus mataram Cristo”, usadas pelos nobres para culpar os judeus pelos infortúnios da população.

    A Revolução Francesa, com seus três lemas – liberdade, igualdade e fraternidade – defendeu a ideia de que os seres humanos seriam iguais perante a lei. Mas, como sabemos hoje, a nova sociedade capitalista foi incapaz de garantir verdadeira igualdade às mulheres e perseguiu etnias e raças. Foi a Revolução Russa de 1917 que trouxe a libertação dos povos de todo o antigo Império Russo, o fim da discriminação contra todas as etnias, inclusive os judeus.

    Em sua fase imperialista, o capitalismo intensificou a exploração e as guerras de colonização dos povos; e a perseguição racial tomou uma forma ainda mais assassina. Foi nesse contexto imperialista que surgiram o fascismo e o nazismo – ideologias que justificavam o genocídio e a eliminação de raças como o único caminho para o povo alemão. O antissemitismo foi transformado em uma política industrial de genocídio, de eliminação dos judeus.

    O surgimento do sionismo

    O sionismo, que surgiu no final do século XIX com Theodor Herzl, argumentava que o problema da discriminação contra os judeus só se resolveria se estes tivessem um Estado exclusivo. O sionismo admitia, assim, um pressuposto que os racistas antissemitas vinham pregando: era impossível a convivência sem discriminação entre diferentes raças e etnias, entre judeus e não judeus, pois sua própria constituição racial o impediria. Herzl e a Organização Sionista Mundial (OSM) buscaram, então, os líderes das potências imperialistas e ministros do Império czarista russo para negociar apoio a esse projeto, entre outros argumentos, lembrando-lhes que poderiam se livrar dos judeus de seus territórios. Durante a Primeira Guerra Mundial (1914–1918), através de Chaim Weizmann, líder sionista, a OSM obteve uma declaração do governo imperial britânico – a Declaração Balfour de 1917 – comprometendo-se a permitir a instalação de um Lar Nacional Judeu no território da Palestina. Ou seja, foi um compromisso da autoridade colonial britânica de permitir que a Palestina, então colonizada por eles, fosse utilizada pelos sionistas para instalar novos colonos judeus. Mas isso só seria possível expulsando a população palestina que já existia.

    O líder sionista “revisionista” Jabotinsky – de cujas ideias foram formadas as organizações de extrema-direita Irgun e o Likud, de Begin e Netanyahu, este último primeiro-ministro de Israel por mais de uma década – levaria essa visão às suas últimas consequências, pregando um “muro de ferro” entre os judeus e os árabes habitantes da Palestina, sem qualquer “mistura de sangue” entre eles; ou seja, Israel deveria ser um Estado abertamente racista, exclusivamente dos judeus. Esse foi o projeto implementado que deu origem ao Estado de Israel, às custas da expulsão da população palestina. Como revela o historiador israelense Avi Shlaim em seu livro O muro de ferro – Israel e o mundo árabe (Editora Fissus, 2004), esse também foi o pressuposto não declarado do chamado sionismo laborista – e seu dirigente, David Ben-Gurion – que, de fato, realizou a limpeza étnica em 1948.

    O que é o antissionismo?

    O antissionismo é a oposição ao projeto político colonial sionista e a todas as suas ramificações. É estar contra a limpeza étnica, o racismo, o apartheid – que a própria organização israelense Bet’Selem, bem como as internacionais Anistia Internacional e Human Rights Watch, reconhecem –, e crimes contra a humanidade. A causa palestina, que sintetiza as lutas contra a opressão e a exploração em qualquer parte do mundo, é a causa pela libertação nacional do jugo do colonizador. Que coisa tem isso de racista? Nada. Ao contrário, ser antissionista é lutar contra tal situação.

    O resultado do projeto colonial sionista, fundado no final do século XIX, foi a Nakba, uma catástrofe com a formação do Estado racista de Israel em 15 de maio de 1948 por meio de uma limpeza étnica planejada – como hoje reconhecem até novos historiadores israelenses, como Ilan Pappé. Foram 800.000 os palestinos expulsos violentamente de suas terras e cerca de 500 vilarejos foram destruídos na “conquista da terra e do trabalho”, conforme pregava o movimento sionista.

    Como aponta o historiador palestino Nur Masalha em seu livro Expulsão dos palestinos: o conceito de ‘transferência’ no pensamento político sionista – 1882–1948 (Editora Sundermann, 2021), nos diários dos líderes sionistas já se via que, para seu propósito – criar um Estado judeu etnicamente homogêneo – seria necessária a “transferência populacional” dos palestinos nativos não judeus, que era majoritária, para fora de suas terras, enquanto os judeus europeus migrariam para a Palestina. E isso é o que aconteceu. Israel foi formado em 78% da Palestina histórica, sobre os escombros dos vilarejos palestinos e sobre os corpos de seus habitantes nativos. Sobre as lágrimas de milhares de pessoas que, da noite para o dia, tornaram-se refugiadas.

    Em 1967, Israel ocupou o restante dessas terras (Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental). Mais 350.000 refugiados. Hoje, existem 5 milhões em campos de exilados nos países árabes aguardando o retorno. Ainda há milhares na diáspora, e 1,9 milhão oriundos dos remanescentes da Palestina ocupada em 1948 (hoje chamada Israel) são tratados como cidadãos de segunda ou terceira classe, submetidos a cerca de 60 leis racistas. Nessa região, Israel sequer fornece aos palestinos o mínimo de serviços básicos em centenas de vilarejos beduínos, onde a especulação imobiliária avança às custas da demolição de casas. E os palestinos não possuem permissão de residência permanente. Por exemplo, a aldeia de Al Araqib já foi demolida mais de 190 vezes, e os palestinos, em um ato de resistência, continuam a reconstruí-la.

    Gaza é uma verdadeira prisão a céu aberto, onde 2 milhões de palestinos enfrentam uma dramática crise humanitária sob um bloqueio sionista desumano há 14 anos – com 96% da água potável contaminada e somente quatro horas de fornecimento elétrico por dia –, além de frequentes bombardeios. E, na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, a colonização avança em ritmo acelerado, na qual a limpeza étnica é parte instrumental. Há cerca de 3 milhões de palestinos sem nenhum direito humano fundamental assegurado, com inúmeras restrições de mobilidade: necessidade de diferentes documentos, proibição de circulação livre (existem estradas exclusivas para os colonos sionistas, por exemplo), centenas de postos de controle e um muro de apartheid com aproximadamente 700 km de extensão, que continua sendo ampliado, isolando famílias e anexando mais terras férteis.

    Israel não fornece aos palestinos nem mesmo o mínimo de água recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

    Boicote ao apartheid vs. hipocrisia

    Mas a Nakba continua: como agora denuncia também a Anistia Internacional, o regime é de apartheid, “um cruel sistema de dominação e opressão que Israel impõe ao povo palestino, seja ele residente em Israel ou nos territórios ocupados, ou mesmo refugiados deslocados a outros países”. É um crime contra a humanidade, no qual os palestinos vêm sendo tratados, há décadas, segundo a Anistia Internacional, como “uma raça inferior”. A Bet’Selem descreve o apartheid como “um regime de supremacia judaica” em toda a Palestina histórica: “Toda a área controlada por Israel, entre o rio Jordão e o mar Mediterrâneo, é governada por um regime único que trabalha para avançar e perpetuar a supremacia de um grupo sobre o outro. Por meio da engenharia geográfica, demográfica e física do espaço, o regime permite que os judeus vivam em uma área contígua, com plenos direitos – incluindo a autodeterminação – enquanto os palestinos vivem em unidades separadas e com menos direitos. Isso caracteriza um regime de apartheid, embora Israel seja comumente visto como uma democracia com ocupação temporária.

    Nessa situação, descrita em detalhe nos relatórios da Anistia Internacional, da Human Rights Watch e da Bet’Selem, os palestinos existem porque resistem heroicamente. E hoje a principal campanha de solidariedade é o BDS (boicote, desinvestimento e sanções) – baseada no modelo da campanha internacional que ajudou a pôr fim ao apartheid na África do Sul durante as décadas de 1970 e 1980 – que trata das demandas fundamentais do povo palestino: fim da ocupação, igualdade de direitos civis e retorno dos refugiados às suas terras. Os sionistas, inclusive aqueles que afirmam ser de “esquerda” (o que é uma contradição, já que defendem um projeto colonial utilizando uma retórica branda, um discurso contra as opressões), voltaram-se contra o BDS. Também rejeitam os relatórios que demonstram que os palestinos estão submetidos a um regime de apartheid. Tais organizações chamam de antissemitas todas as pessoas que se levantam contra esse Estado racista.

    No programa Flow Podcast, o sionista André Lajst, diretor executivo da organização Stand With Us no Brasil, um dia após os repugnantes discursos de Bruno Aiub e Kim Kataguiri, afirmou que o antissemitismo – “neste caso, a judeofobia, o ódio aos judeus, visto que existem outros povos semitas” – vinha se transformando ao longo da história. Segundo ele, nesse processo de mutação, esse ódio se converteria em “ódio aos judeus por causa de seu Estado-nação, isto é, o ódio exacerbado e desproporcional que as pessoas têm pelo Estado de Israel, que também seria uma espécie de antissemitismo. Não falo de crítica ao Estado, refiro-me à ilegitimidade de um país, de um lar nacional judeu ou ao combate ao movimento nacional judaico”. Assim, recorre a uma manobra para associar de forma distorcida antissionismo e antissemitismo.

    Trata-se de uma manobra clara: Lajst equipara defender o fim do Estado de apartheid de Israel a defender o fim dos judeus, ou seja, seu extermínio. O que haveria com a África do Sul ou com a Rodésia, governadas pela minoria branca segregacionista? Defender o fim do apartheid e defender o fim dos sul-africanos brancos seriam a mesma coisa? Não é isso o que a história demonstra. Não é o que afirmam os palestinos no caso de Israel. Como relatava um refugiado palestino expulso de sua terra em 1948, quando criança, “judeus, muçulmanos e cristãos brincavam juntos, sem rótulos”. Essa convivência jamais existiu na Palestina histórica – ela foi criada e continua sendo alimentada pelo sionismo.

    Contrariando a intervenção de Lajst no Flow Podcast, chama a atenção que organizações sionistas tenham declarado que o podcast deveria ser boicotado, exigindo e chegando à suspensão de patrocínios. “Ideologias que visam a eliminação do outro devem ser proibidas. Racismo e perseguições de qualquer identidade não configuram liberdade de expressão”, afirmou o coletivo sionista Judeus pela Democracia em seu Twitter.

    A ideia é correta. A apologia ao nazismo deve ser repudiada com todas as forças, por todos os meios. No entanto, causa indignação a hipocrisia, pois o BDS não pode atuar – é criminalizado e desqualificado. Não se pode denunciar o apartheid. Para eles, as vidas dos palestinos não importam, embora digam o contrário.

    O Estado de Israel, a materialização da ideia central do sionismo, baseia-se na eliminação do outro, através da limpeza étnica, massacres e na contínua desumanização. Ilan Pappé, em seu livro A limpeza étnica da Palestina (Editora Sundermann, 2016), não deixa dúvidas: “para muitos sionistas, a Palestina nem sequer era um lugar ‘ocupado’ quando começaram a se mudar para lá em 1882, mas sim uma terra ‘vazia’: os palestinos nativos que viviam ali eram, na maior parte, invisíveis ou, ao contrário, uma dificuldade natural que deveria ser conquistada e eliminada”.

    Os sionistas de esquerda, em defesa da existência de Israel, frequentemente se posicionam contra a ocupação – que, na prática, equivale a apartheid –, embora a ocupação implique segregação e discriminação. Eles defendem a já extinta e enterrada solução de dois Estados, como já reconhecem há anos intelectuais do porte de Ilan Pappé e até o ex-relator especial da ONU sobre os direitos humanos na Palestina ocupada, Richard Falk. Se essa suposta solução não fosse injusta desde o início – ao oferecer migalhas ao povo palestino e não contemplar sua totalidade, com a metade refugiada ou na diáspora –, ela seria completamente inviável devido à expansão colonial sionista. Hoje já existe um Estado único sobre o território palestino: Israel, um Estado de apartheid.

    Não há paz sem justiça. E a justiça só chegará com a derrota desse projeto colonial e, por consequência, com o fim do Estado de apartheid de Israel – na construção de uma Palestina livre, do rio ao mar, com o retorno de milhões de palestinos às suas terras. Ser antissionista e dizer essa verdade é ser coerente com a luta contra a opressão e a exploração em todo o mundo, incluindo o repúdio veemente ao antissemitismo e à apologia do nazismo.

    Consulte os relatórios (em inglês):
    Anistia Internacional – https://www.amnesty.org/en/documents/mde15/5141/2022/en/
    Human Rights Watch – https://www.hrw.org/sites/default/files/media_2021/04/israel_palestine0421_web_0.pdf
    Bet’Selem – https://www.btselem.org/sites/default/files/publications/202101_this_is_apartheid_eng.pdf

  • As mentiras do sionismo preparam a “solução final” de Israel em Gaza.

    As mentiras do sionismo preparam a “solução final” de Israel em Gaza.

    O dia 7 de outubro ficará na história da luta pela libertação nacional na Palestina e no Oriente Médio. Foi o dia em que a resistência palestina conseguiu infligir uma derrota ao exército de ocupação e romper, por um período, o cerco ao qual os palestinos são submetidos diariamente por Israel há 16 anos. Uma incursão preparada e coordenada conseguiu romper a barreira que cerca Gaza em vários pontos – barreira essa que impede a saída de qualquer palestino.

    Por: José Welmowicki

    As câmeras e os dispositivos de vigilância não funcionaram porque os combatentes os inutilizaram. Até aquele dia, a fama acumulada por Israel em várias guerras contra seus vizinhos árabes e a guerra permanente contra os palestinos conferia-lhe um prestígio macabro, a ponto de sua tecnologia de vigilância, seus veículos blindados de repressão à população terem sido exportados para muitos países.

    Foi um fiasco para o exército israelense. Em geral, os especialistas da área apontam, de forma central, uma falha do aparato de inteligência, como o Mossad. Em nossa opinião, esse não foi o único fracasso. A reação dos soldados da brigada que vigia Gaza foi facilmente derrotada pelos militantes do Hamas. Segundo as informações divulgadas, muitos oficiais e até coronéis e generais foram encarcerados. A reação do restante do exército foi tardia e lenta. Dois fatores podem estar por trás dessa derrota: 1) toda ocupação colonial leva a um desgaste das tropas envolvidas e gera uma crescente incapacidade de combater – como ocorreu com as tropas francesas na Indochina e na Argélia, e com as norte-americanas no Vietnã, cuja atividade cotidiana resume-se a reprimir, de forma perversa e covarde, uma população desarmada; 2) quando os oprimidos se rebelam e se enfrentam a essas tropas, estas perdem a confiança em suas forças e se assustam com a reação dos rebeldes oprimidos. No caso dos soldados sionistas em Gaza, os vídeos gravados mostram exatamente esse tipo de reação das tropas da guarnição encarregada da repressão.

    Mas o que nos dizem – e o que aparece de forma avassaladora nos meios de comunicação – é que tudo se tratou de um ataque terrorista do Hamas contra a população civil de Israel. Não há outra causa senão a “ferocidade assassina” desta organização.

    E, como aconteceu na guerra do Iraque e em muitas outras no Oriente Médio, foram disseminadas uma série de notícias falsas. A falsa história da suposta decapitação de bebês foi divulgada pelo presidente dos EUA, Biden, que chegou a mentir dizendo ter visto essas fotos, quando se tratava apenas de uma invenção de um blogueiro ultradireitista israelense, sem qualquer comprovação. Isso foi desmentido, mas sem grande destaque. Vídeos divulgados como evidência de “ataques a civis” mostravam, na verdade, um ataque a uma base militar israelense na qual soldados surpreendidos tentaram se esconder de uma coluna do Hamas, que acabou invadindo-a e, posteriormente, aqueles mesmos soldados foram encontrados mortos. Em outras palavras, tratava-se de uma batalha militar. E as invasões de vilarejos e bairros nas cidades israelenses vizinhas a Gaza são apresentadas como ataques premeditados contra civis, quando, em uma guerra assimétrica como a travada entre o Estado de Israel e a Faixa de Gaza – cercada e sistematicamente bombardeada – os vilarejos e cidades próximas a Gaza fazem parte do dispositivo militar do ocupante, ou seja, de Israel, e, portanto, devem ser enfrentados quando este realiza uma incursão militar em resposta ao cerco, constituindo objetivos militares. Ao menos é assim que Israel tratou, durante décadas, tanto a própria Gaza quanto a Cisjordânia, que é fonte de toda violência. Contudo, esses mesmos meios de comunicação não dizem uma palavra de condenação quando colonos e o exército sionista invadem vilarejos, destroem as casas da população palestina e matam seus habitantes.

    O surpreendente é que, para os meios de comunicação, bem como para os governos e partidos dos EUA e da UE, os bombardeios massivos sobre Gaza – que matam um número impressionante de civis – são vistos apenas como “uma retaliação” por parte de Israel! Portanto, segundo esses narradores, estão justificados. Em outras palavras, seguem o mesmo roteiro do ministro da Defesa israelense, que classificou os habitantes de Gaza como “animais humanos”. O máximo que fazem alguns é sugerir “contenção” aos genocidas.

    Os meios de comunicação não mostram nada do sofrimento das crianças palestinas, nem antes nem depois dos ataques. Não dão importância a fatos como o dos nove funcionários da ONU em Gaza, que foram assassinados pelo exército israelense ao tentarem socorrer os feridos. Mas Israel declara que todos os seus alvos são militantes terroristas que “se escondem nas casas dos palestinos” e, portanto, qualquer alvo residencial ou mesmo instalações médicas e escolas em Gaza integram seus objetivos de guerra.

    Assistimos, em tempo real, através dos meios de comunicação mundiais e das redes sociais, a cenas idênticas à Nakba de 1948. O governo israelense, não satisfeito com o deslocamento forçado de mais de um milhão de pessoas em poucas horas, declara que devem sair do território imediatamente para não serem alcançados por seus bombardeios. Chegou até a ordenar o bombardeio de um comboio de palestinos que tentava sair do Norte para chegar ao Sul da Faixa. E o que dizem os meios? Faz parte da “contraofensiva” de Israel, que, em princípio, estaria justificada, não exibindo fotografias nem imagens das atrocidades e dos assassinatos de civis palestinos em Gaza.

    Há outra omissão vergonhosa: televisão e jornais estão inundados de declarações de entidades judaicas sionistas e vinculadas a Israel, todas defendendo os ataques do Estado racista de Israel. Afirmam até que um Estado que nasceu de uma limpeza étnica, que mantém uma ocupação por décadas e que trata os palestinos como cidadãos de segunda classe ou prisioneiros em suas próprias cidades, é a única democracia no Oriente Médio!

    Mas não dão espaço à voz dos movimentos judaicos que se opõem à linha genocida de Israel. Alguns deles se manifestam com firmeza, como o Jewish Voices for Peace (Vozes Judaicas pela Paz) dos Estados Unidos, que conta com mais de 440 mil membros e simpatizantes. Movimentos como esse já vinham fazendo campanha contra o apartheid israelense e o racismo colonial. E, neste momento, mantiveram sua postura frente ao processo em Gaza. A seguir, reproduzimos um trecho do comunicado do Jewish Voices for Peace (JVP) de 7/10/2023:

    “O governo israelense pode ter acabado de declarar guerra, mas sua guerra contra os palestinos começou há mais de 75 anos. O apartheid e a ocupação israelenses – e a cumplicidade dos Estados Unidos nessa opressão – são a fonte de toda essa violência. A realidade é montada conforme o relógio é acionado.

    «Durante o ano passado, o governo mais racista, fundamentalista e de extrema direita da história de Israel intensificou impiedosamente sua ocupação militar sobre os palestinos em nome da supremacia judaica, com expulsões violentas e demolições de casas, assassinatos em massa, ataques militares a campos de refugiados, cercos implacáveis e humilhações diárias. Nas últimas semanas, as forças israelenses atacaram repetidamente os lugares muçulmanos mais sagrados em Jerusalém. Durante 16 anos, o governo israelense sufocou os palestinos em Gaza sob um bloqueio militar draconiano – aéreo, marítimo e terrestre –, encarcerando e matando de fome dois milhões de pessoas e negando-lhes assistência médica. O governo israelense rotineiramente massacra palestinos em Gaza; crianças de dez anos que vivem em Gaza já estão traumatizadas por sete grandes campanhas de bombardeios em suas curtas vidas.

