Autor: Zezoca

  • Sobre a organização dos oprimidos

    Sobre a organização dos oprimidos

    No artigo A teoria da revolução permanente, as tarefas democráticas e a luta dos oprimidos, referimo-nos à polêmica com o SWP dos anos 1970 e com outras correntes do trotskismo que reivindicavam a organização autônoma das mulheres e de outros setores oprimidos, ultrapassando a fronteira de classe. Esse tema não foi polêmico no seminário, pois houve acordo unânime em rejeitar esse tipo de organizações de aliança de classes.

    Por Alicia Sagra e José Welmowicki

    Surgiu, entretanto, outra polêmica a respeito de se é correto ou não o chamado às mulheres trabalhadoras e a outros setores oprimidos dos trabalhadores para se organizarem de forma autônoma (em tudo o que se refere à luta contra a opressão). Ou seja, que existam, em nível da organização de classe, por exemplo nas centrais sindicais, organizações por opressões, não circunstanciais, mas permanentes.

    O que chamou a atenção no seminário foi que tanto os que se opunham a esse tipo de organização quanto os que a defendiam, apoiavam-se nos mesmos materiais programáticos para fundamentar suas posições: a Tese sobre a propaganda entre as mulheres, votada pelo terceiro congresso da III Internacional em 1921, e a Tese XXIX de Atualização do Programa de Transição de Nahuel Moreno, de 1980. Evidentemente, estamos diante de um problema de diferentes interpretações dos mesmos documentos.

    Por esse motivo, precisamos aprofundar o estudo desses documentos, analisando essas definições programáticas não apenas do ponto de vista teórico-ideológico, mas também histórico: qual foi a orientação que, historicamente, nossos mestres deram à organização dos oprimidos? E por que o fizeram?

    O primeiro passo é precisar o que esses documentos dizem, contrastando o texto escrito com a prática concreta daqueles que os redigiram. E, embora devamos aplicar o mesmo método para os dois documentos citados, é inegável que o documento central é o material da III Internacional, visto que todos reconhecemos que essas teses são a principal ferramenta programática para o trabalho com as mulheres.

    Como não somos religiosos que seguem uma bíblia, o segundo passo – uma vez precisado o que se diz – é determinar se essas definições estão corretas na atualidade. Se foram na época, mas, devido às mudanças mundiais, já não o são, ou se sempre estiveram equivocadas.

    Devemos seguir esses passos com muita precisão, pois essa discussão não é para ganhar uma polêmica nem por um interesse puramente intelectual. Nosso propósito comum está relacionado com a necessidade de enfrentar a reelaboração programática com o objetivo de atualizar nosso programa histórico.

    Vamos, então, começar com o documento mais recente.

    Tese XXIX de Atualização do Programa de Transição

    Na referida tese, Nahuel Moreno explica:

    «(…) nós estamos a favor da unidade de ação anti-imperialista; da unidade de ação das mulheres pela legalização do aborto, do divórcio ou pelo direito ao voto; da unidade de ação com qualquer partido político para reivindicar espaços iguais na rádio e na televisão; de uma manifestação, com quem for, para solicitar esses direitos democráticos contra o governo bonapartista e totalitário e mesmo democrático burguês. Mas não confundimos a unidade de ação com a formação de uma frente. Somos contrários a fazer frentes com os partidos burgueses ou pequeno-burgueses para defender a democracia, mesmo quando concordamos com eles na defesa de determinados pontos democráticos. Com o nome de ‘frente’ estruturam-se organizações que são frentes-populistas (embora, em determinados casos, possam desempenhar um papel relativamente progressista, como os movimentos nacionalistas), por envolverem distintas classes — sobretudo a burguesia e a pequena burguesia — e por terem objetivos que não são os da independência política da classe operária. (…) Quando essa frente (que jamais devemos promover, pois a consideramos uma variante da frente popular) se estabelece, e nela a classe operária intervém ,ou um setor importante dela, podemos intervir, já que ela existe objetivamente, mas para desmantelá-la, para denunciá-la de dentro e para independentizar, tanto política quanto organizacionalmente, a classe operária que nela está. Isso significa que podemos intervir em um movimento nacionalista, mas com um claro sentido de denúncia da colaboração de classes e propondo a independência da classe operária (…) Essa explicação de que nós não estamos a favor de uma frente única anti-imperialista, nem antifeudal, nem feminista antimachista, democrática antiditatorial, mas sim a favor de ações anti-imperialistas, feministas, democráticas e antilatifúndio, é muito importante, pois houve uma tendência de camuflar a política frente-populista com esses nomes.»

    Ao apresentar este texto, obtivemos dois tipos de resposta:

    1 – Que a negativa de constituir esses frentes, conforme apresentado, refere-se somente à unidade com a burguesia (como seria o caso do SWP nos anos 70) e, portanto, não se aplica quando se trata de organizar separadamente as mulheres trabalhadoras.

    2 – Que aí se esboça uma proposta propagandista e sectária, que tem a ver com o fato de que Moreno não está à altura de Lenin no tema da luta contra a opressão da mulher.

    Não concordamos com o primeiro ponto, pois, para nós, a posição de Moreno ao rejeitar essas frentes baseia-se em dois aspectos: 1 – «por envolver diversas classes — sobretudo a burguesia e a pequena burguesia» e 2 – «por terem objetivos que não são os da independência política da classe operária«.

    Quanto ao segundo argumento, não vemos por que seria propagandista e sectário rejeitar a organização separada das mulheres e demais oprimidos e, ao mesmo tempo, lutar vigorosamente para que se organizem junto com seus irmãos de classe, batalhando nos organismos de frente única operária pela maior participação das mulheres, inclusive em seus quadros de direção. Acreditamos que essa última forma torna a luta contra o machismo mais eficaz, que é muito forte nos sindicatos, sobretudo onde a burocracia está no comando, mas não somente neles. Além disso, entendemos que essa orientação, utilizando todos os mecanismos aconselhados pela III Internacional (comissões de mulheres, jornais específicos, encontros de mulheres trabalhadoras), é a melhor para lutar para que o conjunto da classe assuma o combate contra a opressão da mulher. Em contrapartida, não nos parece que organizar as mulheres separadamente seja a melhor forma de enfrentar o machismo nos sindicatos. Isso seria o mesmo que dizer que a melhor forma de enfrentar a burocracia é se organizar separadamente nos sindicatos vermelhos.

    No que diz respeito a Moreno, não acreditamos que ele tenha subestimado a luta contra as opressões. É verdade que, no que tange ao problema da mulher, nossa corrente incorporou essa política somente a partir de 1973, a partir da influência positiva do SWP dos EUA. Mas, a partir desse momento, passou a ser um tema importante que marcou, particularmente, a formação de nossos quadros femininos, cujo número e peso foram uma característica distintiva do nosso partido. Obviamente, Moreno não esteve, em nenhum aspecto, à altura de Lenin, mas, a partir de 1973, independentemente dos erros e correções, consideramos que a orientação que tivemos em relação ao trabalho com as mulheres esteve no marco das resoluções da III Internacional. E quando, no final dos anos 70, Moreno viu-se obrigado a enfrentar seus mestres do SWP, desenvolveu a polêmica com Mary Alice Waters apoiando-se nas elaborações leninistas.

    De qualquer forma, consideramos que o documento programático mais completo são as Teses do terceiro congresso da III Internacional, inquestionavelmente reivindicadas por todos os participantes do seminário, por isso é nelas que devemos concentrar nossa análise.

    O que essas Teses propõem

    As teses foram elaboradas e apresentadas por Clara Zetkin, que em seu texto Meus lembretes de Lenin descreve suas conversas prévias com o dirigente bolchevique sobre o tema.

    Há um conceito que permeia toda a tese: Só no comunismo se alcançará a libertação da mulher, e ao comunismo só se chegará pela luta conjunta de operárias e operários.

    Nela, propõe-se a obrigação de todos os partidos da Internacional de realizar um trabalho sobre o proletariado feminino, tomando consciência da importância da «participação ativa das mulheres em todos os setores da luta do proletariado (inclusive em sua defesa militar), da construção de novas bases sociais, da organização da produção e da existência em conformidade com os princípios comunistas«.

    Chama a atenção a importância dada a esse trabalho, preocupando-se inclusive com como desenvolvê-lo nos países do Oriente. Detalha a necessidade de recorrer a organismos especiais (comissões, seções, etc.), indica que deve ser dada especial importância ao trabalho nas fábricas e nos sindicatos, e que as frentes comunistas dos sindicatos e de outras organizações operárias devem ter organizadores e agitadores dedicados especialmente ao trabalho com as mulheres trabalhadoras. Propõe que sejam realizadas reuniões com as trabalhadoras nos ateliês, bem como em seus bairros. Ou seja, é extremamente detalhista. Mas em nenhum momento convoca as trabalhadoras a organizarem-se separadamente. Ao contrário, define-se de forma enérgica contra isso:

    «Ao mesmo tempo em que se pronuncia veementemente contra qualquer tipo de organização separada de mulheres no seio do partido, dos sindicatos ou de outras associações operárias, o 3º Congresso da Internacional Comunista reconhece a necessidade, para o Partido Comunista, de empregar métodos específicos de trabalho entre as mulheres e estima a utilidade de formar, em todos os partidos comunistas, organismos especiais encarregados desse trabalho.»

    Esses organismos especiais a que se faz referência não têm nada a ver com organizá-las de forma separada, como demonstra a afirmação categórica com que se inicia o parágrafo. Mas, para que não reste nenhuma dúvida sobre isso, na Resolução concernente às formas e aos métodos do trabalho comunista entre as mulheres, apresentada por Alexandra Kollontai, votada no mesmo congresso, estabelece-se:

    «Para que se cumpra esse objetivo, todos os partidos aderentes à III Internacional devem formar, em todos os seus órgãos e instituições, desde os mais baixos até os mais elevados, seções femininas presididas por uma integrante da direção do Partido, cujo objetivo será o trabalho de agitação, de organização e de instrução entre as massas operárias femininas (…) Essas organizações femininas não formam organizações separadas; são apenas órgãos de trabalho (…)»

    Pode-se dizer que essa tese se refere ao partido, o que não está em discussão. É verdade que essa tese e a mais geral (Tese sobre a propaganda entre as mulheres) referem-se centralmente ao partido, a como conquistar mulheres trabalhadoras para o partido, a como se forma um movimento comunista de mulheres (isto é, do partido). Por esse motivo, sempre nos pareceu equivocado o argumento de que o chamado para construir organismos especiais (comissões, seções, etc.) significava que a orientação de organizar separadamente as mulheres trabalhadoras, isto é, construir organismos permanentes de unidade de ação a partir das opressões, estava no marco da III Internacional.

    Porém, embora a Tese da Terceira esteja centrada no partido, ela não ignora os sindicatos. Faz duas definições nesse sentido: 1 – «No período atual, os sindicatos profissionais e de produção devem constituir, para os partidos comunistas, o campo fundamental do trabalho entre as mulheres (…)» 2 – A que já mencionamos: (O congresso da Terceira) «pronuncia-se veementemente contra qualquer tipo de organização separada de mulheres no seio do partido, dos sindicatos ou de outras associações operárias, (…)».

    Esta Tese insiste tanto na importância de manter a unidade entre as operárias e os operários que aconselha que, nas comissões de mulheres, na medida do possível, também participem homens e, de forma semelhante, no nível da formação, estabelece:

    «Para desenvolver o espírito de camaradagem entre operárias e operários, é preferível não criar cursos e escolas especiais para as mulheres comunistas. Em cada escola do partido deve haver, obrigatoriamente, um curso sobre os métodos de trabalho com as mulheres.«

    E tudo isso, o que se propõe para o partido e para o sindicato, está intimamente ligado à definição que Lenin faz em suas conversas com Clara Zetkin: «De nossa concepção ideológica derivam-se as medidas organizativas«. E qual é essa concepção ideológica em relação ao problema da mulher? Que somente o comunismo libertará as mulheres e que só se chegará ao comunismo pela luta unificada de operárias e operários, isto é, o conceito que, como dissemos, permeia toda a tese. Por isso, a proposta organizacional é elaborada em torno da questão de classe e não da opressão. Por isso, Lenin conclui sua frase dizendo: «Nada de organização especial da mulher comunista!«

    Pode-se dizer que aqui Lenin refere-se à mulher comunista e não à trabalhadora. Mas, se não é essa a sua orientação, por que em toda a sua história nem Clara Zetkin, nem Lenin, nem a Terceira jamais convocaram as mulheres trabalhadoras para se organizarem separadamente? E não se pode dizer que não o fizeram por subestimar a luta contra a opressão. Sua política foi propagandista por não fazer esse chamado? A Tese da Terceira preocupa-se em não ficar apenas na propaganda, mas não orienta a criação de organizações de mulheres com esse objetivo, e sim indica:

    «Para serem órgãos de ação e não somente de propaganda oral, as seções femininas devem apoiar-se nos núcleos comunistas das empresas e oficinas e designar, em cada núcleo comunista, um organizador especial do trabalho entre as mulheres da empresa ou oficina

    E, para finalizar, essa orientação de Clara Zetkin, Lenin e da Terceira, ainda é correta na atualidade ou é necessário modificá-la diante de mudanças ocorridas até hoje?

    Se analisarmos o grau de machismo nos sindicatos e no partido na época de Lenin, não podemos dizer que tenha sido menor do que na atualidade. Visto o baixo número de mulheres dirigentes sindicais e políticas naquela época e os entraves, inclusive legais, que em muitos países impediam a participação das mulheres, não há dúvida: o machismo era muito mais acentuado, e a situação da mulher, bem pior. Não por acaso, a tese da Terceira propõe:

    «Admitir as mulheres como membros com os mesmos deveres e direitos que o restante dos membros do partido e de todas as organizações proletárias (sindicatos, cooperativas, conselhos de fábrica, etc.)

    Portanto, não vemos nada que justifique mudar a orientação organizacional da Terceira Internacional. O machismo divide a classe e obstrui a entrada das mulheres trabalhadoras no partido. Essa é uma das razões centrais pelas quais devemos enfrentá-lo de forma sistemática e permanente. Mas não podemos fazê-lo aprofundando essa divisão ao criar organizações permanentes separadas para as mulheres e para o restante dos oprimidos. Não podemos aplicar aqui o critério de «dividir agora para unir depois», que, em determinadas circunstâncias, aplica-se para as nações oprimidas. Ao fazê-lo, cairíamos em uma orientação sexista. A organização separada das mulheres trabalhadoras enfraquece a classe e fragiliza a luta contra a opressão, pois faz com que os demais se desvinculem do problema com o argumento: «são coisas de mulheres, que se encarreguem as companheiras». Ou seja, o oposto do aconselhado pela Terceira Internacional.

  • O discurso da cidadania e a independência de classe

    O discurso da cidadania e a independência de classe

    O discurso da cidadania assumiu um gran­de alcance nos últimos vinte anos. Vem sendo empregado, com diversas conotações e para os mais diversos fins, por um amplo espectro de forças e correntes politicas. Surge como bandei­ra nos discursos de alguns dos setores mais reacionários da burguesia, de facções ditas «pro­gressistas» da classe média, sindicatos e corren­tes da classe trabalhadora e até mesmo partidos e movimentos que se reivindicam de esquerda.

    Por José Welmowicki

    Na Europa, é uma estratégia que caracteri­za o discurso de toda a esquerda, principalmen­te a social-democracia. E o discurso da maioria dos atuais governos europeus. No último con­gresso da Internacional Socialista, seu presiden­te então eleito, o português António Guterres ressaltou «a importância da iniciativa dos cidadãos no marco de uma sociedade solidária», e disse que o programa aprovado no congresso «responde sem complexos de forma a valorizar a cidadania». Segundo o presidente da Internacio­nal Socialista, o novo programa ideológico da organização «converte a pessoa no centro das preocupações de nossos países e governos». 1 

    Na Espanha, o discurso da cidadania assumiu uma tal Importância que inspirou inclusive o nome da recente chapa para as eleições europeias da Esquerda Unida: «Europa dos Cidadãos».

    Os movimentos ditos alternativos, como os verdes alemães, e aquele liderado pelo ex-líder estudantil Daniel Cohn-Bendit na França, usam e abusam da expressão: »A Europa se tornaria o espaço coletivo no qual os cidadãos partilha­riam os mesmos riscos«. «É neste sentido que falamos da ‘sociedade de risco’, que é uma forma de compromisso cidadão que apela à consciência crítica de cada um de nós para evi­tar ver a razão de mercado dominar todo modo de vida«.2

    Até mesmo em agrupamentos considerados de extrema-esquerda, como o Bloco de Esquer­da, em Portugal, a noção de cidadania impreg­na os discursos. O programa eleitoral do Bloco foi elaborado com base na interpretação da so­ciedade como composta de cidadãos e não de classes sociais3. Importantes dirigentes de cor­rentes que reivindicam o marxismo revolucionário, como Catherine Samary e Jaime Pastor, ligados ao Secretariado Unificado da IV Inter­nacional, propõem uma «estratégia socialista re­novada», baseada na colaboracão de movimen­tos de cidadãos de distintas origens (ecologis­tas, desempregados, feministas, etc.) que confor­mem redes europeias e internacionais 4.

    Na America Latina, a estratégia da cidada­nia também influencia diretamente a política de sindicatos, movimentos sociais e distintas cor­rentes politicas de esquerda, entre elas, o PT brasileiro, o EZLN de Chiapas e a FMLN de El Salvador.

    Mas o que é cidadania, segundo esse discurso politico? Seria a conquista dos di­reitos civis e sociais mínimos por parte dos cidadãos. Ao mesmo tempo, a concepção da ci­dadania implica que os cidadãos, além de di­reitos, têm deveres. A cidadania exige um com­promisso dos cidadãos com as leis vigentes, como a contrapartida da inclusão desses direitos na ordem legal. Exige, em nome da defesa da extensão desses direitos aos excluídos, uma defesa da ordem na qual se quer garantir a inclusão desses cidadãos.

    A sociedade teria de se comprometer em garantir a cidadania para a maioria dos seus habitantes e caberia aos movimentos sociais a luta para que ela fosse plena. As sociedades que mais se aproximariam do paradigma da cidadania plena seriam os países capitalistas avançados e alguns teóri­cos, como o alemão Jiiergen Habermas, propõem como meta estratégica a extensão do estado social a toda a União Europeia para que este sirva de exemplo ao mundo inteiro 5

    Mas, como chegar ao estágio de cidadania plena? Pela colaboração, negociação e diálogo entre os distintos setores sociais, e a promoção de políticas públicas tendentes a reduzir a desigualdade social. A palavra mágica é a parceria. Nos países dependentes, caberia aos movimentos sociais lu­tar pela conquista de seus direitos de cidadão, tomando como referência a democracia e a cidadania dita plena dos países capitalistas centrais. Para entender o alcance dessa teoria-programa, devemos entender a gênese e a evolução histórica da noção de cidadania.

    A origem do conceito político de cidadania 

    Na Grécia antiga, a cidadania tinha o significado de pertinência a polis. Aristóteles explica a formulação de cidadão presente na Constituição de Atenas, que formaliza a definição para a sociedade grega da época: o direi­to ou prerrogativa de participar das práticas deliberativas ou judiciárias da comunidade a que pertence. Ao mesmo tempo, nem todos tinham esse direito. A outorga da cidadania dependia de um exame seletivo, já que havia uma separação clara entre cidadãos e não-cidadãos (escravos e/ou estran­geiros): 

    «O estado atual do regime apresenta a seguinte conformação: participam da cidadania os  nascidos de pai e mae cidadãos, sendo inscritos entre os démotas 6 aos dezoito anos. Quando da inscrição, os démotas votam sob juramento a seu respeito: primeiro, se eles aparentam ter a idade legal (caso não aparentem, retornam à condição de meninos); segundo, se é homem, livre e de nascimento conforme as leis e, caso o rejeitem por não se tratar de homem livre, ele pode apelar para o tribunal, ao passo que os démotas encarregam da acusação cinco de seus membros; se for considerado que a inscrição é indevida, o Estado vende-o, mas se ele ganhar, os démotas ficam obrigados a inscrevê-lo.» 7

    Em alguns momentos na história de Atenas houve maior ou menor ampliação da condição de cidadania, por exemplo, estendendo-a a determinado número de estrangeiros. Eventualmente, alguns ex-escravos podiam obter a cidadania, mas, em geral, tanto os estrangeiros quanto os escravos não eram considerados cidadãos. Assim, a famosa «democracia» grega exis­tia de fato, mas apenas para uma parte da população. 

    A cidadania foi uma grande conquista para os gregos livres, mas às custas de uma enorme população escrava que lhes dava condição estrutural de subsistência. Mais ainda, nas repúblicas gregas em geral, a condição de cidadania era, praticamente, derivada da condição econômico-social de não-escravo. Havia diferenças sociais entre os ho­mens livres considerados cidadãos, muitas vezes tão grandes que causavam lutas sociais intensas.

    Mas as tensões existentes em uma socieda­de onde a maioria era escrava e a cidadania era privilégio de uma minoria estavam abertamente ligadas à questão da liberdade. O homem livre economicamente era também o homem livre politicamente. A principal separação econômico-social entre homens livres e escravos era clara e diretamente refletida na definição da condição de cidadania política, e não oculta, como mais tarde iria se manifestar com o advento do capitalismo, onde essa separação seria distinta no ‘homo economicus‘ e no homem político.

    Esse movimento esporádico de extensão do direito de cidadania não alterava o critério básico de definição da figura do cidadão, nem seu aspecto seletivo. Mas sempre as instituições democráticas incluíam os cidadãos e excluíam os demais habitantes da república. Apoiada no modo de produção escravista, essa sociedade, quando faz discriminações entre homens livres e escravos, e levanta a possibilidade de alguns serem vendidos e outros não, de fato exclui da cidadania a maioria de seus habitantes.

    O historiador inglês Perry Anderson, basea­do em diversas pesquisas sabre o tema, afirma que o número de escravos giraria em torno de 80 a 100 mil, contra cerca de 45 mil homens livres em Atenas no período de Péricles, no século V a. C. Ele cita o comentário de Aristóteles a respeito: “os estados estão obrigados a ter inúmeros escravos8 e como Xenofonte elaborara um pla­no para restaurar a riqueza de Atenas baseado em que “o Estado tivesse escravos públicos na proporção de um para cada cidadão ateniense”, Aristóteles resu­miu a divisão social de forma clara: «O estado perfeito jamais admitiria o trabalhador manual entre os cidadãos, porque a maioria deles são hoje escravos ou estrangeiros». 9

    O trabalhador manual – quem de fato ga­rantia o sustento da sociedade inteira – estava excluído da cidadania. O trabalho não dava di­reito a ela. 

    O conceito de cidadania para os primeiros teóricos do liberalismo 

    Já os teóricos da burguesia inglesa, aquela que primeiro ascendeu ao poder, formulavam com muita clareza seus conceitos de liberdade e de indivíduo, cuja finalidade era desenhar os alicerces da nova sociedade em construção. O médico e filósofo inglês do seculo XVII, John Locke, foi quem primeiro teorizou as mudanças introduzidas pela Revolução Gloriosa de 1688, 10 e transformou-as em um sistema de doutrina política coerente, um liberalismo político adequa­do aos interesses da burguesia ascendente. A base de sua teoria era o primado do indivíduo, do qual derivou sua visão do individualismo liberal; para justificá-la, identificava como direito natural o di­reito a propriedade:

    O homem, nascendo, conforme provamos, com di­reito à perfeita liberdade e gozo incontrolado de todos os direitos e privilégios da lei da natureza, por igual a qual­quer outro homem ou grupo de homens do mundo, tem por natureza o poder não só de preservar a sua proprie­dade – isto é, a vida, a liberdade e os bens(…) O grande e principal objetivo, portanto, da união dos ho­mens em comunidades, colocando-se eles sob governo, é a preservação da propriedade. Para este fim, faltam mui­tas condições no estado de natureza. Primeiro, falta uma lei estabelecida firmada, conhecida, recebida e aceita me­diante consentimento comum, como padrão do justo e injusto e medida comum para resolver quaisquer controvérsias entre os homens.11

    Para Locke, a liberdade só merece esse nome quando garante o direito à propriedade. É a prin­cipal finalidade das leis que mudam o estado do homem do “estado de natureza” primitivo para livre e uma sociedade que o preserve enquan­to proprietário. 12

    Essa concepção, que tinha na sua raiz a luta contra os privilégios feudais e a defesa da pro­priedade burguesa contra os ataques arbitrários dos reis e da nobreza, também delimitava os parâmetros de cidadania para a nova sociedade: se liberdade é, em última instância, o direito à propriedade, os homens livres são aqueles que detêm a propriedade. Daí é fácil deduzir a origem da concepção do voto censitário, o direito ao voto somente àqueles que têm um determinado rendimento ou propriedade. Essa concepção é a de uma sociedade baseada na preservação da propriedade privada e na presença de uma instância política de deliberação formada apenas por indivíduos (ou cidadãos) que têm acesso à determinada forma de proprie­dade ou riqueza (a própria burguesia). Ela marcará toda a fase de ascensão da burguesia. 13

    O primeiro grande teórico do liberalismo econômico, Adam Smith, em A Riqueza das Nações, já defendia os pressupostos necessários para o livre desenvolvimento do capitalismo. Se o pressuposto fundamental era a superexploração dos trabalhadores, uma das condições mais importantes para que isso pudesse ser feito era impedir qualquer organização da clas­se operária. Cabia a cada cidadão como indivíduo buscar sua melhor recompensa no mercado:

    As pessoas da mesma profissão raramente se reúnem, mesmo que seja para mo­mentos alegres e divertidos, mas as conversações terminam em uma conspiração contra o público, ou em algum incitamento para aumentar os preços. Efetivamente, é impossível evitar tais reuniões, por meio de leis que possam ser cumpridas e se coadunem com o espírito de liberdade e justiça. Todavia, embora a lei não possa impedir as pessoas da mesma ocupação de se reunirem às vezes, nada se deve fazer no sentido de facilitar tais reuniões e muito menos torná-las necessárias. (…) O que torna tais reuniões necessárias é um regulamento que possibilita aos membros de uma mesma profissão a se imporem taxas, para cuidar do sustento de seus pobres, seus doentes, órfãos e viúvas, inspirando em todos um interesse comum.14

    Para Adam Smith, a associação de classe é nefasta, pois é contrária à liberdade individual, cria obstáculos para a iniciativa privada e impede a livre concorrência. Ele era categoricamente contra qualquer associação da classe operária, pois, segundo sua concepção, isso aumentaria ‘artificial­mente’ o poder dos trabalhadores para exigirem melhores salários. Mas Smith reconhecia que os patrões faziam esse tipo de reuniões (proibidas para os operários) para tramar a redução dos salários de seus trabalhadores, ainda que de maneira oculta:

    Muitas vezes, porém, os trabalhadores reagem a tais conluios com suas associações defensivas; por vezes, sem serem provocados, os trabalhadores combinam entre si elevar o preço de seu trabalho. Seus pretextos usuais são, às vezes, os altos preços dos manti­mentos; por vezes, reclamam contra os altos lucros que os patrões auferem do trabalho deles. No intuito de resolver com rapidez o impasse, os trabalhadores sempre têm o recurso ao mais ruidoso clamor, e, às vezes, à violência mais atroz.15

    Assim, os direitos individuais, para os teóricos do liberalismo, deveri­am se restringir à liberdade de fazer contratos de trabalho de acordo com que dispusesse o mercado, onde os operários poderiam ‘livremente’ ven­der sua força de trabalho ao preço que o mercado estivesse disposto a pagar, sem nenhuma interferência estatal, nem normas corporativas como as que haviam vigorado nas cidades medievais. 16

    Para prevenir qualquer “violência atroz” por parte dos trabalhadores, o Estado deveria tomar providências, como aconteceu na Inglaterra durante seculo XIX, com as leis contra a vadiagem e a perseguição aos ludistas e aos sindicatos. Essa liberdade era apenas aparente, pois as duas par­tes que estabeleciam o contrato não eram iguais entre si: uns eram proprietários e outros só dis­punham de sua força de trabalho. Como parte da visão liberal, deveria haver um sistema jurídico que legitimasse essa sociedade e fosse cum­prido obrigatoriamente por todos, primando a figura da ‘igualdade jurídica’, ou seja, «todos são iguais perante a lei».

    Essa deveria ser a base para impor as resoluções da burguesia aos setores ‘sem proprieda­de’, mas sob a aparência de uma decisão neutra, em benefício de todos. Esse tipo de contrato era a forma de obrigar os despossuídos a aceitar os termos dos exploradores. A outra cara dessa igualdade formal era a necessidade de impedir que interesses de determinados grupos ou clas­ses se sobrepusessem aos pretensos interesses da comunidade/sociedade. Daí a conclusão es­sencial para a concepção burguesa: se todos eram iguais perante a lei, era vedado o direito de ‘impor à sociedade’ aquilo que não estivesse previs­to em lei ou que fosse contrário ao decidido pe­los juízes. 

