Categoría: Cidadania e classe

  • O discurso da cidadania e a independência de classe

    O discurso da cidadania e a independência de classe

    O discurso da cidadania assumiu um gran­de alcance nos últimos vinte anos. Vem sendo empregado, com diversas conotações e para os mais diversos fins, por um amplo espectro de forças e correntes politicas. Surge como bandei­ra nos discursos de alguns dos setores mais reacionários da burguesia, de facções ditas «pro­gressistas» da classe média, sindicatos e corren­tes da classe trabalhadora e até mesmo partidos e movimentos que se reivindicam de esquerda.

    Por José Welmowicki

    Na Europa, é uma estratégia que caracteri­za o discurso de toda a esquerda, principalmen­te a social-democracia. E o discurso da maioria dos atuais governos europeus. No último con­gresso da Internacional Socialista, seu presiden­te então eleito, o português António Guterres ressaltou «a importância da iniciativa dos cidadãos no marco de uma sociedade solidária», e disse que o programa aprovado no congresso «responde sem complexos de forma a valorizar a cidadania». Segundo o presidente da Internacio­nal Socialista, o novo programa ideológico da organização «converte a pessoa no centro das preocupações de nossos países e governos». 1 

    Na Espanha, o discurso da cidadania assumiu uma tal Importância que inspirou inclusive o nome da recente chapa para as eleições europeias da Esquerda Unida: «Europa dos Cidadãos».

    Os movimentos ditos alternativos, como os verdes alemães, e aquele liderado pelo ex-líder estudantil Daniel Cohn-Bendit na França, usam e abusam da expressão: »A Europa se tornaria o espaço coletivo no qual os cidadãos partilha­riam os mesmos riscos«. «É neste sentido que falamos da ‘sociedade de risco’, que é uma forma de compromisso cidadão que apela à consciência crítica de cada um de nós para evi­tar ver a razão de mercado dominar todo modo de vida«.2

    Até mesmo em agrupamentos considerados de extrema-esquerda, como o Bloco de Esquer­da, em Portugal, a noção de cidadania impreg­na os discursos. O programa eleitoral do Bloco foi elaborado com base na interpretação da so­ciedade como composta de cidadãos e não de classes sociais3. Importantes dirigentes de cor­rentes que reivindicam o marxismo revolucionário, como Catherine Samary e Jaime Pastor, ligados ao Secretariado Unificado da IV Inter­nacional, propõem uma «estratégia socialista re­novada», baseada na colaboracão de movimen­tos de cidadãos de distintas origens (ecologis­tas, desempregados, feministas, etc.) que confor­mem redes europeias e internacionais 4.

    Na America Latina, a estratégia da cidada­nia também influencia diretamente a política de sindicatos, movimentos sociais e distintas cor­rentes politicas de esquerda, entre elas, o PT brasileiro, o EZLN de Chiapas e a FMLN de El Salvador.

    Mas o que é cidadania, segundo esse discurso politico? Seria a conquista dos di­reitos civis e sociais mínimos por parte dos cidadãos. Ao mesmo tempo, a concepção da ci­dadania implica que os cidadãos, além de di­reitos, têm deveres. A cidadania exige um com­promisso dos cidadãos com as leis vigentes, como a contrapartida da inclusão desses direitos na ordem legal. Exige, em nome da defesa da extensão desses direitos aos excluídos, uma defesa da ordem na qual se quer garantir a inclusão desses cidadãos.

    A sociedade teria de se comprometer em garantir a cidadania para a maioria dos seus habitantes e caberia aos movimentos sociais a luta para que ela fosse plena. As sociedades que mais se aproximariam do paradigma da cidadania plena seriam os países capitalistas avançados e alguns teóri­cos, como o alemão Jiiergen Habermas, propõem como meta estratégica a extensão do estado social a toda a União Europeia para que este sirva de exemplo ao mundo inteiro 5

    Mas, como chegar ao estágio de cidadania plena? Pela colaboração, negociação e diálogo entre os distintos setores sociais, e a promoção de políticas públicas tendentes a reduzir a desigualdade social. A palavra mágica é a parceria. Nos países dependentes, caberia aos movimentos sociais lu­tar pela conquista de seus direitos de cidadão, tomando como referência a democracia e a cidadania dita plena dos países capitalistas centrais. Para entender o alcance dessa teoria-programa, devemos entender a gênese e a evolução histórica da noção de cidadania.