    Nos Estados Unidos, pesquisas recentes mostram que mais de 50% da juventude judaica do país não se sente identificada com Israel – dado que assusta os líderes sionistas locais e a Organização Sionista Mundial. Existem outros movimentos que reúnem esses setores com movimentos progressistas e comunidades de origem árabe ou muçulmana nos EUA, como demonstra a carta escrita pelo Comitê de Solidariedade com a Palestina de Graduados de Harvard, na qual os estudantes “responsabilizam integralmente o regime israelense por toda a violência em curso”, carta essa que foi assinada por 33 grupos estudantis. O fato de ter sido Harvard, a universidade de elite do país, surpreendeu sua cúpula. A reitoria posicionou-se, diferenciando-se da carta, assim como vários ex-alunos – hoje executivos de grandes empresas ou ministros no governo norte-americano – também se manifestaram contrários. Ainda na Universidade de Nova York (NYU), os estudantes manifestaram-se com uma declaração contra o genocídio de Israel.

    Os meios também não dão cobertura às protestos dos judeus ultrarreligiosos que vivem em Jerusalém, no bairro Mea Shearim, que são antissionistas e colocaram uma bandeira palestina em seu templo para demonstrar repúdio ao massacre. Por isso, foram duramente reprimidos, espancados pela polícia israelense, e seu templo foi invadido para retirar a bandeira palestina. 1

    Somente existe uma verdade e um ponto de vista válido para os meios e para o establishment imperialista: o do governo genocida de Netanyahu e seu defensor incondicional – o imperialismo norte-americano, através do governo de Biden.

    Qual é a situação dos palestinos na Cisjordânia?

    Na Cisjordânia existem três áreas: uma destinada aos palestinos e outras para colonos judeus, que atualmente somam 750 mil. Estes têm total liberdade para entrar e sair tanto na Cisjordânia quanto em Israel. Jerusalém Oriental, que segundo a própria partição de 1948 deveria pertencer ao Estado palestino que se formaria, foi anexada em 1967 à Jerusalém judaica sob controle sionista. Para os palestinos, circular de uma área para outra só é possível através de inúmeros checkpoints (postos de controle), onde frequentemente passam horas submetendo-se a revistas humilhantes pelas tropas israelenses. Os colonos exibem comportamentos abertamente racistas e agressivos em relação aos palestinos, e são protegidos pelo exército. O mesmo ocorre com os palestinos que vivem na cidade de Jerusalém.

    Um dos argumentos falaciosos defendidos por apoiadores de Israel nos meios de comunicação é que se trata de uma “guerra contra o Hamas”, e não contra todos os palestinos. Portanto, a questão estaria restrita a Gaza. Essa é outra mentira. A guerra contra os palestinos foca hoje em Gaza, mas, ao mesmo tempo, impõe à Cisjordânia um cerco semelhante e assassinatos de civis. Esse processo já vinha ocorrendo há muito tempo, mas agora se multiplicou de forma macabra desde o dia 7 de outubro. Segundo informações de agências de notícias, da Meia Lua Vermelha (Cruz Vermelha dos muçulmanos) e de organizações de direitos humanos, de 7 a 14 de outubro, 55 palestinos foram assassinados e 1.100 feridos na Cisjordânia por ataques de colonos sionistas, com a cumplicidade ou participação das Forças Armadas israelenses. Todos eram civis – famílias que se deslocavam de uma cidade para outra, trabalhadores ou pequenos comerciantes que tentavam abrir seus negócios. Até um cortejo fúnebre foi atacado a tiros, matando, no mínimo, quatro palestinos. Em nenhum desses ataques havia militantes do Hamas. Todos tinham em comum o fato de serem árabes palestinos. Essa é mais uma demonstração de que a política é de guerra e expulsão de todos os palestinos.

    O Estado racista de Israel nasceu em 1948 com a Nakba – a limpeza étnica que expulsou 750 mil árabes de suas terras. Mas, por não ter conseguido se livrar completamente dos palestinos, continuou suas ações durante esses 75 anos. A partir de 1967, com a ocupação de Gaza e da Cisjordânia, manteve seus habitantes submetidos a um regime militar, que os tratava como prisioneiros e se beneficiava de seu trabalho escravo, sem lhes conceder qualquer direito. Ao mesmo tempo, colonizava novas terras, expropriando os palestinos – seja em Jerusalém Oriental ou na Cisjordânia – com colonos judeus.

    Devido à resistência permanente, às duas Intifadas (1987–1992 e 2000) e à persistente resistência, sua estratégia mudou. Agora, diante da resistência armada, essa estratégia tornou-se explícita: a limpeza étnica de todo o território da Palestina. Para eles, ou os palestinos abandonam a Palestina ou morrem. Por isso, vê-se os colonos da Cisjordânia gritando: “Morte aos árabes” e agindo de acordo com suas palavras – ou seja, executando pogroms, tal como fizeram os antissemitas contra os judeus na Europa oriental, como em Huwara e Turmus Ayya, na Cisjordânia.

    Netanyahu apresentou um “novo mapa” da região na sessão da ONU realizada no passado mês de setembro. Nele, não existe mais a Palestina, nem mesmo territórios ocupados. Existe apenas Israel, que ocupa todo o território entre o Mar Mediterrâneo e o rio Jordão.

    Uma analogia com a resistência judaica contra os nazistas: o Levante do Gueto de Varsóvia

    Após a invasão nazista à Polônia em 1939, o ocupante alemão decidiu concentrar os judeus de todo o país em uma pequena região da capital, que passou a ser conhecida como Gueto de Varsóvia. 2 Os nazistas fizeram isso para controlá-los como se estivessem presos – havia muros e cercas ao redor do gueto, e somente aqueles que possuíam uma determinada carteira poderiam sair, com o intuito de utilizar seu trabalho de forma semelhante à escravidão. A comunidade judaica na Polônia era a maior dentre os países ocupados por Hitler.

    Essa política nazista para com os judeus poloneses concentrados em Varsóvia durou até que decidiram buscar a “solução final” em 1942: construir campos de concentração com câmaras de gás para exterminar todos os judeus. A partir daí, capturaram os que ainda sobreviveram no gueto e enviaram-nos para a morte. Dos primeiros 380 mil residentes no início do gueto, cerca de 300 mil foram enviados para a morte entre 1942 e 1943.

    Quando perceberam que esse seria o destino de todos, os judeus sobreviventes decidiram resistir armados, apesar de estarem em enorme inferioridade militar e logística. Formaram uma organização de resistência unida, a ZOB, e organizaram um levante em abril de 1943 que conseguiu enfrentar os soldados alemães por mais de 30 dias, causando baixas importantes às tropas nazistas. Eles sabiam que havia uma decisão iminente de levá-los e matá-los nas câmaras de gás dos campos de extermínio nazistas. Optaram, então, por resistir e morrer lutando. Os nazistas chamavam os combatentes judeus de “terroristas”.

    Como afirma Haidar Eid, professor da Universidade de Al Aqsa em Gaza, em seu artigo Gaza 2023: Nosso momento semelhante ao Levante do Gueto de Varsóvia 3, uma clareza sobre o destino que Israel impôs aos palestinos de Gaza – e também da Cisjordânia – levou-os a adotar o mesmo tipo de decisão: “Em Gaza e em Jenin, recusamo-nos a marchar para as câmaras da morte de Israel. Em Gaza e em Jenin – de fato, em toda a Palestina histórica – deixamos absolutamente claro que resistiremos ao regime dos colonos, ao regime colonial e de apartheid entre o rio Jordão e o Mar Mediterrâneo”. 4

    É nesse contexto que se deve compreender a luta armada desencadeada pelos residentes palestinos.

    Do lento genocídio ao extermínio

    O que está ocorrendo hoje, diante da resistência armada palestina e do fracasso da tentativa sionista de escravizar o povo palestino e obrigá-lo a viver para sempre em condições infra-humanas, é a decisão de Netanyahu de arrasar Gaza, transformando o genocídio lento dos últimos 30 anos em genocídio direto por meio de bombardeios contra todos os habitantes e cortando definitivamente o fornecimento de água e energia.

    O governo israelense fez um apelo cítrico a todos aqueles que queiram sobreviver para que abandonem a Faixa imediatamente, enquanto Israel bombardeia a passagem entre Gaza e o Egito, o único ponto de saída que permanece aberto. Como denunciaram os médicos da Cruz Vermelha, os funcionários da missão da ONU em Gaza, e a própria Organização Mundial da Saúde, vinculada à ONU, trata-se de uma ordem impossível de cumprir para uma população de mais de um milhão de pessoas, equivalendo a uma condenação à morte de doentes e feridos hospitalizados. Em outras palavras, sob o pretexto de “realizar retaliações” contra os ataques do Hamas, Israel condena à morte toda a população residente, justificando a destruição dos “terroristas”. De forma semelhante ao que Hitler fez contra os judeus a partir da “solução final” de 1942, que, diante da revolta, decidiu acabar com o Gueto de Varsóvia destruindo-o.

    Com o apoio de governos ocidentais, da esmagadora maioria dos meios de comunicação e da cumplicidade de governos que se declaram “amigos dos palestinos”, como Lula no Brasil, Israel argumenta que tem “direito à autodefesa” para declarar a guerra e executar um massacre de todo um povo em Gaza e na Cisjordânia. O representante israelense na ONU irritou-se quando alguns embaixadores sugeriram que ele tentasse salvar os civis palestinos em Gaza. Ele reafirmou que não era o momento de se preocupar com os “danos colaterais”, mas sim de eliminar o Hamas, mesmo que isso significasse demolir e destruir completamente a cidade. Ou seja, não lhes importam os mais de 2,2 milhões de habitantes, entre os quais, obviamente, inclui-se uma grande maioria de civis – dos quais mais da metade são mulheres e crianças. E esse governo tem o cinismo de se fazer de vítima e chamar o Hamas de terrorista. Outra característica copiada do regime nazista: a propaganda mentirosa de Goebbels, cuja frase definidora era: “uma mentira repetida inúmeras vezes se torna verdade.”

    O governo conta entre seus ministros defensores de matar ou expulsar os árabes de todo o território palestino. Como Itamar Ben Gvir, que já foi processado como terrorista inclusive pelos tribunais israelenses, mas foi liberado e hoje é ministro da Segurança Nacional. Ele declarou publicamente que é preciso matar todos os árabes, de maneira tão explícita que até os liberais israelenses o classificam de “fascista”. Ou seu ministro da Defesa, Yoav Gallant, que declarou abertamente que manterá um cerco total sobre Gaza e cortará todos os suprimentos de água, combustível e energia, pois assim destruirá o Hamas – e, obviamente, matará dezenas, senão centenas de milhares de civis, especialmente crianças. Isso constitui um crime de guerra perante o Tribunal Penal Internacional (TPI). A Anistia Internacional e a Human Rights Watch já classificaram o regime israelense como apartheid.

    Netanyahu é um sucessor político de Vladimir Jabotinsky e Menachem Begin, que foram dirigentes da ala abertamente fascista do sionismo e mantinham seu próprio grupo terrorista, chamado Irgun Zvai Leumi, que atacava os árabes tratando-os como um povo inferior. Esse grupo foi responsável pelo massacre de Deir Yassin, no qual assassinaram todos os palestinos que puderam, a fim de criar um pânico que levasse os árabes a se retirarem da Palestina, como parte da Nakba. 5

    Portanto, é de um cinismo abjeto que Netanyahu, que hoje representa o nazi-fascismo sionista, afirme estar vingando o assassinato em massa de judeus por parte do nazismo, enquanto pratica a mesma metodologia que Hitler. A diferença em relação ao nazismo original é que, desta vez, o alvo são os palestinos. Não surpreende o cinismo de Netanyahu, mas o maior cinismo provém do coro formado pelos dois partidos norte-americanos – Democrata e Republicano –, pelo governo de Macron na França, por Scholz na Alemanha, e por Sunak na Inglaterra, que se posicionam publicamente ao lado desse genocida, projetando a bandeira israelense em seus edifícios simbólicos, como a Torre Eiffel em Paris ou o Portão de Brandemburgo em Berlim. Assim como a União Europeia, alinham-se apoiando “o direito de Israel à autodefesa”. Ou seja, os fascistas sionistas querem licença total para liquidar o povo palestino – e estão conseguindo.

    Solidariedade com a resistência palestina

    O repúdio à ação genocida de Israel e a essa campanha para demonizar os palestinos, qualificando o Hamas de “terrorista” e classificando todos aqueles que apoiam a resistência como terroristas ou simpatizantes de terroristas, está gerando indignação e importantes manifestações.

    Houve muitas manifestações em diversos países, sendo as maiores no Oriente Médio – como na Jordânia, Iêmen, Iraque e Egito. Na Jordânia, cantaram “somos Hamas, se o Hamas é terrorista, somos terroristas”. Também ocorreram mobilizações nos Estados Unidos, Inglaterra, França, em outros países asiáticos como a Coreia do Sul, e na Austrália e Indonésia. Apesar do apoio incondicional a Israel por parte de governos como o de Macron na França e Sunak na Grã-Bretanha, a resistência do movimento não se abateu e, mesmo reprimida, saiu às ruas contra o genocídio do povo palestino.

    Em Paris, a polícia utilizou gás lacrimogêneo e canhões de água para dispersar uma manifestação em apoio aos palestinos, depois que o governo francês proibiu qualquer protesto deste tipo. Apesar da proibição, milhares de manifestantes se reuniram em Paris, Lille, Bordeaux e outras cidades na quinta-feira, 12 de outubro.

    Na Inglaterra, a polícia britânica advertiu que qualquer pessoa que demonstrasse apoio ao Hamas – organização considerada “terrorista” pelo governo britânico –, ou que se desviasse da rota, poderia ser presa. Mesmo assim, milhares de pessoas saíram às ruas em Londres, Manchester, Liverpool, Bristol, Cambridge, Norwich, Coventry, Edimburgo (Escócia) e Swansea.

    Na Alemanha, Scholz disse aos deputados do Bundestag (Parlamento alemão) que a segurança de Israel era uma política do Estado alemão. E proibiu manifestações pró-Palestina.

    Agora, com a continuação da guerra genocida de Israel contra Gaza, abre-se um espaço para intervir com coragem nos organismos do movimento sindical democrático, propondo que se pronunciem contra o genocídio sionista em Gaza e convocando manifestações de apoio em todo o mundo. Apoiamo-nos no BDS, um amplo movimento de boicote a qualquer investimento e intercâmbio artístico e esportivo com Israel, até que termine o regime do apartheid – seguindo o exemplo do boicote internacional contra a África do Sul durante as décadas de 1970 e 1980.

    E clamamos pelo apoio à resistência palestina, que é a forma direta de enfrentar o Estado racista de Israel e seu regime de apartheid. Como se demonstrou em mais de 20 anos dos acordos de Oslo, o caminho do “diálogo”, da “paz” e da não violência não resultou em nada concreto, exceto em desarmar a luta palestina e criar autoridades que não têm qualquer poder, exceto o de obedecer às ordens do colonizador – como sempre ocorreu com a PA [Autoridade Palestina] de Mahmoud Abbas.

    Qualquer alternativa que busque um caminho intermediário, do tipo “dois Estados”, somente paralisa o movimento. Chegou a se tornar completamente impossível, em virtude da colonização sionista em toda a Cisjordânia.

    A saída é o fim do Estado racista de Israel e o surgimento de uma Palestina laica, democrática e não racista – uma Palestina livre, do rio ao mar –, como parte da luta socialista em todo o Oriente Médio.

    Nossas diferenças com o Hamas

    Apoiamos a resistência palestina porque é a forma direta e legítima de enfrentar e derrotar o apartheid sionista. E o Hamas esteve à frente daquele ato de resistência que abriu um caminho para o povo palestino. Nossas diferenças não se referem a se é justo empreender ações armadas contra o regime genocida sionista, como fizeram todas as revoluções coloniais contra seus opressores.

    Mas consideramos que a proposta que o Hamas apresenta como saída – a de um Estado Islâmico – é equivocada e excludente, afastando os setores palestinos seculares, democráticos e socialistas de seu projeto. O Hamas também adota uma política repressiva em relação à luta das mulheres e da comunidade LGBTQI+, como se observa no Irã. Portanto, sua gestão em Gaza, fundamentada nessas premissas, teve um efeito negativo para a necessária unidade e democratização do movimento palestino.

    Mas é fundamental apoiar a resistência palestina neste combate entre Davi e Golias – que hoje é liderado pelo Hamas. E não caímos nas armadilhas do imperialismo nem daqueles setores que se declaram democráticos e de uma parte da esquerda, que, por essas questões, retiram seu apoio à resistência palestina, cedendo à pressão do imperialismo e do sionismo ao aceitarem o argumento de que os palestinos são retrógrados enquanto Israel é avançado, justificando isso, por exemplo, com leis como a do casamento LGBTQI+. Nenhuma dessas medidas pode nos fazer esquecer que, hoje, Israel tem o objetivo de exterminar todo o povo palestino e que devemos estar ao lado da resistência palestina contra essa tentativa genocida.[5]

    Notas

    1. “A polícia israelense queria retirar as bandeiras palestinas do bairro judeu. Os judeus não permitiram e se enfrentaram com a polícia. A polícia israelense invadiu o bairro de Mea Shearim, onde vivem os judeus em Jerusalém, e tentou retirar as bandeiras palestinas. Os judeus não permitiram essa ação, se opuseram à polícia sionista, e a polícia agrediu brutalmente os judeus”. Publicado por Torah Judaism (Judaísmo da Torá), 11/10/2023. ↩︎
    2. Essa “prisão nazista a céu aberto” foi chamada de “gueto” em referência aos bairros onde, na Idade Média, os antigos reinos europeus obrigavam os judeus a se concentrar, a fim de controlá-los melhor e submetê-los a massacres (os pogroms) sempre que desejassem. ↩︎
    3. Publicado por Al Jazeera, 10/10/2023. ↩︎
    4. Jenin é uma cidade da Cisjordânia que abriga um campo de refugiados, notório por sua forte resistência aos massacres sionistas. ↩︎
    5. O Irgun chegou inclusive a explodir o Hotel King David em 1946, matando ingleses, árabes e até judeus durante o Mandato Britânico (para amedrontar os britânicos, visto que o Irgun era contra reservar qualquer parte da Palestina para os árabes). ↩︎
  • Perspectiva Marxista

    Este site pretende reunir os escritos que produzi durante mais de 50 anos de militância política revolucionária. São artigos, ensaios, livros, vídeos e lives sobre assuntos diversos, políticos e teóricos: cidadania e classe, materialismo histórico, reforma e revolução, crítica ao sionismo e ao Estado de Israel, autodeterminação nacional, moral revolucionária, opressões, história do movimento operário e outros.

    Muitos temas são abordados de um ponto de vista teórico, mas essa produção sempre esteve estreitamente ligada e a serviço da militância política revolucionária da LIT e do PSTU do Brasil. Por isso, a maioria são escritos publicados na revista Marxismo Vivo, da qual fui um dos editores durante 23 anos, no site da LIT, no Centro de Formação Riazanov, no site e no canal do PSTU.

    Como são escritos e debates de diferentes épocas, resolvi agrupá-los por temas, identificando quando foram escritos, para facilitar a compreensão e a conexão entre os conceitos e conclusões de cada um deles.

    Espero que esses trabalhos sejam úteis aos novos militantes e ativistas, principalmente os mais jovens, que se aproximam das ideias socialistas, do marxismo e do trotskismo, e que os ajudem a intervir na luta de classes.

    José Welmowicki (Zezoca)

  • A invenção do povo judeu, de Shlomo Sand: uma obra demolidora do sionismo

    A invenção do povo judeu, de Shlomo Sand: uma obra demolidora do sionismo

    Existem inúmeros mitos na história, grandes falsificações que são transmitidas de geração a geração como se fossem verdades. Algumas dessas falsificações históricas têm um alcance mundial, como é o caso da natureza da população judaica que, motivada pelo sionismo, teria se deslocado para a Palestina e, numa ação de limpeza étnica, dado origem ao Estado de Israel.