    Cidadania e revolução burguesa

    A cidadania foi uma ideia revolucioná­ria para a grande luta que varreu o feuda­lismo da face da Europa Ocidental en­tre os seculos XVII e XIX. Significa­ já o fim das distinções de “sangue” e títulos. Traduzia em uma pala­vra a ideia radical de acabar corn os privilégios da nobre­za e do clero durante a Ida­de Média. O filósofo Jean-Jacques Rousseau foi um dos oponentes mais radicais à manutenção dos privilégios e do Antigo Re­gime. Denunciava que os homens estavam divididos entre ‘cidadãos’ e ‘súditos’. Os súditos eram aqueles que, desprovidos de qualquer título ou não sendo de família nobre, estavam por definição, desde seu nascimento, condenados a obedecer, a servir seus superiores, os nobres e os reis, o que era injusto, segundo Rousseau. Isso contrariava o direito do homem à liberdade. 

    Para ele, ao se promover a igualdade jurídica, todos deveriam se transformar em ‘cidadãos’. E nenhum homem deveria mais ser diferencia­do do outro por sua origem ou seus títulos.

    Mas a burguesia, que se aproveitou dessa ideia em sua luta contra a nobreza e a monar­quia, resistentes à mudança, manteve apenas a dimensão ‘jurídica’ da igualdade. Uma das referências históricas mais importantes do conceito de cidadania está no lema da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. No entanto, no desenrolar dessa Revolução, a burguesia buscou li­mitar a distribuição do poder, da liberda­de e da riqueza. 

    A primeira Constituição pós-revolução, a de 1791, aboliu efetivamente os títulos e os privilégios jurídicos da nobreza e o uso de brasões, além de liquidar as propriedades do clero. Essas mudanças dão a dimensão da revolução que destruiu a ordem feudal. Assegurou a igualdade formal de todos os cidadãos, e estes não podiam mais tomar outro nome que não o do chefe de família. Mas, na mesma Constituição, apareceram as limitações que a burguesia impunha à nova ordem devido a seus interesses de nova classe privilegiada: a divisão entre cidadãos ativos e passivos. Os primeiros tinham direito a votar e ser votados. Os segundos, de acordo com um critério de rendimentos, não poderiam fazê-lo. Assim, a pri­meira Constituição introduzia o voto, mas sob o critério censitário. To­dos eram juridicamente livres. Ninguém mais era servo de ninguém. Mas os ativos tinham direitos políticos e os passivos não, sempre conforme o critério de propriedade.

    Apesar disso, foram feitas reformas profundas, entre elas, o fim da propriedade nobiliárquica e eclesiástica, o direito de expressão e opinião. Porém, elas eram apresentadas como a realização final da liberdade e da cidadania. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, enquanto colocava no papel uma série de preceitos democráticos que marcari­am uma nova época na história francesa e mundial, eternizava o “inviolável direito à propriedade”. 17 Os direitos do cidadão paravam no limite sagra­do do direito individual a propriedade. Apesar da abolição dos privilégios da nobreza e do clero, continuava a haver uma profunda desigualdade social, que partia do antagonismo em relação à propriedade dos meios de produção. Enquanto uma grande maioria não tinha a posse dos mesmos, uma minoria, a burguesia, não só detinha seu monopólio, coma utilizava a força de trabalho dos despossuídos para garantir a produção de mercadorias e extrair lucro.

    Os trabalhadores e a cidadania 

    A demonstração concreta da concepção burguesa de sociedade, ape­sar das declarações em prol da igualdade e da liberdade, foram as leis que buscavam impedir qualquer tipo de instituição que pudesse reduzir ou cercear a livre exploração do operário. Na Inglaterra, quando surgiram as Trade Unions (os primeiros sindicatos) e as greves, estes foram considera­dos uma ameaça à ordem, à liberdade e à cidadania, e punidos severamen­te com penas de prisão e repressão estatal. A burguesia percebeu que a força do movimento operário, desde o início de sua aparição na história, residia em sua ação coletiva ou, como a chamavam no seculo XIX, o direito de coligação ou coalizão, que se materializou na organização das Trade Unions

    Em O Capital, Karl Marx narra coma a luta contra as Trade Unions, travada pela classe dominante inglesa no seculo XIX, foi permanente e determinada:

    As leis cruéis contra as coligações dos trabalhadores faram abolidas em 1825, frente à atitude amearadora do proletariado. Mas apenas em parte (…). Finalmente, a lei de 29 de junho de 1871 pretendeu e!iminar os todos os vestígios dessa legislação de classe com o reconhecimento legal das Trade Unions. Mas numa lei do Parlamento, da mesma data, destinada a modi­ftcar a legislação criminal na parte relativa a violências, ameaças e ofensas, restabelece na realidade a situação anterior sob nova forma. Com essa escamoteação parlamentar, os meios que podem ser utilizados pelos trahalhadores em caso de greve ou lock-out foram subtraídos ao domínio do direito comum e colocados sob uma legislação penal de exce­çao, a ser interpretada pelos próprios fabricantes, em sua qualidade de juízes de paz.18 

    Marx demonstrou como era fundamental para a burguesia deixar o trabalhador isolado e reduzi­do a um indivíduo obrigado a se defrontar com o capitalista como tal, sem a posse dos instrumentos de trabalho, enquanto o capitalista detinha o poder econômico e politico. A cidada­nia burguesa tinha de ser apenas a igual­dade formal entre os indivíduos, que se materializaria nos direitos civis e no direito de voto (após duras lutas, como as dos sans-culottes na França, e dos cartistas na Inglaterra). A burguesia também resistiu ao sufrágio universal antes e depois das revoluções burguesas. Só depois de 70 OU 80 anos, os operários do sexo masculino con­quistaram o sufrágio universal, que seria estendido às mulheres apenas no século XX.

    Com a derrubada da nobreza, o indivíduo passava a ser proprietário de si próprio, o que correspondia, para a imensa mai­oria da população, a ausência de proprieda­de ou, ainda, a separação entre o trabalha­dor e os meios de produção.

    Privado dos meios de produção, ao tra­balhador só restava um caminho: buscar seus direitos por meio da ação coletiva, a única esfera em que poderia se opor ao capitalista na disputa pelos frutos do traba­lho. Sua unidade para impor a ameaça da ausência da força de trabalho (a greve) e obrigar o capital a recuar, embora parci­almente, era sua única arma. Exatamente por isso, o capitalista opunha-se decididamente ao direito de coligação ou de coalizão, a possi­bilidade de associação operária que pudesse se con­trapor à força do capital. Contra essa possibilida­de, os capitalistas sempre impuseram leis contra a classe operária, justificadas em nome da liberdade individual.

    Tão necessária era essa imposição para a classe burguesa, que Marx denunciou-a em seus escritos sobre a própria Revolução Francesa:

    Logo no começo da tormenta revolucionária, a bur­guesia francesa teve a audácia de abolir o direito de associação dos trabalhadores, que acabara de ser conquistado. Com o decreto de 14 de junho de 1791, declarou toda coligação dos trabalhadores um atentado à liberdade e à declaração dos direitos do homem: a ser punido com a multa de 500 francos e a privação dos direitos de cidadania por um ano.19 

    Marx refere-se à lei Le Chapelier, promulgada justamente após uma greve de operários de Paris de diversos setores profissionais, que reivindicavam a redução da jornada de trabalho e aumento salarial. Eles haviam fundado “sociedades fraternais” para defender-se da exploração e sustentar suas reivindicações, o que alarmou a burguesia. Cabe notar que essa lei era tão importan­te para os interesses estratégicos da burguesia que ela se manteve inalterada durante 70 anos. 20 Marx ressalta os pontos da lei em que estão colocados os interesses estratégicos da burguesia e como eles são uma continuidade de leis anteriores:

    O artigo 1° dessa lei diz: “sendo uma das bases fundamentais da Constituição francesa a eliminação de todas as espécies de corporações da mesma classe e profissão, fica proibido restabelecê-las sob qualquer pretexto ou qualquer fim”. 0 artigo 4° declara que “se cidadãos da mesma profissão, arte ou ofício tomarem deliberações, fizerem convenções, com o fim de conjuntamente se recusarem a fornecer os serviços de sua indústria ou seus trabalhos, ou de só os fornecer a um preço determinado, essas deliberações e convenções serão declaradas inconstitucionais, atentatórias à liberdade e a declararão dos direitos do homem, etc.”; 21 crimes contra o estado, portanto, exatamente como já previam os velhos estatutos contra os traba­lhadores. 

    Mesmo em plena luta revolucionária contra o Antigo Regime, com todo o povo francês lutando a seu lado contra a nobreza, a burguesia preocupava-se em não deixar espaço para a organização independente da classe operária. A introdução da cidadania para a burguesia triunfante significava garantir a liberdade individual e, em particular, a ‘liberdade’ do trabalhador como indiví­duo, dono de si próprio, pronto para ser livremente explorado. Essa era a questão mais importante e devia ser colocada acima e contra qualquer tenta­tiva de união de classe. Liberdade de expressão, sim, até mesmo direito de voto, mas não liberdade de associação de classe para reivindicar direitos que acarretassem qualquer obstáculo ao livre arbítrio do capital.

    Chama a atenção a semelhança de pontos de vista nesse campo entre os dirigentes burgueses da França e os liberais da Inglaterra dos seculos XVII e XVIII. Um dos argumentos mais usados pela burguesia era a necessidade de acabar com os “privilégios corporativos”. Até hoje, os sucessores dos liberais do seculo XVIII ainda usam estes mesmos argumentos e a oposição entre liberda­de individual e direito de associação para justificar sua postura contra a livre associação dos trabalhadores. 22

    Marx e Engels e a ótica de classe do proletariado

    Para a burguesia, a conquista da cidadania era também um objetivo revolucionário e traçava os limites aos quais era necessário ater-se para assegurar a estabilização da nova sociedade. Seria necessário o crescimento e experiência de lutas do proletariado na Europa para que outra visão de mundo come­çasse a se consolidar.

    Os primeiros socialistas e dirigentes das primeiras lutas operárias, entre o final do século XVIII e começo do XIX, ainda ti­nham uma visão permeada pelas concepções burguesas derivadas do desenvolvi­mento insuficiente das for­mas capitalistas nesse período, sem ultrapassar os limites do li­beralismo. Foram Marx e Engels, a partir de seu intenso contato com o movimento operário nascente e sua ruptura com o hegelianismo, que co­meçaram a elaborar uma ciência política do ponto de vista do proletariado, uma visão assumidamente de classe. Am­bos percebiam, por baixo da igualdade jurídica da sociedade burguesa, as diferenças entre as classes sociais como o eixo fundamental na definição dos interesses distintos que se chocavam.

    Para Marx e Engels, os interesses das classes em disputa punham em lados opostos empresários e trabalhadores, e estes últimos teriam como maior arma a presença enquanto coletivo. Isso só seria possível conquistar numa guerra social implacável contra a burguesia, que teria o interes­se de evitar essa união e, para isso, além de repri­mir o movimento operário, trataria de ocultar sua situação de classe, as diferenças de interesses soci­ais que atravessam a sociedade capitalista. Em re­sumo, a noção de cidadania opõe-se à de identida­de de classe; existem propostas e interesses distin­tos por trás de cada uma delas. 23

    A separação – segundo Marx – entre a arena econômica, onde a oposição capitalista-operário aparece mais claramente, é a arena politica, onde impera a figura do cidadão, que não guarda nenhuma relação aparente com a esfe­ra econômica, e um traço fundamental da concepção de cidadania promovida pela burgue­sia ascendente. Cidadania passa a ser uma cate­goria abstrata, desligada da práxis real e dos confli­tos inerentes à sociedade capitalista, 24 e ignora os processos reais que se dão na esfera da produção e da sociedade, para falar de um homem abstrato. Portanto, joga um papel de cobertura ideológica, de capa para os conflitos de classe que atravessam a sociedade.

    Essa situação predominante na gênese da ci­dadania na sociedade capitalista europeia sofreu modificações, em particular com o advento do mo­vimento operário de massas a partir da metade do seculo XIX. O surgimento de pode­rosos movimentos sociais com identidade de clas­se na Europa Ocidental e depois em todo o mun­do, e as conquistas parciais que arrancaram dos capitalistas e governos após lutas encarniçadas, foram de tal monta que modificaram a situação e impuseram, entre outras questões, que fosse acei­to o direito de organização sindical, assim como a extensão do direito de voto aos operários.

    Desde as três ultimas décadas do seculo XIX e em todo o transcorrer do seculo XX, o cenário para o movimento operário da Europa Ocidental capitalista havia se modificado com as conquistas sociais, democráticas e trabalhistas arrancadas nos principais países europeus até a Primeira Guerra Mundial, entre elas a jornada de 8 horas, o reco­nhecimento dos sindicatos de massa, o direito de voto e a organização e legalização dos grandes partidos socialistas ou laboristas.

    A origem da versão moderna de cidadania

    A Primeira Guerra Mundial, se por um lado causou uma derrota e uma divisão nas fileiras do movimento operário internacional, por ou­tro, ao aproximar-se do final, despertou uma onda de revoluções sociais que causou um forte impacto no mundo inteiro. Essa onda revolucionária foi freada e os trabalhadores impedidos de chegar ao poder político, com exceção da própria URSS.

    Nos países capitalistas, era necessário, para a burguesia, canalizar o descontentamento social das massas, para que o regime pudesse voltar a se estabilizar na Europa e assegurar a recomposição dos estados capitalistas abalados pela guerra e os movimentos de massa em luta armada contra o nazi-fascismo. Aplicou-se então o Plano Marshall, a política de financia­mento direcionada aos novos governos europeus, com vistas a que pudes­sem reconstruir suas economias arrasadas e proceder às reformas sociais do assim chamado welfare state

    Um dos países que mais simbolizou essa política de estender direitos soci­ais aos setores operários atingidos pela crise e pela guerra foi a Inglaterra. Ao final da guerra, mesmo saindo vitoriosa do conflito, a Inglaterra sofria uma grande pressão social por parte dos trabalhadores. Após grandes sacrifícios, a classe operária inglesa sentia-se vitoriosa e reivindicava melhorias imediatas em seu padrão de vida. Um sintoma do estado de espírito reinante foi a derrota de Churchill, o condutor da guerra contra Hitler, na primeira eleição logo após o final da guerra, justamente para os laboristas, que propunham a introdução ou melhoria dos serviços públicos, dos direitos sociais e a intervenção estatal na economia para impulsionar a recuperação.

    O sociólogo T.H. Marshall, então, retoma a noção de cidadania. Tratava de dar conta da nova realidade criada pelas modificações impostas às relações sociais e politicas após um seculo de lutas operárias e populares, com a irrupção e extensão do movimento operário internacional durante o seculo XX e, em particular, a vitória contra o nazi-fascismo e as conguistas sociais que daí se seguiram. Marshall fez um esforço por adequar formulações anteriores sobre os direitos políticos e sociais à situação do capitalismo britânico do pós-guerra. Para isso, ressuscitou a bandeira da cidadania.

    Com o fim da Segunda Guerra, a burguesia viu-se obrigada a recorrer a medidas que em outros tempos seriam chamadas de ‘socialismo’ ou ‘intromissão’ do Estado na vida das pessoas, ao assumir os direitos sociais e serviços básicos, como educação, saúde e habitação. A concepção de cidadania deveria ter um verniz diferente; não podia basear-se na mesma visa que trazia desde o seculo XVIII, mas incluir os novos direitos sociais, mesmo que colocando os limites que sua adoção não deveria ultrapassar: as fronteiras da sociedade capitalista. Algumas das ideias de Marshall tiveram grande influência posterior na retomada da formulação de cidadania e para tentar compreender a evolução social a partir dela. Para isso, fez um histórico do desenvolvimento da cidadania moderna, divi­dindo-a em três partes: a civil (direitos individuais básicos), a política (participação no poder politico) e a social (bem-estar econômico e segurança). 25 

    Marshall considerava a aceitação pela burguesia da cidadania social fruto da própria evolução econômica, do interesse que a burguesia teria em aumentar a produção de bens de consumo e fortalecer o mercado interno, mesmo que para isso tivesse de enfrentar um maior poderio do movimento operário or­ganizado nos sindicatos. Ele insiste em que as medidas destinadas a elevar o nível de civilização dos trabalhadores não deveriam interferir no livre funcionamento do mercado. Na verda­de, a tese de Marshall é uma adaptação da concepção da cidadania burguesa clássica aos tem­pos do pós-guerra e do welfare state. Reflete um período em que as conquistas no terreno dos di­reitos sociais ampliaram-se e pareciam tender a uma generalização, e a burguesia europeia foi obri­gada a ceder aos trabalhadores para poder estabi­lizar os regimes políticos.

    Pietro Barcellona, em seu texto A estratégia improvável da cidadania, 26mostra que o centro da noção de cidadania em Marshall é atribuir a essa categoria um novo significado – de acesso dos membros da comunidade a direitos sociais básicos que permitam integrar os setores mais pobres à sociedade, dar-lhes um sentido de inclusão, à medida que no próprio status de cidadão estejam incorporados determinados di­reitos sociais e isso possa diminuir a desigualda­de social.

    Marshall tenta demonstrar que não haveria uma contradição entre uma política de universalização progressiva de direitos sociais e a lógica do sistema capitalista. E dava como per­manente algo que era imposto pela relação de forças daqueles anos. As conquistas não decor­riam de uma conversão das classes dominantes, mas uma adaptação aos tempos atípicos do pós-guerra. Se era compreensível que houvesse uma confusão quanto a isso entre 1950 e 1980 na Europa Ocidental, hoje, nos tempos do neoliberalismo, reaparece com toda a crueza a contradição entre uma ideia de progressiva cida­dania social cada vez mais estendida e a realida­de imposta pela lógica do mercado na sociedade capitalista.

    Para onde nos leva essa política?

    Qual é o problema de fundo que a concepção de cidadania omite? Que a sociedade é dividi­da em classes. Que existem cidadãos proprietários dos meios de produção e cidadãos despossuídos. Os interesses da maioria explo­rada não são os mesmos da minoria explora­dora. Os lucros de uns implicam na miséria de outros. Essa minoria continua governando por­que tem a seu favor o aparato de Estado, os governos, os congressos, as Forças Armadas; enquanto os trabalhadores, apesar de serem maio­ria, só contam com sua própria organização e consciência para reagir e lutar. Omitir essa oposição em nome de uma pretensa igualdade entre todos a ser atingida na sociedade atual desvia os explo­rados da busca da necessária unidade de classe para acabar com a exploração. E deixa-os à mercê do canto de sereia por uma saída conjunta com seus exploradores, sem radicalismos

    No movimento sindical, a ideologia da ci­dadania, em nome de ‘abrir o sindicato à soci­edade’, prega a colaboração entre trabalhadores e empresários; e a ideia do sindicato cidadão, que deveria participar lado a lado com os pa­trões na defesa do emprego, na luta contra a miséria, ou o analfabetismo. É o que vem fazen­do a direção da CUT brasileira, que há muito abandonou o discurso classista da década de 80 para adotar uma proposta de parcerias e progra­mas integrados de ‘inclusão social’. Exemplo dessa política foi o projeto conjunto (Travessia) entre o Sindicato dos Bancários de São Paulo e os banqueiros americanos do Bank of Boston, que se propuseram a trabalhar com meninos de rua para melhorar o problema da violência e da exclusão no centro de São Paulo. Essa política começa assim e culmina com a negociação per­manente, concretizada nos acordos tripartites entre as centrais, governos e empresários, im­postos aos trabalhadores, como fazem as cen­trais europeias e as câmaras setoriais.

    A real situação dos trabalhadores demons­tra, ao contrário, que para lutar por esses direi­tos mínimos, que qualquer cidadão mereceria ter, necessita-se uma organização independen­te dos trabalhadores contra a reação burgue­sa! Essa organização independente, política e sindical, pressupõe uma consciência de clas­se e uma ação classista. Do contrário, não se travará a luta.

    A batalha contra o neoliberalismo hoje exige uma luta de classes sem trégua. A estratégia da cidadania, que se propõe a defender os direitos conquistados sob esse nome, difunde a visão no interior do movimento operário de que seja possível uma melhoria para todos baseada na parceria, na ação conjunta de toda a sociedade. É a velha política da colaboração de classes com outra roupagem. O resultado é o que se vê na ação da social-democracia e centrais sindicais europeias, que nem sequer conseguem de­fender os direitos sociais remanescentes em base a essa estratégia.É uma dialética implacável. A cidadania, algo que se considera pleno e de toda a sociedade, só poderá ser realmente alcançada com uma política de classe, ou seja, de uma parte desse todo que aponta uma saída anticapitalista para o conjunto. A colaboração de classes, a defesa da união de todos pelo bem comum, a aceitação do poder estatal burguês travestido de Estado de Direito como único horizonte possível, além de utópica, não permite sequer a defesa consequente desses direitos. É como se todas as contradições do sistema capitalista-imperialista pudessem ser re­solvidas mediante a conscientização, as ações locais e o convencimento pelo diálogo. Seria fácil. Mas o capitalismo não deixa saída. A história da humanidade moderna continua sendo a história da luta de classes.

    Notas

    1. El Mundo, 10/11/1999 ↩︎
    2. Manifesto de Daniel Cohn Bendit. Por uma Terceira Esquerda Verde, Le Monde 26/2/2000. ↩︎
    3. Vide a proposta de Moção de Orientação apresentada pela Mesa Promotora do Bloco de Esquerda. ↩︎
    4. «As redes que incentivam as marchas contra o desemprego e a organização de conferên­cias intercidadãs como contraponto às conferên­cias intergovernamentais que constroem a Europa neoliberal, revelam uma resistência que está em construção… Mas teria então que adotar uma democracia individual e coletiva que permitisse aos cidadãos, homens e mulheres, e aos povos, o controle dos meios e fins dessa construção.» Samary, Catherine, «De las crisis de las sociedades realmen­te existentes a la uropía socialista» in Monereo, Manuel e Chaves, Pedro (orgs.). Para que el socialismo tenga futuro, El Viejo Topo, 1999, p.117. ↩︎
    5. Jüergen Habermas, «Nos Limites do Estado», artigo publicado na Folha de S. Paulo, caderno
      Mais, 18/07/1999. ↩︎
    6. Démota: membro do demo (tribo). ↩︎
    7. Aristóteles, A constituição de Atenas. SP, Hucitec, 1995, p. 87. ↩︎
    8. Perry Anderson, Transiciones de la Antiguedad al Feudalismo. México, Siglo XXI, 1996, p. 33. ↩︎
    9. Aristóteles, Política. Madrid, Espasa-Calpe, 1972, III, iii, p.2. ↩︎
    10. A Revolução Gloriosa de 1688 foi a que permitiu a ascensão da burguesia inglesa ao poder, desta vez de forma definitiva. ↩︎
    11. John Locke, «Formas de Governo». ln Wcffort, Francisco (org.). Clássicos da Política. São Paulo, Ática, p. 199. ↩︎
    12. Idem ↩︎
    13. «Agora, do lado capitalista, na propriedade revela-se o direito de apropriar-se de trabalho alheio não pago ou do seu produto, e, do lado do trabalhador, a impossibili­dade de apropriar-se do produto de seu trabalho. A dissociação entre proprie­dade e trabalho é consequ­ência necessária de uma lei que claramente derivava da identidade existente entre ambos.» (O Capital, Livro I, vol.2, SP, Difel, 1982, 8ª ed., p. 679). ↩︎
    14. A Riqueza das Nações, vol. 1. São Paulo, Abril Cultural, 1978, p.140. ↩︎
    15. Idem, ibidem, p.104. ↩︎
    16. Como a passagem do servo para o cidadão separa o homem ‘político’ do ‘econômico’. «No fêudalismo não havia uma definição clara entre poder econômico e político; a relação entre o senhor e o servo era indistintamente econômica e política: não existia uma diferença entre o status econômico e seu status político; a servidão impli­cava em uma inferioridade tanto econômica quanto política. So­mente no capitalismo surge uma diferença clara entre econômico e o político, o surgimento desta. diferença é parte integrante da mudança na forma de exploração. No feudalismo se explo­rava os trabalhadores numa estreita relação com o senhor, que exercia um domínio total sobre eles (…) Esta mudança na forma de exploração implica em mudanças fundamentais entre a classe exploradora e a classe explorada. A relaçãode exploração já não se estabelece através da servi­dão por toda a vida, senão através… da compra e venda de trabalho. O operário encontra-se ‘livre’. Esta liberdade implica que o explorador imediato não pode exercer a mesma coerção que o senhor feudal exercia sobre seus trabalhadores. Um capitalista não pode normalmente encarcerar seus operários nem condená-los à morte. No entanto, está claro que se necessita de fato coerção física em qualquer sociedade para manter a ‘ordem’, a ordem da classe dominante. Ao contrário das sociedades anteriores, esta coerção … encontra-se no capitalismo separa­da do processo imediato de exploração e se localiza em uma instância diferente: no Estado.» (…) Através de um longo pro­cesso histórico, o servo feudal converteu-se em dois personagens diferentes: por um lado, trabalhador assalariado; por outro, cidadão». Holloway, John. Marxismo, Estado y Capital. Buenos Aires, Cuadernos del Sur, 1994, pp.108-109. ↩︎
    17. «A livre comunicação dos pensamentos e opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo pelo abuso da liberdade, nos casos determinados pela lei.»(artigo 11). «E, finalmente, o direito mais importante para os constituintes, representantes da burguesia: o direito ‘à propriedade, direito inviolável’» Ostermann, Nilse Wink, Às armas, cidadãos! São Paulo, Atual Editora. 1995, p.49. ↩︎
    18. Karl Marx, O Capital, Livro 1, vol.2. São Paulo, Difel, 1982, p. 858. ↩︎
    19. Karl Marx, op. cit., p. 859. ↩︎
    20. Manfred, A. A Grande Revolução Francesa. 2″ edição, SP, Ícone Editorial, 1986, p. 96. Também descrito em Bernard Epin et alli. A Revolução Francesa: Ela inventou nossos sonhos. SP, Brasiliense, 1989, p.44. ↩︎
    21. Karl Marx, op. cit., p. 859. ↩︎
    22. Milton Friedman é claro: «Na área econômica, um problema importante surge a respeito do conflito entre a liberdade de se associar e a liberdade de competir. (…) Talvez o problema específico mais importante neste caso, diga respeito à associação de trabalhadores, onde o problema da liberdade de associar-se e da liberdade de competir apresenta-se de modo mais agudo.» Friedman, Milton. Capitalismo e liberdade. SP, Abril, 1984, p. 83. ↩︎
    23. «A ‘guerra permanente entre a burguesia e o proletariado’ é uma característica da sociedade capitalista moderna. Por isso, quando o operário desperta, em geral para lutar contra a exploração, ou melhor dito, contra os efeitos da exploração capitalista, como os baixos salários ou a extensão da jornada ou diferentes tipos de opressão (trabalho feminino, infantil, etc.); então, ele é obrigado a assumir movimentos coletivos, pois sozinho estará submetido aos desígnios do capital. A ação conjunta proletária é a reação contra a guerra social que lhe é movida, e necessariamente se enfrenta ao capital.» F. Engels, Prefácio de A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. SP, Paz e Terra. 1982, p.12 ↩︎
    24. «O homem real só é reconhecido sob a forma de indivíduo egoísta; o homem verdadeiro, apenas sob a forma de citoyen abstrato.» Marx denuncia, neste enunciado, que a burguesia quer limitar o homem, na sua vida cotidiana, àquele individuo isolado, que compete com os demais, e deixa a atividade política para o cidadão. Como cidadão, o homem torna-se público, passa a pensar no interesse coletivo, como se se pudesse separar um do outro.» Cf. «A Questão judaica«, ln Octavio Ianni, (org.). Marx-Sociologia, São Paulo, Ática, 1992, p. 196 ↩︎
    25. T. Marshall. Cidadania, Classe Social e status. R.J., Zahar Editores, 1967, p.63. ↩︎
    26. Pietro Barcellona, O egoísmo maduro e a insensatez do capital. São Paulo, Ícone Editorial, 1996. ↩︎

    Publicado em junho de 2000 na revista Marxismo Vivo.

  • Cidadania, democracia e sociedade civil, o retorno de Eduard Bernstein

    Cidadania, democracia e sociedade civil, o retorno de Eduard Bernstein

    A falência do modelo neoliberal, a crise do capitalismo global e o colapso do stalinismo nos últimos anos do século XX – e ainda mais neste início do século XXI – combinaram-se com o ascenso de poderosos movimentos de contestação antiglobalização e de trabalhadores, camponeses e indígenas contra as condições de vida impostas pelo neoliberalismo. Assim, gera-se uma efervescência política em relação a um programa alternativo ao capitalismo imperialista.