    A origem do conceito político de cidadania 

    Na Grécia antiga, a cidadania tinha o significado de pertinência a polis. Aristóteles explica a formulação de cidadão presente na Constituição de Atenas, que formaliza a definição para a sociedade grega da época: o direi­to ou prerrogativa de participar das práticas deliberativas ou judiciárias da comunidade a que pertence. Ao mesmo tempo, nem todos tinham esse direito. A outorga da cidadania dependia de um exame seletivo, já que havia uma separação clara entre cidadãos e não-cidadãos (escravos e/ou estran­geiros): 

    «O estado atual do regime apresenta a seguinte conformação: participam da cidadania os  nascidos de pai e mae cidadãos, sendo inscritos entre os démotas 6 aos dezoito anos. Quando da inscrição, os démotas votam sob juramento a seu respeito: primeiro, se eles aparentam ter a idade legal (caso não aparentem, retornam à condição de meninos); segundo, se é homem, livre e de nascimento conforme as leis e, caso o rejeitem por não se tratar de homem livre, ele pode apelar para o tribunal, ao passo que os démotas encarregam da acusação cinco de seus membros; se for considerado que a inscrição é indevida, o Estado vende-o, mas se ele ganhar, os démotas ficam obrigados a inscrevê-lo.» 7

    Em alguns momentos na história de Atenas houve maior ou menor ampliação da condição de cidadania, por exemplo, estendendo-a a determinado número de estrangeiros. Eventualmente, alguns ex-escravos podiam obter a cidadania, mas, em geral, tanto os estrangeiros quanto os escravos não eram considerados cidadãos. Assim, a famosa «democracia» grega exis­tia de fato, mas apenas para uma parte da população. 

    A cidadania foi uma grande conquista para os gregos livres, mas às custas de uma enorme população escrava que lhes dava condição estrutural de subsistência. Mais ainda, nas repúblicas gregas em geral, a condição de cidadania era, praticamente, derivada da condição econômico-social de não-escravo. Havia diferenças sociais entre os ho­mens livres considerados cidadãos, muitas vezes tão grandes que causavam lutas sociais intensas.

    Mas as tensões existentes em uma socieda­de onde a maioria era escrava e a cidadania era privilégio de uma minoria estavam abertamente ligadas à questão da liberdade. O homem livre economicamente era também o homem livre politicamente. A principal separação econômico-social entre homens livres e escravos era clara e diretamente refletida na definição da condição de cidadania política, e não oculta, como mais tarde iria se manifestar com o advento do capitalismo, onde essa separação seria distinta no ‘homo economicus‘ e no homem político.

    Esse movimento esporádico de extensão do direito de cidadania não alterava o critério básico de definição da figura do cidadão, nem seu aspecto seletivo. Mas sempre as instituições democráticas incluíam os cidadãos e excluíam os demais habitantes da república. Apoiada no modo de produção escravista, essa sociedade, quando faz discriminações entre homens livres e escravos, e levanta a possibilidade de alguns serem vendidos e outros não, de fato exclui da cidadania a maioria de seus habitantes.

    O historiador inglês Perry Anderson, basea­do em diversas pesquisas sabre o tema, afirma que o número de escravos giraria em torno de 80 a 100 mil, contra cerca de 45 mil homens livres em Atenas no período de Péricles, no século V a. C. Ele cita o comentário de Aristóteles a respeito: “os estados estão obrigados a ter inúmeros escravos8 e como Xenofonte elaborara um pla­no para restaurar a riqueza de Atenas baseado em que “o Estado tivesse escravos públicos na proporção de um para cada cidadão ateniense”, Aristóteles resu­miu a divisão social de forma clara: «O estado perfeito jamais admitiria o trabalhador manual entre os cidadãos, porque a maioria deles são hoje escravos ou estrangeiros». 9

    O trabalhador manual – quem de fato ga­rantia o sustento da sociedade inteira – estava excluído da cidadania. O trabalho não dava di­reito a ela. 