    Por: José Welmowicki

    Se algum jornal ou revista europeu ou algum veículo da mídia norte-americana colocar o tema, ou se um professor universitário (pelo menos a maioria deles) de um desses países ensinar a um
    estudante qual a origem dos judeus, vai receber provavelmente a seguinte resposta:

    Os judeus são os descendentes diretos dos antigos hebreus, o povo que habitou a região da Judeia, o mesmo povo que criou a religião mosaica (de Moisés) ou Judaísmo, como é conhecida hoje. Eles foram expulsos pelo Império Romano por volta do ano 70 da era cristã (na chamada Diáspora) e, após uma longa jornada de quase 2 mil anos, retornaram à sua terra, a antiga Canaã bíblica, conhecida agora por Palestina. A partir desse retorno, fundaram o Estado de Israel.

    Essa “tese histórica” não passa de uma construção mítica pelo sionismo, mas é difundida como verdade. Tem defensores em toda a mídia e na quase totalidade dos partidos políticos dos países capitalistas, em particular dos imperialistas. Mas vem sendo colocada à prova devido aos crimes do Estado de Israel, os massacres genocidas que pratica, o racismo que alimenta e a permanente política de limpeza étnica que geram os protestos contra o apartheid e campanhas internacionais de boicote, como o BDS, que tem crescente apoio em todo o mundo.

    Para fazer frente a esses protestos e à indignação crescente contra o sionismo, os governos imperialistas defendem o Estado de Israel, alegando que são “exageros” ou más condutas de governos de um povo que foi perseguido, mas que está exercendo um direito “histórico legítimo”: o de voltar à sua terra ancestral e reconstruir seu Estado nacional. Enfim, seriam métodos equivocados em defesa de um direito, o direito do povo judeu de retornar à sua terra histórica.

    A invenção do povo judeu

    O historiador israelense Shlomo Sand fez uma pesquisa profunda sobre o tema e chegou à conclusão de que toda essa construção histórica não tem a menor base científica. E ainda mais impactante: ele apoia-se na própria historiografia judaica e na arqueologia israelense para demonstrar a falsidade dessa versão e chama, com toda a razão, esse conjunto de mitos de A Invenção do povo judeu, título de seu livro.

    Shlomo Sand é professor de História Contemporânea da Universidade Hebraica. Nasceu na Alemanha, num campo de refugiados, logo após a Segunda Guerra Mundial, em 1946. Emigrado aos dois anos de idade com seus pais para a Palestina, viveu toda sua vida posterior como israelense. Jovem ainda, teve de lutar na Guerra dos Seis dias (1967), em que Israel terminou de ocupar toda a Palestina. Desde aí, começou a questionar o caráter dessa guerra e o próprio sionismo. Daí veio sua decisão de investigar as raízes da ideologia sionista para verificar se tinha algum sentido a versão oficial sobre a justificação da colonização judaica na “Terra Prometida”.

    O livro de Shlomo Sand tem uma qualidade que dá grande valor às suas afirmações. Ao ser feito em Israel, ele pôde utilizar as descobertas arqueológicas israelenses, revelando algumas que contrariavam as versões oficiais e eram omitidas, desmistificando as fraudes com rigor científico e trazendo-as à luz da história e da arqueologia para derrubar esses mitos de forma corajosa e, ao mesmo tempo, séria e metódica. Vejamos os principais mitos que ele desconstrói.

    Os mitos

    1. O mito da Diáspora (dispersão): os judeus foram um povo que ocuparam aquela terra desde Abraão, passando por Moisés e, depois de dois exílios, da queda do Primeiro Templo pela invasão da Babilônia, e do Segundo Templo, já no Império Romano, Roma decidiu expulsar completamente esse povo da chamada Terra Santa, o que ocasionou a diáspora.

    Munido de farta documentação, Sand demonstra que não houve nada semelhante, sequer vagamente, a essa pretendida expulsão. Nem era a política dos romanos que, embora dominassem com extrema crueldade, escravizassem os povos, prendessem os rebeldes eventuais, não tinham como prática expulsar povos inteiros. Mais ainda, não há registros dos historiadores da época, dos comentaristas, sobre essa suposta expulsão, mesmo depois das revoltas dos Celotes e de Simon bar Kochba.

    Por outro lado, há registros de comunidades judaicas anteriores, que viviam nas imediações da Palestina, como por exemplo na Babilônia (império que ocupou a Mesopotâmia, onde fica o atual Iraque), e em Alexandria (atual Egito), desde antes desse período e que não fizeram nenhum esforço para “retornar a Sião”. Não existe nenhuma prova – antes de surgir o movimento sionista em fins do século XIX – de que houvesse uma comunidade judaica que, por séculos, quisesse voltar.

    O sionismo assumiu a versão herdada de historiadores como Heinrich Graetz sobre uma suposta perenidade de um sentimento judaico por uma volta à Palestina e aproveitou-se do mito para sustentar sua tese de ser um movimento de libertação nacional, como parte de uma série de movimentos libertadores para trazer de volta esse povo para o que eles proclamavam ser sua antiga terra (Zion ou Sion). Ou, como eles formularam: “voltar a Sião”.

    1. A História Judaica é uma confirmação dessa descendência dos judeus em relação a seus antepassados hebreus.

    Sand demonstra que a assim chamada História Judaica não passa de uma versão do Velho Testamento. Até o século XIX, não havia uma historiografia judaica propriamente dita. Os criadores da História Judaica são bem recentes. Heinrich Graetz, judeu alemão, Simon Dubnow, russo, e Salo W. Baron, norte-americano, já no século XX, criaram o que se convencionou chamar uma História Judaica. Essa foi a fonte da historiografia sionista posterior.

    Sand resume o conteúdo dessas obras e explica como seus autores se limitam a tomar os relatos bíblicos e dar-lhes um caráter histórico, retirando-lhes alguns aspectos mágicos, ou sobrenaturais. Quando suas assertivas se chocam com a realidade, explicam suas incoerências e contradições alegando que as descobertas históricas e arqueológicas são irrelevantes ou considerando os personagens como expressão simbólica de um fato, e continuam a aceitar os relatos bíblicos que os envolvem como simbólicos de tais fatos dados como verdade.

    Suas teses simplesmente tentam dar às versões bíblicas um rigor histórico, laico, pretensamente científico: assim, esses historiadores aceitam todo o relato bíblico sobre a ida dos hebreus ao Egito e sua fuga (o êxodo) com Moisés à frente como um fato, embora sem os milagres. Por isso, aceitam a existência de Moisés e do êxodo, mesmo sabendo que a versão de que houve um êxodo em massa dos hebreus para Canaã (nome bíblico da Palestina), naquele momento, era inviável (um povo inteiro passar 40 anos no deserto!) e sem sentido, pois a Palestina também estava ocupada pelo império dos Faraós.

    Aceitaram como um fato a existência de dois grandes reis, Davi e Salomão, e a divisão posterior em dois reinos, Judá e Israel. As descobertas não confirmam essa versão bíblica. Quando algum historiador crítico chamava sua atenção para as incongruências dos relatos e como não se coadunavam com as pesquisas existentes e as descobertas arqueológicas, eles acusavam a esses críticos de mal interpretar e até de ter uma visão antissemita.

    1. O uso da Bíblia como fonte de informações

    Sabe-se que o estudo e a prática da arqueologia sempre foram muito difundidos em Israel, a ponto de tornarem-se uma verdadeira mania entre alguns dirigentes políticos, como Ben Gurion. A arqueologia serviu, primeiramente, para afirmar os mitos do sionismo. Porém, em seguida, descobertas inconvenientes começaram a aparecer e a jogar por terra as supostas verdades: por exemplo, que existiram os dois reinos, Judá e Israel. Outra dúvida é se existiu, de fato, a fuga do Egito, o chamado êxodo, tão celebrado na religião e no cinema, com filmes famosos como Os 10 Mandamentos. Para desespero dos sionistas, as pesquisas não confirmavam essa versão bíblica. As ruínas mostraram que não havia provas da existência do Primeiro Templo 1 e destruiu a pretensa história de um povo que sempre esteve ligado à terra prometida (Sião) e cujo destino era retornar a ela. Em outras palavras, a própria arqueologia israelense, tão reverenciada, na verdade, mostrou que as alegações da Bíblia não eram uma repetição, embora com acréscimos “mágicos”, de uma história real de um povo, mas de relatos míticos que nem sequer estavam associados à existência de muitos dos personagens descritos.

    Quem escreveu o Velho Testamento?

    O mais provável é que haja uma descontinuidade bem grande e que, quando ergueram o Segundo Templo, por volta do século VI a.C., tenha havido um curto período de recomposição quando Esdras e Neemias 2, vindos da Babilônia, foram a Canaã. Embora haja discussões sobre a data exata, o mais provável é que quem escreveu o Velho Testamento tenha vivido entre os séculos VI e V a.C., e a partir dessa data, imaginou um relato do que se passou em todo aquele passado remoto, desde a origem hebraica, com Abraão, depois José, Moisés etc. Ou seja, a história judaica tal como se conhece, ao basear-se na Bíblia, não tem nenhum rigor histórico. As descobertas incômodas eram deixadas de lado pela arqueologia e pela historiografia oficial ou justificadas com argumentos insustentáveis pelos ideólogos do Estado de Israel para adaptá-las, forçadamente, ao relato bíblico dado como fonte histórica a priori.

    1. Os judeus de hoje são todos descendentes dos antigos hebreus que tiveram de se exilar após a diáspora.

    Para os historiadores oficiais da chamada História Judaica e para os sionistas, a diáspora teve como consequência o espalhamento dos judeus pelos outros continentes, distantes de sua terra pela qual nunca deixaram de sentir um desejo de retorno. Quando os historiadores sionistas falam em diáspora, partem do pressuposto de que esses judeus, supostamente expulsos no século I, teriam continuado a ser um povo, ou seja, eram a mesma etnia que mantinha, a todo custo, sua cultura e sua religião em outras terras, quando não era obrigada a converter-se, outro mito desmascarado por Sand.

    Na verdade, além de terem vários de seus fieis convertidos a outras crenças e culturas, no que é chamado pelos próprios religiosos judaicos de “assimilação”, o judaísmo também era proselitista, ou seja, seus defensores convertiam grupos e povos ao longo de sua trajetória. Há registros de comunidades e reinos inteiros convertidos ao judaísmo em várias regiões, como os reinos berberes da tribo Djeraoua [habitantes de Aurés, região no leste da Argélia, N. do T.]. A existência de um reino berbere judaico e de sua famosa rainha Kahina prova que a expansão proselitista chegou à África. No livro de Sand, há farta informação sobre esse processo de conversão de comunidades ao judaísmo.

    Na Ásia, na própria península arábica, houve um reino nabateu de fé judaica até o ano 106. Antes da ascensão do Islã, os judeus instalaram-se em cidades como Yathrib (depois rebatizada como Medina). Há inclusive a hipótese de que o monoteísmo judaico tenha influenciado o estabelecemento das bases espirituais que permitiram a ascensão do Islã, o que refreou a expansão do judaísmo. A maior prova dessa presença do judaísmo na área foi o reino de Himiar (nome de uma tribo da região) no atual Iemen, que durou do final do século IV ao século VI.

    Mas houve um reino de maior influência sobre o futuro judaísmo, que provavelmente gerou as numerosas comunidades judaicas polonesa, russa, romena etc. Esse reino foi o dos khazares, que chegou a ter uma extensão enorme, indo das estepes vizinhas do Volga e norte do Cáucaso até o mar Negro e o mar Cáspio. Em seu apogeu, chegou até Kiev, na Ucrânia, e à Crimeia, no sul, estendendo-se do alto Volga até a Geórgia atual. Sua conversão, por um rei chamado Budan, data do século VIII. O reino khazar agregou várias etnias, tais como búlgaros, alanos, eslavos, magiares. Durou até o século XI, destruído após sucessivas derrotas ante os mongóis e outros reinos ucranianos e russos.

    Desprezada pela historiografia judaica oficial, pois também desmente a ideia de que os judeus europeus do século XX eram descendentes dos hebreus da Terra Prometida, a história dos khazares dá a chave para entender a constituição étnica de boa parte dos judes europeus. Há vários documentos que atestam a importância desse reino para a formação das comunidades judaicas da Ucrânia, da Lituânia e da Polônia e para a formação dos ashkenazis 3 em geral. Mesmo o russo Simon Dubnov, um dos principais historiadores da História Judaica, reconheceu a importância desse reino e que ele era parte da “história do povo judeu”.

    O mesmo fez Abraham Polak, historiador sionista que escreveu um livro dedicado ao tema, Khazária, publicado em 1951. Mas esse reconhecimento durou até a fundação de Israel. Depois disso, houve a necessidade de “adequar a história” aos postulados sionistas. Aí reside o problema: os ashkenazim formam a maioria das comunidades judaicas no mundo hoje e foram a base para a ascensão do sionismo. Era muito incômodo reconhecer a existência de um povo de origem distinta à dos hebreus da Terra Prometida e que tivesse um papel decisivo na formação das comunidades judaicas da Europa e dos ashkenazim em especial e no próprio movimento sionista.

    Sand relata que, de 1951 até a edição de seu livro, nenhuma publicação em hebraico foi feita sobre os khazares, nem mesmo a reedição do livro de Polak. O fundamental para o establishment sionista era a necessidade de tirá-lo de cena, fazer com que esse reino de um povo convertido ao judaísmo fosse esquecido.

    Para isso, o sionismo teve a ajuda do stalinismo. Na década de 1920, houve uma série de pesquisas sobre os khazares na União Soviética, mostrando as raízes judaicas desse reino e seu papel na formação da Rússia.

    Nos anos 1930, Stalin, que controlava a pesquisa histórica e a censurava com mão de ferro, moldando-a de acordo a suas necessidades políticas, condenou essas pesquisas, pois queria negar a outras culturas que não a russa um papel de importância, e proibiu a publicação de materiais sobre esse reino e seu papel na origem da nação. Os historiadores tiveram de se autocriticar ou se silenciar.

    Em 1976, o famoso escritor Arthur Koestler, ex-comunista e sionista militante, escreveu um livro sobre os khazares, A 13ª tribo. Esperava, com isso, negar a origem racial dos judeus e deixar sem argumento os antissemitas, ao demonstrar que os judeus não pertenciam a uma raça, e eram uma fusão de várias origens étnicas. Mas os sionistas não podiam tolerar tal desmentido a seu postulado do “povo eleito que retorna à sua pátria”. O embaixador de Israel na Grã-Bretanha tachou essa publicação de “uma ação antissemita subvencionada por palestinos”. A Organização Sionista Mundial cobriu o escritor de insultos e mobilizou professores como Zvi Ankori, que alegou que a tese era “prejudicial ao Estado de Israel”.

    A versão oficial sionista era a de que a comunidade ashkenazim provinha dos hebreus através de um largo percurso: seria procedente da Alemanha que, por sua vez, viria da Itália, descendentes dos hebreus que haviam sido levados à capital do Império Romano na Idade Antiga.

    Mas, como nota Sand, é difícil aceitar essa versão: todas as informações existentes comprovam ser minúscula a comunidade judaica alemã no início da Idade Média, supostamente originada dos hebreus. Como essa pequena comunidade poderia ser a origem dos judeus da Europa Oriental?

    Os judeus da Europa na Idade Média, e até hoje, mesmo com o genocídio nazista, que atingiu fundamentalmente os ashkenazim, agrupam cerca de 75% a 80% de todos os judeus do mundo. A Europa Oriental, na chamada Terra do Iídiche 4, foi origem de uma série de movimentos culturais e artísticos, políticos e científicos, com a participação de judeus ashkenazim. O iídiche era o dialeto falado pelos judeus da Europa Oriental, mas o sionismo baniu essa língua e impôs o hebraico como língua oficial.

    Uma pesquisa mais detalhada sobre os hábitos culturais da enorme comunidade judaica da Europa Oriental indica uma proximidade muito grande com os não judeus de seus países, sejam polacos, ucranianos, lituanos, romenos ou russos. O que indica ser muito mais provável que a origem da maioria dos askenazim seja a dos khazares convertidos, obviamente em combinação com as etnias da região. Mas não há como demonstrar que a origem de toda essa comunidade
    da Europa Oriental venha dos hebreus.

    Conclusão: a ironia da história

    Como se sabe, para a ideologia sionista, a volta a Sião significava retomar uma terra que tinha uma população concreta, os palestinos. Por isso, era necessário justificar essa solução como natural, legítima. Essa foi a razão para criar o famoso slogan: “Uma terra sem povo para um povo sem terra”.

    O mais provável é que os descendentes dos antigos judeus, habitantes da então Judeia, não sejam os que hoje reivindicam essa identidade de sionistas, mas sim os palestinos. Sand analisa a história das ocupações desse território desde o Império Romano e da destruição do Segundo Templo em Jerusalém. O Império Romano ocupou a Palestina desde esse momento e, com a divisão em dois impérios, um deles, o Império do Oriente ou Império Bizantino, manteve o controle da Palestina até o século VII. Esse império cristão era extremamente opressor contra as demais religiões. Já a ocupação pelo Império Muçulmano abriria a possibilidade para os crentes de outras religiões – em especial as monoteístas – aderissem e, inclusive, tivessem regalias em relação a impostos sobre os não crentes.

    É muito plausível que uma boa parte dos “judaístas” tenha optado por aderir a essa nova religião monoteísta e mais integradora que a dos cristãos bizantinos.

    O mais incrível é que os primeiros sionistas que chegaram à Palestina no final do século XIX e início do século XX eram bem conscientes dessa possibilidade e, por isso, sonharam inclusive com a adesão dos camponeses locais, os felás, ao projeto sionista.

    Israel Belkind, que emigrou em 1882, dizia que os palestinos deviam ser descendentes dos antigos judeus e que apenas a elite havia deixado a terra na época da revolta de Bar Kochba. Portanto, os sionistas deviam buscar trazê-los para o projeto do Estado judeu.

    Borochov, fundador do Poalei Zion, origem da assim chamada esquerda sionista, afirmou em 1905:

    «A população autóctone do país de Israel [Palestina, na sua fonte original] é mais próxima dos judeus por sua composição racial que qualquer outro povo e até mais que outros povos ‘semitas’. Pode-se levantar a hipótese muito plausível de que os felás do país de Israel sejam os descendentes diretos dos vestígios da implantação judaica em Canaã, com um leve complemento de sangue árabe, porque, como se sabe, os árabes, esses orgulhosos conquistadores, misturaram-se relativamente pouco com a massa dos povos que subjugaram nos diversos países» (apud Sand, p. 334).

    Ben Gurion, discípulo de Borochov, fundador e primeiro chefe de governo de Israel, de 1948 até os anos 1960, escreveu em 1918 um livro em parceria com Ytzhak Ben Zvi, outro fundador e presidente de Israel, cujo título era Eretz Israel no passado e presente.

    Nesse livro, dedicaram um capítulo à história dos felás, afirmando que «a origem dos felás não remonta aos conquistadores árabes que dominaram Israel e a Síria no século VII de nossa era. Os conquistadores não eliminaram a população de lavradores que ali encontraram. Expulsaram apenas os soberanos bizantinos estrangeiros. Não fizeram mal algum à população local. Os árabes não se preocupavam em fazer assentamentos. Os filhos dos árabes não praticavam mais a agricultura em seus locais de residência anteriores […]. Quando conquistavam novas terras, não procuravam novos terrenos para desenvolver uma classe de camponeses-colonos que, aliás, era quase inexistente entre eles. O que lhes interessava era de ordem política, religiosa e financeira: governar, difundir o Islã e arrecadar impostos” (apud Sand, p. 336).

    Em 1967, o historiador Abraham Polak, fundador do Departamento de História da Universidade de Tel Aviv, quis estudar a “origem dos árabes autóctones” e escreveu um ensaio em que assumia
    a possibilidade de que os palestinos fossem descendentes dos antigos judeus que habitavam a região e haviam sido integrados e convertidos ao longo de séculos, ainda mais numa região de passagem como era esse território situado entre o rio Jordão e o mar, onde várias populações se misturaram a seus conquistadores, vizinhos ou súditos. Mas Polak trabalhava com a hipótese de que os judeus do passado, em sua maior parte, converteram-se à religião muçulmana, e que uma continuidade demográfica teria sido mantida da Antiguidade aos dias de hoje.