    Por José Welmowicki

    O Fórum Social Mundial é uma expressão dessa intensa busca por um projeto alternativo. No entanto, as propostas apresentadas por suas principais referências até agora se baseavam em teorias que buscavam reformar ou humanizar o capitalismo. Conceitos como “sociedade civil”, a conquista da “cidadania, democracia radical” passaram a substituir – dentro da elaboração de diversas correntes de esquerda – o conceito de luta de classes. A própria ideia de revolução socialista é rejeitada. Seu lema é “Outro mundo é possível”, sem definir qual é o caráter desse outro mundo nem como alcançá-lo. Algumas dessas correntes, que anteriormente se posicionavam como marxistas, propõem “atualizar o marximo» sob essas bandeiras. A característica mais geral é que rejeitam a revolução socialista e propõem-se a mudar o mundo por uma via reformista em nome da “justiça, do direito universal” e da transformação democrática do Estado. Propõem, como linha de orientação política, a “democracia participativa” ou “radical”, ou seja, a ampliação dos direitos e dos espaços democráticos do Estado burguês por meio de uma maior participação popular.

    Porém, seus autores sempre omitem a origem dessas ideias. Em geral, apresentam-nas como elaborações originais, como fruto das modificações da realidade, como a globalização, ou como fruto de uma reflexão, de um repensar da teoria socialista frente aos impasses pós-queda do muro de Berlim. Tentam se apresentar como uma saída renovadora, após o colapso do stalinismo. Correntes social-democratas, stalinistas, ex-stalinistas e até algumas que ainda se reivindicam do marxismo revolucionário atribuem a Lenin – ou a outros – os desastres dos chamados países socialistas e do stalinismo em geral e, assim, justificam suas posições cada vez mais defensoras da “sociedade democrática”.

    Ao apresentarem-se como formulados a partir de uma “nova estratégia socialista”, tentam ocultar sua dívida com pensadores e correntes de esquerda bastante anteriores, que em sua imensa maioria já haviam escrito posições semelhantes.

    A origem histórica do primeiro revisionismo

    Bernstein foi o primeiro teórico oriundo do movimento operário a elaborar uma revisão completa do marxismo, adaptada às perspectivas da burocracia sindical e política e da intelectualidade reformista, que já tinham grande influência no seio do Partido Social-Democrata alemão. Essa posição era minoritária entre os dirigentes do partido social-democrata no final do século XIX. Somente após a Primeira Guerra Mundial passou a dominar, teorica e politicamente, o partido. Por isso, Bernstein tentou, a princípio, apresentar suas ideias como uma atualização e correção parcial das posições de Marx e Engels, para aparecer como um seguidor crítico do marxismo – e não como alguém frontalmente contrário às suas posições. 1

    Essa primeira reação no seio do movimento operário e do marxismo – contrária às posições marxistas revolucionárias – incorporava a visão liberal-burguesa (sob outro nome) para justificar seu reformismo. Era, como não se cansava de afirmar em sua defesa, a expressão programática de uma prática, cada vez mais presente na intervenção política diária dos organismos do partido alemão, em uma época de luta por reformas que durou desde o último quarto do século XIX até o início do século XX e que acostumou o partido social-democrata à vida legal e às conquistas graduais. Seu encanto pela democracia burguesa provinha dessa expressão material, pela via reformista: sua renúncia a levantar antagonismos de classe, sua crença na moral e no possível idealismo desinteressado de todos os setores da sociedade. Em suma, sua aceitação da realidade da ordem burguesa vigente – do parlamento, do direito e da justiça burguesa – como horizonte e limite da prática e da luta social-democrata. Suas posições teóricas e programáticas assentavam-se numa inquestionável coerência com essa visão política de transformação gradual rumo a uma sociedade mais justa dentro da ordem vigente. Por isso, com razão, seus críticos no partido – em particular Rosa Luxemburgo – qualificavam-no de “revisionista” do marxismo.

    As principais posições de Bernstein: cidadania e emancipação de classe

    No principal texto de Bernstein, As premissas para o socialismo e as tarefas da social-democracia, 2 é sintomático como já aparece a luta “pela cidadania” como substituta da luta “pela emancipação do proletariado”. Uma característica de sua posição é negar a ideia de uma classe em nome de uma cidadania a ser alcançada: “A social-democracia não deseja aniquilar essa sociedade e fazer de todos os seus membros novos proletários; trabalha quase incessantemente para elevar o trabalhador, de uma posição social de proletário, à posição geral de cidadão e, assim, fazer da cidadania um direito universal”. Isso, segundo Bernstein, seria alcançado pela ampliação dos direitos dos setores desfavorecidos.

    A consequência política dessa posição era aceitar a ordem burguesa, pois, ao considerar a “cidadania” como o estado superior para todas as classes, significava aceitar a sociedade burguesa como a sociedade humana, como bem replicava Rosa Luxemburgo: “quando (Bernstein) usa a palavra cidadão, sem distinções, para se referir tanto ao burguês quanto ao proletário, querendo com isso referir-se ao homem em geral, identifica o homem em geral com o burguês e a sociedade humana com a sociedade burguesa”. 3

    Comparando com os atuais defensores da cidadania como estratégia, fica claro que a lógica é a mesma: nega-se o antagonismo de classe, nega-se a contradição estrutural entre burguesia e proletariado, para justificar a possibilidade de avançar em direção a uma sociedade justa sem romper com o capitalismo, sem expropriar os meios de produção, com a ampliação contínua dos direitos individuais e sociais. Assim como os atuais estrategistas da cidadania, em vez de derrotar a burguesia, Bernstein pensava em alcançar uma civilização superior sem destruir o capitalismo, que deveria ter uma construção independente e por cima das classes.

    Colocar a cidadania como horizonte superior exigia a aceitação de leis e procedimentos no interesse de todos, o que acabava conduzindo apenas à defesa da reforma da ordem vigente. Já discutimos em um artigo anterior 4 que também aqueles que defendem a cidadania planetária – como a ATTAC, um dos principais motores do Fórum Social Mundial – aplicam, em escala internacional, essa mesma lógica que identifica a cidadania em um país com a aceitação da ordem capitalista. Por isso, dirigem seus esforços para fazer da ONU um governo democrático mundial, assim como propõem que os estados mudem seu papel e adquiram mais força frente àqueles que manejam os mercados internacionais. 5

    A sociedade civil para Bernstein

    A visão de Bernstein sobre a sociedade civil tinha a mesma base teórica: a redução da sociedade a uma soma de indivíduos que podem se desenvolver de forma harmônica. Ele sustentava que todas as classes possuem um interesse comum na manutenção e no aperfeiçoamento dos valores civilizados, e que esse interesse comum seria o objetivo da atividade política.

    Para Bernstein, os valores da “sociedade civil desenvolvida” continham e transcendiam todos os interesses e pontos de vista setoriais, de classe. “A moralidade da ‘sociedade civil desenvolvida’ de forma alguma é idêntica à moralidade da burguesia”.

    Em Socialismo evolucionário, Bernstein chamava a atenção para o fato de que a palavra alemã “bürgerlich” significava tanto “civil” quanto “burguesa”, e que essa ambivalência linguística teria criado a falsa impressão de que, ao clamar pela abolição da sociedade burguesa, os socialistas também estariam exigindo o fim da sociedade “civil”.

    Os social-democratas de hoje costumam usar essa mesma referência:

    A sociedade civil que queremos criar é uma sociedade de liberdade e autodeterminação, de solidariedade e de justiça. Uma sociedade que não seja dominada por uma classe, mas que confere aos cidadãos soberanos sua independência e responsabilidade próprias”. Assim proclamava, em seu discurso, o presidente do Partido Social-Democrata (SPD) da Alemanha, o chanceler Gerhard Schröder, em comemoração ao 125º aniversário do “Congresso de Unificação” (Congresso de Ghota) dos Eisenachianos com os Lassalleanos, origem do moderno SPD. 6

    Bernstein e a democratização do Estado

    Para Bernstein, o Estado burguês moderno, democrático, era a concretização da civilização, dos interesses de todos os homens, desvinculado das lutas de classes. A democracia burguesa era associada à “ausência de governo de classe” – ou seja, um governo que podia e devia ser aperfeiçoado, mas sem romper suas regras básicas. O texto a seguir ilustra o pensamento bernsteiniano:

    «Esta pergunta envolve outra. O que é o princípio da democracia? A resposta parece muito simples. Para começar, pensar-se-ia ficar tudo acertado com a definição: ‘»‘governo pelo povo’. Mas mesmo uma pequena meditação logo nos diz que, por essa definição, apenas nos é dado um conceito muito superficial e puramente formal, enquanto a maioria das pessoas que hoje usam a palavra democracia a entendem por algo mais do que uma simples forma de governo. Estaremos muito mais próximos da definição se nos exprimirmos negativamente e considerarmos a democracia como uma ausência de governo de classes, como indicação de uma condição social onde um privilégio político não pertence a qualquer classe, em oposição à comunidade inteira.«

    «A idéia de democracia inclui, no conceito contemporâneo, uma noção de justiça – uma igualdade de direitos para todos os membros da comunidade e, nesse princípio, o governo da maioria, para o qual, em todos os casos concretos, a vontade da maioria se estende e encontra seus limites.«

    É claro que democracia e ausência de leis não são a mesma coisa. A democracia distingue-se de outros sistemas políticos não pela ausência de leis em si, mas pela ausência de leis que criem sanções ou limitem direitos individuais com base na propriedade, nascimento ou confissão religiosa. A democracia é tanto o meio quanto o fim. É uma arma de luta pelo socialismo e a forma pela qual o socialismo se realizará. É claro que ela não pode realizar milagres.7

    Para Bernstein, o socialismo era “o legítimo herdeiro do liberalismo”. Para ele, “Não existe hoje um pensamento realmente liberal que não pertença também aos elementos do ideário socialista”. Por isso, quando várias personalidades da esquerda de hoje defendem “a democracia como valor universal”, sem qualquer definição de classe, convém lembrar que Bernstein já tinha essa concepção muito clara em seu pensamento no final do século XIX.

    Rosa Luxemburgo contestou frontalmentre essa visão: “Quando (Bernstein) fala do caráter humano geral do liberalismo e transforma o socialismo em uma variante do liberalismo, priva o movimento socialista (em geral) de seu caráter de classe e, portanto, de seu conteúdo histórico; o corolário disso é que se reconhece na classe que representa historicamente o liberalismo – a burguesia -, a campeã dos interesses gerais da humanidade.8

    Para Bernstein, o Estado não era necessariamente – nem, em geral, deveria ser – o instrumento de dominação de classe. Era o meio pelo qual a barbárie e a desumanidade poderiam ser eliminadas, onde os princípios da civilização avançada poderiam ser impostos a todos os aspectos da vida pública. Essa expansão da civilização, para ele, deveria ser o objetivo último da social-democracia, embora admitisse, em última instância, que quando a classe operária era sistematicamente excluída da arena política, não teria outra opção senão a luta revolucionária. Mas, se e quando a democracia fosse alcançada e todas as classes pudessem participar dos direitos civis e políticos, então seria possível atender às reivindicações dos trabalhadores por meios políticos normais e estabelecer compromissos políticos com base no “interesse comum”. O primeiro objetivo do movimento socialista deveria, por isso, ser a democracia plena, e é significativo que Bernstein definisse a democracia como “a ausência de um governo de classe”. 9

    Essa concepção era contrária à essência da teoria marxista, que analisava tudo tendo como referência a dominação de classe e, no caso da sociedade capitalista, da dominação burguesa. Para Marx e Engels, todo Estado burguês – por mais democrático que fosse – correspondia a uma ditadura da burguesia. Lenin, em O Estado e a Revolução, deixava claro a necessidade de destruir a máquina estatal burguesa e revolucionar toda a superestrutura, construindo um Estado proletário, pela destituição e expropriação da burguesia, como demonstrado pela experiência da Comuna de Paris.

    A atualidade do revisionismo de Eduard Bernstein: a esquerda e a democratização do Estado

    A proposta de democratização do Estado é uma matriz de pensamento comum, atualmente, a uma gama de posições de esquerda que vão desde a social-democracia em todas as suas variantes (Terceira Via e outras) até o PC francês e o PT brasileiro, incluindo diversos ex-comunistas e setores que participam do FSM.

    Para sustentar essa posição, alguns teóricos trabalharam o tema da defesa de uma sociedade democrática em contraposição a todas as sociedades “totalitárias”. Ou seja, a diferença seria dada pelo regime político e não pela natureza de classe. Outros defendem o que chamam de revolução democrática, tentando reformular teoricamente a problemática da revolução socialista. Ambas as correntes incorporam formulações de Bernstein e suas consequências, influenciando, na mesma direção reformista, várias correntes da esquerda atual.

    Claude Lefort, ex-membro do antigo grupo Socialismo ou Barbarie, fundado por Castoriadis e outros ex-trotskistas dos anos 50, destacou-se por tentar fazer da crítica ao stalinismo um ponto de partida para negar o marxismo, buscando nele uma suposta raiz para o “totalitarismo”. Para isso, Lefort realiza uma leitura peculiar dos textos de Marx, nos quais define o Estado e os direitos burgueses, como na Questão Judaica, na Ideologia Alemã e outras obras.

    Depois de recriminar Marx por sua “desprezo aos direitos humanos”, Lefort defende a superioridade da “sociedade democrática”, onde, segundo ele, “haveria um espaço vazio no poder, sem ser ocupado por ninguém – nem classes nem partidos”.

    Ora minha convicção continua sendo a de que só teremos alguma oportunidade de apreciar o desenvolvimento da democracia e as oportunidades para a liberdade com a condição de reconhecer na instituição dos direitos do homem os sinais do nascimento de um novo tipo de legitimidade e de um espaço público no qual os indivíduos são tanto produtos quanto instigadores; com a condição de reconhecer, simultaneamente, que esse espaço só poderia ser devorado pelo Estado ao custo de uma violenta mutação que daria nascimento a uma nova forma de sociedade.” 10

    São os enunciados que sempre são tomados como alvo dos críticos dos direitos do homem, particularmente o mais virulento entre eles, Marx, que persegue todos os sinais do individualismo e do naturalismo para lhes atribuir uma função ideológica. Na liberdade de ação, na liberdade de opinião, garantidas a cada um, na segurança individual, Marx só demarca a instalação de um novo modelo que consagra ‘a separação do homem com o homem’ e, mais a fundo, ‘o egoísmo burguês’.11

    Lefort alega que Marx ignora a subversão das relações sociais e políticas encoberta pela representação dos direitos. Para ele, os direitos do homem suscitam uma nova rede de relações entre os homens, a sociedade democrática. Reivindica Tocqueville como precursor, que foi além nessa análise. Entre outros, Lefort influenciou Tarso Genro, atual prefeito de Porto Alegre e teórico – além de importante dirigente do PT brasileiro – de formulações – defensivas – da “sociedade democrática” e do Estado de Direito:

    «Abordarei o tema ‘instituições políticas do socialismo’ como instituições políticas de um Estado democrático de direito, que abram perspectivas para um projeto socialista democrático, e não como instituições de um Estado ‘totalmente outro’, para usar uma expressão de Claude Lefort. Faço isso porque acredito ser arriscado avançar mais do que isso. Diante da total inoperância dos sovietes, parece imprudente partir dessa instituição política da democracia direta para pensar um novo Estado. […] É necessário, pois, reinventar a democracia para repor a confiança da sociedade nas instituições políticas do Estado democrático»,

    Não se pode negar a clareza do posicionamento de Genro, que recusa o caminho dos sovietes (ou seja, de um Estado operário) para optar pela democratização radical do Estado burguês.

    Outros teóricos, como Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, defensores do que chamam de “revolução democrática” – na verdade outro nome para a democratização radical do Estado – tiveram grande influência na esquerda latino-americana, utilizando praticamente os mesmos argumentos.

    A discussão entre Mouffe e Laclau parte da questão do que eles chamam de “reducionismo de classe”. Em seu texto “Hegemonia e radicalização da democracia”, esses autores afirmam que:

    (…) “a alternativa da esquerda deve consistir em se posicionar plenamente no campo da revolução democrática (…). Do ponto de vista da determinação dos antagonismos fundamentais, o obstáculo básico tem sido, como vimos, o caráter de classe – ou seja, a ideia de que a classe operária representa o agente privilegiado no qual reside o impulso fundamental da mudança social...” 12

    A conclusão sobre a revolução democrática é que ela não é necessária no momento da tomada do poder, a não ser nos termos que Bernstein propunha (vide acima), ou seja, no caso de um regime em que a liberdade civil esteja comprometida; para Laclau e Chantal Mouffe, não se trata de uma revolução social contra o sistema capitalista de classes, pois isso seria, segundo eles, cair em uma visão reducionista. Seus autores preferem se posicionar no campo da democratização radical da sociedade, que nada mais é do que a ampliação dos direitos sociais e políticos, a reforma do Estado vigente – isto é, o aperfeiçoamento dentro dos marcos do Estado, desde que este seja democrático de direito.

    A importância de suas elaborações pode ser vista pela influência nas propostas da maioria do PT brasileiro, que estão explicitadas nas resoluções do primeiro Congresso, em 1991:

    Para o PT, o socialismo é sinônimo de radicalização da democracia. […] Por isso, encaramos a democracia política, econômica e social como a base constitutiva de nossa sociedade. O socialismo pelo qual o PT almeja prevê, portanto, a existência de um Estado de Direito no qual prevaleçam as mais amplas liberdades civis e políticas […]. Nossa perspectiva, entretanto, não se limita à democratização e à socialização da política apenas a partir do Estado. Nosso objetivo é construir, no socialismo, uma esfera pública na qual a ‘política’ não se restrinja às iniciativas estatais-institucionais,… na perspectiva de que a população se aproprie de funções hoje reservadas às esferas estatais-institucionais, exercendo em plenitude uma nova cidadania.” 13

    Reforma ou revolução? A atualidade da crítica de Rosa Luxemburgo

    Para Bernstein, revolução era sinônimo de “blanquismo” – no capítulo II, item b de seu livro Marxismo e Blanquismo, ele afirma:

    Na Alemanha, Marx e Engels, trabalhando sobre a base da dialética hegeliana, chegaram a uma doutrina muito semelhante ao blanquismo. 14 O herdeiro da burguesia só poderia ser sua contrapartida mais radical, o proletariado, esse produto intrínseco da economia burguesa. As exigências da vida econômica moderna eram totalmente desprezadas e a força relativa das classes e suas práticas de desenvolvimento eram completamente superestimadas. Ainda o terrorismo proletário – o qual, dado o estado das coisas na Alemanha, poderia apenas manifestar-se em forma destrutiva e, portanto, desde o primeiro dia em que estivessem atuando dessa forma especificada – contra a democracia burguesa.

    Bernstein esclarece que não se refere apenas ao aspecto de formar ligas secretas e buscar golpes rápidos para tomar o poder, típico do blanquismo.

    O blanquismo assemelha-se mais a uma teoria do que a um método; seu método, por outro lado, é simplesmente a conclusão, o resultado de uma determinada teoria implícita, bem mais profunda. E essa é simplesmente a teoria da potência inconmensuravelmente criativa da força política revolucionária e de sua manifestação, a expropriação revolucionária.15

    Mas, claro, isso é impossível. Para ele, a revolução operária está, por definição, associada a uma aventura ultraesquerdista, “destrutiva” por se confrontar com a democracia; segundo ele, a doutrina revolucionária despreza a situação real da economia moderna, o desenvolvimento das classes e, sobretudo, a democracia burguesa.

    A grande revolucionária Rosa Luxemburgo respondeu a essa posição em um texto que continua atual frente aos argumentos de seus herdeiros políticos:

    Bernstein, ao demonstrar a conquista do poder político como teoria blanquista da violência, tem a infelicidade de rotular como erro blanquista aquilo que sempre foi o pivô e a força motriz da história da humanidade. Desde a primeira aparição das sociedades de classes, com a luta de classes como conteúdo essencial de sua história, a conquista do poder político sempre foi o objetivo das classes em ascensão.16

    É por isso que a concepção da conquista de uma maioria parlamentar reformista é um cálculo de espírito tipicamente burguês liberal, que se ocupa apenas de um aspecto – o formal – da democracia, mas não considera o outro: seu verdadeiro conteúdo. Definitivamente, o parlamentarismo não é um elemento socialista que impregna gradualmente o conjunto da sociedade capitalista. Ao contrário, é uma forma específica do Estado de classe burguês, que ajuda a amadurecer e desenvolver os antagonismos existentes do capitalismo.17

    Entretanto, nesse aspecto, a ideia de revolução operária, socialista – tão clara em Marx e Engels e tão questionada há um século por Bernstein – sofre hoje ataques muito semelhantes por parte de correntes, dirigentes e intelectuais que se reivindicam marxistas ou socialistas. A moda atual é iniciar uma luta por valores, afirmando que qualquer confronto radical ou enfrentamento entre as classes é radicalismo que não leva a nada, apenas ao autoritarismo ou ao totalitarismo.

    Hoje, é comum ver diversos dirigentes, cientistas sociais, políticos ou filósofos alegarem que, em função das mudanças sociais e do avanço tecnológico, seria inviável qualquer projeto de revolução. Alguns, como Offe e Habermas, partem do “fim da sociedade do trabalho”; outros, dos novos sujeitos sociais para construir a “soberania popular descentralizada” ou ainda da utopia da razão. Mas todos têm em comum a negação, como autoritária e destrutiva, da revolução socialista.

    A visão idealista de Bernstein

    A última ideia que coroou a tentativa de Bernstein de esvaziar o marxismo de toda a sua força enquanto concepção de mundo – e que hoje possui inúmeros seguidores – é a visão do socialismo como ideia moral, e não como necessidade material. O socialismo enquanto realização moral, enquanto difusão de valores universais e atemporais, partia, para Bernstein, de sua recusa em aceitar a ideia de “objetivo final” como meta a serviço de uma classe. Embora nesse ponto ele não fosse propriamente original (basta lembrar os socialistas utópicos), também foi ele quem diferenciou e deixou um legado para todos seus sucessores reformistas: como buscar suavizar o antagonismo de classe com a burguesia e como apontar as “baterias” para os marxistas revolucionários, apelando à moral e aos valores eternos.

    Em uma citação publicada na Vorwärts, periódico social-democrata alemão, Bernstein dizia que via o objetivo final do socialismo não como um futuro estado de coisas, mas como um conjunto de princípios que regeria o cotidiano da atividade política no Partido18. A atividade política seria, segundo ele, regida por princípios atemporais que funcionavam como imperativos morais ao estilo kantiano: “o ponto de desenvolvimento econômico atingido hoje deixa aos fatores ideológicos e particularmente aos éticos um espaço bem maior para a atividade independente do que era o caso antes”; não por acaso ele fechava esse trabalho com um apelo por “um retorno a Kant”.

    Essa é a outra faceta do pensamento de Bernstein que exerce influência poderosa hoje no campo da esquerda. A ideia de conquistar uma sociedade justa pela propaganda dos valores da ética e da justiça.

    Habermas, renomado filósofo alemão – cuja influência se estende não só entre os verdes e social-democratas de seu país, mas também em âmbito mundial – defende a ação comunicativa e o diálogo racional entre todos os cidadãos como instrumentos na luta de classes, considerada obsoleta. Ele direciona seus esforços para buscar, através da filosofia política, um direito racional e normas éticas universais que permitam um exercício democrático renovado, livre das determinações impostas pelo poder econômico (ou de mercado) ou pelo Estado (poder administrativo).

    Para tanto, apela à participação e à liberação do “mundo da vida” (os homens comuns), supostamente mais imunes às intervenções do mercado e da burocracia, e que poderiam chegar a um “consenso racional”, como se fosse possível isolar essas esferas da organização capitalista da sociedade. O peso dado ao “diálogo” e à construção de uma ética superior, transmitida a todos a partir desse “consenso”, levou os seguidores de Habermas a se limitarem a uma luta pela ampliação do direito e dos valores éticos.

    Os ecos dessa posição chegam também ao outro lado do mundo, para aqueles que apelam à em sua militância à ética na política. José Genuino, presidente em exercício do PT (2002-2005), diz: “Ao contrário da pretensão universalista do neoliberalismo e do socialismo do passado,… o que deve ser universalizado são alguns valores, alguns objetivos e alguns direitos comuns a todos os seres humanos…”. Coerente com essa formulação, sua proposta para o Brasil resume-se a postular “a democracia republicana”. 19

    Podemos dizer que, se há alguma diferença entre esses reformistas de hoje e Bernstein, é que eles são ainda mais claros que ele em sua inspiração kantiana ou rousseuniana. A aposta em uma ética racional leva-os a intermináveis debates sobre um direito universal.

    Bernstein começou a elaborar as implicações idealistas de sua posição em Socialismo evolucionário. Não chegou a rejeitar completamente o materialismo nem se declarou um idealista. Mais tarde, em um ensaio intitulado O socialismo científico é possível?, Bernstein deixou clara sua posição. Após reiterar que a tese do “colapso do capitalismo” e, portanto, da necessidade histórica do socialismo é incapaz de ser comprovada cientificamente, ele foi além, afirmando que nenhum tema de pensamento é científico “quando seus objetivos e pressupostos incluem elementos que estão fora dos limites do conhecimento desinteressado” e que o socialismo é um sistema de pensamento que contém justamente esses elementos – ou seja, um conjunto de objetivos que não expressam os resultados de uma investigação científica, mas os interesses da classe operária. A ciência, sendo mera cognição, não poderia mover os homens para a ação; e, por essa razão, o socialismo, como um movimento que tem objetivos a ser conquistados – um movimento rumo ao que deveria ser – não poderia ser científico. 20

    Rosa Luxemburgo contestou, argumentando que, para os socialistas, a ciência seria uma questão de demonstrar o que é “objetivamente necessário” no sentido histórico, e que a atividade prática era científica na medida em que fosse guiada pelo reconhecimento da necessidade objetiva, em oposição a qualquer ideia preconcebida do que deveria ser.

    Bernstein não gosta que se fale de uma ‘ciência do partido’, ou mais precisamente, de uma ciência de uma classe, assim como não quer que se fale do liberalismo de uma classe ou da moral de uma classe. Ele acredita conseguir expressar a ciência humana em geral, abstrata, o liberalismo abstrato, a moral abstrata. No entanto, dado que a sociedade é composta por classes que possuem aspirações e concepções diametralmente opostas, uma ciência humana em geral, um liberalismo abstrato, uma moral abstrata, são, na realidade, ilusões, pura utopia. A ciência, a democracia, a moral – que Bernstein considera gerais, humanas – são, na verdade, nada mais que a ciência, a democracia e a moral dominantes, ou seja, burguesas.21

    Ela acrescentava que, segundo Bernstein, a consciência de classe do proletariado deixaria de ser “um simples reflexo intelectual das contradições crescentes do capitalismo e de seu declínio progressivo” e, ao invés disso, passaria a ser “apenas um ideal cuja força persuasiva reside unicamente nas imperfeições a ele atribuídas”. Não bastava ao proletariado reconhecer que, medido por certos princípios éticos, o sistema capitalista é defeituoso. Portanto, ao ver o socialismo não como uma necessidade histórica, mas como uma condição de compromisso moral, Bernstein teria “oferecido uma explicação idealista do socialismo”.

    Ele respondeu: “Eu, francamente, admito que tenho muito pouca inclinação ou interesse pelo que geralmente se chama ‘objetivo final do socialismo’. Esse objetivo, independentemente do que seja, não significa nada para mim; o movimento é tudo”. 22 Bernstein, com essa frase, desprezava a noção essencial para os marxistas, que é um programa revolucionário e uma estratégia de classe que deveria dar sentido a toda a prática política e às táticas que o partido adotaria. Ao priorizar os objetivos imediatos, perder-se-ia a perspectiva histórica e a própria razão de ser do partido socialista revolucionário, transformando-o num movimento por pequenas conquistas, devido à integração na ordem vigente. O destino potencial da social-democracia é a maior prova dessa contradição da qual não se pode escapar.

    Bernstein e a colonização: a posição frente ao imperialismo

    Outra questão na qual Bernstein tentou se justificar teoricamente na esquerda para a adaptação ao capitalismo europeu foi sua posição em relação ao imperialismo, sobre a questão colonial. Os parágrafos seguintes são extraídos de seu artigo publicado em 1900, “O socialismo e a questão colonial”:

    Medindo-se com esse padrão, a cultura superior possui sempre em face da cultura inferior, sob condições iguais, em circunstâncias diversas, o Direito incondicional do seu lado, em verdade, possui o dever de subjugar a cultura inferior.