    O conceito de cidadania para os primeiros teóricos do liberalismo 

    Já os teóricos da burguesia inglesa, aquela que primeiro ascendeu ao poder, formulavam com muita clareza seus conceitos de liberdade e de indivíduo, cuja finalidade era desenhar os alicerces da nova sociedade em construção. O médico e filósofo inglês do seculo XVII, John Locke, foi quem primeiro teorizou as mudanças introduzidas pela Revolução Gloriosa de 1688, 10 e transformou-as em um sistema de doutrina política coerente, um liberalismo político adequa­do aos interesses da burguesia ascendente. A base de sua teoria era o primado do indivíduo, do qual derivou sua visão do individualismo liberal; para justificá-la, identificava como direito natural o di­reito a propriedade:

    O homem, nascendo, conforme provamos, com di­reito à perfeita liberdade e gozo incontrolado de todos os direitos e privilégios da lei da natureza, por igual a qual­quer outro homem ou grupo de homens do mundo, tem por natureza o poder não só de preservar a sua proprie­dade – isto é, a vida, a liberdade e os bens(…) O grande e principal objetivo, portanto, da união dos ho­mens em comunidades, colocando-se eles sob governo, é a preservação da propriedade. Para este fim, faltam mui­tas condições no estado de natureza. Primeiro, falta uma lei estabelecida firmada, conhecida, recebida e aceita me­diante consentimento comum, como padrão do justo e injusto e medida comum para resolver quaisquer controvérsias entre os homens.11

    Para Locke, a liberdade só merece esse nome quando garante o direito à propriedade. É a prin­cipal finalidade das leis que mudam o estado do homem do “estado de natureza” primitivo para livre e uma sociedade que o preserve enquan­to proprietário. 12

    Essa concepção, que tinha na sua raiz a luta contra os privilégios feudais e a defesa da pro­priedade burguesa contra os ataques arbitrários dos reis e da nobreza, também delimitava os parâmetros de cidadania para a nova sociedade: se liberdade é, em última instância, o direito à propriedade, os homens livres são aqueles que detêm a propriedade. Daí é fácil deduzir a origem da concepção do voto censitário, o direito ao voto somente àqueles que têm um determinado rendimento ou propriedade. Essa concepção é a de uma sociedade baseada na preservação da propriedade privada e na presença de uma instância política de deliberação formada apenas por indivíduos (ou cidadãos) que têm acesso à determinada forma de proprie­dade ou riqueza (a própria burguesia). Ela marcará toda a fase de ascensão da burguesia. 13

    O primeiro grande teórico do liberalismo econômico, Adam Smith, em A Riqueza das Nações, já defendia os pressupostos necessários para o livre desenvolvimento do capitalismo. Se o pressuposto fundamental era a superexploração dos trabalhadores, uma das condições mais importantes para que isso pudesse ser feito era impedir qualquer organização da clas­se operária. Cabia a cada cidadão como indivíduo buscar sua melhor recompensa no mercado:

    As pessoas da mesma profissão raramente se reúnem, mesmo que seja para mo­mentos alegres e divertidos, mas as conversações terminam em uma conspiração contra o público, ou em algum incitamento para aumentar os preços. Efetivamente, é impossível evitar tais reuniões, por meio de leis que possam ser cumpridas e se coadunem com o espírito de liberdade e justiça. Todavia, embora a lei não possa impedir as pessoas da mesma ocupação de se reunirem às vezes, nada se deve fazer no sentido de facilitar tais reuniões e muito menos torná-las necessárias. (…) O que torna tais reuniões necessárias é um regulamento que possibilita aos membros de uma mesma profissão a se imporem taxas, para cuidar do sustento de seus pobres, seus doentes, órfãos e viúvas, inspirando em todos um interesse comum.14