    Polak quis fazer uma pesquisa para averiguar essa hipótese, mas não conseguiu nenhum apoio na universidade, pois sua pesquisa contrariava frontalmente a tese sionista. Se fosse provado que, em grande parte, os palestinos eram os verdadeiros descendentes dos “judaístas”, dos hebreus, todo o edifício sionista cairia por terra.

    Ou seja, existe uma hipótese levantada, até mesmo pelos primeiros sionistas, de que os palestinos podem ser os descendentes dos judeus de dois mil anos atrás. E a proibição a que essa hipótese seja investigada só se explica porque, caso fosse comprovada, se confirmaria uma ironia da história: que os sionistas não somente não têm a descendência que apregoam desses habitantes, mas também que eles teriam invadido a Palestina para expulsar os verdadeiros descendentes dos hebreus.

    Convidamos nossos leitores a ler o livro de Sand, aprofundar o estudo sobre os mitos e conhecer melhor esses fatos demolidores das teses sionistas.

    Notas

    1. Segundo o Velho Testamento, após um período de luta para constituir uma nação, os hebreus derrotaram vários inimigos.Tiveram como líderes os juízes (entre eles, Sansão, Samuel) e fundaram um reino único, o qual teve três reis, Saul, David e Salomão. Davi é conhecido pela fábula da luta contra o gigante Golias. Segundo esse relato bíblico, o rei Salomão construiu um templo suntuoso, que ficou conhecido como Primeiro Templo, que teria durado até o século VI a.C., pois teria sido destruído após sucessivas invasões de egípcios, assírios e, finalmente, seria arrasado pelos babilônios. Após a derrota dos babilônios pelos persas, o imperador Ciro da Pérsia permitiu o retorno de um grupo de hebreus, liderados por Esdras, um sacerdote, e Neemias, um nobre, que foram autorizados a reconstituir uma comunidade judaica e, em seguida, construíram um templo em Jerusalém, que ficou conhecido como o Segundo Templo. ↩︎
    2. Esdras era um sacerdote judeu que vivia na Babilônia e, autorizado pelo imperador persa, levou um grupo de fiéis para instalar uma comunidade judaica em Canaã. Com a ajuda de Neemias, um nobre, construíram um templo em Jerusalém, chamado de Segundo Templo. (J. W.) ↩︎
    3. Os judeus da era moderna dividem-se, em geral, entre os ashkenazim e os sefaradim. Os primeiros eram os judeus que habitaram a Europa Oriental e deram origem a comunidades judaicas numerosas no resto do mundo, como na América do Norte e na América Latina. Sua maior concentração até a Segunda Guerra Mundial era nos países da Europa Oriental, em particular nos de maioria eslava, como Polônia, Ucrânia e também na Lituânia, Hungria e Romênia. Os Ashkenazis desenvolveram uma cultura rica, com seu próprio dialeto: o iídiche. Os sefaradis são os judeus originários da Ásia, que se estabeleceram na Espanha e tinham um dialeto e uma cultura próprias, diferentes das dos ashkenazis. ↩︎
    4. O iídiche era o dialeto falado pelos judeus da Europa Oriental, onde se desenvolveu toda uma rica cultura, com sua literatura, música, etc., com autores como Scholem Aleichem. Com o advento do sionismo, ela foi relegada a segundo plano. O sionismo negou esse patrimônio cultural, alegando que “era o idioma da diáspora”. Os sionistas recriaram o hebraico, que era um idioma usado somente em orações, e o impuseram como o idioma oficial em Israel. ↩︎

    Publicado em março de 2015, na revista Marxismo Vivo N. 5.

  • As contribuições de Engels ao marxismo

    As contribuições de Engels ao marxismo

    Um amplo leque de correntes e intelectuais centra seus ataques no legado teórico de Friedrich Engels ao marxismo. Parte dessa campanha inclui muitos que se reivindicam marxistas. Diante do nocivo mecanicismo stalinista, propõem um “retorno” às origens do pensamento de Marx, como uma espécie de “vacina” contra tudo que possa parecer determinismo, econômico ou natural. Como afirma Nahuel Moreno: “todas as correntes revisionistas modernas atacam a Engels em nome do marxismo”. 1 Devido ao imenso prestigio de Marx, o alvo escolhido foi Engels, que lhes pareceu um alvo menos difícil de atingir, apesar de ser um dos pais do próprio marxismo.

    Por José Welmowicki

    Em seus últimos anos, Engels foi um deformador da obra de Marx? Foi um determinista? Sua aplicação do materialismo dialético à natureza constitui uma extrapolação indevida de uma dialética que se aplica unicamente à sociedade? Sua visão sobre o tema preparou o terreno para a degeneração da II Internacional e para o stalinismo? Engels terminou caindo numa lógica positivista, isto é, numa visão de que o progresso da sociedade ocorre a partir de uma crescente incorporação da ciência em seu seio?

    A polêmica ao redor desses assuntos tem mais de um século; são temas recorrentes sempre que se discute a figura de Engels. Por isso, vamos aqui sistematizar os principais questionamentos que foram surgindo, ainda que não seja possível incluir todos. Entre os críticos mais conhecidos estão Lukács e vários de seus seguidores, alguns dos principais filósofos da Escola de Frankfurt (como Herbert Marcuse), Jean Paul Sartre, e correntes como os chamados “marxistas humanistas”, oriunda da Tendência Johnson-Forrest (pseudônimos de C.R.L. James e Raya Dunayevskaia, respectivamente), uma cisão do antigo SWP norte-americano na década de 1950, assim como boa parte dos intelectuais que, embora se reivindiquem marxistas, não defendem a revolução socialista, mas apenas a radicalização da democracia.

    Por outro lado, não partiremos do zero, porque já existe uma polêmica desenvolvida contra intelectuais anti-engelsistas. Rosa Luxemburgo, Lenin e Trotsky, durante toda sua vida apoiaram-se explicitamente nas elaborações de Marx e Engels, e defenderam-nas contra os revisionistas da II Internacional e contra o stalinismo no caso de Trotsky.

    Como essa polêmica não é nova, muitos autores estudaram a obra de Engels e demonstraram sua identidade com o pensamento de Marx, começando por David Riazanov. Mais recentemente, autores como Nahuel Moreno 2, John Rees 3 e o economista marxista Michael Roberts também se posicionaram nesse sentido.

    Entre estas contribuições, uma muito importante foi a do físico-químico Robert Havemann, que viveu na Alemanha Oriental, sobre a relação entre o materialismo dialético e as ciências.
    Havemann foi um cientista defensor do marxismo e também um ativista político contra o regime vigente. Ele se enfrentava no campo teórico com a concepção stalinista da burocracia da RDA e do Kremlin nas décadas de 1960 e 1970.

    O primeiro ataque: Lukács

    Uma das primeiras vozes nas fileiras marxistas a questionar Engels, argumentando contra a utilização do método dialético para analisar a natureza, foi o filósofo húngaro Georg Lukács. Seus primeiros comentários críticos aos conceitos de Engels sobre a relação entre homem e natureza aparecem no livro História e consciência de classe, publicado em 1923. No artigo “O que é o marxismo ortodoxo?”, incluído no livro, ele afirma numa nota de rodapé, em que fica mais claro o questionamento a Engels.

    «Esta limitação do método à realidade histórico-social é muito importante. Os mal-entendidos que o modo engelsiano de expor a dialética tem causado derivam essencialmente do fato de Engels – seguindo o mau exemplo de Hegel – ter estendido o método dialético ao conhecimento dos natureza; sendo assim as determinações decisivas da dialética; ação recíproca entre sujeito e objeto, unidade de teoria e prática, modificação histórica do substrato das categorias como base de sua modificação no pensamento, etc., não são encontrados no conhecimento da natureza. Infelizmente, não tenho espaço para discutir essas questões em detalhes4

    Para Lukács, Engels ignora a questão da dialética sujeito-objeto no processo histórico, segundo ele essencial ao marxismo. Essa determinação, de acordo com essa leitura, levaria a retirar do método dialético a questão da transformação prática, sua dimensão prática-revolucionária, e isso acarretaria uma volta ao materialismo contemplativo, ao estilo de Feuerbach. Ou seja, a busca de uma dialética que ligasse a história humana à história natural seria incorreta. Por isso, Lukács acusava Engels de obscurecer a dialética autenticamente revolucionária de Marx. 5

    O problema é que a realidade não pode ser separada em planos ou compartimentos intransponíveis, sujeitos a leis completamente diferentes, pois se um desses planos é considerado “real”, que nome poderia ser dado aos demais? Se existe um plano que não pertence àquilo que é real, só pode ser algo irreal, algo que não está no mundo objetivo e só tem significado enquanto obra da imaginação; portanto, a ideia criaria um outro mundo, e recaímos no idealismo. Ou seja, se a natureza forma uma totalidade, na qual está contemplada o mundo objetivo – e a humanidade faz parte dele –, não há sentido em isolar a humanidade ou isolar a natureza, vendo seu desenvolvimento em oposição ao homem e à sociedade. Por isso, é um erro ver a dialética “somente” na sociedade, não na natureza.

    Uma parte do chamado “marxismo ocidental» 6 posteriormente iria além e negaria completamente a existência de uma dialética na natureza. Isto leva diretamente ao idealismo filosófico.

    Afinal, se a natureza é alheia à dialética, se ela não tem um desenvolvimento através da história, e só quem tem uma história é a humanidade, isso significa que existem duas esferas paralelas e isoladas: a sociedade humana, que tem história, e a natureza 7. Assim, a humanidade estaria se movendo em base a leis próprias de sua esfera. E a natureza, por não possuir tais leis, seria estática e teria surgido de alguma origem/causa externa – o que era a convicção de Hegel. Lembremos que Hegel defendia que a ideia era a geradora da realidade objetiva (por isso, Lenin chama sua concepção de “idealismo objetivo”).

    As teorias científicas sobre a evolução do sistema solar e dos planetas, assim como a teoria da evolução das espécies de Darwin, dão base uma visão dialética da natureza, independente da ação humana até seu surgimento. A partir do surgimento da humanidade passa a haver uma interação em que o ser humano, diferentemente dos demais animais, atua sobre o mundo real, tal como ele é.

    A crítica de Lukács não teve grande repercussão imediata e ele se retratou depois, quando aderiu ao stalinismo. Mais tarde, em textos como Prolegômenos para uma Ontologia do ser social, publicado postumamente, voltou a fazer críticas às formulações filosóficas de Engels, embora reivindicando seu papel na elaboração e divulgação do marxismo.

    Mas o importante aqui não é seguir todo o percurso teórico de Lukács, com suas idas e vindas. O central é entender que essa crítica do jovem Lukács inaugurou uma linha de contestação às posições de Engels, assumida depois por vários intelectuais, lukacsianos ou não.

    Outros críticos

    A maioria dos “marxistas ocidentais” inspira-se nessa crítica para considerar o materialismo dialético e o materialismo histórico, além do conceito de socialismo científico, como parte de uma visão determinista, atribuída a Engels, e não a Marx (ou pelo menos não ao jovem Marx). 8

    A Escola de Frankfurt ficou conhecida no período pós-guerra, quando defendeu que houve um desvio do marxismo após os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, onde está o texto «O Trabalho Alienado», considerado por Erich Fromm como o texto central da “concepção marxista do homem”.

    Para alguns deles, após este texto, Marx e em particular Engels teriam supostamente abandonado o “humanismo” e caído numa visão cientificista. Coerente com essa revisão, alguns dos críticos da Escola de Frankfurt afirmavam que não é possível associar a luta pela liberdade humana e pela desalienação da humanidade a uma determinada classe, no caso o proletariado. Herbert Marcuse, um dos principais filósofos dessa escola, elaborou uma análise sobre o proletariado dos países avançados considerando que haveriam perdido seu caráter revolucionário pela transformação do capitalismo em ‘capitalismo dirigido’, com sua organização que incorporava a maior parte dos trabalhadores na sociedade estabelecida. 9 Eles rejeitavam o papel do proletariado como sujeito social e, nessa linha, deveria retomar-se conceitos como “essência humana” que estaria submetida a uma alienação na sociedade atual e passaram a deender como estratégia uma luta pela desalienação do ser humano em geral e centrada na libertação do indivíduo. 10

    O mesmo acabou acontecendo com o “marxismo humanista” de Raya Dunayevskaia 11, dos anos 1950-60. Após sair do SWP, focou sua estratégia nos conselhos operários, sem necessidade de um partido revolucionário, para logo depois deixar de ver a classe operária como sujeito social da revolução. O grupo foi pioneiro na procura de outros sujeitos sociais que substituíssem a classe operária, a partir dos setores oprimidos como os negros, as mulheres e outros. Esta tendência acabou deixando de se considerar um partido e permaneceu como um grupo intelectual de propaganda 12.

    Jean Paul Sartre, filósofo de grande influência no pós-guerra, atacava Engels por repetir a mesma concepção que havia criticado em Hegel: impor as leis do pensamento à matéria. Segundo Sartre, Engels estenderia arbitrariamente a razão dialética, as leis que descobriu no mundo social, à natureza e às ciências. 13 Como observa Nahuel Moreno, por meio dessa crítica Sartre pensava valorizar a escolha individual, com sua filosofia existencialista – opondo-a ao determinismo stalinista, contra quem lutava nas décadas de 1950 e 60. Tal concepção levou-o a “levantar uma muralha chinesa entre o humano e a natureza orgânica e inorgânica”. 14 Assim, Sartre também caiu numa separação completa entre homem e natureza, ignorando a elaboração marxista sobre essa relação e absolutizando a opção política individual, independente da realidade, das condições objetivas.

    O materialismo mecanicista em sua versão stalinista é uma decorrência da dialética da natureza de Engels?

    Estas críticas levantam uma questão: a afirmação de uma lógica dialética aplicada à natureza seria uma base para o materialismo vulgar e mecanicista dos stalinistas? Muitos críticos de Engels opinam que o conceito de uma dialética da natureza presta-se inevitavelmente ao materialismo vulgar e ao positivismo.

    A maioria dos antiengelsistas toma os textos filosóficos de Engels – Anti-Dhuring, Dialética da natureza e Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã – como demonstração de um suposto enrijecimento mecanicista, comparando-o negativamente com Marx, que escaparia a esse processo de vulgarização. Marx não teria conseguido impedir o companheiro de luta e de elaboração teórica de toda a vida de cair em semelhante deriva e, ao morrer em 1883, teria deixado Engels ainda mais livre para dar asas a seus supostos desvios cientificistas e mecanicistas. Em particular, a Dialética da Natureza é permanentemente denunciada como uma aplicação que se afasta completamente da concepção materialista dialética de Marx.

    No entanto, neste texto, Engels foi explícito sobre a relação dialética entre o homem e a natureza. Como fundamento dessa visão está sua recusa à tese de Hegel de que a natureza – no sistema idealista hegeliano é um atributo da Ideia que viveria uma eterna repetição – não seria suscetível a um desdobramento histórico. Engels ressalta a posição ativa do homem em relação à natureza. E antecipa como essa relação pode levá-lo a modificar e até mesmo destruir a natureza, antecipando a preocupação atual com a crise climática.

    Em um capítulo dessa obra, O Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem, ele escreve:

    «Mas não nos regozijemos demasiadamente em face dessas vitórias humanas sobre a natureza […] A cada uma dessas vitórias, ela exerce sua vingança. Cada uma delas produz, em primeiro lugar, certas consequências com que podemos contar, mas, em segundo e terceiro lugares, produz outras muito diferentes, não previstas, que quase sempre anulam essas primeiras consequências. Os homens que, na Mesopotâmia, Grécia, Ásia Menor e em outras partes destruíram os bosques para obter terras cultiváveis, não podiam imaginar que, dessa forma, estavam dando origem à atual desolação dessas terras ao despojá-las de seus bosques, isto é, dos centros de captação e acumulação de umidade. […] Somos a cada passo advertidos de que não podemos dominar a natureza como um conquistador domina um povo estrangeiro, como alguém situado fora da natureza; mas sim que lhe pertencemos, com a nossa carne, nosso sangue e nosso cérebro; que estamos no meio dela; e que todo o domínio sobre ela consiste na vantagem que levamos sobre os demais seres de poder conhecer suas leis e aplicá-las corretamente […] Na realidade, a cada dia que passa, aprendemos a entender mais corretamente as suas leis e a conhecer os efeitos imediatos e remotos resultantes de nossa intervenção no processo que a mesma leva a cabo15

    É interessante notar como, já nesse texto, Engels problematiza a relação homem-natureza, a relação dialética entre o progresso econômico e científico de determinada sociedade e as possíveis consequências sociais contraditórias:

    «Mas, se foi necessário o trabalho de milênios para que chegássemos a aprender, den-tro de certos limites, a calcular os efeitos remotos de nossos atos orientados no sen-tido da produção, isso era muito mais difícil no que diz respeito aos efeitos sociais remotos desses atos. (…) E, quando Colombo descobriu a mesma América, não podia supor que, dessa forma, daria vida nova à escravidão, já superada, desde muito, em toda a Europa, estabelecendo os fundamentos para o tráfico negreiro16

    Robert Havemann: o combate ao stalinismo na ex-Alemanha Oriental, apoiado em Engels

    Durante o domínio stalinista na antiga Alemanha Oriental, o cientista Robert Havemann escreveu o livro Dialética sem dogma. Havemann intervinha nos debates científicos quando as academias oficiais da ex-URSS e da ex-Alemanha Oriental se recusavam a aceitar as descobertas de cientistas como Linus Pauling 17, porque seriam uma “negação do materialismo dialético”. 18

    Robert Havemann viu-se obrigado a defender as descobertas científicas de Pauling e mostrar como a tentativa de vetar determinadas evidências, supostamente passíveis de um “idealismo burguês”, conduzia à negação do marxismo. Nesta defesa, Havemann colocava-se em defesa do marxismo contra o stalinismo, do materialismo dialético contra a deformação mecanicista da burocracia e, para contestar a burocracia soviética, apoiava-se em Marx e, particularmente, nos trabalhos filosóficos sobre a relação entre natureza e sociedade feitos por Engels.
    Sobre a relação entre ciência e método dialético, o cientista alemão escreve:

    «Vamos lembrar mais uma vez o que os clássicos falam sobre isso. Eles sempre enfatizaram que o problema capital das ciências naturais, como de todas as ciências para o resto, consiste em passar do pensamento mecanicista, metafísico, a um pensamento dialético cada vez mais consciente… Nenhum filósofo em todo o mundo pode dizer como a teoria das partículas elementares deve ser posta dialeticamente. Mas essa teoria não pode ser desenvolvida sem o pensamento dialético, nem o conhecimento já adquirido nelas será compreendido em toda a sua profundidade sem assimilar o pensamento dialético19

    «Essas ideias 20, não apenas admiravelmente confirmadas pela teoria científico-natural mas, além disso, aprofundados por ela, têm grande importância para toda a nossa relação com o mundo. A imagem do mundo traçada pelo materialismo mecanicista não nos deixou liberdade para uma ação real. Todo o futuro, incluindo todas as nossas ações, já estava totalmente determinado pelo passado.

    «A primeira ruptura com esse determinismo rígido e, além disso, com a reinterpretação dos conceitos de passado, presente e futuro, ocorreu motivado pelos resultados da teoria da relatividade […] o passado é tudo aquilo de que podemos ter conhecimento; futuro é tudo em que ainda podemos intervir. Nem uma coisa nem outra existem no mundo do determinismo metafísico clássico.

    «… O fato de que desafiamos a ideia mecanicista clássica de que o futuro é totalmente determinado não significa, é claro, que vamos declarar que o futuro é totalmente indeterminado. O futuro é codeterminado pelo passado, mas não é determinado de forma definitiva e absoluta. […]. O homem, com a sua atividade, não é uma mera bola com a qual jogam as casualidades fantásticas, mas justamente o inverso: o homem utiliza praticamente a casualidade dos acontecimentos para conseguir o que deseja. Se esse acaso cego não existisse, não poderíamos transformar o mundo com nossos olhos videntes. A liberdade do homem baseia-se precisamente no fato de que o futuro do mundo pode ser determinado porque ainda não está determinado21

    Como explicaremos mais adiante, o raciocínio de Havemann é bem semelhante ao de Lenin e Trotsky sobre como o materialismo dialético pode e deve ser aplicado à ciência e ao estudo da natureza: não como uma filosofia externa que se impõe à realidade, mas um auxílio para os cientistas melhor entenderem os processos complexos das ciências naturais.