    Não se pode conceder a nenhuma tribo, a nenhum povo, a nenhuma raça, o direito incondicional a qualquer parte de terra habitada. A terra não pertence a nenhum mortal. Ela é propriedade e herança do conjunto da humanidade.

    «Tão interessados quanto possam ser os representantes das culturas inferiores, originários, pelos etnólogos, não hesitará o sociólogo, por nenhum instante, em declarar como sendo necessária e justa, em sentido histórico mundial, sua perda de terreno em face dos representantes das culturas superiores.23

    Como se vê, já aparece nitidamente a ideia do direito de uma cultura “superior” dispor das riquezas e do território das “inferiores”. A comparação com os social-democratas de hoje é gritante. E não apenas com as correntes que estão no governo, mas com uma gama de posições chamadas de esquerda.

    Habermas, bastante ouvido pelos social-democratas e verdes alemães, promoveu uma campanha em defesa do Patriotismo Constitucional – orientação que ele já havia defendido na época da Guerra na ex-Iugoslávia, justificando sua posição a favor da intervenção militar do imperialismo quando se tratava de enfrentar “nações desprovidas de Direito Constitucional e liberdades fundamentais”.

    “Naturalmente, os EUA e os Estados-membros da União Europeia, que possuem responsabilidade política, partem de uma posição comum. Após o fracasso das negociações de Rambouillet, eles executam a ação punitiva militar contra a Iugoslávia com o objetivo declarado de impor regulamentações liberais para a autonomia de Kosovo, no interior da Sérvia. No âmbito do Direito Internacional Público clássico, esse ato seria visto como intromissão nos negócios internos de um Estado soberano – isto é, enquanto violação da interdição de intervenção. Sob as premissas da política de Direitos Humanos, essa ingerência deve ser entendida como uma missão armada que gera, porém, por obra da comunidade dos povos (tacitamente, também sem um mandato da ONU) – a paz autorizada.24

    Segundo essa interpretação ocidental, a Guerra de Kosovo poderia significar um salto do Direito Internacional Público clássico para o Direito Cosmopolita de uma sociedade civil mundial.

    Apesar de Habermas concentrar sua utopia na busca de uma compreensão comum e de uma ética universal, isso não o impede, em caso de guerra – e, portanto, de “necessidade imperativa” – de disputar com os europeus burgueses a necessidade de violar a soberania de países periféricos em nome da ética racional e do direito cosmopolita de uma sociedade civil mundial, da futura “Sociedade de Cidadãos do Mundo” (?!), ou do “patriotismo constitucional”, o qual hoje se apresenta e é exercido, claramente, pela vontade de um punhado de grandes potências imperialistas.

    Seu raciocínio é, evidentemente, muito semelhante às elucubrações de Bernstein sobre a cultura superior. Quem define o que é a “cultura superior” ou onde reside o “direito internacional da sociedade civil dos cidadãos do mundo” é o G-7, ou o governo dos EUA. O mesmo argumento pode ser usado hoje contra o Afeganistão ou qualquer inimigo do imperialismo, considerado o guardião da civilização e dos “valores” ocidentais. Ou, se usássemos os argumentos de Bernstein, é progressista, onde prevalece uma cultura «inferior’, que se imponha a vontade dos “civilizados” e “superiores” europeus.

    Civilização ou barbárie: o caráter benigno da colonização para os social-democratas

    Nesse mesmo texto sobre as colônias, Bernstein defende uma ideia muito cara aos “humanitários” de hoje, mas que havia sido antecipada por alguns representantes do liberalismo burguês.

    Tocqueville, o liberal burguês que é o ídolo de alguns desses teóricos, como Lefort, alertava seus compatriotas, já no século XIX, sobre o perigo de provocar entre os árabes a ilusão ou a pretensão de que poderiam ser tratados “como se fossem nossos concidadãos ou nossos iguais”. A ideia de igualdade entre os homens não poderia se estender ao ponto de incluir os “povos semicivilizados”.

    Em uma carta, antecipando de forma notável o discurso do imperialismo na guerra atual contra o Afeganistão, Tocqueville escrevia: “a recaída da Índia na barbárie seria desastrosa para o futuro da civilização e para o progresso da humanidade”. Por isso, depositava sua esperança em uma repressão eficaz por parte dos ingleses, o império hegemônico da época: “hoje em dia quase nada é impossível para a nação inglesa, se ela empregar todos os seus recursos”. 25

    Também hoje, quando social-democratas como Blair, Jospin ou Schröder apoiam o lado da “civilização contra a barbárie”, como o ataque norte-americano ao Afeganistão em nome do “direito à legítima defesa” de Bush; quando os “pacifistas” Verdes da Alemanha servem de embaixadores imperiais, como orgulhosamente fez o ministro Joschka Fischer, para negociar com os países vizinhos como fechar o cerco ao Afeganistão; quando o PDS de D’Alema, na Itália, apoia a intervenção dos EUA e mesmo assim quer aparecer como pacifista, podemos constatar que o cinismo defensor da colonização e a postura pró-imperialista de Bernstein têm inúmeros herdeiros, um século depois, entre aqueles que se dizem de esquerda, socialistas ou comunistas.

    As consequências do reformismo, ontem e hoje

    A verdade é que os resultados práticos da posição reformista não ajudam a defender a posição bernsteiniana e de seus sucessores envergonhados. Em primeiro lugar, o reformismo desorienta a classe em sua luta contra a burguesia, alimenta a crença nas instituições; em vez da desconfiança e da intransigência classista; faz a classe acreditar em uma via pacífica e gradual a cujos fracassos se segue uma desmoralização política quando a utopia se mostra inviável. Recordemos o processo da luta de classes alemã e europeia quando a Primeira Guerra Mundial estourou. A divisão instalou-se entre os trabalhadores por culpa da direção social-democrata, justamente quando mais necessitavam de sua unidade internacionalista.

    Mas o problema assume contornos ainda mais graves quando os governantes sociais democratas e todas as demais variantes reformistas, coerentes com essa concepção, assumem a gestão do Estado burguês para “democratizá-lo” e acabam por defendê-lo, bem como a ordem que propõem reformar. Os reformistas, como Bernstein, alertam contra o perigo de uma “revolução prematura”. Aconselhavam o caminho “mais lento e seguro” das reformas graduais. E aqueles que querem revolucionar esse Estado, destruir a ordem burguesa – os marxistas revolucionários – acabam sendo tratados por eles como “inimigos da democracia”. O assassinato de Rosa Luxemburgo, perpetrado sob um governo social-democrata durante o processo revolucionário que explodiu na Alemanha ao final da I Guerra Mundial, foi a dramática expressão dessa lógica infernal da posição reformista e de seu antagonismo em relação à revolução.

    O papel dos atuais governos social-democratas e laboristas na Europa; dos defensores destacados da reconversão econômica em seus países para adaptá-los às diretrizes de Maastricht – a antiga coalizão de L’Olivo na Itália com o PDS, o Partido Comunista Italiano, à frente da aliança em defesa dos planos econômicos “para implantar o euro” e da diminuição do Estado -; dos governos estaduais e municipais do PT brasileiro com sua aplicação da política do FMI em nome do cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, são expressões dessa concepção. Seu posicionamento leva-os a confrontar as aspirações dos movimentos de massa e, consequentemente, a recorrer a políticas de austeridade para defender a ordem em nome da democracia. É a demonstração do vínculo entre teoria, programa e política.

    Porém, a realidade da ofensiva imperialista colonizadora, inerente à chamada globalização, coloca a questão do reformismo não somente diante da opção de estar ou não a favor da democratização do Estado nacional, mas também de estar a favor da destruição ou da reforma do imperialismo, das instituições internacionais e de uma articulação europeia em contraposição aos EUA: posicionam-se como a alternativa dos cidadãos contra os mercados. Essa corrente diferencia-se dos desgastados governos da Terceira Via e inclui setores críticos da social-democracia, como o ex-ministro das Finanças e da Fazenda do primeiro governo Schröder, Oskar Lafontaine, ONGs, a ATTAC, o jornal Le Monde Diplomatique e correntes oriundas do trotsquismo e do marxismo revolucionário, que têm em comum a proposta de uma maior regulação do fluxo de capitais (a Taxa Tobin), o fim dos paraísos fiscais e do segredo bancário (proposta que até George W. Bush defende atualmente como medida contra os grupos terroristas).

    Lafontaine propõe que a Europa reforce seus laços e “utilize seu poder frente à Wall Street”. E que a ONU adquira mais vigor na hora de aplicar os direitos humanos. 26 Essa corrente contrapõe a atuação conjunta da ONU à ação isolada dos EUA. Mas não conseguem sair dos tópicos já batidos das medidas relacionadas à ordem financeira, à ampliação das prerrogativas da ONU e à reforma das atuais instituições internacionais. Para eles,é possível que o imperialismo europeu tenha uma postura mais “social” ou “progressista” do que o norte-americano.

    Hoje, ser reformista implica não só aceitar o status quo em seu país, mas, em nome de uma mudança gradual, aceitar na prática a ordem imperialista. Esse neorreformismo termina por desarmar os movimentos que se radicalizam contra o imperialismo, ao optar por um caminho propositivo de criação de “espaços democráticos no mundo”, ou seja, por reformas “viáveis” dentro do capitalismo globalizado. Por isso, como evidencia a guerra contra o Afeganistão, o século XXI começou com uma disjuntiva para a esquerda: reforma da ordem imperialista ou revolução mundial.


    NOTAS

    1. Para fortalecer suas posições, Bernstein utilizava o papel de executor testamentário das obras de Engels, posto que dividiu com outro grande dirigente e teórico do SPD, Kautsky. Apesar de alguns momentos e posições ocasionalmente mais principistas – como o voto contra os créditos de guerra em 1915 – ele foi a primeira grande referência teórica e programática para aqueles que, dentro do movimento operário, abandonavam os princípios essenciais do marxismo. Seu apogeu como teórico da social-democracia ocorreu no Congresso de Giirlitzer, em 1921, quando foi um dos redatores e inspiradores do programa votado que rompeu totalmente com o marxismo revolucionário e tornou o partido num partido abertamente reformista, que até hoje serve de referência ao SPD alemão. ↩︎
    2. Esse foi o título do trabalho mais ambicioso de Bernstein (publicado no Brasil com o nome Socialismo evolucionário, pela Jorge Zahar Editor), escrito em resposta às críticas de militantes e dirigentes a seus artigos na imprensa, publicado pela primeira vez em 1899. Dele extraímos a maior parte das citações aqui utilizadas, na edição inglesa de Henry Tudor, Preconditions of Socialism, Cambridge, 1996. ↩︎
    3. Rosa Luxemburgo enfrentou essa questão em “Reforma o revolución – Obras escogidas”, Tomo. I. Bogotá: Pluma, 1979, p. 137 ↩︎
    4. Welmowicki, José. «Fórum Social Mundial: morte ao capitalismo ou capitalismo cidadão?» em Marxismo Vivo N. 3, (maio de 2001), p. 14 ↩︎
    5. Recentemente, o ex-ministro alemão Lafontaine esteve presente em um congresso da ATTAC para apoiar a proposta da entidade: “O ex-ministro das Finanças e da Fazenda do primeiro governo Schröder pediu uma maior regulação do tráfego de capitais, o que agora, curiosamente, George W. Bush defende como medida contra os grupos terroristas. ‘Reclamamos o fim dos paraísos fiscais e do segredo bancário, que só favorecem quem quer evadir impostos’, explicou Lafontaine. Ele instou a Europa a reforçar seus laços e a utilizar seu poder frente à Wall Street. O ex-líder social-democrata também se referiu à necessidade de que a ONU adquira mais vigor na aplicação dos direitos humanos. ‘É preciso criar as condições sociais e econômicas adequadas para a paz, não só autorizar a guerra’, ressaltou Lafontaine. Após o 11 de setembro, Lafontaine destacou que fica mais claro que ‘a mais desigualdade, mais violência e mais terrorismo’, daí a necessidade do trabalho de movimentos como a Attac, que o ex-ministro alemão apoia.” Fonte: El País, 23/10/01 ↩︎
    6. In: http://www.spd.de/events/congress/ ↩︎
    7. Bernstein, “Preconditions”, p. 141. ↩︎
    8. Luxemburgo, R., op. cit., p. 136. ↩︎
    9. “Em princípio, a democracia é a abolição do governo de classe, embora ela não seja em si a abolição das classes”, p. 143. ↩︎
    10. Lefort, Claude. Pensando o Político, p. 47, idem, p. 49. ↩︎
    11. Idem, p. 49 ↩︎
    12. “Laclau, Ernesto, MOUFFE, Chantal. In Hegemonía y estratégia socialista. Madrid: Siglo XXI, 1987.” ↩︎
    13. “Partido dos Trabalhadores: Resoluções, Encontros, Congressos. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 1998.” ↩︎
    14. Blanquismo era o nome de uma corrente que defendia a tomada do poder pelos operários oprimidos através de um golpe conduzido por uma minoria selecionada de revolucionários bem preparados, posição sempre criticada por Marx em seus escritos. Seu nome deve-se ao revolucionário francês Louis Blanqui, que teve papel destacado nas revoluções de 1830, 1848 e na Comuna de de Paris, em 1871. ↩︎
    15. Bernstein, L. Preconditions…, p. 38. ↩︎
    16. Luxemburgo, Rosa, op. cit., p. 123. ↩︎
    17. Idem, p. 90. ↩︎
    18. Tudor, H. and Tudor, Introduction to Preconditions of Socialism. Cambridge, 1996, p. xxx. ↩︎
    19. Este foi o título da Tese da corrente de Genoíno ao II Congresso do PT. ↩︎
    20. Tudor, H. and Tudor, p. xxxiv ↩︎
    21. Luxemburgo, op. cit., p. 135. ↩︎
    22. Tudor, H. and Tudor, p. xxviii ↩︎
    23. “Bernstein, El Socialismo e as Colônias, tradução de Emil von Munchen, Instituto José Luiz & Rosa Sunderman.” ↩︎
    24. Habermas, J. Brutalidade e Humanidade. Uma guerra entre o direito e a moral. 1999, tradução de Emil von Munchen, Instituto José Luiz & Rosa Sunderman. ↩︎
    25. Idem, p. 28. ↩︎
    26. El País, 23/10,2001 ↩︎

    Publicado em dezembro de 2001 na revista Marxismo Vivo N. 4

  • Leon Trotsky e a questão negra

    Leon Trotsky e a questão negra

    Como já dissemos, não conhecemos nenhum caso em que a III Internacional, na época de Lenin, tenha convocado a organização das operárias de forma separada ou que tenha impulsionado a organização dos oprimidos a partir da opressão.

    Por Alicia Sagra e José Welmowicki

    Mas o Freedom Socialist Party utiliza um exemplo para afirmar que a orientação de convocar organizações autônomas de mulheres, negros, LGBTI, etc., está inserida na tradição do trotsquismo. Trata-se da proposta de Trotsky para impulsionar a construção de uma organização negra nos EUA.

    O direito à autodeterminação

    O problema negro foi algo ao qual Trotsky deu muita atenção. Assim foi na África do Sul, onde propôs a “república negra”. Na mesma época, dedicou-se a estudar o tema nos EUA, onde acompanhava a construção do SWP.

    Chegou à conclusão de que os negros norte-americanos eram uma nação oprimida e que, portanto, o que se propunha era o direito à autodeterminação. Essa definição foi polêmica no SWP, e resultou de várias discussões na década de 1930. No início da década, em uma dessas discussões, Trotsky argumentava:

    «Sobre essa questão, um critério abstrato não é decisivo: o que é mais decisivo é a consciência histórica, seus sentimentos, suas determinações… A tomada de consciência ainda não ocorreu entre os negros, e estes ainda não se unem aos trabalhadores brancos. 99,9% dos trabalhadores norte-americanos são racistas, são os carrascos dos negros, assim como dos chineses… É necessário fazer os negros compreenderem que o estado americano não é o estado deles e que não precisam se tornar os guardiões desse estado. Os operários norte-americanos que dizem: ‘Se os negros querem viver separados, nós os defenderemos contra nossa polícia norte-americana, são os verdadeiros revolucionários. Tenho confiança neles. O argumento de que a palavra de ordem de autodeterminação se afasta do ponto de vista de classe representa uma adaptação à ideologia dos trabalhadores brancos.» 1

    Àqueles a quem se apontava que os negros não reivindicavam esse direito, ele respondia:

    «Se os negros não estão exigindo agora o direito à autodeterminação, é, supostamente, pela mesma razão que os operários brancos ainda não estão propondo a defesa da ditadura do proletariado. Os negros ainda não internalizaram que podem ousar tomar uma porção dos grandes e poderosos Estados Unidos para si.» 2

    A organização negra

    Em abril de 1939, como parte das discussões com a direção do SWP sobre a questão negra, Trotsky explica a importância do tema do ponto de vista de onde e com quem o partido deveria ser construído:

    «As antigas organizações, começando pela AFL, são organizações da aristocracia operária. Nosso partido faz parte do mesmo meio, não da base das massas exploradas, das quais os negros são a camada mais explorada. Que, até o presente, nosso partido não tenha se concentrado no problema negro é um sintoma inquietante. Se a aristocracia operária é a base do oportunismo, uma das fontes de adaptação à sociedade capitalista, então os mais oprimidos e discriminados representam o meio mais dinâmico da classe operária.» 3

    «Devemos dizer aos negros conscientes que o desenvolvimento histórico os chama para se tornarem a vanguarda da classe operária. O que freia as camadas superiores? São os privilégios, o conforto é o que os impede de se tornarem revolucionários. Isso não existe para os negros. O que pode transformar uma certa camada, torná-los mais capazes de ações corajosas e espírito de sacrifício? Isso se concentra nos negros. Se nós, no SWP, não conseguirmos encontrar o caminho para essa camada, então não seremos dignos. A revolução permanente e tudo o mais não passam de mentiras.» 4

    Nessa discussão, como parte de sua insistência para que se abordasse o problema negro e na busca desse caminho, Trotsky, que continuava defendendo o direito à autodeterminação, apoia, além disso, a proposta de CLR James, que defende a construção de uma organização negra. Trotsky afirma que a proposta é inovadora e sem precedentes, e que se trata de uma “tática especial para uma situação especial”.

    Qual era essa situação especial?

    As condições de vida dos negros nos EUA, sobretudo nos estados do Sul: a cultura comum que os une, a segregação no transporte, nas escolas, nos empregos, em muitos sindicatos e na própria classe operária, visto que se considerava que 99% dos trabalhadores brancos eram racistas. Trotsky explica a proposta da seguinte forma:

    «(…) [Os negros] Foram reduzidos à escravidão pelos brancos, foram libertados pelos brancos (a suposta libertação). Foram conduzidos e enganados pelos brancos e não tinham sua própria independência política. Eles precisavam, enquanto negros, de uma atividade preparatória para a política. Em teoria, parece-me absolutamente claro que é preciso criar uma organização especial para responder a uma situação especial (…) Nosso movimento conhece muitas formas de organização, como o partido, o sindicato, a organização educativa, a cooperativa; mas esta é um novo tipo de organização que não coincide com as formas tradicionais. Devemos considerar a questão de todos os pontos de vista para decidir se é ou não acertado e qual deveria ser a forma da nossa participação nessa organização (…) É para despertar as massas negras. Isso não exclui a captação. Creio que o sucesso é muito possível, embora eu não tenha certeza. Mas deve ficar claro que nossos camaradas nessa organização devem ingressar como um grupo.» 5

    Meses depois, em julho de 1939, o II Congresso do SWP votou duas resoluções apresentadas por CLR James, uma propondo o direito de autodeterminação para o povo negro e outra propondo a formação de uma organização negra.

    Qual é o significado dessa orientação proposta por Trotsky?

    Como já dissemos, o Freedom Socialist Party (FSP) dos EUA argumenta que o chamado a essa organização negra é uma prova de que Trotsky orientava a organização dos oprimidos como tal. Não nos parece que seja assim. Ele não propôs, por exemplo, uma organização dos trabalhadores imigrantes chineses — os quais ele mesmo afirma terem sido muito maltratados nos EUA. Tampouco convocou uma organização de mulheres, apesar de não desvalorizar a opressão que estas sofriam.

    Temos a impressão de que o chamado a essa “organização negra” foi, como ele manifestou, uma “tática especial para uma situação especial”, que estava intimamente ligada à sua visão dos negros como uma nacionalidade oprimida e à política central de “autodeterminação” que ele vinha defendendo. Seguindo esse raciocínio, parece-nos que essa organização, que ele não consegue definir bem o que é, mas que afirma ser diferente de tudo o que já existiu, tem mais a ver com a organização do povo negro como nação, isto é, a organização de uma nação que não tinha um território próprio.

    Essa organização nunca se concretizou e não há nada escrito sobre o tema, além daquela conversa com o SWP. Portanto, é difícil precisar mais.

    O que nos parece evidente é que Trotsky teve um grande acerto em sua insistência para que se abordasse o problema negro, e que essa insistência foi muito importante para a inserção do SWP nas lutas contra a opressão racial durante a Segunda Guerra e durante as grandes mobilizações pelos direitos civis na década de 60. Em relação às mobilizações dos anos 30, Cannon, em seu trabalho A Revolução Russa e o movimento negro norte-americano, relata que foi dessa revolução que surgiu o incentivo para que os revolucionários abordassem o problema negro. Que os trotskistas o abordaram, ainda que fossem muito pequenos, mas que o Partido Comunista, que se lançou de forma intensa (apesar de sua condução stalinista), realizou um grande trabalho a favor do movimento negro e obteve excelentes resultados em sua construção.

    Apesar de se tratar de uma espécie de balanço, Cannon não faz nenhuma referência ao chamado à organização negra. Mas se refere ao direito à autodeterminação:

    «A palavra de ordem de “autodeterminação” encontrou pouca ou nenhuma aceitação na comunidade negra. Após o colapso do movimento separatista dirigido por Garvey, 6 sua tendência foi principalmente para a integração racial com igualdade de direitos.» 7

    Seria tema de outro artigo analisar a política aconselhada por Trotsky para o movimento negro dos EUA. O que nos parece, de fato, é que não é correto tomar um aspecto isolado dessa política (o chamado a uma organização negra), que ele define como uma “tática especial para uma situação especial”, como se essa fosse sua orientação geral para os setores oprimidos.

    Notas

    1. – Trotsky, L., «On Black Nationalism and Self-determination», 28 de fevereiro de 1939, reeditado em: Leon Trotsky on Black Nationalism and Self-determination. Pathfinder Press, 1971. ↩︎
    2. Idem ↩︎
    3. Trotsky, L, Plans for the Negro organization, em On Black Nationalism: documents on the Negro struggle ↩︎
    4. Idem. ↩︎
    5. Trotsky, L, A Negro organization, em On Black Nationalism: documents on the Negro struggle ↩︎
    6. Garvey, Marcus Mosiah (1887-1940). Líder negro jamaicano. Figura emblemática do movimento negro. Nos EUA, propunha a saída de todos os negros do país para formar uma república própria na África, visto que a integração era impossível. ↩︎
    7. Cannon, James Patrick. A Revolução Russa e o movimento negro norte-americano, 1959. ↩︎

    Publicado em julho de 2015 na revista Marxismo Vivo n. 6

  • A negação do trabalho e do proletariado: as raízes do elitismo em Hannah Arendt

    A negação do trabalho e do proletariado: as raízes do elitismo em Hannah Arendt

    A importância do pensamento de Hannah Arendt para as elaborações sobre espaço público e democracia tem sido destacada a partir de sua conhecida crítica ao totalitarismo. A obra de Arendt influencia a esquerda brasileira desde os anos 90 nas formulações sobre cidadania, Estado e democracia. De seus trabalhos, distintos pensadores extraem e saúdam o privilégio ao político, colocado em uma esfera acima e isolada da esfera do trabalho e da sociedade. Autores de origens diversas como Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, Cornelius Castoriadis e Claude Lefort, ou ainda Jürgen Habermas; no Brasil os que defendem a cidadania como alternativa, como Vera Telles, entre outros, inspiram-se na visão de Arendt. Em geral, ainda que de distintos ângulos, enfatizam sua contribuição como uma redescoberta da liberdade e da democracia pluralista.

    Por José Welmowicki

    No entanto, uma pesquisa mais profunda e crítica demonstra o sentido elitista de seu arcabouço teórico. Um viés aristocrático, cuja base está em sua negação do papel do trabalho, condiciona o pensamento da autora. Aqui discutiremos a partir do livro A Condição Humana, que ela considerava ser seu texto filosófico mais desenvolvido. Nele, a autora inquieta-se com a transformação da sociedade moderna em sociedade operária e sonha com uma sociedade que possa ser verdadeiramente humana, uma vez que privilegie a ação e o discurso, que consigam se elevar acima do homem comum para realizar a atividade humana mais nobre, a política (ação):

    «Mas isto é assim apenas na aparência.  A era moderna trouxe consigo a glorificação teórica do trabalho e resultou na transformação efetiva da sociedade em uma sociedade operária. Assim, a realização do desejo, como sucede nos contos de fadas, chegou num instante em que só pode ser contraproducente. A sociedade que está para ser libertada dos grilhões do trabalho é uma sociedade de trabalhadores, uma sociedade que já não conhece aquelas outras atividades superiores e mais importantes em benefício das quais valeria a pena conquistar essa liberdade. Dentro dessa sociedade, que é igualitária porque é próprio do trabalho nivelar os homens, já não existem classes nem uma aristocracia de natureza política ou espiritual da qual pudesse ressurgir a restauração das outras capacidades do homem. Até mesmo presidentes, reis e primeiros-ministros concebem seus cargos como tarefas necessárias à vida da sociedade.» (Arendt, 1997, pp. 12-13, grifos nossos)

    Esta citação serve para avançar uma questão sobre a natureza da filosofia política de Arendt: sua visão do trabalho sustenta uma concepção política excludente. Para ela o labor equaliza e rebaixa a atividade humana, o que dá o embasamento teórico para uma posição que despreza a participação social e coletiva, típica do movimento dos trabalhadores.  Sua defesa da política é desde um ponto de vista individualista, que, portanto, recusa uma visão realmente emancipadora da humanidade.

    A concepção negativa de Arendt sobre o trabalho e o labor

    Arendt trabalha com 3 categorias da atividade humana, labortrabalho e ação. Ao optar por essa classificação tríplice da atividade humana, Arendt elaborou uma distinção entre duas atividades normalmente abrangidas pela denominação trabalho: 1) a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujo crescimento e eventual declínio tem a ver com as necessidades vitais imediatas do homem (o que ela chama de labor). Esta interfere apenas sobre a vida do homem, sua sobrevivência; 2) o trabalho, que corresponderia ao artificialismo da existência humana, ou seja, aquela atividade realizada com alguma finalidade/intenção por parte do homem e que produz um mundo artificial de coisas, que tende a transcender à sua própria e a todas a(s) vida(s) individual(is). Esta interfere sobre o mundo.

    Já a terceira atividade humana, a ação, seria a única atividade que se exerce entre os homens, sem a mediação da coisa ou da matéria. Corresponderia à condição da pluralidade humana, já que os seres humanos seriam iguais como tal, mas plurais, pois nenhum ser humano é idêntico ao outro. Esta pluralidade seria então especificamente a condição de toda vida política.