    Para Adam Smith, a associação de classe é nefasta, pois é contrária à liberdade individual, cria obstáculos para a iniciativa privada e impede a livre concorrência. Ele era categoricamente contra qualquer associação da classe operária, pois, segundo sua concepção, isso aumentaria ‘artificial­mente’ o poder dos trabalhadores para exigirem melhores salários. Mas Smith reconhecia que os patrões faziam esse tipo de reuniões (proibidas para os operários) para tramar a redução dos salários de seus trabalhadores, ainda que de maneira oculta:

    Muitas vezes, porém, os trabalhadores reagem a tais conluios com suas associações defensivas; por vezes, sem serem provocados, os trabalhadores combinam entre si elevar o preço de seu trabalho. Seus pretextos usuais são, às vezes, os altos preços dos manti­mentos; por vezes, reclamam contra os altos lucros que os patrões auferem do trabalho deles. No intuito de resolver com rapidez o impasse, os trabalhadores sempre têm o recurso ao mais ruidoso clamor, e, às vezes, à violência mais atroz.15

    Assim, os direitos individuais, para os teóricos do liberalismo, deveri­am se restringir à liberdade de fazer contratos de trabalho de acordo com que dispusesse o mercado, onde os operários poderiam ‘livremente’ ven­der sua força de trabalho ao preço que o mercado estivesse disposto a pagar, sem nenhuma interferência estatal, nem normas corporativas como as que haviam vigorado nas cidades medievais. 16

    Para prevenir qualquer “violência atroz” por parte dos trabalhadores, o Estado deveria tomar providências, como aconteceu na Inglaterra durante seculo XIX, com as leis contra a vadiagem e a perseguição aos ludistas e aos sindicatos. Essa liberdade era apenas aparente, pois as duas par­tes que estabeleciam o contrato não eram iguais entre si: uns eram proprietários e outros só dis­punham de sua força de trabalho. Como parte da visão liberal, deveria haver um sistema jurídico que legitimasse essa sociedade e fosse cum­prido obrigatoriamente por todos, primando a figura da ‘igualdade jurídica’, ou seja, «todos são iguais perante a lei».

    Essa deveria ser a base para impor as resoluções da burguesia aos setores ‘sem proprieda­de’, mas sob a aparência de uma decisão neutra, em benefício de todos. Esse tipo de contrato era a forma de obrigar os despossuídos a aceitar os termos dos exploradores. A outra cara dessa igualdade formal era a necessidade de impedir que interesses de determinados grupos ou clas­ses se sobrepusessem aos pretensos interesses da comunidade/sociedade. Daí a conclusão es­sencial para a concepção burguesa: se todos eram iguais perante a lei, era vedado o direito de ‘impor à sociedade’ aquilo que não estivesse previs­to em lei ou que fosse contrário ao decidido pe­los juízes. 

    Cidadania e revolução burguesa

    A cidadania foi uma ideia revolucioná­ria para a grande luta que varreu o feuda­lismo da face da Europa Ocidental en­tre os seculos XVII e XIX. Significa­ já o fim das distinções de “sangue” e títulos. Traduzia em uma pala­vra a ideia radical de acabar corn os privilégios da nobre­za e do clero durante a Ida­de Média. O filósofo Jean-Jacques Rousseau foi um dos oponentes mais radicais à manutenção dos privilégios e do Antigo Re­gime. Denunciava que os homens estavam divididos entre ‘cidadãos’ e ‘súditos’. Os súditos eram aqueles que, desprovidos de qualquer título ou não sendo de família nobre, estavam por definição, desde seu nascimento, condenados a obedecer, a servir seus superiores, os nobres e os reis, o que era injusto, segundo Rousseau. Isso contrariava o direito do homem à liberdade. 

    Para ele, ao se promover a igualdade jurídica, todos deveriam se transformar em ‘cidadãos’. E nenhum homem deveria mais ser diferencia­do do outro por sua origem ou seus títulos.

    Mas a burguesia, que se aproveitou dessa ideia em sua luta contra a nobreza e a monar­quia, resistentes à mudança, manteve apenas a dimensão ‘jurídica’ da igualdade. Uma das referências históricas mais importantes do conceito de cidadania está no lema da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. No entanto, no desenrolar dessa Revolução, a burguesia buscou li­mitar a distribuição do poder, da liberda­de e da riqueza. 