    Evidentemente, há diferenças na aplicação das leis da dialética na natureza e na história, mas ambas são parte do real, do mundo objetivo.

    Engels tinha uma concepção oposta à de Marx na aplicação da dialética à natureza?

    De modo algum. Não só porque Engels trabalhou em equipe com Marx, havendo uma divisão de tarefas entre ambos em relação às suas áreas de estudo, mas porque a visão de Marx, elaborada em conjunto com Engels, permaneceu fundamentalmente a mesma quanto à interação entre homem, natureza e sociedade.

    No texto A Ideologia alemã – que, segundo Marx 22, serviu para colocar no papel a concepção materialista da história desenvolvida por ele e por Engels –, há uma série de referências a essa questão:

    «Por exemplo, a importante questão sobre a relação do homem com a natureza (ou então, como afirma Bruno na p. 110, as ‘oposições em natureza e história’, como se as duas ‘coisas’ fossem coisas separadas uma da outra, como se o homem não tivesse sempre diante de si uma natureza histórica e uma história natural), da qual surgiram todas as ‘obras de insondável grandeza’ sobre a ‘substância’ e a ‘autoconsciência’, desfaz-se em si mesma na concepção de que a célebre ‘unidade do homem com a natureza’ sempre se deu na indústria e se apresenta de modo diferente em cada época de acordo com o menor ou maior desenvolvimento da indústria; o mesmo vale no que diz respeito à ‘luta’ do homem com a natureza, até o desenvolvimento de suas forças produtivas sobre uma base correspondente. A indústria e o comércio, a produção e o intercâmbio das necessidades vitais condicionam, por seu lado, a distribuição, a estrutura das diferentes classes sociais e são, por sua vez, condicionadas por elas no modo de seu funcionamento – e é por isso que Feuerbach, em Manchester, por exemplo, vê apenas fábricas e máquinas onde cem anos atrás se viam apenas rodas de fiar e teares manuais, ou que ele descobre apenas pastagens e pântanos na Campagna di Roma, onde na época de Augusto não teria encontrado nada menos do que as vinhas e as propriedades rurais dos capitalistas romanos23

    Marx teria modificado essa posição em uma fase posterior? Vejamos o trecho de O Capital em que Marx defende uma concepção idêntica:

    «Aqui, como nas ciências da natureza, se comprova a verdade da lei descoberta por Hegel em sua Lógica, segundo a qual, ao chegar a um determinado ponto, as mudanças meramente quantitativas se convertem em variações qualitativas. E, em uma nota de rodapé, Marx desenvolve essa ideia: a teoria molecular da química moderna… baseia-se em nenhuma outra lei além dessa24

    Riazanov, o maior estudioso sobre a obra de Marx e Engels e responsável pela formação do Instituto Marx-Engels na antiga URSS, resgatou várias obras inéditas ou publicadas de forma fragmentada pelos seus executores testamentários alemães (entre eles, Bernstein). Segundo ele,

    «Entre o ponto de vista da Ideologia Alemã e o que se desenvolveu no primeiro volume de O Capital não há qualquer tipo de ‘salto’. As concepções básicas que Engels desenvolveu no Anti-Dühring na seção de Filosofia, mesmo nas partes relacionadas às ciências naturais, já tinham sido completamente formuladas em O Capital em uma série de observações, que foram tão distorcidas por Dühring. No Anti-Dühring, Engels desenvolve o método dialético que Marx e ele tinham criado e que tinham empregado desde 1846, desde o tempo da Ideologia alemã. Quando publiquei Dialética da Natureza de Engels, que eu tinha descoberto, meu prefácio enfatizou que, em comparação com o que Engels havia dito no Anti-Dühring, este não continha nenhuma ideia nova. Eu escrevi ‘nenhuma ideia nova’ intencionalmente. A tentativa insustentável de alguns companheiros de encontrar algumas diferenças entre o Anti-Dühring e Engels da década de oitenta, que tinha ‘concepções completamente opostas’, surge do entendimento pouco claro de algumas observações no Anti-Dühring e de uma leitura desatenta do prefácio de Engels para a segunda edição do Anti-Dühring25

    Colocadas as premissas do problema e da discussão, no próximo texto veremos as consequências das críticas às elaborações de Engels na elaboração teórico-programática.

    Notas

    1. MORENO, Nahuel. Lógica marxista y ciencias modernas, México: Xolotl, 1973, p. 33. ↩︎
    2. Moreno em seu texto aborda também esse tema em relação aos críticos de Engels da época, Sartre e Della Volpe. ↩︎
    3. Foi membro da direção do SWP inglês. Rompeu com outros dirigentes em 2009 e fundou o grupo Counterfire. ↩︎
    4. LUKÁCS, Georg. Historia y conciencia de clase. Buenos Aires: Ediciones R. y R., 2013, p. 91. ↩︎
    5. [5] Por outro lado, é verdade que Lukács, nesse mesmo livro História e consciência de classe, tem uma variação sobre esse tema: primeiro nega que o método dialético seja aplicável à natureza, por falta de dimensão subjetiva; e em outro trecho do mesmo livro reconhece a existência de uma dialética distinta e objetiva na natureza. ↩︎
    6. Apesar de ser um termo muito genérico, optei por utilizar o conceito de Perry Anderson, que serve para abarcar uma série de correntes que tiveram em comum essa localização teórica, apesar das diferenças entre elas. ↩︎
    7. Marx, nos Manuscritos econômico-filosóficos, escreve: “o pensamento que é alienado e abstrato e ignora o homem e a natureza reais. O caráter externo desse pensamento abstrato… a natureza como existe para esse pensamento abstrato. A natureza é externa a ele, uma privação dele mesmo, e só concebida como algo externo, como pensamento abstrato, mas pensamento abstrato alienado”. ↩︎
    8. Apoiam-se em particular nos Manuscritos econômico-filosóficos. ↩︎
    9. Mas precisamente nos países industriais avançados, já por volta da passagem do século, as contradições internas foram sendo dominadas por uma organização progressivamente eficiente, e a força negativa do proletariado foi sendo progressivamente reduzida”, Razão e revolução, Rio, Paz e Terra, 1978, p. 404. ↩︎
    10. Idem, pag. 407 ↩︎
    11. Raya Dunayevskaia foi uma militante russo-americana que trabalhou por um curto período como tradutora e secretária de Trotsky em seu exílio no México. Rompeu com o SWP junto com Schatchman e Burnham em 1940, voltou a este partido em 1947 para afinal romper definitivamente no início dos anos 1950. Considerava a ex-URSS como “capitalismo de estado”. ↩︎
    12. Alguns de seus integrantes, como o professor universitário Kevin Anderson, autor de Marx nas margens defendem essas posições nos debates sobre o marxismo na academia. ↩︎
    13. Sartre escreve: “O resultado desse belo esforço [de Engels] é paradoxal: Engels censura Hegel por impor as leis do pensamento à matéria. Mas é precisamente o que ele mesmo faz, pois obriga as ciências a verificar uma razão dialética que ele descobriu no mundo social. Somente no mundo histórico e social, como veremos, existe verdadeiramente uma razão dialética; ao transportá-lo para o mundo «natural», dando-lhe força, Engels tira sua racionalidade. Não se trata mais de uma dialética que o homem faz , fazendo-se a si mesmo, mas de uma lei contingente da qual só se pode dizer: é assim e não de outra forma”. in Marxismo y Existencialismo. Buenos Aires: Sur, p. 128, apud Moreno, Lógica marxista y ciencias modernas, p. 38. ↩︎
    14. MORENO, Nahuel. Lógica Marxista y ciencias modernas. México: Ed. Xolotl, 1981, p. 39. ↩︎
    15. Citados por Michael Roberts, Engels sobre a natureza e a humanidade, em: <litci.org/pt/michel-roberts-engels-sobre-natureza-e-humanidade/>. ↩︎
    16. Idem ↩︎
    17. Pauling foi pioneiro na aplicação da Mecânica Quântica em química e recebeu o prêmio Nobel de Química em 1954. ↩︎
    18. Houve também o famoso caso Lyssenko, cientista russo que defendeu que a genética era estranha ao materialismo dialético e conseguiu impor esse ponto de vista e banir a genética da URSS por anos. Lyssenko não se cansou de atribuir suas teses diretamente a Stalin e ao suposto mérito deste último como o “maior cientista” dos tempos atuais. ↩︎
    19. ENGELS, Friedrich. Dialética da natureza. Berlim 1952, p. 223. ↩︎
    20. Havemann refere-se à seguinte citação da Dialética da Natureza: “Os pesquisadores da natureza, ainda que se revolvam são dominados pela filosofia. A questão é se eles querem sê-lo por uma má filosofia que esteja na moda ou por uma forma de pensamento teórico que se baseia no conhecimento da história do pensamento e de suas conquistas. Os pesquisadores da natureza ainda estão permitindo uma vida vegetativa para a filosofia, ao utilizar os restos da antiga metafísica. Somente quando a dialética haja sido assimilada pelas ciências da natureza e da história e tornar supérflua a velha bugiganga filosófica – exceto para a pura teoria do pensamento – então desaparecerá absorvida pela ciência positiva”. ↩︎
    21. HAVEMANN, Robert. Dialéctica sin dogma, 10ª lección, p. 87. ↩︎
    22. No Prefácio à Contribuição à crítica da economia política: “Friedrich Engels, com quem mantive uma troca constante de ideias por correspondência desde que a publicação de seu brilhante ensaio sobre a crítica das categorias econômicas … chegou por outro caminho (compare sua A Situação da classe trabalhadora na Inglaterra) ao mesmo resultado que eu, e quando, na primavera de 1845, ele também veio morar em Bruxelas, decidimos apresentar em conjunto nossa concepção, em oposição à concepção ideológica da filosofia alemã, de fato, para prestar contas com nossa antiga consciência filosófica”. ↩︎
    23. In A Ideologia alemã, Feuerbach, História, S. Paulo, Boitempo p. 31. ↩︎
    24. Citado em: Anti-Dühring, Parte I, Dialética, Capítulo XII: “Quantidade e qualidade”. ↩︎
    25. RIAZANOV, David. 50 anos do Anti-Dühring, 1928. ↩︎

    Publicado em novembro de 2020 na revista Marxismo Vivo N. 16

  • Consequências programáticas das críticas à obra de Engels

    Consequências programáticas das críticas à obra de Engels

    Como analisamos, uma miríade de tendências questiona o legado de Engels. Alguns acusam-no de ser responsável pela deriva reformista na social-democracia do século XX; outros veem nele a justificação dos totalitarismos estalinistas e da crise que estes provocaram no seio do marxismo.

    Por José Welmowicki

    Temos um exemplo desta última visão no texto de Héctor Benoit, “Da dialética da natureza à exagerada estratégia política de Engels”, publicado no livro A obra teórica de Marx.

    Héctor Benoit foi um dos fundadores e referência teórica do grupo brasileiro Negação da Negação, que atualmente tem o nome Transição Socialista. Embora se trate de um grupo de pequena influência política, Benoit, que leciona na Universidade Estadual de Campinas, possui certa influência no “marxismo académico”, na área da filosofia.

    Segundo Benoit, dessa obra de Engels partiria a visão determinista – que se teria expresso na Introdução de 1895 a As Lutas de Classes na França, de Marx – que constituiria a base teórica não só de toda a orientação reformista e revisionista subsequente do SPD, como também do estalinismo. O materialismo dialético e o materialismo histórico seriam criações de Engels, que serviram aos desígnios do estalinismo.

    «Nesta obra, Dialética da Natureza, assim como em algumas páginas de Anti-Dühring, de fato citando muitas vezes Hegel, Engels desenvolve precisamente a teoria de que existe uma dialética objetiva presente na natureza. Essa dialética apareceria refletida nas leis gerais descobertas pelas modernas ciências naturais, nas leis do pensamento e seria reencontrada e confirmada na concepção dita “científica” da história humana (aquela desenvolvida por Marx e por ele próprio). Engels esboça assim a hipótese de que existiria uma certa legislação dialética única que governa a história da natureza, do pensamento e da história humana, estas últimas subjugadas àquela. Essa hipótese apoiava-se fundamentalmente em três fontes teóricas: a dialética hegeliana, a conceção marxista da História e as modernas ciências naturais (…) Por outro lado, onde encontraremos seguidores dessas conceções políticas do último Engels? Exatamente naqueles que também se distinguiram por adotar uma versão cientificista do marxismo: Bernstein, Kautsky e o stalinismo (…) Ambos, Bernstein e Kautsky, são declaradamente seguidores de um materialismo evolucionista e, não por acaso, foram inspiradores teóricos diretos do reformismo que desembarcou em agosto de 1914, e que se desenvolveu posteriormente provocando sucessivas derrotas da classe operária europeia, derrotas que levaram, finalmente, ao fascismo e ao nazismo.

    «Paralelamente, encontramos a doutrina engelsiana, sobretudo nos manuais do marxismo stalinista. Os quais repetem, de fato, os grandes esquemas de Engels relativamente à dialética da natureza, às leis lógicas gerais que se presumiriam válidas no domínio da natureza e da História, e que assim fundariam, de um lado, o materialismo dialético (uma espécie de epistemologia marxista que conteria as leis da teoria do conhecimento marxista) e, de outro lado, o materialismo histórico (uma sociologia dinâmica e antropológica que conteria as leis do desenvolvimento humano). Estaríamos, assim, com o materialismo dialético e com o materialismo histórico, em contraposição ao “sistema de mundo marxista”, um sistema naturalista-positivista que permitiria prever, com um rigor científico inegável, o curso da natureza e da História.» 1

    Em primeiro lugar, Benoit reproduz uma versão vulgarizada da compreensão de Engels sobre a dialética da natureza, “uma certa legislação dialética única que governa a história da natureza, o pensamento e a história humana, estas últimas imersas nessa mesma legislação”, e repete as acusações infundadas de que Engels simplesmente aplica essas leis gerais à natureza e à história como se fossem um todo idêntico, numa visão mecânica e evolucionista.

    Em segundo lugar, procura as raízes do reformismo da II Internacional apenas nas ideias e não nas contradições concretas que atravessaram a social-democracia face à ascensão do imperialismo e, mais adiante, as bases do stalinismo. Considera que todo o desenvolvimento do reformismo e do stalinismo já estava implícito na tese do último período de Engels, sucedendo-se numa evolução linear: do último Engels a Bernstein, depois a Kautsky, depois… ao stalinismo. Eis a explicação, segundo essa versão, da bancarrota da II Internacional e do papel contrarrevolucionário do estalinismo. Por essa versão, o “pecado original” estaria em Engels, pelo menos desde o Anti-Dühring (1877-1878) e a Dialética da Natureza (póstumo).

    O artigo de Benoit associa os últimos anos de Engels diretamente ao revisionismo e ao reformismo, aceitando a falsificação de Bernstein, que considera a Introdução de 1895 de Engels em As Lutas de Classes na França, de Marx, como o seu Testamento. Um artigo de Francesco Ricci 2 já demonstrou que a versão popularizada é uma edição deturpada do texto original de Engels. O artigo de Marcos Margarido neste dossiê mostra que outro artigo 3 utilizado por Benoit não resiste a uma análise séria. Como mostra Lenin em O Estado e a Revolução 4, entre 1878 e 1895 Engels escreveu várias obras nas quais reafirma as conceções marxistas do Estado e da necessidade de uma revolução violenta, extraídas das lições da Comuna de Paris de 1871.

    Em 1879 (isto é, depois da publicação do Anti-Dühring), Marx e Engels escrevem uma circular ao partido alemão 5, atacando impiedosamente um grupo sediado em Zurique, do qual fazia parte Bernstein, como pequenos-burgueses que pretendiam retornar ao socialismo verdadeiro 6 e contagiar o SPD com ideias reformistas 7, repudiando-os energicamente. Alguns dos textos desse período são clássicos, como A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, de 1884, do qual Lenin extraiu boa parte das citações para escrever O Estado e a Revolução, para demonstrar que o Estado é constituído essencialmente pelo aparato represivo militar, cujo objetivo é impor o poder burguês e explorar as classes dominadas, e que é necessário quebrar a máquina do Estado burguês, mesmo nas suas formas republicanas.

    Em 1891, Engels, por ocasião do 20º aniversário da Comuna, publica um prefácio ao texto de Marx, A Guerra Civil na França 8, de 1871, e reflete sobre o “filisteu social-democrata” que expressava “horror” à “ditadura do proletariado”. Em 1894, escreve uma carta a Paul Lafargue, combatendo a intervenção reformista de Jean Jaurès no parlamento francês. Lenin referiu-se a todos esses textos nas suas anotações para escrever O Estado e a Revolução, publicados nas suas obras completas, no tomo 33, como Cadernos sobre Marxismo e o Estado. Mas, para justificar o argumento da “exagerada fase de Engels”, era necessário ignorar esses textos, incluídos trechos do próprio Anti-Dühring, citados por Lenin.

    Além disso, a incoerência é de tal magnitude que não se percebe uma contradição evidente no seu raciocínio: como é que os dirigentes marxistas revolucionários mais importantes do século XX, como Rosa Luxemburgo, Lenin e Trotsky, continuaram a reivindicar toda a obra de Engels? Lenin e Trotsky reivindicavam, explicitamente, a elaboração filosófica dos textos de Engels, que Benoit ataca como mecanicistas e base para o reformismo. Todos eles foram categóricos em defender, até ao fim das suas vidas, Marx e Engels como os seus mestres. Ou será que os três não conseguiram perceber o grau de revisionismo presente em Engels nessa fase? Mesmo nessa visão de sucessão linear e esquemática, que vai de Engels a Bernstein e a Kautsky, Benoit está equivocado, pois vê Kautsky como um revisionista desde o início do seu papel como teórico no SPD. Contudo, a realidade é dialética. Kautsky foi reivindicado tanto por Lenin como por Trotsky até a Primeira Guerra Mundial, quando se produziu a grande traição que marcou a bancarrota da Segunda Internacional.

    Portanto, essa tese de uma sucessão evolutiva de teorias carece de base na realidade no que diz respeito à evolução da própria social-democracia e ignora todo o complexo processo de luta de classes e da sua adaptação contraditória à democracia burguesa, que, segundo Lenin 9, foi produto do surgimento de uma base social – a aristocracia operária – que sustentou a revisão social-democrata. Ignora um duro processo de luta política interna, sob a pressão da burguesia imperialista e dos Estados burgueses sobre os partidos social-democratas e a burocracia sindical, que levou a Segunda Internacional à degeneração.

    Da mesma forma, o surgimento da burocracia soviética e de Stálin ocorreu devido ao processo objetivo de isolamento da revolução russa num país atrasado e à criação de uma base social na própria burocracia do Estado operário soviético. Para controlar o poder, a burocracia entablou uma feroz luta contrarrevolucionária, renunciando ao programa e à teoria marxistas, à herança teórica de Marx e Engels.

    Stálin rejeitou explicitamente princípios como o internacionalismo que Marx e Engels expressaram claramente tanto no Manifesto Comunista como na Primeira e Segunda Internacionais, de que o socialismo se realizaria numa escala mundial – uma ideia oposta à do socialismo num só país, típica do stalinismo. Para Marx e Engels, o desenvolvimento internacional do capitalismo determina o caráter internacional da revolução operária. Isto demonstra como o stalinismo se opõe a Marx e Engels e o retrocesso que a teoria do “socialismo num só país” significou.

    Stálin teve de liquidar fisicamente a ala revolucionária que lutava por manter as bases programáticas e teóricas de Marx e Engels: a Oposição de Esquerda na URSS e o seu principal dirigente, Trotsky.

    Entre aqueles que consideravam os textos de Engels como os precursores do stalinismo, existe outra vertente: aquela que critica a proposta de se chegar ao socialismo apenas através da tomada do poder pela classe operária e da destruição do Estado burguês. Segundo estes, seria uma visão reducionista, por ser de classe, que levaria necessariamente a uma visão destrutiva e autoritária, expressa na defesa da ditadura do proletariado.