    Para ela, a única atividade verdadeiramente humana é a política, enquanto labor etrabalho seriam atividades pré-humanas. Arendt distingue a política, agregando que só se poderia realizar no espaço público. 1 Tudo o que os homens teriam em comum com outras formas de vida animal seria procurar vencer suas necessidades básicas. O que eles teriam de específico seria justamente a procura de uma atividade superior, a política. 2

    O Labor, atividade biológica

    A partir dessa divisão arbitrária, Arendt caracteriza o operário (o laborer) como animal laborans. Com essa denominação quis marcar o aspecto ‘biológico’ que a atividade laborativa adquiriu na sociedade capitalista. Partiu de um fato correto, o caráter repetitivo, alienado, da produção e do papel do operário na fábrica. Mas ao fazer este recorte, ela atribui à natureza do trabalho do operário em si (para ela o labor), aquilo que é fruto da situação imposta pelo capital a partir da divisão do trabalho e da introdução da máquina. Chama a atenção que, apesar de dialogar em boa parte do livro com obras de Marx, não tenha levado em conta o texto O Trabalho Alienado (ou O Trabalho Estranhado). 3

    Neste texto, Marx desenvolve a forma como se dá a alienação do trabalhador, como ele se nega em seu trabalho, não se sente bem, mas sim infeliz nele. Marx indica nada menos que 4 características que fazem o trabalho na sociedade capitalista não passar de uma aparência de atividade, de um trabalho estranhado: Primeiro, que ele é exterior ao trabalhador, já que é imposto a ele, é compulsório. Segundo, que o fruto de seu trabalho não lhe pertence, nem o próprio trabalho em si. O trabalho significa a perda de si mesmo para o trabalhador. Terceiro, a alienação faz o trabalho (que é sua atividade vitalhumana) aparecer ao homem como simples meio para sua existência. Quarto, tira do homem a característica mais importante como ser genérico, a de poder trabalhar o conjunto da natureza e não só para as necessidades físicas imediatas, como os animais. Portanto, ao contrário do que entende Arendt, para Marx o trabalho não é apenas ‘biológico’, mas sim o instrumento de intercâmbio e domínio do homem sobre a natureza, que se encontra alienado pela subordinação ao capital, estranhado. 4

    Um aspecto que impede Arendt de captar essa realidade é o não entendimento do caráter dialético existente entre a necessidade de responder às questões vitais, embutida no trabalho desde as comunidades mais primitivas, e sua característica especificamente humana. Foram as próprias necessidades básicas para a sobrevivência como a coleta, a caça e a defesa contra os inimigos que levaram o homem a se diferenciar de seus ancestrais símios e a desenvolver a capacidade de interferir sobre a natureza. Já a caça e a pesca exigiam conhecimentos do meio ambiente e determinados instrumentos, embora se limitassem a retirar da natureza frutos ou animais que ali estavam. Embora nesse momento ainda tivesse semelhanças com os demais animais, a utilização pensada dos materiais foi abrindo um crescente diferencial entre o homem e as demais espécies. Como Engels mostrou em seu texto clássico O papel do trabalho na transformação do macaco em homem, essa evolução, esse salto, torna-se claro quando o homem já utiliza as mãos não somente como o macaco para agarrar frutos nas árvores ou arrancar galhos para se proteger, mas para produzir um machado ou uma faca de pedra.

    Já a agricultura exigiu não só conhecimento sobre a natureza, como atuar de forma planejada sobre ela, com a semeadura, irrigação, colheita, etc. Ter noção de tempo, de como contabilizá-lo, e, mais importante ainda, criar formas de trabalho social. A finalidade da agricultura era alimentar a população crescente, evitar as fomes periódicas que acompanhavam o crescimento vegetativo das comunidades anteriores. No entanto, ao contrário do modelo que Arendt elaborou, ao separar labor e trabalho, (onde o primeiro se limitaria a produzir objetos de consumo que garantissem a vida biológica, sem permanência, enquanto o segundo produziria instrumentos, ferramentas, etc.,) foi a atividade agrícola que obrigou o homem a realizar obras de tal envergadura que permaneceram por muito tempo como exemplos do prodígio humano, como os diques da Mesopotâmia, ou a rede de canalização dos egípcios antigos, fundamentais para impedir que as enchentes dos rios Tigre/Eufrates ou do Nilo destruíssem as plantações e garantir condições de uso perene às terras férteis nas margens desses rios.

    Como bem observou Lukács no capítulo sobre o Trabalho em sua Ontologia do Ser Social, apoiando-se na visão de Marx e Engels, o trabalho é o elemento central e inseparável do salto qualitativo e estrutural da passagem do ser animal (biológico) para o ser especificamente humano(social).

    «Somente o trabalho tem, como sua essência ontológica, um claro caráter intermediário: ele é essencialmente, uma inter-relação entre homem (sociedade) e natureza, tanto inorgânica como orgânica, inter-relação que pode até estar situada em pontos determinados da série a que nos referimos, mas antes de mais nada, assinala a passagem, no homem que trabalha, do ser meramente biológico ao ser social.» (Lukács, 1981, p.3 )

    Assim, a oposição entre labor trabalho aventada por Hannah Arendt não esclarece a condição humana e acaba por subestimar o papel do trabalho como capacidade de interferir de forma consciente na natureza 5 sempre enfatizada por Marx, presente apenas no homem. Como também alerta Marx, o trabalho modifica o próprio homem e é fundamental na construção da consciência humana. Tanto o labor como o trabalho humanos, se utilizarmos a terminologia de Arendt, são únicos em relação às demais espécies animais. O homem desenvolveu através do trabalho uma atividade onde efetivamente existe a teleologia. Onde é necessário o conhecimento da causalidade, dos processos naturais e vitais para poder preparar e completar a produção, criando algo novo, mas que já havia sido pensado antes do ato laborativo. 6 Dizer que o labor é ‘apenas a atividade biológica’ como se fosse igual à dos animais, confunde e despreza a atividade laborativa humana.

    A famosa citação de O Capital sobre a diferença entre o trabalho da abelha e o do pior mestre de obras ou arquiteto joga luz sobre essa questão

    «Nós pressupomos o trabalho plasmado sob uma forma exclusivamente humana. A aranha realiza operações que se parecem com as do tecelão, a abelha faz corar de vergonha muitos mestres de obras, por sua perfeição ao construir as suas células de cera. Mas o que distingue, essencialmente, o pior mestre de obras da melhor abelha, é que ele projetou a célula em sua cabeça antes de fazê-la em cera. No fim do processo de trabalho aparece um resultado que já estava presente desde o início na mente do trabalhador que, deste modo, já existia idealmente. Ele não se limita a efetuar uma mudança de forma no elemento natural; ele imprime no elemento natural, ao mesmo tempo, seu próprio fim, claramente conhecido por ele, o qual governa como uma lei o seu modo de agir e ao qual tem de subordinar à sua vontade7

    O comentário de Arendt sobre esta mesma citação de Marx surpreende pela superficialidade com que se pretende ignorar toda a rica elaboração sobre o trabalho, e as contradições que o alienam na sociedade capitalista. 8 A diferença entre Marx e Arendt não reside em uma suposta falta de importância que este daria ao caráter de ‘imaginação’ que teria o trabalho humano, mas sim na denúncia que Marx permanentemente faz do papel do capital que, ao se apropriar da força de trabalho, aprisiona e transforma em seu oposto a força produtiva do trabalho social. Para o trabalhador concreto, é na máquina, em um objeto estranho a ele, no trabalho morto, que aparece a finalidade do trabalho, seu projeto. A máquina materializa um roteiro de tarefas prescrito, geralmente montado a partir de uma substituição das tarefas executadas pelos antigos instrumentos de trabalho, como na tecelagem, metalurgia, etc. Então não é que tenha deixado de existir a teleologia, a finalidade (ou a imaginação, conforme a terminologia de Arendt) no processo de trabalho. O problema é que uma figura nova, que antes não participava na produção, o capital, apropriou-se desta e através da máquina se faz presente no processo de trabalho, onde ele impõe em forma tirânica ao trabalhador todos os passos a seguir.

    A separação entre labor e trabalho

    Arendt confunde a diferença entre o trabalho qualificado ou que produz instrumentos e o trabalho não qualificado, com a diferença entre o trabalho artesanal pré-capitalista e o trabalho assalariado sob o capital (e alienado). Para ela, não foi o capital, mas uma abstração, tipo ‘a sociedade’ ou ‘ a revolução industrial’ que criou uma divisão do trabalho que reduziu o trabalhador ao papel de mero fornecedor de “força de trabalho”, e tornaram seus produtos meros objetos para o consumo (ou como diria melhor Marx, mercadorias).

    «A revolução industrial substituiu todo artesanato pelo labor; o resultado foi que as coisas no mundo moderno tornaram-se produtos do labor, cujo destino final é serem consumidos, ao invés de produtos do trabalho, que se destinam a ser usados. A divisão do labor, e não um aumento de mecanização, substituiu a rigorosa especialização antes exigida para todo tipo de artesanato.” (Arendt, 1997, p.137).

    A explicação que dá Arendt para a substituição do que ela chama de trabalho pelo labor ignora o papel do capital nessa transformação e na subsunção do trabalho, que passa a ser incorporado como trabalho abstrato e ser absorvido enquanto força de trabalho (labor power) pelo capital, atribuindo-a a uma tendência natural de busca da abundância. Esquece que justamente uma contradição central da sociedade capitalista é a que se dá entre a multiplicação da produção e a situação do trabalhador expropriado dos meios de produção, entre a possibilidade (potencial) de satisfação das necessidades, que é barrada continuamente pela apropriação privada capitalista e a dura realidade da classe operária

    «Os ideais do homo faber, fabricante do mundo, que são a permanência, a estabilidade e a durabilidade, foram sacrificados em benefício da abundância, que é o ideal do animal laborans. Vivemos numa sociedade de operários, porque somente o labor, com sua inerente fertilidade, tem possibilidade de produzir a abundância; e transformamos o trabalho em labor, separando-o em minúsculas partículas até que ele prestou-se à divisão na qual o denominador comum da execução mais simples é atingido para eliminar do caminho do <labor power> humano –  que é parte da natureza e talvez a mais poderosa das forças naturais – o obstáculo da estabilidade <inatural> e puramente mundana do artifício humano.”  (Arendt, 1997,  p.138.)

    Para Arendt, já estaríamos em uma sociedade da abundância. Esquece novamente o fato fundamental que os produtos que surgem do ‘labor’ são propriedade do capitalista, são mercadorias que só podem ser consumidas pelo trabalhador se este realizar a compra, se o seu salário permitir. Mais ainda, como Marx explica, a ampliação da produção pelo capitalista empobrece o trabalhador! Se olharmos o mundo de hoje, essa observação parece consistente e válida mais de 100 anos depois de ter sido redigida.

    «As contradições e os antagonismos inseparáveis da utilização capitalista da maquinaria não existem porque decorre da própria maquinaria, mas de sua utilização capitalista! Já que, portanto, considerada em si, a maquinaria encurta o tempo de trabalho, mas enquanto utilizada como capital aumenta a jornada de trabalho; em si facilita o trabalho, mas utilizada como capital aumenta sua intensidade; em si, é uma vitória do homem sobre a força da Natureza, mas utilizada como capital, submete o homem por força da Natureza; em si, aumenta a riqueza do produtor; mas utilizada como capital, pauperiza-o.» (Marx, 1973, V. I, p.58, grifos nossos).

    A divisão do trabalho, portanto, não é uma vitória do animal laborans sobre o homo faber, mas segue a lógica do capital, de reduzir o poder de fogo do trabalhador, subordinando-o à totalidade do processo dirigido pelo capital. As mudanças introduzidas pela nova divisão capitalista do trabalho não foram uma conseqüência das novas tecnologias, mas sim de uma determinada lógica da ordem econômica e social capitalista. Tiram a potência do trabalhador para concentrá-la no capital:

    «As potências intelectuais da produção ampliam sua escala por um lado, porque desaparecem por muitos lados. O que os trabalhadores parciais perdem, concentra-se no capital com que se confrontam. É um produto da divisão manufatureira do trabalho opor-lhes as forças intelectuais do processo material de produção como propriedade alheia e poder que os domina. Esse processo de dissociação começa na cooperação simples, em que o capitalista representa em face dos trabalhadores individuais a unidade e a vontade do corpo social de trabalho. O processo desenvolve-se na manufatura que mutila o trabalhador, convertendo-o em trabalhador parcial. Ele completa-se na grande indústria, que separa do trabalho a ciência como potência autônoma de produção e a força a servir ao capital.» (Marx, 1973, V. I, cap. 12, pp. 274-275).

    Um último comentário sobre essa questão do labor e do trabalho: com os desenvolvimentos da reestruturação produtiva, a interação entre ciência e produção, entre execução e elaboração é cada vez maior nos setores de ponta da indústria. Se as fronteiras do trabalho não qualificado e qualificado são cada vez mais tênues, já que o capital busca reduzir a componente do trabalho improdutivo na produção das mercadorias, e se apropriar da sabedoria do operário, obrigando os participantes da linha de produção a fazer eles mesmos o controle de qualidade, a sugerir medidas para melhorar a produtividade da fábrica, como nomear o trabalho desse operário hoje? Como labor ou como trabalho, se aplicássemos as categorias de Arendt? 9

    O movimento operário é considerado incapaz de atividade política

    Mas é na análise do movimento operário que aparecem as consequências políticas dessa avaliação que Arendt tem da condição humana e do papel inferior do labor. Arendt recusa-se a reconhecer no trabalho um potencial de sociabilidade capaz de gerar uma prática política digna do nome entre os homens. Sua primeira definição é coerente com as definições teóricas aqui discutidas

    «Embora não seja capaz de criar uma esfera pública autônoma, na qual os homens possam aparecer qual  homens, a atividade do trabalho, para a qual o isolamento em relação aos outros é condição prévia necessária, está ainda vinculada de várias maneiras a esse espaço da aparência; na pior das hipóteses permanece ligada ao mundo tangível das coisas que produz. O trabalho, portanto, talvez seja um modo apolítico de vida, mas certamente não é antipolítico. Este último é precisamente o caso do labor, atividade na qual o homem não convive com o mundo nem com os outros: está a sós com o seu corpo ante a pura necessidade de manter-se vivo. É verdade que também vive na presença e na companhia de outros, mas essa convivência não possui nenhuma das características da verdadeira pluralidade.» (Arendt, 1997, p.224, grifos nossos)

    Mas essa definição não poderia explicar a intensa participação política e revolucionária do movimento operário; por isso, ela se espanta com a participação ativa e decisiva do movimento dos trabalhadores desde o século XIX, o que não a impede de prever um rápido fim a essa situação.

    «A surpreendente ausência de rebeliões sérias por parte dos escravos nos tempos antigos e modernos parece confirmar a incapacidade do animal laborans para diferenciação e, por conseguinte, para a ação e o discurso. Não menos surpreendente é o papel súbito e, muitas vezes, extraordinariamente produtivo que os movimentos operários desempenharam na política moderna.» (p.227, grifo nosso)

    Obrigada a reconhecer a discrepância entre sua definição e a realidade, chega a se confessar surpreendida; no entanto, para explicar como um movimento que se baseia no labor conseguiu obter a relevância que teve nos séculos XIX e XX, busca uma explicação política externa ao fato: seria a conquista da cidadania política, do direito ao voto em particular e por aí de sua inclusão na sociedade que teria feito o movimento operário, distinto dos escravos e servos, capaz de interferir no processo político.

    «Esta discrepância aparentemente flagrante entre o fato histórico – produtividade política da classe operária – e os dados fenomenológicos obtidos da análise da atividade do labor tende a desaparecer após exame mais profundo do desenvolvimento e da substância do movimento operário. A principal diferença entre o trabalho escravo e o moderno trabalho livre não é a posse da liberdade pessoal, mas o fato de que o operário moderno é admitido na esfera pública enquanto cidadão. O momento crucial da história do movimento operário foi a abolição do requisito de propriedade para o exercício do direito de voto.» (Arendt, 1997, p.229). (grifos nossos).

    A seguir dá o exemplo dos sansculottes da França. Apareciam como tal, aproveitando o impacto causado por uma aparição pública com suas roupas idênticas e lutavam por direitos democráticos e trabalhistas.

    «A mola propulsora dessa tentativa [refere-se ao papel protagonista que os operários cumpriram em 1789, 1848, etc.] não foi o labor – nem a rebelião sempre utópica contra as necessidades da vida –  mas sim aquelas injustiças e hipocrisias que desapareceram com a transformação da sociedade de classes em uma sociedade de massas, e a substituição do salário diário ou semanal por um salário anual garantido.» (Arendt, 1997, p. 231)

    Coerente com essa visão, sustenta a perspectiva de rápida desaparição do fenômeno do movimento operário enquanto contestação à ordem. Tenderia a se reduzir à expressão de qualquer outro ‘grupo de pressão’. E se adaptaria à ordem vigente como todos os outros:

    «A importância política do movimento operário hoje é a mesma de qualquer grupo de pressão; já se foi o tempo – que durou quase um século – em que podia representar o povo como um todo, se entendemos por le peuple o verdadeiro corpo político diferente portanto da população e da sociedade.» (Arendt, 1997, p. 231).

    «Ambíguo em seu conteúdo e objetivos desde o princípio, o movimento operário perdia imediatamente essa representação, e, por conseguinte, seu papel político, sempre que a classe operária tornava-se parte integrante da sociedade.» (Arendt, 1997, p.232).

    Esse argumento encerra uma contradição lógica com o trecho citado acima que afirmava como motivo da participação surpreendente do movimento operário a sua emancipação (política), em particular com a conquista do direito de voto: se o motivo da intervenção dos trabalhadores como protagonistas das revoluções era essa conquista, como esperar que eles perdessem imediatamente seu papel político uma vez que se tornassem ‘parte integrante da sociedade’? Então, o que levara a que eles tivessem um papel político revolucionário, completamente inesperado para Arendt, imediatamente os colocaria em uma situação de integração e igual a qualquer grupo de pressão?

    Mais uma observação sobre seu argumento: as revoluções operárias nem sempre se colocaram em locais onde a classe operária já havia se emancipado politicamente nem tinha tradição de participação ou mesmo direito a voto. Citemos apenas a russa de 1917 para exemplificar, onde inclusive a classe operária propriamente dita era uma ínfima minoria na população.

    O fenômeno da participação institucional e da integração das lideranças sindicais e partidos operários reformistas à ordem burguesa, em particular em países da Europa Ocidental é objeto de larga discussão na literatura sociológica e política, pois aí entram as mediações políticas, a luta de classes, as possibilidades de concessões econômicas, como no período do Welfare State e o papel mais poderoso dos regimes democráticos (e do Estado) dos países imperialistas. Mesmo assim, ao generalizar, Arendt esquece a realidade das revoluções operárias (ainda que não tenham triunfado) em países de tradição democrática e participação dos movimentos operários na política institucional, como a França (1936 e 45), Itália (1921 e 45), Alemanha (1919, 21 e 23, para não falar da conjuntura pré-ascensão do nazismo em 1933).

    Para explicar essa força e presença do movimento operário nestes 160 anos e os poderosos movimentos e correntes políticas que gerou, teríamos que partir do caráter social do trabalho operário sob o capitalismo, da contradição ente o trabalho social e apropriação privada do seu fruto para entender a revolta operária contra sua condição sob o capital, contra a alienação do trabalho que o capital permanentemente reproduz. Ao contrário do que afirma Arendt, o labor/trabalho sob o capital é fonte de uma atividade política, humana, da luta política pela emancipação do trabalhador, contra a alienação do trabalho e do homem.

    E o fato de que a humanidade esteja submetida a essa situação (ou ainda pior, quando está marginalizada, sem trabalho) em todo o mundo é a base para o internacionalismo operário e o que Marx chamava de libertação/emancipação dos trabalhadores, como estava inscrito no lema da Associação Internacional dos Trabalhadores. Nas Teses sobre Feuerbach ele afirmava a “humanidade socializada” como o horizonte do materialismo moderno, e não o que entendeu Arendt, quando afirma

    «E por isso é que Platão sugeriu que os operários e escravos eram não apenas sujeitos a necessidades e incapazes de liberdade, mas incapazes também de dominar o lado ‘animal’ de sua própria natureza. Uma sociedade de massas de operários, tal como Marx tinha em mente quando falava de <humanidade socializada>, consiste em exemplares da espécie humana isolados do mundo, quer sejam escravos domésticos, levados a essa infeliz situação pela violência de terceiros, quer sejam livres, exercendo voluntariamente suas funções.» (Arendt, p.131, grifos nossos).

    Aqui Arendt deixa muito clara sua posição, apoiando-se em Platão, de que os trabalhadores, sejam livres ou escravos, são incapazes por definição de superar seu lado animal e alcançarem a dimensão da ‘liberdade’.

    A única atividade considerada humana: a ação

    Esta revisão crítica das categorias de labor e trabalho utilizadas por Arendt permite agora que analisemos seu conceito de Ação: esta seria o diálogo entre ‘iguais’ (homens livres que buscam o bem comum) em um livre intercâmbio de opiniões possível somente em um espaço público. O espaço público é por definição uma arena comum separada da vida privada, das famílias, e opõe-se ao espaço privado, onde impera a dominação, a submissão, o egoísmo, etc. Arendt acredita que as pessoas tenham na ação política, ‘por seus atos e palavras’, uma oportunidade de ser livres. A conquista da liberdade estaria na esfera do político, no espaço público, e seria uma superação do reino da necessidade típica do espaço privado, da família, 10 etc. Apoiando-se numa interpretação do que teria sido a polis grega,  Arendt relaciona liberdade e política, esfera pública e privada:

    «O que todos os filósofos gregos tinham como certo por mais que se opusessem à vida na polis, é que a liberdade situa-se exatamente na esfera política; que a necessidade é primordialmente um fenômeno pré-político, característico da organização do lar privado; e que a força e a violência são justificadas nesta última esfera por serem os únicos meios de vencer a necessidade – por exemplo, subjugando escravos – e alcançar a liberdade.» (Arendt, 1997, p.40)

    Para Arendt só é atividade verdadeiramente política, aquela em que o indivíduo se move não por necessidade, mas pelo bem comum. O espaço público é definido também por este caráter de lugar onde os homens, livres das necessidades e das questões típicas do espaço privado, podem reunir-se para, através do diálogo, utilizando o discurso, deliberar sobre os destinos comuns. O reconhecimento público é o prêmio a alcançar. Esse espaço não pode ser ocupado por associações de iguais (de classes ou setores sociais), pois isso seria atentar contra a pluralidade:

    «A união de muitos em um só é basicamente antipolítica: é o exato oposto da convivência que prevalece nas comunidades comerciais ou políticas que – para citar o exemplo de Aristóteles – não é a associação <koinonia> de dois médicos, mas de um médico e um agricultor e, de modo geral, de pessoas diferentes e desiguais.» (Arendt, 1997, p.227).

    Para ela, portanto, o movimento operário é incapaz de uma verdadeira ação política. Ação e discurso só têm sentido para ela no espaço público, como forma de interação entre homens desligados de sua localização social ou privada. O espaço público seria o espaço da deliberação conjunta, através do qual os homens, na medida em que são capazes de ação e opinião, tornam-se interessados e responsáveis pelas questões que dizem respeito a um destino comum, que é a matéria própria da esfera do político. E este, para ser livre, deve estar desvinculado do trabalho e do labor. Nele, o número das pessoas não pode ser grande, pois levaria a uma irresistível tendência ao conformismo e à tirania da maioria.

    «Os gregos, cuja cidade-estado foi o corpo político mais individualista e menos conformista que conhecemos, tinham plena consciência do fato de que a polis, com sua ênfase na ação e no discurso, só poderia sobreviver se o número de cidadãos permanecesse restrito. Grandes números de indivíduos agrupados numa multidão desenvolvem uma inclinação quase irresistível para o despotismo pessoal ou o governo da maioria; e embora a estatística, isto é, o tratamento matemático da realidade fosse desconhecido antes da era moderna, os fenômenos sociais possibilitaram esse tratamento – grandes números justificando o conformismo, o behaviorismo e o automatismo nos negócios humanos – eram precisamente o que, no entendimento dos gregos, distinguia da sua a civilização persa.» (Arendt, 1997, pp.52-53, grifos nossos).

    As consequências dessa concepção sobre a visão política de Arendt

    A visão de Hannah Arendt sobre política opõe a ação (Política) ao social. Ela opina que a predominância do labor antes descrita trouxe consigo a invasão da esfera pública pela necessidade. Em tal proporção, que esta terminou por se desfigurar, transformando-se numa vasta administração técnica e burocrática que existe apenas em função da economia. Por isso, preocupa-se com “a ‘invasão do social’ sobre as outras esferas públicas, característica da esfera moderna”, 11 e com as multidões que não estariam em condição de resistir ao despotismo.

    Também se recusa a reconhecer na ‘polis’ a existência do conflito, como sua dimensão e, portanto, qualquer luta política entre classes e movida por interesses é considerada não política ou antipolítica. Assim, por extensão, qualquer conflito de classes ou setores de classe deturpa a esfera pública, vai contra a ideia central em sua visão do que é fortalecer o político e a esfera pública (pois seria uma expressão da esfera privada).

    Ela lamenta que as classes proprietárias modernas tenham abdicado de sua participação na esfera pública em prol do bem comum, como, em sua visão, faziam os gregos.  “Logo que passou à esfera pública, a sociedade assumiu o disfarce de uma organização de proprietários, que ao invés de se arrogarem acesso à esfera pública em virtude de suas riquezas, exigiram dela proteção para o acúmulo de mais riqueza.” (Arendt, 1997, p.78).

    Ela pressupõe o espaço público como o lugar por excelência da política, mas como atividade de poucos. Qualquer movimento social de massas deturparia o diálogo, introduziria o conformismo na esfera pública. Assim, ela separa a esfera política do social e da realidade concreta da vida cotidiana. Dessas considerações, só se pode entender que, como materialização contemporânea do espaço público, ela pensa em uma recriação da polis grega, que teria de ser baseada naqueles que tem condição de pensar, de elevar-se acima de seus interesses imediatos.

    Sua visão de cidadania seria inspirada na participação política entre iguais no espaço público (a isonomia), implicando em uma preparação para a vida política, para que possa ser uma ação entre iguais sem vinculação a interesses outros que não o bem comum da polis. Ou seja, para os melhores, os que não vivem do labor, nem do trabalho, para aqueles capazes de realizar a ação e o discurso com o sentido em que o faziam os cidadãos gregos.

    Para sinteticamente responder à hipótese inicial levantada no início deste texto, acreditamos que a formulação política de Arendt tem a ver com sua concepção, que despreza o trabalho e desconhece a potencialidade emancipadora do movimento dos trabalhadores. A consequência é defender uma visão restrita de política, baseada na interlocução de uma elite, desligada da sociedade, que se presuma estar acima dos interesses privados para poder decidir, em nome do bem comum, o que é legítimo ou ilegítimo.

    Num mundo dominado pela classe capitalista, em que o Estado responde aos interesses de classe dessa ‘elite’, a posição de Arendt, ao contrário do que ela tenta transmitir, tem um significado completamente antidemocrático, reacionário, pois propõe uma ‘democracia’ que exclui os trabalhadores, considerados incapazes de articular uma política. Mas para ela, os empresários que conseguissem abstrair de seus interesses (sic) seriam capazes de pensar no bem comum! O que tem esse modelo idílico a ver com a realidade, seja das democracias modernas, seja a dos partidos europeus, seja da América Latina?

    Na contramão de Marx e Engels, que identificaram no proletariado a classe que tinha de se organizar em forma autônoma para poder revolucionar a sociedade, ela defende a exclusão dos trabalhadores da arena política. Qualquer movimento social de massas seria nocivo, distorceria a ‘esfera pública’.

    Arendt reivindica a ‘democracia grega’, que excluía os escravos, mas para justificar essa exclusão, os gregos não os consideravam humanos ou como definia Aristóteles os escravos seriam ferramentas falantes. Para ela, assim como eram considerados os escravos na Grécia antiga, os proletários no capitalismo são inferiores por sua atividade. Esse é o pano de fundo da concepção de Hannah Arendt.


    Bibliografia:

    ANTUNES, Ricardo – Os Sentidos do Trabalho, São Paulo, Boitempo, 1999.

    ARENDT, Hannah – A Condição Humana. São Paulo, Forense, 8ª edição, 1997.

    FERNANDES, Florestan (org.) – Marx-Engels, História. São Paulo, Ática, 3ªed.,1989

    LUKÁCS, Gyorgy – Ontologia do Ser Social. (O Trabalho). tradução de Ivo Tonet

    MARX, Karl – El Capital, vol. I. México, Fondo de Cultura Económica, 8ª ed.,1973.

    MARX, Karl – Elementos fundamentales de la Economia Política (Gundrisse). México, Siglo XXI edit., 17ª edição, 1997.


    Notas

    1. Arendt, 1997, em especial, as partes II e VI. ↩︎
    2. “somente duas eram consideradas políticas e constituintes do que Aristóteles chamava de bios politikos: a ação(praxis) e o discurso(lexis), dos quais surge a esfera dos negócios humanos(o ton anthropon pragmata, como chamava Platão) que exclui estritamente tudo aquilo que seja apenas necessário ou útil.” Idem, pág.34 ↩︎
    3. Fernandes (org.), em especial Marx, K. “Trabalho alienado e superação da auto-alienação humana”, Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, pp. 148-156. ↩︎
    4. “Ao definir o trabalho como ‘metabolismo do homem com a natureza’, em cujo processo ‘o material da natureza é adaptado às necessidades do homem’, de sorte que ‘o trabalho se incorpora ao sujeito’, Marx deixou claro que estava ‘falando fisiologicamente’, e que o trabalho e o consumo são apenas dois estágios do eterno ciclo da vida biológica.” Arendt, 1997, p.110. ↩︎
    5. Arendt, 1997, nota de rodapé 35 da p.111: “Marx chamava o labor de ‘consumo improdutivo’ e jamais perdia de vista que se tratava de uma condição fisiológica.” ↩︎
    6. Seguimos raciocínio de Lukács no mesmo texto. ↩︎
    7. Marx, 1973, cap. V, pp.130/131. ↩︎
    8. “É obvio que aqui Marx já não se referia ao labor, mas ao trabalho – no qual não estava interessado; e a melhor prova disso é que o elemento de «imaginação», aparentemente tão importante, não desempenha papel algum em sua teoria do trabalho.” Arendt, 1997, p.111, nota 36 ↩︎
    9. Ver cap. VII de Antunes, 1999. ↩︎
    10. “A polis diferenciava-se da família pelo fato de somente reconhecer “iguais”, ao passo que a família era o centro da mais severa desigualdade.”  Idem, p .41 ↩︎
    11.  Idem, p. 55 ↩︎

    Publicado originalmente em www.teoriaerevolução.pstu.org.br

  • A derrota militar de Israel é possível

    A derrota militar de Israel é possível

    Até o ano passado, era difícil pensar a possibilidade de uma derrota militar de Israel em sua guerra permanente genocida contra o povo palestino.  Hoje, importantes intelectuais, como Ilan Pappe, já preveem o colapso de Israel ou sua derrota militar a curto prazo. 1

    Por: Jose Welmowick, Jorge Martinez e Américo Gomes

    A crise no governo de Netanyahu e no Estado de Israel já existia antes do ataque do Hamas em 7 de outubro, no entanto, o ataque daquele dia e a resistência palestina, que não é derrotada depois de 8 meses de combate, estão agravando-a.