    Para este tipo de posição, Engels cometia o pecado de não ver o papel da política, das mediações no terreno do Estado – variantes de medidas de corte “democrático radical”. Essa corrente de pensamento teve grande divulgação e alcançou uma série de setores que se reivindicavam marxistas, até mesmo uma corrente que surgiu do trotskismo, a maioria do Secretariado Unificado da IV Internacional, cujo maior dirigente e teórico foi Ernest Mandel. Já nos anos 70-80, este refletia a pressão do eurocomunismo para abandonar a defesa da ditadura do proletariado. Posteriormente, com a restauração do capitalismo no Leste europeu, teóricos como Daniel Bensaïd e Michael Lowy levaram a uma dinâmica na direção do reformismo. No Brasil, Juarez Guimarães, dirigente e teórico da DS, uma tendência do PT, no seu livro Democracia e Marxismo 10, acusa Engels de ver apenas como saída socialista a ditadura do proletariado, numa perspetiva clasista (para ele, equivocada). Herdeiro dessa interpretação, Guimarães passou a defender uma “revolução democrática” e a combater a “ditadura do proletariado”. 11

    É verdade que Guimarães identifica a origem dos problemas em Marx, onde já haveria “tensões constitutivas”. Ou seja, haveria contradições entre o determinismo presente em obras como O Capital e o Prólogo à Contribuição para a Crítica da Economia Política e uma visão “praxiológica da história”, presente em obras anteriores, como O 18 Brumário de Luís Bonaparte 12. Engels seria responsável pela “primeira onda determinista”, que acabaria por preparar o terreno para o determinismo de Kautsky e do “DIAMAT” 13 de Stálin.

    De forma muito superficial, com citações fora de contexto e interpretadas de modo unilateral, Guimarães afirma que, a partir do Anti-Dühring, Engels teria uma visão em que “o marxismo seria, então, compreendido de forma dual: materialismo histórico (a ciência da sociedade e da natureza) e materialismo dialético (o estudo das leis do conhecimento). O Capital seria a expressão máxima do primeiro e a sistematização contida na obra filosófica de Engels, a referência fundamental para a edificação do segundo. O edifício dogmático do marxismo estava de pé, subordinando ou restringindo o mundo polimórfico e variante da política às rígidas certezas das ciências, paradoxalmente ancorando toda essa construção num método exterior e dotado do paradigma das ciências naturais da época.

    De forma semelhante a Benoit, Guimarães coloca-se contra o materialismo dialético e histórico e acusa Engels de ser o responsável pela construção do “edifício dogmático” do marxismo, que seria depois assumido pelo estalinismo. Guimarães cita as cartas de Engels a Joseph Bloch e C. Schmidt de 1890, comentando que o seu conteúdo mal “revela as inconsistências lógicas contidas no sistema formulado por Engels14, embora, justamente, nessas cartas Engels alertasse contra a distorção de suas ideias por alguns seguidores, a ponto de tornar “absurda” a conceção marxista.

    Na verdade, o que Guimarães questiona é que a política tenha de se basear numa conceção materialista da história, elaborando a sua proposta a partir da definição das bases econômicas e sociais concretas da sociedade, numa perspetiva de classe. Para ele, isso seria “subordinar ou restringir o mundo polimórfico e variante da política”, embora Engels alertasse justamente contra alguns seguidores que tentassem extrair das suas elaborações e das de Marx conclusões materialistas vulgares e deterministas, baseadas exclusivamente na estrutura econômica da sociedade – algo que Engels refuta com firmeza, afirmando que é necessário compreender a relação entre a economia e as formas políticas, jurídicas e culturais, não de forma mecânica, mas reconhecendo a existência de uma ação recíproca entre os factores superestruturais, culturais ou ideológicos da sociedade e a economia, deixando claro que esses seguidores não compreenderam que a determinação econômica prevalece, em última análise, não como uma relação direta e mecânica. 15

    Podemos deduzir que, para Guimarães, no mundo polimórfico da política, as propostas devem ser completamente autônomas da base social e económica, abandonando a visão marxista contida em A Ideologia Alemã.

    Rosa Luxemburgo recorre a Engels na luta contra os reformistas da Segunda Internacional

    Vejamos como os revolucionários que lideraram o combate teórico e político contra a degeneração reformista da II Internacional e, posteriormente, contra a contrarrevolução stalinista, apelaram aos ensinamentos deixados por Engels.

    Comecemos por dizer algo sobre Rosa Luxemburgo. Rosa foi a vanguarda do combate ao revisionismo de Eduard Bernstein já em 1899, no seu clássico texto Reforma e Revolução. Rosa nunca aceitou a tentativa de Bernstein de pintar Engels como se este tivesse se transformado num reformista no final da sua vida. Coerente com essa posição, no seu famoso texto escrito na prisão, no qual denuncia a traição da social-democracia na Primeira Guerra – A Crise da Social-Democracia, conhecido como o Panfleto Junius –, ela apoia-se nas elaborações de Engels para contestar a posição do Partido Social-Democrata e da maioria da II Internacional:

    “… que leva a converter-se num sistema de dogmas – que também exercem a sua influência nas lutas históricas e, em muitos casos, determinam a sua forma como fator predominante. Trata-se de um jogo recíproco de ações e reações entre todos esses fatores, no qual, através de uma infinita multitude de acasos (isto é, de coisas e acontecimentos cuja conexão interna é tão remota ou tão difícil de demonstrar que podemos considerá-la inexistente ou subestimá-la), acaba por impor-se, como necessidade, o movimento econômico. Se não fosse assim, a aplicação da teoria a qualquer época histórica seria mais fácil do que resolver uma simples equação do primeiro grau. Nós mesmos fazemos a nossa história, mas isso ocorre, em primeiro lugar, de acordo com premissas e condições muito concretas. Entre elas, são as premissas e condições económicas que decidem, em última instância.Os homens não fazem a história arbitrariamente, mas, apesar disso, fazem-na eles mesmos. A ação do proletariado depende do grau de maturidade do desenvolvimento social. Mas o desenvolvimento social não é independente do proletariado. Este é, na mesma medida, a sua força motriz e a sua causa, bem como o seu produto e a sua consequência. A própria ação do proletariado integra a história, contribuindo para a defini-la (…). É por isso que Friedrich Engels invoca a vitória definitiva do proletariado como um salto da humanidade do reino animal para o reino da liberdade. Esse salto também está ligado às leis de bronze da história, aos mil elos de um desenvolvimento anterior, doloroso e demasiado lento. Mas nunca poderia ser realizado se, do conjunto dos pré-requisitos materiais acumulados pelo desenvolvimento, não surgisse a centelha da vontade consciente das grandes massas populares.» 16

    Teria Lenin superado Engels e seu “mecanicismo”?

    Existe outra lenda também transmitida por vários autores, segundo a qual Lenin teria seguido Engels no terreno filosófico, referindo-se aos chamados Cadernos Filosóficos de 1915. Entre eles, Raya Dunayevskaya, fundadora do marxismo humanista 17 – que fez a primeira tradução para o inglês dos Cadernos Filosóficos de 1915.

    No entanto, vejamos a verdadeira história. Na homenagem a Engels, quando este falece em 1895, Lenin declarou:

    A filosofia de Hegel tratava do desenvolvimento do espírito e das ideias; era idealista. Do desenvolvimento do espírito, a filosofia de Hegel deduzia o desenvolvimento da natureza, do homem e das relações entre os homens no seio da sociedade. Retomando a ideia hegeliana de um processo perpétuo de desenvolvimento… Marx e Engels rejeitaram a concepção idealista pré-concebida; analisando a vida real, constataram que não é o desenvolvimento do espírito que explica o fenômeno da natureza, mas, ao contrário, é necessário explicar o espírito a partir da natureza, da matéria… Ao contrário de Hegel e dos hegelianos, Marx e Engels eram materialistas. Partindo de uma concepção materialista do mundo e da humanidade, verificaram que, tal como todos os fenômenos da natureza têm causas materiais, igualmente o desenvolvimento da sociedade humana é condicionado pelo desenvolvimento das forças materiais, as forças produtivas.» 18

    Em 1913, Lenin escreveu As Três Fontes e as Três Partes Constitutivas do Marxismo e, em 1914, para uma enciclopédia, escreveu Karl Marx, um Breve Esboço Biográfico Seguido de uma Exposição do Marxismo, mantendo a mesma compreensão do texto de 1895.

    Os Cadernos Filosóficos são a edição de um caderno de anotações de Lenin sobre as suas leituras dos clássicos de Hegel durante a Primeira Guerra Mundial, decisivos para o avanço da elaboração do principal dirigente do Partido Bolchevique relativamente ao caráter da Revolução Russa, ao imperialismo e para compreender as raízes da bancarrota da Segunda Internacional e do seu revisionismo. Esse estudo, portanto, foi decisivo para que Lenin progredisse na sua elaboração.

    Mas, vários intelectuais utilizam-nos como suposta demonstração de que Lenin seguiu, de forma acrítica, Engels até 1914, mas que, ao ler Hegel, percebeu os erros de Engels e passou a negá-los e superá-los. Como eram cadernos de anotações das suas leituras, constituíam-se em observações pontuais para a sua autocompreensão e uso posterior. Ainda assim, não é difícil perceber que é falsa a interpretação de que Lenin questiona Engels em uma forma semelhante à desses intelectuais. Em relação ao tema da dialética da natureza e a elaboração de Engels, Lenin fez os seguintes comentários, a partir da leitura de Hegel:

    «‘Na natureza’, os conceitos têm ‘carne e osso’ – isso é excelente! Mas isso é exatamente materialismo. Os conceitos humanos são a alma da natureza – isso é apenas uma maneira mística de dizer que, nos conceitos humanos, a natureza reflete-se de modo peculiar (isso NB 19: de modo peculiar e dialético!!), NB De onde vem essa coincidência? 20 De Deus (eu, ideia, pensamento, etc., etc.) ou da natureza? Engels tem razão em seu modo de colocar a questão21

    Como se elucida na edição da Boitempo editora, Lenin apoia-se no texto de Engels, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã para mostrar que a dialética se aplica à natureza, mas de modo peculiar, ou particular, assim como faz Engels em seu texto.

    «O conceito (o conhecimento) revela no ser (nos aparecimentos imediatos) a essência, a lei da causa, da identidade, da diferença, etc. – é esse realmente o curso geral de todo conhecer (toda a ciência) humano em geral. Esse é o curso tanto da ciência da natureza como da economia política ‘e da história’. A dialética de Hegel é, nessa medida, a generalização da história do pensamento. Parece uma tarefa extraordinariamente grata seguir isso mais concretamente, mais detalhadamente, na história das ciências singulares. Na lógica, a história do pensamento deve, no geral, coincidir com as leis do pensamento.» 22

    Mais uma vez Lenin afirma ter a mesma posição de Engels (e Marx), que a dialética se aplica tanto nas ciências naturais quanto na história. Mais adiante, ele volta a ressaltar que a ciência natural mostra as mesmas leis da dialética, aplicadas à natureza:

    «… a ciência da natureza contudo mostra-nos (e aqui, mais uma vez, é preciso mostrar isso em qualquer exemplo simplicíssimo) a natureza objetiva em suas próprias qualidades, a transformação do singular no universal, do contingente no necessário, transições, fluíres, e a conexão mútua dos opostos…» 23

    A afirmação de que Lenin “supera o determinismo de Engels” é baseada em apenas uma citação:

    A exatidão deste aspeto do conteúdo da dialética deve ser comprovada através da história da ciência. Habitualmente (por exemplo, em Plekhanov) dá-se atenção insuficiente a este aspecto da dialética: a identidade dos opostos é tomada como somatória de exemplos (‘por exemplo, o grão’; ‘por exemplo, o comunismo primitivo’). Isto também acontece em Engels. Mas isto ‘a fim de popularizar’ e não como lei do conhecimento (e lei do mundo objetivo).” 24

    A única coisa que Lenin afirma, ao criticar o materialismo de Plekhanov – para quem a identidade dos opostos é tomada como soma de exemplos e transformada em lei do conhecimento – é que Engels, sem cair nesse tipo de interpretação mecânica, apresenta alguns problemas em textos de divulgação.

    Enfim, na quase totalidade dos casos, Lenin cita Engels para reivindicar a sua elaboração filosófica nos livros Anti-Dühring e Ludwing Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã, e como base de apoio para as suas críticas a Hegel.

    Anos mais tarde, em 1922, Lenin faz uma conferência na Academia de Ciências da URSS, publicada sob o título O Materialismo Militante, onde refere, com toda a clareza, a necessidade de aplicar o materialismo dialético às ciências naturais, de forma semelhante a Engels:

    E, para não abordar tal fenómeno de forma inconsciente, devemos compreender que, sem uma sólida fundamentação filosófica, não há ciência da natureza nem materialismo que possa suportar a luta contra o investidura das ideias burguesas e o reestabelecimento da conceção burguesa do mundo […] Os cientistas modernos encontrarão (se souberem procurar e se nós aprendermos a ajudá-los) na interpretação materialista da dialética de Hegel uma série de respostas às questões filosóficas suscitadas pela revolução nas ciências naturais e que fazem ‘patinar’ para a reação dos admiradores intelectuais da moda burguesa”. 25

    Como se pode constatar, Lenin, no seu processo de elaboração acerca da dialética materialista, fez importantes progressos, mantendo, contudo, um ponto de vista idêntico ao de Engels sobre a relação entre a natureza, o homem e a sociedade e sobre a aplicação da dialética na natureza e, portanto, nas ciências naturais.

    Trotsky e Engels

    O grande dirigente da Revolução Russa e fundador da IV Internacional defendeu o materialismo dialético durante toda a sua trajetória, e a aplicação da dialética à ciência, tal como fizeram Engels e Lenin. Na luta contra a burocracia stalinista, escreveu o texto As Tendências Filosóficas do Burocratismo, de dezembro de 1928, no qual afirma:

    Que, desde logo, é a principal função social da burocracia e a fonte da sua preeminência; deixam, inevitavelmente, uma marca bem definida em todo o seu modo de pensar. Não é por acaso que palavras como ‘burocrático’ e ‘formalismo’ se aplicam não só a um sistema de administração ou gestão, mas também a um modo definido do pensamento humano… Essas características podem também ser encontradas na filosofia (…) O materialismo não rejeita os fatores, assim como a dialética não rejeita a lógica. O materialismo utiliza os fatores como um sistema de classificação dos fenômenos que surgiram historicamente – qualquer que seja o modo em que a sua essência espiritual possa ser ‘delimitada’ – a partir das forças produtivas subjacentes e das relações sociais e, a partir das bases naturais, históricas, isto é, materiais, da natureza” (…) “Não há dúvida de que uma aplicação consciente do materialismo dialético às ciências naturais, com uma compreensão científica da influência da sociedade de classes sobre os objetivos, os métodos, as metas da investigação científica, enriqueceria as ciências naturais e as reestruturaria em muitos aspectos, revelando novos laços e conexões, e dando às ciências naturais um lugar de renovada importância na nossa compreensão do mundo (…).» 26

    Pouco antes de ser assassinado, em 1939, Trotsky volta sobre o assunto no livro Em Defesa do Marxismo:

    Chamamos ‘materialista’ a nossa dialética porque está baseada não no céu nem no nosso ‘livre arbítrio’, mas na realidade objetiva, na natureza. A consciência surge da inconsciência, a psicologia da fisiologia, o mundo orgânico do inorgânico, o sistema solar das nebulosas. Em todos os elos desta cadeia, as mudanças quantitativas transformam-se em saltos qualitativos. O nosso pensamento, incluído o pensamento dialético, não é senão uma forma de expressão deste mundo mutável. Neste sistema não há lugar para Deus, nem para o destino, nem para a alma imortal, nem para normas, leis ou morais eternas. O pensamento dialético que surgiu da natureza dialética do mundo possui, consequentemente, um carácter totalmente materialista. O darwinismo, que explica a evolução das espécies através de ‘saltos qualitativos’, foi o maior triunfo da dialética no campo das ciências naturais. Outro grande triunfo foi a descoberta da tabela de pesos atômicos dos elementos químicos e dos processos de transformação de um elemento noutro.” 27

    Por que reivindicar Engels contra os ataques infundados é decisivo hoje para desenvolver o marxismo?

    Não estamos perante uma discussão abstrata. As correntes que questionaram Engels em nome de um marxismo “crítico”, “autêntico”, “humanista” cresceram em virtude da crise do estalinismo e foram ganhando peso, especialmente no chamado “marxismo acadêmico”.

    Muitos, em nome de um marxismo “não determinista”, afastaram-se da conceção materialista da história, negando que esta possa ter qualquer desenvolvimento dialético. Acabaram, assim, por golpear os pilares do marxismo. Como demonstraram Havemann e Trotsky, o stalinismo é uma distorção total de Marx e Engels, e não a “extensão” das posições de Engels, que seria uma suposta primeira onda determinista ou uma versão cientificista do marxismo.

    Por outro lado, rejeitar a ideia clássica mecanicista de que o futuro está plenamente determinado não pode levar à conclusão de que o futuro esteja totalmente indeterminado. Como diz Havemann, “o futuro está codeterminado pelo passado, mas não está determinado de forma definitiva e absoluta”, ou, nas palavras de Marx, em O 18 Brumário de Luís Bonaparte:

    Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias da sua escolha, mas sim sob aquelas com que se deparam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.” 28

    No surgimento do stalinismo, tanto os adversários declarados do marxismo como o próprio Stálin divulgaram a ideia de que a sua “doutrina” era a verdadeira continuidade de Lenin. Os stalinistas opunham Trotsky a Lenin, falsificando a história e apresentando-se como os continuadores de Lenin, atacando o trotskismo. Em que pontos atacavam o Trotsky? Justamente nos princípios do internacionalismo, na visão de que o socialismo só era possível se a revolução socialista se alastrasse pelos países desenvolvidos e se desenvolvesse a nível mundial – pontos com os quais Trotsky concordava profundamente com Lenin desde 1917 em diante.

    Os antiengelsistas pretendem, em nome da busca por um Marx autêntico, atacar as bases do próprio marxismo. Em oposição ao determinismo estalinista, querem reconstruir um tipo de teoria do “indeterminismo”, em que tudo é fortuito, nada tem história, nada é fruto das leis do desenvolvimento; a consequência é a negação do materialismo histórico. Para Guimarães, essa concepção não se aplica nem ao passado nem ao presente.

    A rejeição do materialismo histórico pelos antiengelistas abre, por um lado, terreno para a defesa do acaso absoluto na história, onde o que predomina é a nossa consciência. Por conseguinte, procuram convencer-nos da virtude da democracia, da igualdade e da justiça, para que, dessa forma, a humanidade chegue organicamente ao socialismo. Nesse caso, o socialismo seria essencialmente fruto da afirmação de um ideal, uma proposta ética, de cunho moral, e não uma proposta científica baseada na realidade, num análise rigorosa e verificável das tendências do desenvolvimento da nossa sociedade. Isso nada tem a ver com as posições de Marx e Engels, com o socialismo científico. Estaríamos, assim, de volta – por mais que esses setores não o mencionem – ao socialismo utópico, à defesa do “homem novo”, da essência humana, etc. No pleno século XXI, isso se materializa na proposta de uma democracia radical como substituta do socialismo.

    Contra os socialistas utópicos do século XIX, Engels apontou a necessidade de se fundamentar no desenvolvimento real da sociedade e no domínio crescente do homem sobre a natureza e, simultaneamente, na contradição antagônica entre o caráter social da produção e a sua apropriação individual pelos capitalistas.

    Para Benoit, os problemas encontram a sua origem no capitalismo. As teses de Benoit conduzem a um reducionismo que limita o marxismo ao estudo da sociedade capitalista. Considera o materialismo histórico, assim como o materialismo dialético, como um “sistema naturalista-positivista que permitiria prever o curso da natureza e da história”, o qual, portanto, deveria ser abandonado como herança nefasta do estalinismo apoiado no “exagerado Engels”.

    Benoit deixa o proletariado sem qualquer ferramenta teórica, pois nega a possibilidade de existir uma teoria que permita ter uma perspetiva histórica. Qual seria então a orientação para a estratégia da revolução?

    Como escreveu Trotsky, essa conceção materialista da história foi o que permitiu elaborar o Manifesto Comunista em 1847, que foi aplicado de forma magistral em O 18 Brumário e noutras obras de Marx e Engels. Toda a elaboração subsequente, incluindo as de Lenin e Trotsky, a Teoria da Revolução Permanente, as Teses da III Internacional e o programa da IV Internacional, apoia-se numa análise materialista da história da sociedade capitalista, numa análise marxista da sociedade, da economia e da luta de classes. Como se pode continuar a desenvolver o programa revolucionário sem uma concepção materialista da história? Basear-se apenas na crítica da economia política? Essa posição, aparentemente de esquerda, acaba por desarmar a classe operária para ter um programa e responder às tarefas políticas concretas.