    Além da heroica resistência palestina, as grandes manifestações internacionais, principalmente nos países imperialistas e algumas ações dos trabalhadores destes países, desmascararam o governo israelense e potencializam a grave instabilidade política em Israel.

    A política do imperialismo de impor um enclave sionista em uma região de árabes e muçulmanos no Oriente Médio pode estar à beira de uma derrota histórica. Um dado que Ilan Pappé chama a atenção é sobre o número de judeus israelenses que estão deixando o país, preocupados com a segurança. Ele calcula em uns 500 mil israelenses tomando essa atitude, ou seja cerca de 10% da população judaica. O ex-primeiro-ministro Naftali Bennet publicou um chamado emocional para que os judeus não abandonem Israel neste momento delicado. 2

    Do ponto de vista político, portanto, já há uma derrota. Uma expressão disso é que a maioria da vanguarda da classe trabalhadora dos países ocidentais já identifica o Estado de Israel como um Estado repressor e opressor que está praticando um genocídio contra todo um povo. A maioria da juventude judaica dos EUA, país chave para a manutenção do Estado de Israel, já não se identifica com Israel e participa em massa das manifestações contra o genocídio na Palestina. Já está se dando uma derrota política para o sionismo, e a realidade do Oriente Médio já não será a mesma depois destes últimos meses.

    Embora nem todos vejam que este regime nazista e racista necessita ser destruído e eliminado, o que só pode ocorrer de maneira violenta, o repúdio é cada vez mais estendido, tendo atingido as maiores universidades dos EUA, tais como Harvard e Columbia.

    O problema está em que a maioria das organizações operárias, mesmo as que se apresentam mais à esquerda, apoiam, explicita, ou tacitamente a política de manutenção dos dois Estados e não desenvolvem uma política efetiva de apoio militar à resistência palestina.

    Em virtude desta posição, a maioria das organizações não desenvolve uma política efetiva de apoio militar à resistência palestina, nem se faz uma política de exigência para que os governos da região rompam as relações com Israel, declarem-se solidários e apoiem o esforço dos palestinos para derrotar Israel militarmente.

    Por outro lado, se aqueles que se dizem pela vitória da resistência, como o Hezbollah e o Irã apoiassem efetivamente e abrissem uma outra frente de combate, acelerariam a crise e a derrota militar do enclave sionista.

    A farsa da democracia do estado de Israel

    Israel tenta se apresentar como uma democracia, inclusive que respeita as minorias oprimidas, diferente dos outros países da região, como os Estados muçulmanos.

    No entanto, o regime que existe é o de um estado colonial de apartheid, que pratica discriminação e segregação racial sistêmica de forma desumana para oprimir os palestinos. Na realidade, os cidadãos palestinos de Israel são de segunda classe e os palestinos dos territórios ocupados são submetidos a regras coloniais 3 sem ter nenhum direito. As prisões sionistas estão repletas, com milhares de prisioneiros palestinos presos sem sequer uma acusação formal, mas que ficam meses ou anos detidos sem ter acesso sequer a um julgamento.

    Israel realiza eleições regulares, tem um parlamento, um Supremo Tribunal e instituições clássicas de uma democracia, e uma imprensa em alguma medida livre para os israelenses, mas nada para os árabes.  A propaganda sionista fala todo o tempo de ser a única ‘democracia’ do Oriente Médio.  Na verdade, esta democracia parlamentar é para os cidadãos judeus, pois os árabes são excluídos. Mesmo nela, uma série de decisões políticas e jurídicas autoritárias foram tomadas nos últimos anos apenas para salvar o poder do atual governo Netanyahu, que inclusive levaram a protestos de massa dos próprios israelenses nas ruas.

    Na Cisjordânia, existe uma série de assentamentos judeus ilegais pelas normas do direito internacional e da ONU e, além disso, os muros que separam Israel dos territórios ocupados obrigam os palestinos que vivem nas cidades da área a passar por um emaranhado de postos de controle se quiserem se deslocar por esses territórios ou trabalhar dentro das fronteiras de Israel de 1967, nos quais são submetidos a humilhações diárias e retenção em filas por horas a fio. E os colonos judeus dessas áreas são a base para os agrupamentos diretamente fascistas que integram governos como o de Netanyahu e ministros importantes como Smotrich ou Bengvir que falam abertamente no extermínio físico dos palestinos.

    O fato é que 5 milhões de palestinos que estão sob ocupação israelense não têm direitos nem mesmo a voto. Se todos que estivessem sujeitos à autoridade israelense tivessem o direito de votar, a maioria seria palestina. Se incluirmos os milhões de refugiados palestinos fora do país que gostariam de regressar à sua terra natal, o quadro se torna ainda mais complexo para os sionistas. Por isso, a maioria eleitoral sionista tem feito uma série de leis discriminatórias que visam limitar os direitos de cidadãos não-judeus de Israel cada vez mais.

    Essas são as principais razões pelas quais muitos observadores internacionais não consideram Israel uma verdadeira democracia. Assim como as entidades de direitos humanos, cada vez mais, responsabilizam Israel por estar cometendo um genocídio com sua agressão assassina em Gaza e na Cisjordânia.

    Israel não aceita o estado palestino

    Apesar da farsa imperialista da política dos dois Estados, para os partidos que governam Israel, a única opção possível neste momento é uma solução de um Estado único, mas desde que se mantenha o status quo de um Estado com territórios ocupados e apartheid e nem consideram a possibilidade de um Estado palestino na Cisjordânia e em Gaza, onde os palestinos tenham plenos direitos políticos.

    A saída democrática está na proposta original da OLP, de uma Palestina única, livre, laica e democrática. A política dos ‘dois estados” serve apenas para encobrir os países imperialistas que apoiam Israel com uma aparente política de “justo meio”, pois levantam essa posição para atrair um setor da sociedade palestina e para justificar sua posição pró-Israel e tentar dar credibilidade a seus esforços de impor uma ‘paz dos cemitérios’, que acabe com a revolta palestina. Mas o setor que simboliza essa política no interior da sociedade palestina, a ANP e seu líder Abbas tem cada vez menos apoio, e na verdade cumpre um papel de polícia interna da ocupação sionista.

    A política de dois Estados também serve para ganhar tempo para levar a cabo o genocídio do povo palestino, à medida que Israel aumenta a sua ocupação territorial ilegal, inflando a imigração, e tentando crescer aumentando a natalidade entre as comunidades religiosas fundamentalistas.

    A verdadeira política que se vê na realidade é a que afirma o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu: “Vamos transformar Gaza numa ilha deserta. Aos cidadãos de Gaza, eu digo: vocês devem partir agora. Iremos atacar todos e cada um dos cantos da faixa.” Para os sionistas, a alternativa para os palestinos é evacuar ou morrer com os palestinos não tendo para onde correr.

    Israel não é invencível

    A invencibilidade militar de Israel foi por terra. Seu grande desenvolvimento tecnológico e capacidade de monitoramento têm sido vendidos através de seus softwares espiões, como o Pegasus, para muitos países ao redor do mundo, incluindo países árabes.

    Mas o ataque do Hamas em 07 de outubro demonstrou que o sistema de inteligência das forças de Israel, com seus drones de vigilância, suas câmeras de segurança e todo seu aparato de coleta de informações mostrou-se um fracasso. 

    Além da confiança em sua tecnologia militar Israel confiava em seu muro, construído com alto custo, que os combatentes palestinos simplesmente demoliram com escavadeiras e caminhões, passaram com motocicletas e jipes e sobrevoaram com asas deltas.

    Os soldados que o guarneciam foram esmagados e demonstraram pouca resistência, mostrando que estavam com o moral baixo. Desmoralização que se reflete na incapacidade das forças armadas de derrotar a resistência palestina depois de 8 meses de combate e de toda a destruição provocada em Gaza.

    Essa situação levou o principal porta-voz das Forças de Defesa de Israel, Contra-Almirante Daniel Hagari, a afirmar que “o Hamas é uma ideia” que não pode ser eliminada e não dizer isso é “jogar areia nos olhos do público“.

    Recentemente, o New York Times publicou uma matéria, mostarndo que os principais generais de Israel defendem um cessar-fogo na Faixa de Gaza, mesmo com o Hamas mantendo o poder. Cresce a diferença entre o comando militar e o governo Netanyahu, que continua defendendo que a guerra só terminará “depois de ter atingido todos os seus objetivos, incluindo a eliminação do Hamas e a libertação de todos os nossos reféns“. Os generais admitem que estão subequipados para os combates, com menos munições, menos peças de reposição, e menos energia moral. 4

    Estes fatos obrigaram Netanyahu a dissolver seu gabinete de guerra, ainda mais depois que o ex-ministro da Defesa Benny Gantz acusou-o de atrapalhar a “vitória real“. A divisão nos altos escalões do estado sionista é uma expressão do fracasso de sua ofensiva para esmagar a resistência. Netanyahu é acusado abertamente de manter a guerra para salvar seu mandato, já que uma vez que o conflito acabe, ele corre o risco de ser julgado inapto para o cargo por corrupção. Manifestações com dezenas de milhares de israelenses vêm crescendo, exigindo um acordo de cessar-fogo e que Israel aceite a proposta da resistência palestina e faça a troca de reféns israelenses por prisioneiros palestinos feitos por Israel em todos esses anos de ocupação.

    A resistência palestina se mantém forte em Gaza e na Cisjordânia

    Além de não ter conseguido destruir a resistência palestina em Gaza, o exército de Israel está sendo obrigado a renovar os combates mesmo nas áreas da Faixa que foram ocupadas. Apesar do governo Netanyahu afirmar que desmantelou o aparato militar da Resistência no norte da Faixa de Gaza, em janeiro de 2024, no bairro de al-Shujaiya, na Cidade de Gaza, estão se dando violentos combates há meses. Com as forças blindadas e de infantaria israelitas recebendo reforços e estando mais bem equipadas e com maior poder de fogo, apoiadas pela Força Aérea. Os combatentes da Resistência Palestina estão enfrentando as forças hostis e causando baixas em forma permanente ao inimigo nessa região.

    Segundo informa o site Al Mayadeen, as Brigadas al-Quds da Jihad Islâmica Palestina (PIJ) atacaram os tanques israelenses Merkava 4, usando o Shawaz EFP, (uma ogiva autoformada) e foguetes (RPG) al-Yassin. Combatentes do Al-Qassam também enfrentaram as forças de ocupação em Tal al-Hawa, outro bairro no sul da Cidade de Gaza, disparando um RPG contra os soldados.

    As forças de ocupação no assentamento de Netsarim e em Kissufim foram atacadas em suas bases militares por combatentes da Resistência, que dispararam vários tipos de projéteis de artilharia e foguetes em sua direção. 5

    Depois da invasão terrestre da Faixa de Gaza, no final de outubro de 2023, a Resistência Palestina, com as Brigadas al-Qassam do Hamas, recuperaram capacidades operacionais eficazes em Jabalia e seu campo de refugiados, no norte de Gaza.

    Em Rafah, a Resistência Palestina continua a enfrentar as forças de ocupação lançando foguetes contra instalações militares israelenses, como em Sufa, leste da cidade, e no bairro de al-Saudi, o local da base militar de Karem Abu Salem. Uma equipe de franco-atiradores da Al-assam conseguiu abater soldados israelenses perto da mesquita al-Shibli, no leste de Rafah. As Brigadas também dispararam foguetes RPG al-Yassin contra um APC israelense no bairro de Al-Saudi. No bairro de al-Shaboura, combatentes de Al-Qassam dispararam projéteis RPG contra os tanques israelenses Merkava.

    Também na Cisjordânia, a resistência está infligindo perdas às tropas de ocupação sionistas.  Em Jenin, as Brigadas Al-Quds estão enfrentando as forças de ocupação israelenses que invadiram a cidade. Com seus artefatos explosivos improvisados (IEDs). Na área de Sahel Marj Bin Aamer, no norte de Jenin, vários soldados israelitas foram feridos, no que foi chamado pelas Brigadas de “Operação Fúria de Jenin 2“. Veículos blindados israelenses foram destruídos, como o Panther Personnel Carrier (APC).

    Essas são demonstrações de que a disposição dos combatentes da Resistência Palestina é de continuar a lutar contra a ocupação israelense até que esta seja derrotada na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. 6

    Estes combatentes necessitam de apoio político, contrabandos de armas e de que as nações árabes e muçulmanas da região se unam e isolem Israel em toda a região.

    As manobras imperialistas

    Como a situação está adversa para Israel e os sionistas, apareceram outras propostas de saída negociada. Nos marcos da ONU, os integrantes do Conselho de segurança como China e Rússia tentam conseguir uma suspensão das hostilidades, para que os negócios voltem a fluir.  Porém, esses países, apesar de algumas declarações e críticas ao Estado sionista, assim como os governos das nações árabes e muçulmanas, não fazem nada efetivamente para ajudar a Resistência. Todos se disciplinam às decisões do Conselho de Segurança, onde os EUA, com seu direito de veto, impedem qualquer política efetiva que obrigue Israel a recuar da invasão genocida a Gaza, e da repressão assassina na Cisjordânia.

    De fato, esperam que Israel aplaste a Palestina para que a região volte à ‘normalidade’. Enquanto o imperialismo, por seu lado, unificado, fala sobre a política dos dois Estados, visando derrotar a resistência palestina com manobras protelatórias e dissuasivas.

    Os EUA chegaram a falar em suspensão do fornecimento de ajuda militar a Israel, mas nada disso se efetivou, muito pelo contrário. 7 Os pedidos de mandados de prisão dos líderes de Israel e do Hamas apresentados no Tribunal Penal Internacional (TPI) expressam o repúdio massivo que está tendo o genocídio transmitido ao mundo com imagens ao vivo, mas não têm o poder de impedir a continuidade da invasão, nem o apoio militar decisivo dos EUA a Israel. E quando a Espanha, a Noruega e a Irlanda reconhecem formalmente a Palestina como Estado, é só para encontrar um caminho para estabilizar a situação, com o objetivo de ganhar tempo para a derrota da Resistência Palestina.

    Um programa para a vitória militar

    Por Israel ser uma potência militar que visa massacrar um povo em condições de inferioridade militar, além de ser fortemente apoiada pelas potências imperialistas, o esforço para sua derrota deve combinar uma série de fatores.

    A começar pela mobilização da classe trabalhadora, com atos e manifestações, mas também com boicotes e bloqueios de materiais militares, a estilo do boicote aos produtos de Israel através do movimento do BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções) e os embargos em portos e aeroportos ao comércio com o agressor genocida. Mas também é necessário que a solidariedade à Resistência Palestina, além de política, seja militar, com o envio de armas pelos países que reconhecem que há um genocídio.

    Os Estados Árabes e da região devem romper com o Acordo de Abraham e declarar sua ruptura com Israel, a começar pelo Irã e Arábia Saudita. Mas não basta só romper relações políticas e econômicas. Além disso, os países da região devem regionalizar o conflito militar atacando o Estado sionista.

    A causa palestina exige uma “nova Intifada regional”, com o apoio dos palestinos que vivem na Jordânia. O Egito e outros países vizinhos podem prestar apoio militar direto aos palestinos perseguidos e com suas vidas ameaçadas na Cisjordânia e em Gaza.  O Hezbollah deve ter uma postura ofensiva contra Israel, partindo do conflito no sul do Líbano e no norte de Israel em solidariedade aos palestinos de Gaza e Cisjordânia. Além disso, os países da região devem se colocar claramente ao lado dos palestinos, colocando a agressão sionista como um conflito militar contra todas as nações árabes e muçulmanas da região e isolando o Estado sionista.

    Acreditar em uma paz sem a derrota militar de Israel é uma utopia reacionária. Não há possibilidade de paz no SWANA ou a existência de uma Palestina Livre e Democrática sem a destruição do Estado de Israel.


    Notas

    1. https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/o-colapso-do-sionismo-e-israel/ ↩︎
    2. Nota de Naftali Bennett. ↩︎
    3. Para que se veja a expressão dessa atitude colonialista, utiliza-se as regulamentações do período colonial britânico sobre a Palestina entre 1918 e 1947 nos casos que envolvem palestinos dos territórios ocupados. ↩︎
    4. Guerra em Gaza: Sem munições e energia, generais israelenses querem cessar-fogo no enclave palestino (globo.com) ↩︎
    5. Resistência palestina enfrenta nova invasão de al-Shujaiya | Al Mayadeen Inglês ↩︎
    6. Idem ↩︎
    7. A Casa Branca informou ao Congresso que planeja enviar mais de US$ 1 bilhão em novas armas para Israel. ↩︎

    Publicado em julho de 2024 em www.litci.org/pt

  • Reforma ou revolução em tempos de pandemia

    Reforma ou revolução em tempos de pandemia

    A situação para os trabalhadores na pandemia recoloca o debate sobre a questão da reforma e da revolução.

    Os Estados Unidos, país mais poderoso do capitalismo, são incapazes de evitar a situação que se abate sobre sua população. Os 100 mil mortos da pandemia já são um número maior do que o das guerras do Vietnã, da Coreia e do Afeganistão. O cenário é devastador: os dados são piores que a crise de 1929. Naquela época, houve 9% de desemprego. Hoje já são 25%, 38 milhões de desempregados e 27 milhões de indocumentados que não possuem seguro-desemprego, pois não têm direitos de nenhuma espécie.

    Por: José Welmowicki

    O problema, contudo, atinge todo o globo. Os países imperialistas e não imperialistas e o capitalismo só apresentam saídas que atacam os trabalhadores. Os planos dos governos capitalistas falam em salvar a economia, mas são para salvar os setores monopolistas da burguesia, bancos e grandes empresas.

    Nesse momento, uma questão chave volta à ordem do dia: é possível que se possa garantir a todos ao menos a vida sob o capitalismo? É possível o acesso a conquistas básicas da civilização, como a eliminação da fome, acesso à água, saneamento e saúde para toda a humanidade? O capitalismo tem possibilidade de, por meio de uma evolução gradual, chegar a uma sociedade socialista? É possível, assim, reformar o capitalismo?

    Essa disjuntiva, “reforma ou revolução”, ou como traduziu Rosa Luxemburgo, “socialismo ou barbárie”, é um tema presente. Neste artigo, vamos examinar a origem dessa discussão entre os socialistas. Em textos futuros, analisaremos como ela continuou até hoje.

    A discussão entre os primeiros socialistas

    Karl Marx

    A primeira crítica ao reformismo

    No Manifesto Comunista, Marx e Engels dedicam um capítulo à “Literatura socialista e comunista” e definem cinco correntes que elaboraram teses e influenciavam as visões naquela época: 1) os socialistas feudais, que idealizavam a sociedade feudal e se reduziam à medida que o capitalismo avançava; 2) o socialismo pequeno-burguês, que expressava a reação da pequena burguesia e de camadas médias arruinadas pela burguesia e propunham voltar no tempo, o que era utópico e reacionário nas palavras de Marx e Engels; 3) o socialismo burguês ou conservador, que desejava “a sociedade atual sem os elementos que a revolucionam e a dissolvem”; para Marx, essa corrente não conseguia superar a visão do “pequeno-burguês oscilando constantemente entre o capital e o trabalho, entre a economia política e o comunismo”, e era contra os movimentos políticos da classe operária; 4) o socialismo alemão ou «verdadeiro» socialismo, um pensamento típico da pequena burguesia, que refletia a realidade econômica da sociedade alemã naquele momento, ainda desenvolvida de forma insuficiente em termos capitalistas; opunha-se à burguesia, bem como ao comunismo, e colocava-se contra a irrupção política dos operários; 5) os “socialistas utópicos” – como Fourier e Owen –, cujas teorias eram antecipações geniais, mas ao aparecer antes das condições econômicas e sociais estarem desenvolvidas, não viam um papel revolucionário para o proletariado, mas apenas como classe oprimida e pobre; por isso buscavam convencer a todas as classes, inclusive a burguesia, de suas teses; opunham-se, assim, a todo movimento político próprio dos operários naquele momento.

    Ao lado dessas doutrinas, havia uma questão central para o programa que se expressaria já a partir do século XIX: os operários devem buscar tomar o poder como classe ou podem e devem governar com a burguesia ou setores progressistas dela? Louis Blanc, um socialista francês, aceitou entrar no governo burguês saído da revolução de 1848 como ministro do Trabalho. Foi o primeiro exemplo histórico de participação de dirigentes socialistas em governos da burguesia e Marx dedicou a ele duras críticas em seu As lutas de classes na França.

    Em 1899, a polêmica em torno à participação de ministros socialistas em governos burgueses, o ministerialismo, dividiu a II Internacional socialista quando o partido francês, por meio da ala de Jaurés, aceitou indicar Millerand.

    Rosa Luxemburgo escreveu um texto teórico condenando essa posição e explicando como a participação num governo burguês significava o abandono da visão marxista do Estado e da revolução socialista.

    Rosa Luxemburgo

    A crise da social-democracia: Bernstein e Rosa Luxemburgo

    O primeiro grande esforço teórico para apresentar uma elaboração em defesa das reformas como caminho para o socialismo foi de Eduard Bernstein no SPD alemão (Partido Social-Democrata) em 1899. Sua visão também defendia a cidadania como substituta da luta pela emancipação do proletariado. “A social-democracia não deseja romper a sociedade civil e fazer de todos seus membros proletários; na verdade, ela trabalha incessantemente para elevar o trabalhador da posição social de proletário para a de cidadão e, portanto, para tornar a cidadania universal”, dizia.

    Essa concepção, como lhe respondia Rosa Luxemburgo, significava aceitar a sociedade burguesa como horizonte: “quando [Bernstein] utiliza a palavra cidadão referindo-se tanto ao burguês como ao proletário, querendo com isso, referir-se ao homem em geral, identifica o homem em geral com o burguês e a sociedade humana com a sociedade burguesa”. Por isso, denunciava a revolução socialista como um caminho blanquista ou, ainda, “terrorista”.

    Bernstein considerava a democracia como “ausência de um governo de classe. Isso indica um Estado em que nenhuma classe tem o privilégio político”. Assim, cada governo eleito seria o responsável por implementar o seu programa segundo a classe que representasse. Para ele, o caminho para o socialismo passava pela democracia e pela implementação gradual de reformas. Bastaria ao partido operário triunfar nas eleições.

    Como Rosa Luxemburgo afirmava em Reforma e revolução, essa posição contrariava toda a concepção marxista do Estado e se identificava com os socialismos utópicos e reformistas que Marx e Engels combateram. Afinal, Bernstein colocava-se de forma explícita contra o programa marxista de revolução socialista e de tomada do poder, acusado por ele de terrorista.

    A I Guerra Mundial transformou essa questão teórica em questão política: a social-democracia alemã e a maioria esmagadora da II Internacional votaram o apoio a seus governos burgueses para entrar em guerra (os créditos de guerra), colocando os operários de seus países para combater e matar seus irmãos de outros países. Foi o abandono de um princípio básico do movimento operário desde a I Internacional, expresso na frase: “Proletários de todo o mundo, uni-vos.” Uma traição que custou a vida de milhões. Bernstein ficou associado a essas traições e derrotas históricas e, por essa razão, os novos setores que assumiram a mesma posição dele, em geral, não o reivindicam.

    Karl Kautsky

    O reformismo “de centro”

    Frente à I Guerra Mundial, não foram somente os seguidores de Bernstein que apoiaram suas burguesias para que entrassem em guerra. Em nome da “defesa da pátria”, os principais dirigentes abandonaram os princípios e inclusive o compromisso político do Manifesto de Basileia, de lutar contra a guerra e seus governos, votado pela II Internacional dois anos antes.

    O teórico mais destacado da II Internacional, Karl Kautsky, participou dessa virada e do abandono da posição marxista. Uma ala bem minoritária havia resistido a essa traição. Nela estavam Lenin, Rosa Luxemburgo, Trotsky, entre outros, que mantiveram a posição revolucionária contra a guerra. Quando as trágicas consequências da guerra em vidas e miséria abriu uma crescente indignação, levando à eclosão da Revolução Russa em fevereiro de 1917, os bolcheviques, liderados por Lenin, chamaram a preparar a revolução socialista que se efetivou em outubro.

    Em outubro, os sovietes tomaram o poder sob a direção dos bolcheviques. Kautsky encabeçou o combate contra os bolcheviques, alegando que os sovietes não deveriam tomar o poder, mas entregá-lo à Assembleia Constituinte. A natureza pró-burguesa da posição reformista consistia, então, em ser contra a revolução proletária na Rússia. Essa mesma posição de Kautsky materializou-se na revolução alemã que eclodiu no fim da guerra, na qual se formaram os conselhos operários, semelhantes aos sovietes, influenciados pela Revolução Russa. Ele defendeu que os conselhos operários não tomassem o poder e se subordinassem à Assembleia Constituinte. Essa posição, vitoriosa no congresso dos conselhos, levou à derrota a revolução alemã.

    Lenin

    O resgate revolucionário

    Lenin fez uma dura polêmica com Kautsky nos livros O Estado e a revolução e A revolução proletária e o Renegado Kautsky e afirmava que, por utilizar uma terminologia marxista para defender posições reformistas, “Kautsky é ainda pior que Bernstein”.

    Lenin considerou morta a II Internacional e chamou a formar a Internacional Comunista para agrupar os revolucionários. A social-democracia transformou-se numa federação de partidos reformistas que participam de governos burgueses como regra geral e cumprem um papel de aparatos contrarrevolucionários, defensores do Estado burguês e administradores do capitalismo.

  • O surgimento e o papel do reformismo stalinista e social-democrata

    O surgimento e o papel do reformismo stalinista e social-democrata

    A III Internacional, com a força da vitória da Revolução Russa, rapidamente adquiriu influência de massas numa disputa frontal com a social-democracia. Sua estratégia era a revolução mundial, a luta pela destruição do Estado burguês e pelo poder operário como transição ao socialismo.

    Por: José Welmowicki

    No entanto, o isolamento da Revolução Russa, a destruição causada pela guerra civil contra o poder operário pelas invasões dos mais de 20 exércitos sustentados pelas potências imperialistas, num país atrasado com um grande peso do campo, gerou um processo de burocratização do Estado e do partido comunista, levando a uma contrarrevolução política. Encabeçada pela fração dirigida por Stalin, ela tomou o controle do poder e do partido e imprimiu uma orientação oposta à de Lenin.

    Em primeiro lugar, mudou a política de Lenin e a visão marxista de que, para triunfar, o socialismo tinha de ser mundial. Também acabou com a democracia no Estado e no partido. Esses princípios foram substituídos pela defesa do “socialismo num só país”, pela burocratização do aparato estatal, pela perseguição aos opositores no partido e no Estado e pela opressão às nacionalidades e todos os setores oprimidos. Coroando esses retrocessos, surgiu a nova doutrina, o stalinismo, que assumiu como política para os países coloniais e semicoloniais a aliança estratégica com as burguesias nacionais ou seus setores supostamente progressivos.

    O stalinismo passou defender os governos de colaboração de classes, as chamadas frentes populares com a burguesia, como na França e na Espanha da década de 1930. Como afirmava Trotsky no Programa de Transição, em 1938: “A Internacional Comunista enveredou pelo caminho da social-democracia na época do capitalismo em decomposição, quando não há mais lugar para reformas sociais sistemáticas nem para a elevação do nível de vida das massas, quando a burguesia retoma sempre com a mão direita o dobro do que deu com a mão esquerda, quando cada reivindicação séria do proletariado, e mesmo cada reivindicação progressista da pequena burguesia, conduzem inevitavelmente além dos limites da propriedade capitalista e do Estado burguês.” O stalinismo assumiu as posições essenciais do reformismo.

    COLABORAÇÃO COM A BURGUESIA
    Depois da Segunda Guerra e o estado de bem-estar

    Na Segunda Guerra Mundial, deu-se uma das maiores batalhas e maiores vitórias dos trabalhadores e dos povos de todo o mundo: a derrota do nazifascismo. Isso apesar de todas as traições, dos acordos da Inglaterra e da França com o nazismo, dos pactos de Stalin com Hitler em 1938. O papel das massas da URSS, como em Stalingrado, foi decisivo nessa luta e nessa vitória apesar de sua direção. Por isso os partidos comunistas saíram prestigiados, pela resistência e pela vitória final contra os nazistas.

    Isso permitiu aos partidos comunistas uma situação privilegiada. Frente à colaboração das burguesias locais com Hitler e Mussolini, após a invasão da URSS pelos alemães em 1941, os comunistas cumpriram um papel de destaque na guerrilha iugoslava, na resistência francesa e italiana, na resistência grega, na China, no Vietnã.

    No fim da Segunda Guerra Mundial, uma situação revolucionária se abriu em toda a Europa. A resistência tinha o controle de países decisivos. Estava colocada a possibilidade de tomar o poder em países-chave. Uma revolução operária e popular se abriu na França, na Itália e na Grécia. Os trabalhadores armados e vitoriosos haviam destruído o ocupante nazista e o Estado burguês.

    Mais uma vez a traição das direções burocráticas foi decisiva para manter o capitalismo, sob as ordens de Stalin, que apostou tudo nos pactos de Yalta e Potsdam e na coexistência com o imperialismo, inclusive dissolvendo a III Internacional, em 1943, a pedido de Winston Churchill. Uma traição histórica à revolução e ao legado de Lenin. Essa conduta permitiu o massacre da resistência grega pelo exército inglês, e os PCs entregaram o poder à burguesia na França e na Itália.

    Diante de uma situação explosiva na Europa, o imperialismo foi obrigado a fazer uma série de concessões aos trabalhadores e permitir que a social-democracia e os PCs pudessem justificar seu apoio aos novos governos de “unidade nacional pela paz”. O imperialismo estadunidense organizou o Plano Marshall para financiar a reconstrução capitalista da Europa Ocidental arrasada pela guerra.

    Uma série de medidas de proteção social, antes recusadas pelas burguesias imperialistas acabaram sendo implementadas, como a legalização de vários direitos trabalhistas e a criação ou extensão da previdência social. Foi o chamado welfare state (estado de bem-estar social), que ao trazer melhorias no nível de vida passou a ser apresentado como “prova” da possibilidade de uma reforma gradual do capitalismo: um padrão que podia ser mantido e estendido.

    Nesse processo, os reformistas conseguiram uma retomada de seu prestígio ao capitalizar esse período em que, devido à destruição causada pela guerra e o medo da revolução operária, a burguesia se viu obrigada a permitir uma melhora importante nas condições de trabalho e nos direitos sociais. A social-democracia e os PCs se apresentaram como os defensores dos direitos sociais, reconstruíram-se na Europa Ocidental e passaram com frequência a ser parte dos governos da Alemanha, da Inglaterra, da França, entre outros países. Isso ocorreu nos anos 1950 e até o final da década de 1960 com fortes partidos reformistas, sejam partidos socialistas, sejam comunistas, em toda Europa Ocidental.

    No final dos anos 1940 e começo dos anos 1950, a pressão do imperialismo anglo-estadunidense na chamada “guerra fria” gerou um discurso mais duro da burocracia stalinista. Porém o stalinismo nunca rompeu seu compromisso com a ordem mundial de Yalta e Potsdam. O stalinismo passou a uma posição de colaboração aberta e de “coexistência pacífica” com o imperialismo. A partir dessa doutrina, os discursos são a defesa do diálogo e da conciliação, com os PCs ajudando a sustentar a dominação imperialista no mundo e o Estado burguês.

    A partir do final dos anos 1950, os PCs passaram a ser campeões em apoiar governos burgueses supostamente progressistas em todos os continentes. Na Itália, por exemplo, defenderam o “compromisso histórico” entre o PC, o maior partido comunista do ocidente, com a Democracia Cristã, maior partido burguês na Itália.

    AMÉRICA LATINA
    Fracasso do reformismo e do nacionalismo burguês no mundo semicolonial

    Na América Latina, entre os anos 1950 e 1970, a presença do reformismo e do nacionalismo burguês seguiram esse processo de chegar ao governo para tentar desviar os processos revolucionários desde a Bolívia, em 1952, até a Argentina, com Perón. Nesses processos, em nome da frente com a burguesia, os PCs apoiaram os governos ditos progressistas, como Joao Goulart no Brasil, em 1962-63, e a Unidade Popular de Allende no Chile, entre 1970-73. Em nome dessas alianças, passaram a defender a legalidade e o Estado e chamaram a confiar nas forças armadas, ditas patrióticas. Com isso, desarmaram a resistência aos golpes tanto no Brasil quanto no Chile.

    NEOLIBERALISMO
    A crise na social-democracia e no stalinismo

    A social-democracia, que havia se fortalecido na reconstrução do pós-guerra e por sua identificação com o Estado de bem-estar social, passou a sofrer um forte desgaste no final dos anos 1960. Nesse momento, começou o período de ataques a esses direitos sociais. Ataques que vieram pela direita, mas também pelos sociais-democratas quando estavam nos governos.
    Na França, na Alemanha e na Espanha pós-franquista, a partir dos anos 1970 e nos anos 1980, começou um forte desgaste que se aprofundou com a implantação do chamado “neoliberalismo”.

    Este consistia numa política econômica de retirada dos direitos conquistados em nome de “menos Estado” e da “liberdade de iniciativa”. Iniciado por Margaret Thatcher (Reino Unido) e Ronald Reagan (EUA) e experimentado na ditadura chilena de Augusto Pinochet, o neoliberalismo foi sendo tomado como pauta também por governos social-democratas: Mitterrand na França, em 1981-88, Felipe González na Espanha, nos anos 80, os trabalhistas na Inglaterra e os sociais-democratas na Alemanha. Desse processo, surgiu a terceira via do trabalhista Tony Blair, primeiro-ministro da Grã-Bretanha (1997 a 2007).

    Por outro lado, abriu-se uma crise nos partidos comunistas europeus stalinistas com a repressão do Exército Vermelho russo contra as revoluções políticas no Leste Europeu nos anos 1950, 1960 e 1970.

    Surgiu, então, o fenômeno do eurocomunismo, tendo como carro-chefe o PC Italiano. Levando até o fim a política de aceitar o Estado burguês em nome da democracia, formularam a doutrina da “democracia como valor universal”. Para eles a evolução da democracia levaria ao socialismo sem necessidade de revoluções sociais. Ou seja, adotaram um programa tal como a social-democracia havia feito no passado.

    As outras vertentes do stalinismo, como o maoísmo e o castrismo, apesar da estratégia guerrilheira, que num primeiro momento atraiu a simpatia de milhares de militantes, acabaram por ser a expressão das burocracias que governam China e Cuba. Em pouco tempo, apoiavam as burguesias ditas progressistas e se colocaram contra a tomada do poder pelos trabalhadores numa série de revoluções. Fidel Castro mostrou isso apoiando a aliança de Allende com a burguesia no Chile e também quando disse aos sandinistas na revolução da Nicarágua, em 1979, que não se devia expropriar a burguesia, mas sim se aliar a ela. “A Nicarágua não deveria ser uma nova Cuba”, disse.

    Tanto a burocracia chinesa quanto a cubana foram linha de frente da restauração do capitalismo em seus países. Hoje, o PC cubano representa a nova burguesia que restaurou o capitalismo na ilha. Já o PC chinês passou a ser um partido que governa de forma totalitária o Estado capitalista chinês.

    Após a restauração do capitalismo na ex-URSS, os partidos eurocomunistas como o PC Italiano completaram um processo de reconversão em partidos burgueses.

    A social-democracia e o que restou dos antigos partidos stalinistas, como o português e o francês, transformaram-se em partidos da ordem, cujo programa é a defesa do Estado burguês. Assim, tornaram-se instrumentos auxiliares para a burguesia implantar sua guerra social e destruir o welfare state.

  • As mentiras do sionismo e a ‘solução final’ de Israel em Gaza

    As mentiras do sionismo e a ‘solução final’ de Israel em Gaza

    O dia 7 de outubro vai ficar na história da luta pela libertação nacional na Palestina e no Oriente Médio. Foi o dia em que a resistência palestina conseguiu infligir uma derrota ao exército ocupante e romper por um período o cerco a que são submetidos diariamente por Israel, há 16 anos. Uma incursão preparada e coordenada conseguiu romper em vários pontos a cerca em volta de Gaza, que impede a saída de qualquer palestino. As câmeras e dispositivos de vigilância não funcionaram porque foram inutilizadas pelos combatentes. Até esse dia, a fama acumulada por Israel em várias guerras contra seus vizinhos árabes e da guerra permanente contra os palestinos havia dado um prestígio macabro, a tal ponto que sua tecnologia de vigilância, seus carros blindados de repressão à população vinham sendo exportada para muitos países.

    Por: Jose Welmowick

    Foi um fiasco do exército israelense. Em geral, os especialistas da área apontam centralmente a uma falha do aparato de inteligência, tais como Mossad. A nosso ver, não foi somente esse o fracasso. A reação das tropas da brigada que vigia Gaza foi derrotada facilmente pelos militantes de Hamas. Pelas informações que foram divulgadas, muitos oficiais e até mesmo coronéis e generais foram aprisionados. A reação do restante do exército foi tardia e lenta. O que pode estar por trás dessa derrota são dois fatores: 1) toda ocupação colonial leva a um desgaste das tropas envolvidas, e vai gerando uma incapacidade crescente para combater. É o que aconteceu com as tropas francesas na Indochina e Argélia, as norte-americanas no Vietnam. Sua atividade cotidiana é reprimir a população desarmada em forma perversa e covarde. 2) Quando os oprimidos se rebelam e enfrentam essas tropas elas não têm confiança em suas forças, ficam assustadas com a reação dos rebeldes oprimidos. No caso dos soldados sionistas em Gaza, os vídeos gravados mostram esse tipo de reação das tropas da guarnição a cargo da repressão em Gaza.

    Mas o que é trazido para nós e se vê em forma esmagadora na mídia é que tudo se tratou de um atentado terrorista de Hamas contra a população civil de Israel. Não tem nenhuma causa, a não ser a sanha assassina’ dessa organização.

    E como aconteceu na guerra do Iraque, e em muitas outras do Oriente Médio, uma série de fake News foram sendo divulgadas. A falsa história da suposta decapitação de bebês chegou a ser divulgada pelo presidente dos Estados Unidos, Biden, que chegou a mentir dizendo que viu essas fotos, quando eram apenas uma invenção de um blogueiro israelense de ultra direita, sem nenhuma comprovação. Ela acabou sendo desmentida, mas sem nenhum destaque. Vídeos distribuídos como prova de ‘ataques a civis’ mostravam na verdade um ataque a uma base militar israelense em que soldados surpreendidos tratam de se esconder de uma coluna de Hamas, que acaba invadindo e depois esses mesmos soldados aparecem mortos. Ou seja, era uma batalha militar. E invasões a aldeias e bairros de cidades israelenses vizinhas a Gaza são apresentadas como ataque premeditados a civis, quando numa guerra assimétrica como essa entre o Estado de Israel e a faixa de Gaza, cercada e bombardeada sistematicamente, as aldeias e cidades próximas à Gaza fazem parte do dispositivo militar do ocupante, no caso Israel, e, portanto, tem que ser enfrentados quando fazem uma incursão militar em resposta ao cerco, são alvos militares. Pelo menos, é assim que Israel trata tanto a própria Gaza como a Cisjordânia há décadas, que é a fonte de toda a violência, mas esses mesmos meios de comunicação não dizem uma palavra de condenação quando os colonos e o exército sionista invadem aldeias, destroem as casas da população, e matam seus habitantes.

    O que chama a atenção é que para a mídia e os governos e partidos dos EUA e da UE, e para essa mídia, os bombardeios massivos sobre Gaza que matam civis em uma quantidade impressionante são apenas “uma retaliação” de Israel! Portanto, segundo eles, justificada. Ou seja, seguem o mesmo roteiro do ministro da defesa israelense que classificou os habitantes de Gaza como “animais humanos”. O máximo que alguns fazem é sugerir ‘contenção’ aos genocidas.

    A mídia não mostra nada do sofrimento das crianças palestinas, nem antes, nem depois dos ataques. Não dão nenhuma importância a fatos como: 9 funcionários da ONU em Gaza foram assassinados pelo exército de Israel quando tentavam socorrer os habitantes feridos. Mas Israel declara que todos os seus alvos são militantes terroristas que “se escondem nas casas dos palestinos’, e, portanto, qualquer alvo residencial ou até mesmo instalações médicas e escolas em Gaza são parte dos seus objetivos de guerra.

    Estamos assistindo, em tempo real pela mídia mundial e as redes sociais, cenas idênticas à Nakba de 1948. O governo israelense, não contente com o deslocamento forçado de mais de um milhão de pessoas em poucas horas, declara que devem sair do território imediatamente para não ser atingidos por seus bombardeios. E ainda mandou bombardear um comboio de palestinos que tentaram sair do Norte para chegar ao Sul da Faixa. E que diz a mídia? É parte da “contraofensiva” de Israel, que de princípio está justificada e não mostra nenhuma foto ou filmagem das atrocidades e dos assassinatos de civis palestinos em Gaza.

    Há mais uma omissão vergonhosa da mídia mundial: inundam a TV e os jornais com as declarações das entidades judaicas sionistas e ligadas a Israel, todas defendendo os ataques do estado racista de Israel (chegam a dizer que um Estado que nasceu de uma limpeza étnica, que mantem uma ocupação por décadas e trata os palestinos como cidadãos de segunda classe ou prisioneiros em suas cidades é a única democracia do Oriente Médio!).

    Mas não dão uma linha para os movimentos judaicos que se colocam contra a linha genocida de Israel. Alguns deles são bastante fortes, como Jewish Voices for Peace (Vozes judaicas pela Paz) dos Estados Unidos, que tem mais de 440 mil membros e apoiadores. Movimentos como esse já vinham fazendo campanhas contra o apartheid israelense e o racismo colonial. E nesse momento, mantiveram sua postura frente ao processo em Gaza. A seguir reproduzimos um trecho do pronunciamento de Jewish Voices for Peace (JVP) do dia 7/10/2023:

    “O governo israelense pode ter acabado de declarar guerra, mas a sua guerra contra os palestinianos começou há mais de 75 anos. O apartheid e a ocupação israelenses – e a cumplicidade dos Estados Unidos nessa opressão – são a fonte de toda esta violência. A realidade é montada de acordo a quando você inicia o relógio.

    Durante o ano passado, o governo mais racista, fundamentalista e de extrema-direita da história de Israel intensificou impiedosamente a sua ocupação militar sobre os palestinianos em nome da supremacia judaica, com expulsões violentas e demolições de casas, assassínios em massa, ataques militares a campos de refugiados, cercos implacáveis e humilhação diária. Nas últimas semanas, as forças de Israel atacaram repetidamente os locais muçulmanos mais sagrados em Jerusalém. Durante 16 anos, o governo israelita sufocou os palestinos em Gaza sob um bloqueio militar aéreo, marítimo e terrestre draconiano, prendendo e matando de fome dois milhões de pessoas e negando-lhes assistência médica. O governo israelita massacra rotineiramente palestinos em Gaza; crianças de dez anos que vivem em Gaza já ficaram traumatizadas por sete grandes campanhas de bombardeamento nas suas curtas vidas”.

    Nos Estados Unidos existiam pesquisas recentes apontando que mais de 50% da juventude judaica desse país não se sente identificada com Israel, um dado que assusta os dirigentes sionistas locais e a Organização Sionista Mundial. Há outros movimentos que unem esses setores a movimentos progressistas e comunidades de origem árabe ou muçulmana nos EUA, como mostra a carta escrita pelo Comitê de Solidariedade com a Palestina de Graduação de Harvard, que afirmava que os estudantes “responsabilizam inteiramente o regime israelense por toda a violência em curso”, carta que foi assinada por 33 grupos de estudantes. Que haja sido em Harvard, universidade de elite desse país surpreendeu sua cúpula. A reitoria se pronunciou se diferenciando da carta assim como vários ex-alunos, que foram ou hoje são executivos de grandes empresas ou ministros no governo americano. Também na New York University (NYU), os alunos se expressaram em uma declaração contra o genocídio de Israel.

    A mídia tampouco dá cobertura aos protestos dos judeus ultra religiosos que vivem em Jerusalém, no bairro Mea Shearim, são anti-sionistas, e colocaram uma bandeira palestina em seu templo para mostrar repúdio ao massacre. Por causa disso foram duramente reprimidos, golpeados pela polícia israelense e seu templo foi invadido para retirar a bandeira palestina de lá.[1] Só há uma verdade e um ponto de vista válido para a mídia e o stablishment imperialista: o do governo genocida de Netanyahu e seu defensor incondicional, o imperialismo norte-americano, através do governo Biden.

    Qual é a situação dos palestinos na Cisjordânia?

    Na Cisjordânia, existem três ‘áreas’ destinadas umas aos palestinos, outras aos colonos judeus, que já somam 750 mil. Estes têm total liberdade de ir e vir tanto na Cisjordânia, como em Israel. Jerusalém Oriental, que pela própria partição de 1948 deveria pertencer ao estado palestino a ser criado, foi anexada em 1967 à Jerusalém judaica sob controle dos sionistas.  Para os palestinos circular de uma área à outra somente através de inúmeros checkpoints, onde muitas vezes passam horas se submetendo a revistas humilhantes pelas tropas israelenses. Os colonos tem um comportamento abertamente racista e agressor sobre os palestinos, e são protegidos pelo exército. O mesmo acontece com os palestinos que vivem na cidade de Jerusalém.

    Um dos argumentos falaciosos dos defensores de Israel na mídia é que se trata de uma “guerra contra o Hamas”, não contra todos os palestinos. Por isso, a questão está em Gaza. Essa é outra mentira. A guerra contra os palestinos se centra em Gaza hoje, mas ao mesmo tempo está submetendo a Cisjordânia a um cerco semelhante e a assassinatos de civis. Esse processo já vinha desde muito antes, mas agora se multiplicaram em forma macabra a partir de 7 de outubro. Segundo os informes de agências de notícias, do Crescente Vermelho (a Cruz Vermelha dos muçulmanos), e de organizações dos direitos humanos, desde o dia 7 de outubro ao dia 14, 55 palestinos foram assassinados e 1.100 feridos por ataques dos colonos sionistas na Cisjordânia, com a cumplicidade ou participação das forças armadas israelenses. Todos eram civis, famílias indo de uma cidade à outra, trabalhadores ou pequenos comerciantes tentando abrir seus negócios. Até mesmo o cortejo de um funeral foi atacado a tiros, matando pelo menos 4 palestinos que participavam. Em nenhum desses ataques seus integrantes eram militantes de Hamas. Só tinham uma característica em comum: eram árabes palestinos. Essa é mais uma demonstração de que a política é de guerra e expulsão de todos os palestinos.

    O estado racista de Israel nasceu em 1948 com a Nakba, a limpeza étnica que expulsou 750 mil árabes das suas terras. Mas como não pôde se livrar completamente dos palestinos, seguiu sua ação nestes 75 anos. A partir de 1967, com a ocupação de Gaza e Cisjordânia, manteve seus habitantes submetidos a um regime militar, que tratava seus habitantes como prisioneiros e se beneficiava de seu trabalho escravo, e elas não tinham quaisquer direitos. Ao mesmo tempo, colonizavam novas terras expropriando os palestinos, seja em Jerusalém Oriental, seja na Cisjordânia, com colonos judeus

    Devido à resistência permanente, as duas Intifadas em 1987-1992 e a do ano 2000, somadas à persistente resistência, sua estratégia veio mudando. Agora, frente à resistência armada, essa estratégia se tornou explicita: a limpeza étnica de todo o território da Palestina. Para eles, ou saem da Palestina, ou morrem. Por isso, se veem os colonos da Cisjordânia gritarem: “Morte aos árabes” e atuarem de acordo a suas palavras, ou seja, executando pogroms. Da mesma forma como os antissemitas faziam contra os judeus na Europa Oriental. Os últimos foram em Huwara y Turmus Ayya, na Cisjordânia.

    Netanyahu apresentou na sessão da ONU do último mês de setembro um ‘novo mapa’ da região. Nele, não existe mais Palestina, nem sequer territórios ocupados. Só existe Israel, ocupando todo o território entre o mar Mediterrâneo e o Rio Jordão. (foto do mapa apresentado na ONU por Netanyahu).

    Uma analogia com a resistência judaica contra os nazistas: o Levante do Gueto de Varsóvia

    A partir da invasão nazista à Polónia, em 1939, o ocupante alemão decidiu concentrar os judeus de todo o país em uma pequena região da capital, que ficou conhecida como “Gueto de Varsóvia”[2]. Os nazistas assim o fizeram para poder controlá-los como numa prisão, tinha muros e cercas em toda a volta do gueto, de modo tal que só podiam sair os que tinham determinado cartão, com a finalidade de utilizar seu trabalho em forma semelhante à escravidão. A comunidade judaica na Polônia era a maior dos países ocupados por Hitler.

    Essa política dos nazistas para os judeus poloneses concentrados em Varsóvia durou até que eles resolveram partir para a ‘solução final’ em 1942: construir os campos de concentração com câmaras de gás para exterminar todos os judeus. A partir daí foram capturando os que ainda sobreviviam no gueto e enviando-os para a morte. De 380 mil residentes no início do gueto, cerca de 300 mil foram enviados para a morte entre 1942 e 43.

    Quando perceberam que esse era o destino que esperava a todos, os judeus sobreviventes resolveram resistir armados mesmo estando em uma enorme inferioridade militar e logística. Formaram uma organização de resistência unida, a ZOB, e organizaram um levante em abril de 1943 que conseguiu enfrentar os soldados alemães por mais de 30 dias, causando baixas importantes às tropas nazistas. Sabiam que havia uma decisão de serem levados e mortos nas câmaras de gás dos campos de extermínio nazista. Optaram por resistir e morrer lutando. Os nazistas chamavam os combatentes judeus de ‘terroristas’.

    Como afirma Haidar Eid, professor da Universidade al Aqsa em Gaza, em seu artigo Gaza 2023: Nosso momento semelhante ao Levante do Gueto de Varsóvia[3], “uma clareza do destino que Israel impôs aos palestinos de Gaza e também da Cisjordânia os levou a assumir o mesmo tipo de decisão: “Em Gaza e Jenin[4], recusamo-nos a marchar para as câmaras da morte de Israel. Em Gaza e Jenin – na verdade, em toda a Palestina histórica – deixamos absolutamente claro que resistiremos ao regime de colonos, ao regime colonial e de apartheid entre o Rio Jordão e o mar Mediterrâneo.”

    É nesse quadro que tem de se entender a luta armada desencadeada pelos residentes palestinos. 

    Do genocídio lento ao extermínio

    O que está passando hoje, frente a resistência armada palestina e o fracasso do intento sionista de escravizar o povo palestino e obrigá-lo a viver em condições sub-humanas para sempre, é a decisão de Netanyahu de arrasar toda Gaza, transformar o genocídio em marcha lenta dos últimos 30 anos em genocídio direto através dos bombardeios contra todos os habitantes, corte definitivo de abastecimento de água, energia.

    O governo israelense fez um chamado cínico a quem quiser sobreviver, que saia da faixa imediatamente, isso ao mesmo tempo que Israel bombardeia a passagem entre Gaza e Egito, a única ainda aberta. Como denunciaram os médicos da Cruz Vermelha e funcionários da missão da ONU em Gaza, assim como a própria Organização Mundial de Saúde, vinculada à ONU, é uma ordem impossível de ser cumprida por uma população de mais de um milhão e equivale a uma condenação à morte de doentes e feridos hospitalizados em Gaza. Ou seja, com a escusa de estar fazendo uma ‘retaliação’ aos ataques do Hamas, Israel condenou à morte toda a população residente sob a cobertura de destruir os ‘terroristas’. Em forma semelhante ao que fez Hitler contra os judeus a partir da ‘solução final’ de 1942 em diante e frente à revolta, decidiu acabar com o gueto de Varsóvia pela sua destruição.

    Com a cobertura dos governos ocidentais, da esmagadora maioria da mídia e a cumplicidade dos governos que se dizem ‘amigos dos palestinos’, como Lula no Brasil, Israel argumenta que tem o “direito a defender-se” para declarar guerra e praticar um massacre de um povo inteiro em Gaza e na Cisjordânia. O representante israelense na ONU ficou irritado porque houve alguns embaixadores que sugeriram que tentasse poupar os civis palestinos em Gaza. Ele reafirmou que não é hora de preocupar-se com os ‘danos colaterais’, e sim em liquidar o Hamas, nem que para isso tenha que demolir e destruir totalmente a cidade. Ou seja, os mais de 2,2 milhões de habitantes, que obviamente inclui uma grande maioria de civis, dos quais mais da metade são mulheres e crianças, não lhes importa. E esse governo tem o cinismo de se fazer de vítima e chamar Hamas de terrorista. Outra característica copiada do regime nazista: a propaganda mentirosa de Goebbels, que tinha uma frase definidora: “uma mentira repetida inúmeras vezes vira verdade”.

    Um governo que tem entre seus ministros defensores de matar ou expulsar os árabes de todo o território palestino. Como Itamar Ben Gvir, que já foi processado como terrorista até pelos tribunais israelenses, mas foi liberado e hoje é ministro de Segurança Nacional. Ele declarou publicamente que todos os árabes devem ser mortos, de tal forma que até os liberais israelenses o classificam de “fascista”. Ou seu ministro da defesa, Yoav Gallant que declarou abertamente que vai manter um cerco total a Gaza, e cortar todo o abastecimento de água, combustível e energia, porque assim destruirá Hamas. E obviamente matará dezenas se não centenas de milhares de civis, em especial crianças. O que constitui um crime de guerra para o ICIC. Anistia Internacional e Human Rights Watch já haviam classificado o regime de Israel como de apartheid.

    Netanyahu é um sucessor político de Vladimir Jabotinsky e Menachem Begin, que eram dirigentes da ala diretamente fascista do sionismo, que manteve um grupo terrorista próprio chamado Irgun Zvai Leumi, que atacava os árabes tratando-os como um povo inferior; esse grupo foi responsável pelo massacre de Deir Yassin em que assassinaram todos os palestinos que puderam, para criar um pânico que levasse à retirada dos árabes da Palestina, como parte da Nakba.[5]

    Por isso, é um cinismo abjeto de Netanyahu reivindicar estar vingando o assassinato em massa dos judeus pelo nazismo ao mesmo tempo que praticam a mesma metodologia de Hitler, quando eles são hoje o nazi-fascismo sionista. A diferença com o nazismo original, é que desta vez se dá contra os palestinos. O cinismo de Netanyahu não surpreende, mas o cinismo maior vem do coro que inclui os dois partidos norte-americanos, Democrata e Republicano, o governo Macron da França, Scholz da Alemanha, Sunak no Reino Unido. Que publicamente se colocam ao lado deste genocida, projetando a bandeira de Israel em seus prédios símbolo, como a Torre Eiffel em Paris ou o Portão de Brandeburgo em Berlim, e assim como a União Europeia se enfileiram apoiando o “direito de Israel a se defender”. Ou seja, os fascistas sionistas querem licença total para liquidar o povo palestino, e estão conseguindo.

    A solidariedade à resistência palestina

    O repúdio à ação genocida de Israel e a essa campanha demonizadora dos palestinos pela via de colocar Hamas como “terrorista” e classificar todos os que apoiam a resistência de terroristas ou apoiadores de terroristas está gerando uma indignação e importantes manifestações.

    Houve muitas manifestações em distintos países, as maiores no Oriente Médio, como na Jordânia, no Iêmen, Iraque, Egito. Na Jordânia cantavam “somos Hamas, se Hamas é terrorista, nós somos terroristas”. Estão havendo mobilizações também nos EUA, Inglaterra, França, em outros países da Ásia, como Coréia do Sul, e ainda na Austrália e na Indonésia. Apesar do apoio incondicional a Israel por governos como Macron na França, Sunak na Grã Bretanha, o movimento palestino não se curvou e, embora reprimido, saiu às ruas contra o genocídio do povo palestino.

    Em Paris, a polícia usou gás lacrimogêneo e canhões de água para dispersar uma manifestação de apoio aos palestinos, após o governo francês ter proibido qualquer protesto do tipo. Apesar da proibição, milhares de manifestantes reuniram-se em Paris, Lille, Bordéus e outras cidades na quinta-feira 12/10.