    Trotsky, na sua elaboração da teoria da revolução permanente, explicava que esta se baseava na aplicação consistente do materialismo histórico à realidade concreta e contra o materialismo vulgar. Imaginar que a ditadura do proletariado depende, de algum modo, automaticamente do desenvolvimento técnico e dos recursos de um país é um pré-conceito do materialismo “econômico” simplificado ao absurdo. Esse ponto de vista nada tem em comum com o marxismo. 29

    O primeiro programa operário escrito por Marx e Engels, o Manifesto Comunista, foi baseado no materialismo histórico. Nas suas páginas estão concentrados os descobrimentos efetuados um pouco antes pelos fundadores do marxismo e transformados numa orientação de ação para todos os militantes revolucionários, que continua válido até hoje.

    Trotsky, no seu texto “A 90 anos do Manifesto Comunista”, afirma:

    1. «A conceção materialista da história, formulada por Marx pouco tempo antes da aparição do texto e aplicada nele com perfeita mestria, resistiu completamente à prova dos acontecimentos e aos golpes da crítica hostil. Constitui, atualmente, um dos instrumentos mais preciosos do pensamento humano. Todas as outras interpretações do processo histórico perderam todo o significado científico. Podemos afirmar com segurança que, hoje em dia, é impossível ser não só um militante revolucionário, mas mesmo um observador politicamente instruído, sem assimilar a conceção materialista da História.
    2. A história de todas as sociedades até aos nossos dias não é senão a história das lutas de classes”. O primeiro capítulo do Manifesto começa com essa frase. Essa tese, que constitui a conclusão mais importante da conceção materialista da História, em pouco tempo transformou-se num elemento da luta de classes. A teoria que trocava o ‘bem-estar comum’, a ‘unidade nacional’ e as ‘verdades eternas da moral’ pela luta entre interesses materiais – considerados como a força motriz da História – sofreu ataques particularmente ferozes por parte de hipócritas reaccionários, doutrinários liberais e democratas idealistas. Posteriormente, agregaram-se a esses os ataques, agora por parte do próprio movimento operário, dos chamados revisionistas, isto é, dos partidários da revisão do marxismo a favor da colaboração e da conciliação de classes. Finalmente, na nossa época, os desprezíveis epígonos da Internacional Comunista (os stalinistas) seguiram o mesmo caminho: a política das chamadas “frentes populares” decorre inteiramente da negação das leis da luta de classes. Entretanto, vivemos na época do imperialismo que, levando todas as contradições sociais ao extremo, demonstra o triunfo teórico do Manifesto do Partido Comunista.» 30

    Essas palavras de Trotsky alertam-nos contra aqueles que pretendem separar a teoria do programa, desprezando a contribuição de Engels para o marxismo e abandonando a concepção materialista da história. Essa postura só pode abrir espaço para um idealismo tardio, que acaba por propor uma saída interior ao capitalismo, ou para um desarmamento teórico na elaboração do programa revolucionário.

    Notas

    1. A Obra teórica de Marx. São Paulo: Xamã, 2000, pp. 91-104. ↩︎
    2. O “testamento” falsificado de Engels: uma lenda dos oportunistas, na revista Marxismo Vivo
      – Nova Época n.° 11, 2018. ↩︎
    3. MARGARIDO, Marcos. “Teria Engels se transformado Engels em um reformista…?”, neste dossiê. ↩︎
    4. “Como conciliar na mesma doutrina essa apologia da revolução violenta, insistentemente repetida por Engels, aos social-democratas alemães de 1878 a 1895, isto é, até a sua morte, com a teoria do ‘definhamento’ do Estado?”, in O Estado e a Revolução, parte I, item 4. ‘Definhamento’ do Estado e a Revolução Violenta. ↩︎
    5. Carta-circular de Marx e Engels a August Bebel, Wilhelm Liebknecht, Wilhelm Bracke e outros
      (1879), M&E Collected Works, V. 45. Londres: Lawrence & Wishart, 2010, p. 394. ↩︎
    6. Refere-se a uma corrente “socialista” da Alemanha que é duramente criticada no Manifesto
      Comunista. ↩︎
    7. Na circular, Marx e Engels reproduzem e condenam o seguinte trecho do texto dos três socialistas sediados na Suíça: “Precisamente agora, sob a pressão da lei antissocialista, o Partido mostra que não deseja seguir o caminho da revolução sangrenta, violenta, mas que está decidido… a trilhar o caminho da legalidade, isto é, da reforma”. ↩︎
    8. “Segundo a concepção filosófica, o Estado é a ‘realização da ideia’, isto é, traduzido na linguagem filosófica, o reino de Deus na Terra, o campo onde se fazem ou devem se fazer realidade a verdade e a justiça eternas. (…). E as pessoas acreditam ter dado um passo enormemente audaz ao libertar se da fé na monarquia hereditária e jurar pela República democrática. Na realidade, o Estado não é mais que uma máquina para a opressão de uma classe por outra, tanto na República democrática quanto sob a monarquia; e no melhor dos casos, um mal que o proletariado herda depois que triunfa na sua luta pela dominação de classe. O proletariado vitorioso, tal como fez a Comuna, não poderá menos que amputar imediatamente os piores aspectos deste mal, até que uma geração futura, educada em condições sociais novas e livres, possa se desfazer de todo esse velho lixo do Estado. Ultimamente as palavras “ditadura do proletariado” têm voltado a colocar em terror o filisteu social-democrata. Pois bem, cavalheiros, querem saber o que atualmente representa essa ditadura? Olhem a Comuna de Paris: eis aí a ditadura do proletariado!” (original em espanhol, tradução nossa, destaques meus). ↩︎
    9. Vide, entre outros, A Falência da II Internacional (1915). ↩︎
    10. GUIMARÃES J. Democracia e Marxismo, São Paulo: Xamã, 1999. ↩︎
    11. Em seu texto “Marx e a Revolução democrática”, publicado em Democracia Socialista nº 1,
      dezembro de 2013. ↩︎
    12. Segundo Juarez Guimarães, essa posição de Marx teria primado no período 1845-1857. ↩︎
    13. Sigla com que se notabilizou o chamado materialismo dialético do período stalinista. ↩︎
    14. GUIMARÃES J. Democracia e Marxismo. São Paulo: Xamã, 1999, p. 83. ↩︎
    15. Na carta de Engels a Bloch, Londres 21/22 de setembro de 1890: “Segundo a concepção
      materialista da história, o fator que, em última instância determina a história é a produção e a reprodução da vida real. Nem Marx, nem eu afirmamos uma vez sequer, algo mais do que isso. Se alguém o modifica, afirmando que o fato econômico é o único fato determinante, converte aquela tese numa frase vazia, abstrata e absurda. A situação econômica é a base, mas os diferentes fatores da superestrutura que se levanta sobre ela – as formas políticas da luta de classes e seus resultados, as constituições que, uma vez vencida uma batalha, a classe triunfante redige, etc., as formas jurídicas e, inclusive os reflexos de todas essas lutas no cérebro dos que nela participam, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as ideias religiosas e o desenvolvimento ulterior que as leva a converter-se num sistema de dogmas – também exercem sua influência nas lutas históricas e, em muitos casos, determinam sua forma como fator predominante. Trata-se de um jogo recíproco de ações e reações entre todos esses fatores, no qual, através de toda uma infinita multidão de acasos (isto é, de coisas e acontecimentos cuja conexão interna é tão remota ou tão difícil de demonstrar que podemos considerá-la inexistente ou subestimá-la), acaba sempre por impor-se, como necessidade, o movimento econômico. Se não fosse assim, a aplicação da teoria a uma
      época histórica qualquer seria mais fácil do que resolver uma simples equação de primeiro grau. Nós mesmos fazemos nossa história, mas isso se dá, em primeiro lugar, de acordo com premissas e condições muito concretas. Entre elas, são as premissas e condições econômicas as que decidem em última instância.
      ↩︎
    16. LUXEMBURGO, Rosa. Panfleto Junius, A crise da social-democracia (1915). ↩︎
    17. Ela manteve um intenso intercâmbio de ideias com Marcuse e Erich Fromm. No livro Filosofia
      e revolução
      , prefaciado por Fromm, ela afirmaria: “Em contraste com a perspectiva multilinear, graças à qual Marx se absteve de traçar um programa para as gerações futuras, a interpretação unilinear conduziu Engels pelo caminho do positivismo e o mecanicismo”. Filosofía y revolución, México, cap.9, p. 329. ↩︎
    18. LENIN, V. I. Friedrich Engels, 1895. ↩︎
    19. Nota Bene – termo latino que significa ‘preste atenção’. ↩︎
    20. LENIN, V. I. Cadernos filosóficos. São Paulo: Boitempo Ed. (2010), p. 291. ↩︎
    21. Idem, p. 292. Nessa citação há uma Nota da edição da Boitempo: ver “Engels, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã”, cit. p. 390. ↩︎
    22. Idem, p. 326. (Os negritos e destaques são de Lenin). ↩︎
    23. Idem, p. 335. ↩︎
    24. Idem, p. 331 (negritas de Lenin). ↩︎
    25. “El significado del materialismo militante”, 1922 em Obras Completas, Tomo 45, Ed. Progreso (original em espanhol, tradução nossa). ↩︎
    26. “Las tendencias filosóficas del burocratismo”, in Escritos filosóficos. Buenos Aires: CEIP, 2011,
      p. 157 y pp. 159-160 (original em espanhol, tradução nossa). ↩︎
    27. TROTSKY, León. En defensa del marxismo. (original em espanhol, tradução nossa). ↩︎
    28. MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: ed. Escriba, 1968, p. 15. ↩︎
    29. TROTSKY, Leon. Resultados e Perspectivas (1906). ↩︎
    30. TROTSKY, Leon. “A 90 anos do Manifesto Comunista”, 1937. ↩︎

  • A Teoria da Revolução Permanente e a luta dos oprimidos

    A Teoria da Revolução Permanente e a luta dos oprimidos

    Introdução

    Em nosso seminário sobre a opressão da mulher, em dezembro de 2014, ocorreu uma rica discussão e algumas controvérsias acerca da teoria da Revolução Permanente e de sua articulação com as lutas dos oprimidos. Nestes artigos, procuramos resumir a nossa intervenção no seminário.

    Por José Welmowicki e Alicia Sagra

    A Revolução Permanente é fundamental para a intervenção dos revolucionários em todas as áreas, pois é a teoria da revolução socialista internacional que combina diferentes tarefas, etapas e tipos de revoluções. Além disso, é a teoria que articula as relações entre as tarefas e os sujeitos no processo da revolução socialista mundial. Por isso, sem a compreensão do conceito de revolução permanente, torna-se impossível elaborar uma estratégia correta para a revolução e para a organização da classe operária e dos setores oprimidos.

    A origem da teoria

    Originada com a revolução de 1905, esta teoria trouxe uma nova interpretação da dinâmica da revolução em países atrasados, embora em 1905 ela tenha sido formulada apenas para a Rússia. Até então, associava-se a possibilidade de uma revolução socialista aos países com maior desenvolvimento capitalista. Consequentemente, em toda a II Internacional acreditava-se que os países maduros para a revolução socialista eram Inglaterra, França e Alemanha.

    Leon Trotsky, apoiando-se nas elaborações de Parvus e em textos de Marx sobre a revolução alemã de 1848, ao fazer o balanço da revolução de 1905, elaborou o que se tornaria uma nova visão na social-democracia, acerca da dinâmica de classes e do caráter da próxima revolução russa.

    Qual é a contribuição de Trotsky com a Teoria da Revolução Permanente?

    Tanto na primeira formulação de 1905 quanto na segunda, desenvolvida em 1929, ele estabeleceu uma relação entre as tarefas propostas e a dinâmica das classes. A burguesia já não é capaz de levar adiante, até o fim, as tarefas da revolução democrática burguesa; esta só se completará se for assumida pela classe operária, que deverá impor a ditadura do proletariado. “A dominação política do proletariado é incompatível com a situação de dominação econômica pela burguesia”, dizia Trotsky em 1905: resultados e perspectivas. Por isso, uma vez conquistado o poder político, ele passará a atacar a propriedade capitalista, a enfrentar a exploração, ou seja, combinará as tarefas democráticas com as socialistas. Em outras palavras, a dinâmica de classe conduzirá à revolução socialista. Esses dois aspectos – o proletariado como sujeito social da revolução e a combinação das tarefas – são as grandes contribuições de Trotsky, e não estavam presentes em Lenin antes de abril de 1917.

    Portanto, o novo na teoria da revolução permanente não é que a classe operária deva assumir as tarefas da revolução democrática, visto que a burguesia não o fará. Apesar de essa definição ser o ponto de partida da sua elaboração, conforme o próprio Trotsky esclarece em sua obra A Revolução Permanente, ele compartilhava com Lenin a convicção de que a burguesia fosse incapaz de completar sua própria revolução. E, nesse aspecto, ambos divergiam dos mencheviques, que defendiam que a revolução fosse conduzida pela burguesia.

    Entretanto, embora coincidirem no fato de que a burguesia não cumpriria sua tarefa, Lenin não definia qual classe a substituiria. Ele falava de operários e camponeses, mas sem definir qual seria o sujeito social da revolução. Junto a isso, mantinha a visão tradicional dos marxistas de sua época, de que a revolução proposta era democrática burguesa, a qual seria completada pela ditadura democrática dos operários e camponeses.

    Diferentemente de Lenin, Trotsky defendia que era impossível que os camponeses se organizassem de forma independente em um partido próprio, por isso via a classe operária, por seu papel social decisivo, como a única classe que poderia levar adiante a revolução democrática, mesmo com seu número reduzido na Rússia. E, a partir do sujeito social da revolução, concluía que, uma vez no poder, não seria possível limitar-se às tarefas da revolução burguesa. Assim, a revolução democrática burguesa se transformaria em socialista.

    Já na versão de 1929, Trotsky incorpora à teoria da revolução permanente aquilo que representava outra grande diferença em relação a Lenin em 1905: o partido centralizado como sujeito político da revolução. Dessa forma, no item 2 das Teses de 1929, ele postula que somente o proletariado, como seu líder, aliado aos camponeses e dirigido por um partido revolucionário, pode concluir de forma efetiva as tarefas democráticas e instaurar a ditadura do proletariado, que assumirá, ademais, as tarefas socialistas.

    Queremos reafirmar, então, que para Trotsky, o caráter da revolução é permanente, não porque as tarefas democráticas, por si só, aprofundadas, conduzam à revolução socialista, mas porque há uma relação direta com o sujeito social que pode efetivamente levar adiante essa revolução. E esse sujeito social é o proletariado, que, uma vez no poder, começará a executar as tarefas socialistas.

    O pós-guerra trouxe novos fatos, revoluções que expropriaram a burguesia sem que o sujeito social proletário e o partido revolucionário estivessem presentes. Isso não estava previsto por Trotsky, mas são suas elaborações – em especial a “Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado” e a hipótese teórica apresentada no Programa de Transição – que nos permitem interpretar tais acontecimentos. Foi a combinação de uma situação objetiva insustentável (guerra, derrotas, crise financeira…) com a pressão revolucionária das massas que obrigou direções da pequena burguesia, inclusive stalinistas, a ultrapassarem seu programa e expropriarem a burguesia. Essas revoluções questionam alguns aspectos das Teses da Revolução Permanente, mas não a teoria em si. Nenhuma dessas revoluções foi liderada pela burguesia; pelo contrário, foi necessário tomar o poder e expropriá-la para cumprir as tarefas principais da revolução democrática burguesa – a independência nacional e o problema da terra. Como observou Moreno:

    «A teoria da revolução permanente é muito mais abrangente do que as Teses escritas por Trotsky no final dos anos vinte; é a teoria da revolução socialista internacional que combina diferentes tarefas, etapas e tipos de revoluções na marcha rumo à revolução mundial. A realidade acabou sendo mais trotskista e permanente do que o próprio Trotsky e os trotskistas previram. Produziu combinações inesperadas: apesar das falhas do sujeito (ou seja, de que o proletariado em algumas revoluções não foi o protagonista principal) e do fator subjetivo (a crise de direção revolucionária, a fragilidade do trotskismo), a revolução socialista mundial obteve triunfos importantes, chegou à expropriação, em muitos países, dos exploradores nacionais e estrangeiros, embora a direção do movimento de massas tenha permanecido nas mãos de aparatos e direções oportunistas e contrarrevolucionárias. Se não reconhecermos esses fatos, abriremos margem para interpretações revisionistas que se baseiem neles para negar o caráter de classes e político da teoria da revolução permanente.» (Tese 39 da Atualização do Programa de Transição)

    Por outro lado, manteve-se o fio condutor da Teoria e das Teses: sem a classe operária e o partido, mais cedo ou mais tarde a revolução se paralisa e retrocede. Pode-se chegar até à expropriação da burguesia, mas, no fim, ela congela e retrocede. Se isso já era evidente em 1980, hoje a restauração do capitalismo na China, Cuba, Vietnã e em todo o Leste europeu está aí como a prova máxima. A ausência do proletariado na liderança e do partido revolucionário ocasionou que cada uma dessas vitórias, em vez de avançar rumo à liquidação do imperialismo em todo o planeta, fosse utilizada pelos aparatos burocráticos para frear, e até mesmo reverter, as conquistas.

    Por isso, como afirma Moreno, a teoria da revolução permanente permanece viva e correta em sua essência, mantendo seu caráter de classes e internacionalista: tal como Trotsky postulou, somente a classe operária e o partido na liderança podem conduzir a revolução socialista mundial até derrotar o imperialismo e estabelecer o socialismo em escala global.

    O pós-guerra e os efeitos sobre o trotskismo

    Esses acontecimentos do período pós-guerra levaram a muitas revisões no interior do trotskismo. Órfãos de direção pelo assassinato de Trotsky, os jovens e inexperientes quadros que estavam à frente da IV Internacional sucumbiram ao impressionismo, sob a pressão da esquerda de corte stalinista, fortalecida pelo triunfo contra o nazismo e pelo surgimento dos novos estados operários burocráticos. Foi o momento em que Mao, Ho Chi Minh e, pouco depois, Fidel Castro, emergiram como referências.

    O que dizia o Secretariado Internacional da IV, sob a direção de Pablo?

    A posição era de que aquelas direções não eram contrarrevolucionárias, mas sim direções centristas que, como produto da pressão das massas, poderiam se tornar revolucionárias. Essa mudança de 180º nas posições da IV levou a uma profunda crise. Essa visão – que identificou o que se chamou de “pablismo” – foi combatida pela corrente de Moreno e pelo SWP dos EUA durante 1952-1953.

    Mais tarde, o Secretariado Unificado (SU), formado em 1963 sob a direção de Mandel, continuou a revisão, atribuindo a direções pequeno-burguesas, como o Partido Comunista chinês de Mao, e ao castrismo, um papel revolucionário, dando origem à tendência guerrilheira que foi enfrentada tanto por Moreno quanto pelo SWP.

    Contudo, as posições foram se alterando. A evolução subsequente do SU unificou o mandelismo com o SWP, abandonando o critério leninista para caracterizar as direções por seu programa e caráter de classe. Para eles, uma direção da pequena burguesia ou stalinista pode se transformar em revolucionária. Confundiram o que era produto da combinação entre a radicalização das massas e uma situação extrema de crise catastrófica – guerras, etc. – que as impulsionava adiante, com um suposto caráter revolucionário dessas direções. Em especial, aplicaram esse critério para definir o castrismo, do qual opinavam que, por não derivar do stalinismo, podia ser considerado uma direção revolucionária por estar à frente de uma revolução que expropriou a burguesia. Fidel Castro chegou a ser identificado por Novack como um dirigente igual ou superior a Lenin.

    Por outro lado, outro setor do trotskismo, como Healy, da Inglaterra, e Lambert, da França, tomando as Teses da Permanente como uma espécie de “bíblia”, não reconheceram essas revoluções como socialistas por terem expropriado as burguesias, tampouco reconheceram como tais os estados operários formados a partir delas.

    O SWP revê a teoria da revolução permanente em relação aos oprimidos

    Na década de 1960-1970, nos EUA, houve um grande ascenso do movimento das mulheres, liderado por diferentes correntes feministas, e um avanço do movimento negro em prol dos direitos civis, contra a discriminação racial, em um contexto no qual não havia grandes lutas operárias. Frente a essa realidade, o SWP realizou uma revisão teórica muito profunda. Trabalhamos bastante com o material de Mary Alice Waters, mas a base teórica é de Novack.

    George Novack, em seu livro Democracia e Revolução (1971), introduz conceitos que, na verdade, constituem uma revisão global da teoria da Revolução Permanente.

    Em primeiro lugar, ele afirma que a defesa da democracia contra seus inimigos levaria, por si só, à luta pelo socialismo, e que a estratégia revolucionária consiste em defender e expandir a democracia. No referido texto teórico-histórico, ele explica:

    Hoje em dia, as classes médias urbanas e rurais declinaram em importância econômica e social; os pequenos proprietários já não terão, por muito tempo, força independente suficiente para resistir a ataques frontais contra a democracia. Há apenas uma força social com poder suficiente para defender a democracia contra o ‘perigo claro e presente’ da reação capitalista. É a classe operária, que representa a esmagadora maioria da população. Os operários brancos, os afro-americanos e os povos do Terceiro Mundo, a juventude radical, as mulheres que se rebelam contra seu status de ‘segundo sexo’ e os intelectuais e profissionais dissidentes formam uma falange de forças que devem ser unidas em um único front para defender a democracia.” (Como defender e expandir a democracia?, Capítulo 12)

    Partindo da afirmação de Trotsky de que há uma tendência crescente ao fascismo e/ou à bonapartização da democracia burguesa, Novack apresenta um posicionamento programático geral (algo que Trotsky não fez): a estratégia da revolução permanente, em democracias como a dos EUA, é lutar para defender a democracia de ataques em todas as suas dimensões; a luta pelas liberdades democráticas, contra a opressão da mulher, contra o racismo e pelos direitos da juventude, devem ser o centro – e a chave é radicalizá-las até alcançar a ditadura do proletariado. O caminho para o socialismo passa, portanto, pela defesa e ampliação da democracia burguesa. Essa luta encaminharia diretamente para a conquista do poder.

    Esse conceito foi posteriormente aplicado pela direção do SWP em sua resolução sobre a luta das mulheres.

    Em consonância com essa perspectiva, atribui a capacidade de dirigir a revolução a todos os setores que sofrem opressão, discriminação – a todos os oprimidos, que devem se unir em um único front para defender a democracia.

    «Os marxistas abordam o problema de uma forma fundamentalmente distinta. Consideram a democracia burguesa não como um fim em si, mas como uma etapa na evolução da soberania popular, cujas conquistas progressistas precisam ser preservadas. Contudo, essas conquistas estão constantemente ameaçadas pela crescente dominação reacionária dos ricos, durante o declínio do capitalismo. Só podem ser mantidas e expandidas através da ação e organização independente das massas operárias e de todos os oprimidos contra os monopolistas e os militaristas, que devem ser direcionadas, em última análise, para despojar os primeiros do poder.» (Novack, op.cit.)

    Dessa perspectiva, defende-se que o sujeito social não é exclusivamente a classe operária, mas uma soma dos sujeitos dos movimentos de massas democráticos – sem distinção de classes – que englobam o movimento negro, das mulheres, da juventude e, inclusive, a própria classe operária.

    Por esse motivo, rejeita-se o critério de classe da Teoria da Revolução Permanente, conforme proposto por Moreno na Tese 39 da Atualização do Programa de Transição:

    … a direção do SWP está engajada em outro ataque à teoria trotskista da revolução permanente. Para esta nova teoria do SWP, o proletariado ou o trotskismo não são essenciais para o contínuo desenvolvimento da revolução permanente. Eles são, na melhor das hipóteses, um ingrediente a mais. A nova teoria da revolução permanente defendida pela atual direção do SWP é a teoria dos movimentos unitários progressistas dos oprimidos, e não do proletariado e do trotskismo. Todo movimento de oprimidos – se for unitário e englobar o conjunto destes, ainda que sejam de classes diferentes – é, por si só, cada vez mais permanente e conduz inevitavelmente – sem diferenciações de classe ou políticas – à revolução socialista nacional e internacional. Essa concepção é expressa, particularmente, em relação aos movimentos negro e da mulher. Todas as mulheres são oprimidas, assim como todos os negros; se se conseguir mobilizar um movimento que una esses setores oprimidos, essa mobilização não cessará e os conduzirá, através de diferentes etapas, à realização de uma revolução socialista.

    … Para o SWP, o socialismo é uma combinação de diferentes movimentos multitudinários – sem distinção de classes – de importância semelhante: o movimento negro, o feminino, o operário, o juvenil, o dos idosos, que quase que pacificamente conduzem ao triunfo do socialismo. Se todas as mulheres marcharem juntas, isso representa 50% do país; se o mesmo ocorrer com os jovens (70% em alguns países latino-americanos, além dos operários, negros e camponeses), a combinação desses movimentos fará com que a burguesia seja encurralada – em um pequeno espaço – pois serão os adultos burgueses, homens brancos, os que se oporão à revolução permanente. É a teoria de Bernstein combinada com a revolução permanente: o movimento é tudo e a classe e os partidos nada. Essa teoria rapidamente se transforma em um humanismo anticlassista, que reivindica a práxis como categoria fundamental, em oposição à luta de classes como motor da história. Nós – em confronto com o SWP – devemos, mais do que nunca, reafirmar o caráter de classes e trotskista da revolução permanente. Nenhum setor burguês ou reformista nos acompanhará no processo da revolução permanente. Em algumas conjunturas excepcionais, quando a ação não representar uma ameaça à burguesia e à propriedade privada, poderão marchar juntos jovens burgueses e operários, mulheres burguesas e operárias, negros oportunistas e revolucionários; mas essa marcha conjunta será excepcional e não permanente. Nós continuamos a defender, de forma intransigente, a essência – tanto da teoria quanto das próprias Teses – da revolução permanente: somente o proletariado liderado por um partido trotskista pode conduzir de maneira consistente, até o fim, a revolução socialista internacional e, por conseguinte, a revolução permanente. Apenas o trotskismo pode impulsionar a mobilização permanente da classe operária e de seus aliados, principalmente os operários.

    A posição do SWP e suas propostas para a libertação da mulher

    Relacionada a essa revisão teórica, surge também a revisão do conceito de opressão e a proposta do movimento unificado das mulheres, articulada por Mary Alice Waters. Em A Revolução Socialista e a Luta pela Libertação da Mulher, Waters afirma:

    A opressão da mulher é indispensável para a manutenção da sociedade de classes. Portanto, a luta de massas das mulheres contra essa opressão é uma forma de combater a dominação capitalista. As mulheres são um componente importante e um poderoso aliado potencial da classe operária na luta contra o capitalismo… Sem a mobilização de massas das mulheres, a classe operária não pode realizar suas tarefas históricas.

    Dessa forma, o apoio à construção de um movimento feminista autônomo passa a fazer parte da estratégia do partido revolucionário da classe operária.

    Waters parte de uma definição equivocada: que a opressão da mulher é indispensável para a manutenção da sociedade capitalista – tema que será abordado mais adiante. Por outro lado, ela encara o conjunto das mulheres como aliadas da classe operária, defendendo que as lutas pelas tarefas democráticas, por si sós, conduzem à tomada do poder. E se as mulheres, em conjunto, sem distinção de classe, são consideradas o sujeito social de uma importante luta democrática, é estratégica a formação de um movimento feminista unificado – o que remete à proposta da Irmandade de Mulheres, defendida pelas feministas radicais.

    Essa visão contrasta com a da dirigente revolucionária Clara Zetkin, que impulsionou as ações e as resoluções acerca da mulher na II e, posteriormente, na III Internacional. Em A Contribuição da mulher operária é indispensável para a vitória do socialismo, Zetkin afirmava:

    O objetivo final da luta da mulher não é competir livremente com o homem, mas conquistar o poder político pelo proletariado. A mulher operária luta lado a lado com o homem de sua classe contra a sociedade capitalista. Isso não significa que ela não deva apoiar também as reivindicações do movimento feminino burguês. Mas a conquista dessas reivindicações representa apenas um instrumento, um meio para um fim – para entrar na luta com as mesmas armas ao lado do proletariado. … A mulher operária posiciona-se ao lado do proletariado, enquanto a burguesa fica do lado da burguesia.

    Não devemos nos deixar enganar pelas tendências socialistas presentes no movimento feminino burguês: essas se manifestarão enquanto as mulheres burguesas se sentirem oprimidas, mas não além disso.

    Nos anos 80, o SU incorporou e passou a defender essa visão elaborada pelo SWP, aprofundando-a e acolhendo as posições das feministas radicais. Em 1989, a então seção do SU, a LCR espanhola, desenvolveu as teses intituladas “A Rebelião das Mulheres”. Para elas, a revolução é a soma de lutas democráticas que são, por si só, anticapitalistas se forem levadas de forma radical e independente da classe e de sua direção – seja ecológica, feminista, etc.

    Elas defendem que a opressão “da mulher é exercida de forma individualizada pelos ‘homens’ em conjunto”, e a esse conjunto de relações denomina-se patriarcado, alinhando-se com a posição das feministas radicais, conforme analisado no seminário e no artigo de Florence Oppen desta revista.

    O sujeito social da libertação das mulheres seria “as mulheres”, isto é, todas, sem distinção de classe: “O movimento feminista surge como expressão do despertar da consciência de muitas mulheres e se configura como o sujeito determinante na luta por sua libertação” (p. 3), considerando-as parte do conjunto dos setores que se unirão até o final na luta pelo socialismo, dos quais estaria incluída a classe operária. (Tese 14: … Além disso, existem outros movimentos de libertação, e particularmente a classe operária, que para alcançar seus objetivos também deve propor a destruição do Estado… Tese 15: “também o caráter estratégico do movimento feminista, seu papel central na transformação revolucionária”. Tese 16: “As mulheres são o sujeito de sua própria libertação…”)

    Ou seja, para a LCR e o SU, existem vários movimentos – o das mulheres, o da classe operária e outros que se somam na luta anticapitalista. Para a LCR, a classe operária é apenas parte desse processo, por mais importante que seja. Contudo, de forma categórica, seu papel não é o de liderar, mas o de se aliar a qualquer outro setor. Não há referência à divisão de classes dentro do universo feminino. O movimento feminista deve ser autônomo do Estado e dos demais movimentos, inclusive do movimento operário e do partido; consequentemente, o papel do partido revolucionário não é liderar nem combater as direções pequeno-burguesas, mas apenas participar ativamente do movimento autônomo das mulheres – e ponto final.

    Como vimos no seminário, não estamos apenas relembrando polêmicas dos anos 70 e 80 do século XX. Essas posições continuam sendo defendidas hoje por organizações trotskistas, como o FSP (Freedom Socialist Party) dos EUA, o que mantém a atualidade desse debate.

    O caráter das tarefas para a libertação da mulher e o que pode ser alcançado antes da tomada do poder

    Esses dois temas também foram objeto de debate entre os marxistas no seminário.

    Ficou claro que as lutas contra a opressão não são, em si, tarefas anticapitalistas, mas tarefas democráticas. Ou seja, o capitalismo não se estrutura em torno da opressão da mulher. As reivindicações relativas à igualdade feminina são demandas democráticas que ficaram pendentes. Algumas delas foram conquistadas ao longo do século XX e continuam em aberto no século XXI, ainda que permeadas por muitas desigualdades. Referimo-nos a questões democráticas como o direito de voto, a guarda dos filhos, o direito à educação, à propriedade, ao divórcio, ao aborto, em vários países.

    Por outro lado, o seminário deixou claro que a luta contra a opressão da mulher é milenar e que a burguesia, mesmo tendo contribuído para o desenvolvimento das forças produtivas e criado as condições ao incorporar massivamente a mulher ao mercado de trabalho, foi incapaz de resolver a questão – nem mesmo nos países imperialistas. É decisivo compreender que isso tem a ver com o que propõe a Revolução Permanente: na época imperialista, a burguesia é incapaz de concluir até o fim qualquer uma das tarefas democráticas que ficaram pendentes da revolução burguesa – e isso inclui a opressão da mulher, que subjuga metade da humanidade.

    É preciso reafirmar que, ainda mais na época imperialista, a burguesia dos países periféricos é incapaz de cumprir as tarefas democráticas. Essa incapacidade, segundo Trotsky, tem dois motivos centrais: a) a relação orgânica das burguesias com o imperialismo; b) o receio de colocar as massas, especialmente a classe operária, em movimento.

    Essa incapacidade mencionada por Trotsky está relacionada à conclusão das tarefas democráticas. Contudo, a burguesia foi obrigada, em certas circunstâncias, a adotar medidas parciais para frear grandes movimentos revolucionários. Por exemplo, é do interesse de alguns setores burgueses que exista um mercado interno unificado e medidas protecionistas contra concorrentes internacionais. Houve processos de industrialização na América Latina e nacionalizações – parciais ou não – de recursos minerais. Também na América Latina, conhecida por seus golpes de estado recorrentes, em determinado momento, utilizou-se a reação democrática para desviar o avanço revolucionário.

    No que diz respeito à opressão da mulher, verifica-se uma dinâmica semelhante: a burguesia é incapaz de resolver a opressão da mulher, assim como não consegue solucionar o problema do racismo, pois o capitalismo absorve todas as opressões, utilizando as diferentes situações de privilégios e desvantagens para explorar melhor os trabalhadores e os povos. Esse processo de aproveitar as desigualdades atinge seu ápice na fase decadente do capitalismo – o imperialismo – que se vale de todas as diferenças raciais, sexuais, nacionais, para explorar ainda mais. Contudo, isso não impede que, diante da radicalização e das lutas, a burguesia e o imperialismo possam fazer concessões, em especial na esfera de reivindicações formais, como o divórcio, a igualdade perante a lei, a legalização do aborto. Como vimos, essas demandas podem ser atendidas sem que o capitalismo esteja em risco. Além disso, sempre que são feitas esse tipo de concessões legais, tenta-se incorporar e cooptar setores de mulheres com a promessa de se alcançar a igualdade legal dentro do próprio sistema capitalista. Por exemplo, o direito de voto já existe na grande maioria dos países e, então, surge a convocação para a ‘participação cidadã’ das mulheres, como caminho para superar a opressão.

    Esse é o pano de fundo do chamado empoderamento, das políticas de ‘gênero’ que dizem às mulheres que basta que se conscientizem de seus direitos, eduquem-se e proponham-se a assumir as tarefas dos homens, para conquistar a igualdade e acabar com a violência contra a mulher, entre outras reivindicações. Com esse objetivo, faz-se propaganda utilizando como exemplos mulheres que são ministras ou presidentes de países, como Merkel, Dilma ou Cristina Kirchner. Também estão presentes campanhas da ONU que abordam gênero e o progresso da mulher. Todas essas iniciativas mascaram o fato de que, para a imensa maioria das mulheres – as trabalhadoras e as donas de casa dos lares operários – a situação piora a cada dia, e esse é um sonho totalmente inalcançável sob o capitalismo. Pois o imperialismo, a cada dia, ataca mais as condições de vida dos trabalhadores, e as mulheres são as que mais sofrem com o desemprego, a fome, o colapso dos serviços públicos de saúde e educação, entre outros problemas graves.

    Diante de tudo isso, houve consenso de que a exploração capitalista divide os oprimidos e, portanto, é equivocado considerar as mulheres como um sujeito social único na luta contra a opressão. Assim, a opressão da mulher faz parte das tarefas democráticas – das demandas que ficaram pendentes da revolução democrática – e essa questão só poderá ser plenamente resolvida com a tomada do poder em cada país e, mais precisamente, com a derrota definitiva do imperialismo e a construção do socialismo mundial e do comunismo. Assim como em outras questões democráticas não solucionadas, reafirmamos que o sujeito social é o proletariado e o sujeito político é o partido revolucionário, operário e internacionalista. Do mesmo modo, defendemos que, para avançar rumo ao socialismo, é fundamental enfrentar cotidianamente a luta contra a opressão da mulher, pois a opressão divide a classe operária, sujeito social da revolução.

    Hierarquia das tarefas democráticas

    Outra questão debatida foi se todas as tarefas democráticas abandonadas pela burguesia têm a mesma hierarquia ou se, para a Revolução Permanente, existem hierarquias diferenciadas.

    Para nós, não há dúvidas: existe essa diferenciação hierárquica. Como afirmam as Teses da Revolução Permanente e o artigo de polêmica com Tony Cliff e o SWP da Inglaterra, de Florence Oppen, há três grandes tarefas democráticas históricas, resumidas da seguinte forma por Michel Löwy:

    A revolução agrária democrática: a abolição corajosa e definitiva de todos os resquícios de escravidão, feudalismo e regimes asiáticos despóticos, a eliminação de todas as formas pré-capitalistas de exploração (como a corveia – trabalho penoso –, trabalho forçado etc.) e a expropriação dos grandes latifundiários, com a distribuição da terra para os camponeses.

    A libertação nacional: a unificação da nação e sua emancipação da dominação imperialista; a criação de um mercado nacional unificado e sua proteção contra mercadorias estrangeiras mais baratas; o controle de determinados recursos naturais estratégicos.

    A democracia: para Trotsky, isso incluía não só o estabelecimento de liberdades democráticas, uma república democrática e o fim dos governos militares, mas também a criação das condições sociais e culturais que permitissem a participação popular na vida política – por exemplo, a redução da jornada de trabalho para oito horas e a ampliação da educação pública.

    Moreno acrescenta que a única dessas tarefas que é estrutural – cuja conquista ataca a estrutura da dominação na época atual – é a libertação nacional, o que decorre, em sua própria teoria do imperialismo, do fato de que a dominação colonial e semicolonial é parte estrutural da dominação econômica e política do imperialismo, da fase atual do capitalismo mundial. Acreditamos que Moreno está correto, e isso tem a ver com a fase monopolista do capitalismo, com o fato de que um número cada vez menor de potências imperialistas exerce dominação, que houve a submissão dos antigos Estados operários, que países imperialistas passam a dominar, que as invasões e guerras coloniais continuaram durante todo o século XX e se estendem pelo século XXI.

    Qual deve ser, então, a posição dos revolucionários em relação às tarefas democráticas de luta contra a opressão da mulher?

    Sem dúvida, devemos encará-las como fundamentais, pois, como afirma Lenin, se os revolucionários não se apresentarem como aqueles que mais lutam por cada uma das reivindicações, não conquistarão a confiança nem conseguirão atrair as massas oprimidas para o campo da revolução. Pois, ao impulsionar a luta contra a opressão das mulheres, abrem-se as portas para mobilizar amplos contingentes de mulheres trabalhadoras e atraí-las para o campo do proletariado. Além disso, como o machismo e a opressão dividem a classe operária, é imprescindível a sua união para a conquista do triunfo revolucionário. Por isso, temos que convocar, de maneira ampla, o proletariado para assumir as bandeiras dos oprimidos – das mulheres, dos negros, dos indígenas, dos imigrantes e dos LGBT.

    Isso é parte fundamental da luta para que a classe operária torne-se a líder de todos os setores oprimidos. Queremos que ela seja o dirigente dos camponeses pobres, dos setores populares urbanos e das minorias perseguidas.

    No que diz respeito à opressão da mulher, assumir esse combate de forma profunda implica travar uma batalha permanente contra as direções e organizações que propagam a influência burguesa, um combate com orientação de classe, para conquistar a adesão das mulheres trabalhadoras e trazê-las para o lado da classe operária. Atualmente, quando a burguesia adota retoricamente essas bandeiras e até tenta capitalizar algumas medidas conquistadas no campo democrático, essa luta se torna ainda mais importante para enfrentar ideologias como o empoderamento, as teorias de gênero e a colaboração de classes. É necessária uma luta implacável contra essas concepções feministas, a fim de conquistar a adesão das mulheres trabalhadoras e exploradas para se unirem à classe operária.

    Determinar que as tarefas contra a opressão da mulher são de caráter democrático (e, portanto, policlássicas, como alerta Clara Zetkin, já que nelas intervêm diferentes classes que sofrem essa opressão) não diminui a importância dessa luta; pelo contrário, essa precisão a fortalece, pois nos assegura que só podemos avançar na resolução dessa questão se a enquadrarmos na perspectiva da luta do proletariado pela destruição do capitalismo e do imperialismo, pelo poder da classe operária, no caminho do socialismo e do comunismo – a única forma de libertar a humanidade de toda exploração e opressão.