    Na Inglaterra, a polícia britânica alertou que qualquer pessoa que demonstre apoio ao Hamas, uma organização considerada “terrorista” pelo governo britânico, ou que se desvie da rota, poderia ser presa. Mesmo assim, milhares de pessoas saíram às ruas em Londres, Manchester, Liverpool, Bristol, Cambridge, Norwich, Coventry, Edimburgo (Escócia) e Swansea.

    Na Alemanha, Scholz disse aos deputados no Bundestag (Parlamento alemão) que a segurança de Israel era uma política de Estado alemã. E proibiu as manifestações pró- Palestina.

    Agora frente a continuação da guerra genocida de Israel contra Gaza, se abre um espaço para intervir com coragem nos organismos do movimento sindical, democrático propondo que se pronuncie contra o genocídio sionista em Gaza e chamar a manifestações de apoio em todo o mundo. Apoiamos o BDS, um movimento amplo de boicote a qualquer investimento e intercâmbios artístico e esportivo em Israel até que termine o regime de apartheid, seguindo o exemplo do boicote internacional contra a África do Sul e seu regime de apartheid nos anos 70 e 80.

    E chamamos ao apoio à resistência palestina, que é a forma direta para enfrentar o estado racista de Israel e seu regime de apartheid. Como se mostrou em mais de 20 anos após os acordos de Oslo, o caminho do ‘diálogo’’, da “paz” e da não violência não levou a nenhum resultado concreto, a não ser desarmar a luta palestina e a criar autoridades que não tem nenhum poder, fora o de obedecer às ordens do colonizador, como sempre foi a ANP de Mahmoud Abbas.

    Qualquer alternativa de buscar um caminho do meio, tipo “dois estados” só paralisa o movimento. Inclusive já ficou completamente impossibilitado pela colonização sionista em toda a Cisjordânia.

     A saída é o fim do estado racista de Israel e o surgimento de uma Palestina laica, democrática e não racista, uma Palestina livre, do rio  ao mar, como parte da luta socialista em todo Oriente Médio.

    Cartaz do Jewish Voice for Peace de 15/10/23

    Nossas diferenças com Hamas

    Apoiamos a resistência palestina porque é a forma direta e legítima de enfrentar e derrotar o apartheid sionista. E o Hamas esteve à cabeça desse ato de resistência que mostrou um caminho para o povo palestino. Nossas diferenças não estão sobre se é justo fazer ações armadas contra o regime sionista genocida, como fizeram todas as revoluções coloniais contra seus opressores.

    Mas consideramos a proposta que eles apresentam como saída, de um Estado Islâmico equivocada e estreita, afastando os setores seculares palestinos, democráticos e socialistas de seu projeto. Também tem uma política repressiva para a luta das mulheres, e dos LGTBQI+ como se vê no Irã atual. Por isso, sua gestão em Gaza partindo dessas premissas, teve um efeito negativo para a necessária unidade e a democracia no interior do movimento palestino.

    Mas hoje é fundamental apoiar a resistência palestina, nesse combate de David contra Golias e que hoje é encabeçada por Hamas. E não caímos nas armadilhas do imperialismo, nem de setores que se dizem democráticos e de uma parte da esquerda que devido a esses problemas retira seu apoio à resistência palestina, cedendo à pressão do imperialismo e do sionismo, ao aceitar o argumento que os palestinos são atrasados enquanto Israel é avançada, devido a algumas leis como o matrimonio LGTBQI+. Nenhuma dessas medidas pode nos fazer esquecer que Israel hoje tem o objetivo de exterminar todo o povo palestino, e que temos de estar ao lado da resistência palestina a esse intento genocida.


    [1] “A polícia israelense queria retirar as bandeiras palestinas no bairro judeu. Os judeus não permitiram isso e entraram em confronto com a polícia. A polícia israelense invadiu o bairro de Mea Shearim, onde os judeus vivem em Jerusalém, e queria retirar as bandeiras palestinas do bairro. Os judeus não permitiram isso, opuseram-se à polícia sionista e a polícia espancou brutalmente os judeus”. Publicado por Torah Judaism, 11/10/2023

    [2] Essa prisão nazista a céu aberto foi chamada de ‘gueto’ em referência aos bairros que os antigos reinos europeus da Idade Média obrigaram a que se concentrassem os judeus daquela época, para poder controlá-los melhor e submete-los a massacres (os pogroms) quando bem entendessem. Esses bairros eram chamados de guetos.

    [3] Publicado por Al Jazeera 10/10/2023.

    [4] Jenin é uma cidade na Cisjordânia, onde está um campo de refugiados  que tem se destacado por uma forte resistência aos massacres sionistas

    [5] O Irgun chegou a explodir o hotel Rei David em 1946, matando ingleses, árabes e até judeus ainda durante o mandato britânico (para assustar os ingleses pois o Irgun não concordava que se reservasse qualquer parte da Palestina aos árabes)

  • Engels, coautor da concepção materialista da História

    Engels, coautor da concepção materialista da História

    200 anos de Engels

    A colaboração entre Engels e Marx teve como ponto de partida a elaboração da concepção materialista da história: esta foi o resultado de uma convergência de ideias e, a partir daí, de uma parceria na elaboração teórica, na militância política de ambos por toda a vida.

    Por: José Welmowicki

    O marxismo contra o determinismo

    Em seu Prefácio a Contribuição à crítica da economia política, Marx escreveu:

    “…Friedrich Engels, com quem mantive por escrito uma constante troca de ideias desde o aparecimento do seu genial esboço para a crítica das categorias econômicas (nos Anais Franco-alemães), tinha chegado comigo, por uma outra via (compare-se a sua Situação da Classe Operária na Inglaterra), ao mesmo resultado, e quando, na Primavera de 1845, ele radicou-se igualmente em Bruxelas, decidimos esclarecer em conjunto a oposição da nossa maneira de ver contra a [maneira de ver] ideológica da filosofia alemã, de fato ajustar contas com a nossa consciência filosófica anterior. Este propósito foi executado na forma de uma crítica à filosofia pós-hegeliana. O manuscrito, 1 dois grossos volumes em oitavo, chegara havia muito ao seu lugar de publicação na Vestfália quando recebemos a notícia de que a alteração das circunstâncias não permitia a impressão do livro. Abandonamos o manuscrito à crítica roedora dos ratos de tanto melhor vontade quanto havíamos alcançado o nosso objetivo principal — autocompreensão. Dos trabalhos dispersos em que apresentamos então ao público as nossas opiniões, focando ora um aspecto ora outro, menciono apenas o Manifesto do Partido Comunista, redigido conjuntamente por Engels e por mim”.

    Essa convergência teórica levou os dois amigos a sistematizar suas ideias e que os levaram a romper com os jovens hegelianos, como os irmãos Bauer, Stirner e outros. Esse grupo estava dedicado à crítica do sistema político e jurídico da Alemanha, mas sua crítica permanecia no terreno ideológico, sem relacionar a crítica da realidade na sociedade alemã à de sua base material. Limitavam-se ao terreno das ideias. Para criticar essa corrente que não saía dos limites do idealismo de Hegel, Engels e Marx escreveram juntos, em 1845, A Sagrada Família (ou Crítica da Crítica crítica). Naquele momento, aproximaram-se de Feuerbach que fazia a crítica a Hegel de um ponto de vista materialista.

    Mas, logo em seguida, chegaram à conclusão de que Feuerbach era uma superação parcial e unilateral de Hegel, pois ele não passava de afirmar um materialismo contemplativo, ou seja, que a relação homem/natureza era vista como passiva, não valorizava a ação do ser humano sobre a natureza e sobre a sociedade. A expressão dessa ruptura com Feuerbach se expressará em A Ideologia Alemã, que os dois elaboraram conjuntamente em 1845 e à qual se refere o texto citado acima.

    Foi nesse texto – que não chegou a ser impresso por várias dificuldades a que Marx se refere no Prefácio acima (e cujo manuscrito foi mais tarde recuperado e publicado por Riazanov no Instituto Marx-Engels da URSS nos anos 1920) – que eles desenvolveram a nova concepção materialista da história. Marx e Engels incorporaram a defesa do lado ativo do ser humano, que a ação humana sobre a natureza e a sociedade podia transformá-las, podia ser revolucionária, como Marx sintetizou em suas Teses sobre Feuerbach, escritas no mesmo período:

    […] A principal insuficiência de todo o materialismo até aos nossos dias – o de Feuerbach incluído – é que as coisas, a realidade, o mundo sensível são tomados apenas sob a forma do objeto ou da contemplação; mas não como atividade sensível humana, práxis, não subjetivamente. Por isso aconteceu que o lado ativo foi desenvolvido, em oposição ao materialismo, pelo idealismo – mas apenas abstratamente, pois que o idealismo naturalmente não conhece a atividade sensível, real, como tal.

    Essas Teses foram publicadas por Engels em 1886 em seu livro Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. Como diz Marx no Prefácio, o Manifesto Comunista foi baseado nesta concepção.

    Entre os textos sobre processos revolucionários que ambos escreveram naquela época, destacam-se O 18 Brumário de Louis Bonaparte, de Marx, sobre a revolução e contrarrevolução na França de 1848-1851. Engels escreveu em 1850 A Guerra dos camponeses na Alemanha aplicando a concepção materialista da história para estudar como seu desenlace havia sido decisivo para a formação da Alemanha, comparada a outros países como a Inglaterra e França.

    Nesse texto, Engels faz uma análise da economia e da composição de classe da Alemanha de então. Em seguida, analisa o surgimento e os programas das distintas oposições. Em especial, explica profundamente as diferenças entre Lutero (o teólogo da Reforma Protestante) e Münzer (o líder radical da guerra camponesa) e como elas influenciaram as insurreições camponesas do final do século XV e começo do XVI, quando estava começando a Reforma Protestante. Também explica as características das revoltas contra os nobres e os líderes da nobreza, como Sickingen. A partir daí, relata os episódios da guerra camponesa e as causas de sua derrota final. Por fim, analisa as consequências dessa derrota na história da Alemanha.

    Todo o trabalho de Engels concentra-se na necessidade de uma luta de classes implacável contra os senhores feudais para abrir condições mais favoráveis para uma revolução proletária. Também analisa como as correntes burguesas que surgiram foram incapazes de levá-la. Lições da história que os levam a uma formulação semelhante na célebre «Mensagem de 1850 ao Comitê Central da Liga dos Comunistas», que ele e Marx escreveram sobre a revolução alemã de 1848-1850.

    O texto de Engels sobre a guerra camponesa é um exemplo de como a concepção materialista da história permite analisar as sociedades, inclusive as não capitalistas e tirar conclusões políticas, opostas aos ideólogos e os representantes das classes dominantes.

    Engels continuou aplicando a concepção sistematizada na Ideologia alemã ao longo de toda sua trajetória, nos combates ideológicos que teve que dar contra os distintos teóricos que voltavam ao idealismo ou ao materialismo mecanicista e negavam a concepção materialista da história, assim como aos políticos reformistas.

    É curioso que haja críticos de Engels que o atacam justamente pelos textos que escreveu para combater esse tipo de visão mecânica, como o seu clássico conhecido pelo nome de o Anti-Dühring. Hoje já não se menciona a Dühring, mas na época ele teve sucesso e exerceu uma influência ampla entre as fileiras do partido operário alemão e inclusive na sua direção. O que Dühring defendia em seus livros era um “sistema” fechado com leis rígidas, que atacavam os textos centrais de Marx e Engels. Em seu livro, Dühring investia contra a dialética, e para poder atacar Marx e impactar seus leitores, fazia tergiversações de várias partes de O Capital, entre outros textos para contrapor “uma teoria geral da ciência, pretendendo encontrar nela uma conexão interna, da natureza, da história, da sociedade, o Estado, o Direito”. 2 Para poder contrapor-se “à filosofia da natureza do senhor Dühring”, 3 Engels teve que desenvolver polêmicas em todos os terrenos que Dühring incursionou, como a economia política, as ciências naturais, a filosofia, etc.

    Assim, Engels defende a concepção materialista da história em seu texto polêmico. Para realizar esse objetivo, Engels teve que atacar de maneira frontal o determinismo e o mecanicismo de Dühring. No entanto, cada vez mais existem autores, inclusive alguns que se reivindicam marxistas, que criticam esse texto, assim como os manuscritos publicados postumamente como Dialética da Natureza por um suposto determinismo ou mecanicismo.

    Nessa polêmica, existem aqueles que opinam que o marxismo é uma visão determinista da história. Outros, em maior quantidade, dizem que Engels seria a fonte dessa visão determinista, em oposição ao próprio Marx.

    Como revela Engels no Prefacio à 2ª edição do Anti Dühring, ele escreveu o livro em contato permanente com Marx, que o leu e inclusive redigiu a parte sobre a historia crítica das teorias econômicas: “como o ponto de vista aqui desenvolvido foi em sua maior parte fundado e desenvolvido por Marx, e em sua mínima parte por mim, era óbvio entre nós que esta exposição minha não podia realizar-se sem o seu conhecimento. Li o manuscrito inteiro antes de levá-lo à imprenta, e o décimo capítulo da seção sobre economia («Da História crítica») foi escrito por Marx”. Para que não reste dúvidas, reproduzimos uma carta de Marx em que ele recomenda a um correspondente, Moritz Kaufmann, que leia o Anti-Dühring de Engels. Nela pode se comprovar que Marx não só participou de sua elaboração, mas que o considerava uma ótima exposição do socialismo cientifico:

    Londres, 3 de outubro de 1878

    Meu estimado Senhor,

    O Sr. Petzler informou-me que o Sr. teria redigido um artigo sobre meu livro «O Capital» e sobre minha vida, artigo esse que deverá ser impresso, juntamente com outros de sua autoria, bem como que o Sr. apreciaria que eu ou Engels corrigíssemos alguns erros seus. […]
    Por correio, enviar-lhe-ei igualmente – caso o Sr. dele já não disponha – um novo escrito de meu amigo Engels, intitulado “A Subversão da Ciência do Sr. Eugen Dühring”, escrito esse muito importante para a uma correta apreciação do socialismo alemão.

    Respeitosamente, seu Karl Marx.” 4

    Engels teria se tornado um determinista ao final de sua vida?

    Alguns autores afirmam que Engels teria adotado uma concepção determinista em seu último período de vida. Que Engels teria retrocedido ao materialismo mecanicista. A acusação, como antecipamos, tenta se apoiar em textos como Anti-Dühring e Dialética da Natureza.


    Na verdade, Engels analisa nesses textos como a evolução das ciências naturais e da tecnologia foram frutos da ascensão da burguesia e da necessidade do capitalismo intervir sobre os processos produtivos, na indústria (como a máquina a vapor, mais tarde a eletricidade, etc.) e na agricultura, de acelerar a circulação de mercadorias e, portanto o transporte, (trens, navegação mais rápida, etc.). Portanto, era necessário conhecer melhor a natureza, daí o estímulo às ciências naturais. Houve nesse período uma tendência das ciências naturais de encontrar uma explicação linear de causa e efeito e ver a própria natureza como uma evolução contínua. Contrapunham-se, nesse sentido, às explicações religiosas anteriores do clero cristão e às restrições típicas do período feudal.

    Iluminismo era a ideologia típica da burguesia em ascensão, que se colocava como representante das ‘luzes’: assim como na política, falava da igualdade entre os homens, dos direitos humanos em contraponto com aos velhos privilégios típicos dos sistemas feudais com toda sua hierarquia, suas ideias e sua resistência à ciência. Uma vez consolidado o poder da burguesia, esta posição se altera. A versão para esse período torna-se conservadora, a ordem social deve ser conservada e a ciência social deve explicar como essa ordem é natural, tão natural como a geologia, a física ou a química. Surge daí um ambiente ideológico de fé no progresso oriunda do desenvolvimento econômico e da conservação social.

    A filosofia resultante dessa aplicação das ciências naturais à sociedade está muito ligada à figura de August Comte, o fundador do positivismo: uma concepção que estendia essa compreensão de maneira linear às sociedades, com pretensões científicas, inclusive criando uma disciplina para estudar cientificamente a sociedade: a Sociologia ou, como a nomeava Comte, a física social.

    Comte considerava que a sociedade tinha leis causais da mesma natureza das leis da física e que nela havia uma evolução permanente, um progresso que era um processo como o da natureza. 5 Ele e outros teóricos construíram uma visão determinista a partir daí, em que os eventos históricos estão previamente definidos por essas leis da física social.

    Os críticos de Engels acusam-no de ter sido influenciado por esse tipo de visão.  No entanto, os próprios textos de Engels atacam exatamente esse tipo de determinismo e a visão mecânica da aplicação de leis físicas ou biológicas à sociedade e inclusive mostram que na natureza tampouco se aplica a visão determinista como pensam os materialistas vulgares.

    No Anti-Dühring, Engels escreve:

    “O sistema de Hegel foi um aborto gigantesco, porém o último de sua espécie. Com efeito, sua filosofia padecia ainda de uma contradição interna incurável, pois, se, por um lado, considerava como pressuposto essencial da concepção histórica, segundo a qual a história humana é um processo de desenvolvimento que não pode, por sua própria natureza, encontrar solução intelectual no descobrimento disso que se chama de verdades absolutas, por outro, se nos apresenta precisamente como resumo e compêndio de uma dessas verdades absolutas, um sistema universal e compacto, definitivamente plasmado, no qual se pretende enquadrar as ciências da natureza e da história, é incompatível com as leis da dialética. […] Verificamos, assim, que o socialismo tradicional era incompatível com a nova concepção materialista da história bem como a concepção dos materialistas franceses, sobre a natureza, não podia coexistir com a dialética moderna e com as novas ciências naturais.” 6

    Em sua carta a Mehring de 1893, Engels, depois de elogiar seu livro A lenda de Lessing e o apêndice escrito por Mehring sobre o materialismo histórico, não tem rodeios em atacar a interpretação que tenta fazê-los aparecer como materialistas vulgares mecanicistas e contrapor-se a esse suposto materialismo de Marx e Engels para justificar seu idealismo.

    Londres, 14 de julho de 1893

    Caro Sr. Mehring,

    Começo pelo fim – i.e. com o apenso, intitulado “Acerca do Materialismo Histórico”, onde o Sr. apresenta as coisas principais magnifica e convincentemente para toda pessoa imparcial… Dito isso, falta ainda apenas mais um ponto que, porém, nos escritos de Marx e nos meus, não surge, em regra, suficientemente destacado e em relação ao qual somos culpados ambos, em igual medida.

    Com efeito, ambos colocamos o peso principal, em primeiro lugar, na dedução das representações políticas, jurídicas e todas as outras noções ideológicas e, assim também, dos atos intermediados por essas representações, a partir dos fatos econômicos fundamentais, sendo que assim tivemos de fazer.

    Nisso, negligenciamos, então, o lado formal, i.e. : o modo e a maneira segundo os quais emergem essas representações etc., em favor do lado conteudístico…

    ideólogo da história (o histórico deve significar aqui, de modo simplesmente resumido, o político, jurídico, filosófico, teológico, em suma: todos os domínios que pertencem à sociedade – e não meramente à natureza) – o ideológo da história possui, portanto, em cada domínio científico, um material que se formou autonomamente a partir do pensamento de gerações precedentes e percorreu uma série própria e autônoma de desenvolvimento no cérebro dessas gerações que se seguiram umas às outras.

    Certamente, fatos externos que pertencem a um domínio peculiar ou a outros domínios podem ter atuado, de maneira codeterminante, sobre esse desenvolvimento.

    Porém, esses fatos mesmos constituem, precisamente, segundo o pressuposto tácito, novamente, apenas frutos de um processo do pensamento e, assim, permanecemos ainda no campo do mero pensamento que, por si mesmo, digeriu os fatos mais duros, com aparente satisfação. É sobretudo essa aparência de uma história autônoma das constituições do Estado, dos sistemas jurídicos, das representações ideológicas, em cada domínio especial, que cega a maioria das pessoas.

    Nesse contexto, situa-se também a seguinte estúpida noção dos ideólogos: precisamente porque subtraimos às diferentes esferas ideológicas, que desempenham um papel na história, um desenvolvimento histórico autônomo, estaríamos subtraindo-lhes também todo e qualquer efeito histórico.

    Esse raciocínio é aqui embasado com a noção ordinária, não-dialética, de causa e efeito, concebidos enquanto polos rigidamente opostos um ao outro, o que significa o total esquecimento da interação.

    Frequentemente esses senhores esquecem, quase propositadamente, que um momento histórico, tão logo seja colocado no mundo, em dada ocasião, através de outras causas, em última instância, causas econômicas, acaba reagindo também sobre o seu redor, podendo reagir até mesmo sobre as suas próprias causas.” 7.

    E no texto Dialética da natureza, 8 Engels escreveu no cap. XII: Apontamentos Dialética e Ciência…

    História
    Em posição contrária a essa opinião, está o determinismo, que se transferiu do materialismo francês para a ciência e que procura liquidar a casualidade, desconhecendo-a. Segundo essa concepção, na Natureza impera apenas a necessidade simples e direta… Que esta semente de dente de leão tenha germinado e a outra não; o fato de que, esta noite, às quatro da madrugada, uma pulga me tenha mordido e não às três ou cinco; e justamente do lado direito do ombro e não da barriga da perna esquerda: todos esses são fatos produzidos por uma irrevogável concatenação de causa e efeito, por uma irremovível necessidade e, certamente, de uma tal maneira que a esfera gasosa da qual se originou o sistema solar estava já constituída de forma que esses fatos teriam que se verificar assim e não de outro modo. A verdade é que, com essa espécie de necessidade, não nos libertamos da concepção teológica da Natureza [...]
    “As leis eternas da Natureza transformam-se, cada vez mais, em leis históricas. O fato de que a água se apresente no estado líquido entre 0˚ e 100º C é uma lei natural eterna, mas para que seja válida é necessário haver: 1) água; 2) determinada temperatura; 3) pressão normal. Na Lua não há água, no sol existem apenas seus elementos; para esses corpos celestes a lei, portanto, não existe
    .”

    Nesse mesmo texto, em sua Introdução, Engels deixa bem claro a relação dialética entre homens e sociedade, natureza e história: 9

    “Com os homens, entramos na história. […] Os homens, pelo contrário, quanto mais se afastam do animal, em sentido restrito, tanto mais fazem eles a sua própria história com consciência, tanto mais diminuta se torna a influência de efeitos imprevistos, de forças incontroladas, sobre esta história, tanto mais exatamente corresponde o resultado histórico ao objetivo previamente fixado. Se aplicarmos, porém, esta escala à história humana, mesmo dos povos mais desenvolvidos do presente, verificamos que aqui continua a existir uma desproporção colossal entre os objetivos previamente colocados e os resultados alcançados, que os efeitos imprevistos predominam, que as forças incontroladas são, de longe, mais poderosas do que as postas planificadamente em movimento. E isto não pode ser de outra maneira enquanto a atividade histórica mais essencial dos homens — aquela que os elevou da animalidade à humanidade, que forma a base material de todas as suas restantes atividades: a produção daquilo de que necessitam para viver, isto é, hoje em dia, a produção social — estiver, por maioria de razão, submetida ao jogo recíproco de efeitos inintencionais de forças incontroladas e só realizar o objetivo querido de maneira excepcional, e de longe mais frequentemente o seu preciso contrário. Nos países industriais mais avançados, domamos as forças da Natureza e compelimo-las ao serviço dos homens; com isso, multiplicamos a produção ao infinito, de tal modo que, agora, uma criança produz mais do que anteriormente cem adultos. E qual é a consequência? Trabalho excessivo crescente e miséria crescente das massas e, a cada dez anos, uma grande crise”.

    A confusão entre o pensamento de Engels e o da social democracia posterior e o stalinismo

    A maioria dos críticos de Engels esquece um fato: durante toda a vida de Marx e Engels, houve uma batalha de ambos contra as pressões que o partido social democrata alemão sofria e as reações de sua direção, nas quais ambos identificavam tendências a recuar no programa e na teoria.

    O Anti-Dühring só foi escrito porque as ideias de Dühring haviam causado impacto na própria direção do partido. Após sua morte, e combinado com um processo objetivo de aristocratização de setores da classe operária alemã (e em outros países imperialistas) e burocratização das direções sindicais vinculadas ao partido, o que terminou por levá-los ao abandono do programa comunista, à traição na Primeira Guerra em 1914, à substituição da teoria marxista por um evolucionismo, ou seja, a ideia de que naturalmente a sociedade capitalista evoluiria para o socialismo sem necessidade de rupturas revolucionárias. Kautsky, o mais importante teórico da social democracia foi o elaborador decisivo dessa nova teoria justificativa evolucionista que dava base ao reformismo. Bernstein, que o havia antecedido em 1899 e foi combatido por Rosa Luxemburgo (e naquele momento por Kautsky) foi derrotado dentro do partido. Mas, em 1914 ele e Kautsky juntaram-se nessa visão que era o oposto de Marx e de Engels. O oposto no programa e na teoria. Era a substituição da concepção materialista da história por um materialismo vulgar e evolucionista, que mais tarde foi adotado por Stalin e a burocracia russa quando assumiram o poder na URSS.

    Um dos textos que deu sustentação a essa concepção mecanicista é o Tratado de Materialismo Histórico de Bukarin, que tem o subtítulo de Ensaio de Sociologia Popular.

    Mas como Lenin sempre afirmou contra Kautsky, e depois Trotsky em seu combate à burocracia stalinista, essas concepções eram opostas às de Marx e Engels. Nos 200 anos de Engels, é fundamental o resgate de sua contribuição ao marxismo e a importância de sua elaboração, em conjunto com Marx, da concepção materialista da história para a armação programática da militância revolucionária nesse momento histórico em que as pressões do reformismo e do pós-modernismo, que pregam que nada está determinado e nada pode ser comprovado, são utilizados a todo momento.

    Nas palavras de Trotsky, em seu texto 90 anos do Manifesto Comunista, de 1937:

    “[…] A concepção materialista da história, formulada por Marx pouco tempo antes da aparição do texto e que nele se encontra aplicada com perfeita maestria, resistiu completamente à prova dos acontecimentos e aos golpes da crítica hostil. Constitui-se, atualmente, em um dos mais preciosos instrumentos do pensamento humano. Todas as outras interpretações do processo histórico perderam todo significado científico. Podemos afirmar, com segurança, que atualmente é impossível não apenas ser um militante revolucionário, mas simplesmente um observador politicamente instruído sem assimilar a concepção materialista da História.

    Notas

    1. Refere-se à Ideologia Alemã ↩︎
    2. Carta de Engels a Marx em Londres de 28 de Maio de 1876. ↩︎
    3. Este “sistema natural de um saber, precioso por si mesmo, para o espírito, “descobriu, com toda a certeza, sem transigir quanto à profundidade da ideia, as formas fundamentais do Ser”, Desde a sua “plataforma verdadeiramente crítica”, o Sr. Dühring nos apresenta os elementos de uma filosofia real, projetada, portanto, sobre a realidade da natureza e da vida, ante a qual não se mantém um só horizonte apenas aparente, mas se desenrola ante os nossos olhos surpreendidos, em suas potentes comoções, todas as terras e os céus da natureza exterior e interior; oferece-nos, pois, um novo método especulativo e seus frutos são “resultados e observações radicalmente novos…, ideias originais criadoras de sistema… verdades comprovadas.” Nela, temos “um trabalho que encontrará a raiz de sua força na iniciativa concentrada”… supondo-se que isso queira dizer alguma coisa; uma “investigação que desce até as raízes…, uma ciência radical…, uma concepção rigorosamente científica das coisas e dos homens…, um trabalho especulativo que penetra em todos os aspectos e modalidades das coisas…, um esboço criador das hipóteses e consequências domináveis pelo pensamento…o absolutamente fundamental.” Anti Dhuring, parte II, Paz e Terra, 1979, 2ª ed., pg. 25 ↩︎
    4. In http://www.scientific-socialism.de/FundamentosCartasMarxEngelsCapa.htm ↩︎
    5. “Sem admirar ou maldizer os fatos políticos, vendo‐os essencialmente, como em qualquer outra ciência, como simples temas de observações, a física social considera, portanto, cada fenômeno sob o duplo ponto de vista elementar de sua harmonia com os fenômenos coexistentes e desencadeamento como estado anterior e posterior do desenvolvimento humano” citado por Michael Lowy in As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Munchhausen, Cortez, São Paulo, 2003, 8ªed., p.24 ↩︎
    6. Anti-Dühring, Rio, Paz e Terra, 1979, pp. 23 e 24 ↩︎
    7. https://www.marxists.org/portugues/marx/1893/07/14.htm ↩︎
    8. Extraído de https://www.marxists.org/portugues/marx/1882/dialetica/06.htm. Dialética da Natureza, Parte XII ↩︎
    9. Idem. Introdução ↩︎

    Publicado em novembro de 2020 em www.litci.org/pt