    A primeira Constituição pós-revolução, a de 1791, aboliu efetivamente os títulos e os privilégios jurídicos da nobreza e o uso de brasões, além de liquidar as propriedades do clero. Essas mudanças dão a dimensão da revolução que destruiu a ordem feudal. Assegurou a igualdade formal de todos os cidadãos, e estes não podiam mais tomar outro nome que não o do chefe de família. Mas, na mesma Constituição, apareceram as limitações que a burguesia impunha à nova ordem devido a seus interesses de nova classe privilegiada: a divisão entre cidadãos ativos e passivos. Os primeiros tinham direito a votar e ser votados. Os segundos, de acordo com um critério de rendimentos, não poderiam fazê-lo. Assim, a pri­meira Constituição introduzia o voto, mas sob o critério censitário. To­dos eram juridicamente livres. Ninguém mais era servo de ninguém. Mas os ativos tinham direitos políticos e os passivos não, sempre conforme o critério de propriedade.

    Apesar disso, foram feitas reformas profundas, entre elas, o fim da propriedade nobiliárquica e eclesiástica, o direito de expressão e opinião. Porém, elas eram apresentadas como a realização final da liberdade e da cidadania. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, enquanto colocava no papel uma série de preceitos democráticos que marcari­am uma nova época na história francesa e mundial, eternizava o “inviolável direito à propriedade”. 17 Os direitos do cidadão paravam no limite sagra­do do direito individual a propriedade. Apesar da abolição dos privilégios da nobreza e do clero, continuava a haver uma profunda desigualdade social, que partia do antagonismo em relação à propriedade dos meios de produção. Enquanto uma grande maioria não tinha a posse dos mesmos, uma minoria, a burguesia, não só detinha seu monopólio, coma utilizava a força de trabalho dos despossuídos para garantir a produção de mercadorias e extrair lucro.

    Os trabalhadores e a cidadania 

    A demonstração concreta da concepção burguesa de sociedade, ape­sar das declarações em prol da igualdade e da liberdade, foram as leis que buscavam impedir qualquer tipo de instituição que pudesse reduzir ou cercear a livre exploração do operário. Na Inglaterra, quando surgiram as Trade Unions (os primeiros sindicatos) e as greves, estes foram considera­dos uma ameaça à ordem, à liberdade e à cidadania, e punidos severamen­te com penas de prisão e repressão estatal. A burguesia percebeu que a força do movimento operário, desde o início de sua aparição na história, residia em sua ação coletiva ou, como a chamavam no seculo XIX, o direito de coligação ou coalizão, que se materializou na organização das Trade Unions

    Em O Capital, Karl Marx narra coma a luta contra as Trade Unions, travada pela classe dominante inglesa no seculo XIX, foi permanente e determinada:

    As leis cruéis contra as coligações dos trabalhadores faram abolidas em 1825, frente à atitude amearadora do proletariado. Mas apenas em parte (…). Finalmente, a lei de 29 de junho de 1871 pretendeu e!iminar os todos os vestígios dessa legislação de classe com o reconhecimento legal das Trade Unions. Mas numa lei do Parlamento, da mesma data, destinada a modi­ftcar a legislação criminal na parte relativa a violências, ameaças e ofensas, restabelece na realidade a situação anterior sob nova forma. Com essa escamoteação parlamentar, os meios que podem ser utilizados pelos trahalhadores em caso de greve ou lock-out foram subtraídos ao domínio do direito comum e colocados sob uma legislação penal de exce­çao, a ser interpretada pelos próprios fabricantes, em sua qualidade de juízes de paz.18 

    Marx demonstrou como era fundamental para a burguesia deixar o trabalhador isolado e reduzi­do a um indivíduo obrigado a se defrontar com o capitalista como tal, sem a posse dos instrumentos de trabalho, enquanto o capitalista detinha o poder econômico e politico. A cidada­nia burguesa tinha de ser apenas a igual­dade formal entre os indivíduos, que se materializaria nos direitos civis e no direito de voto (após duras lutas, como as dos sans-culottes na França, e dos cartistas na Inglaterra). A burguesia também resistiu ao sufrágio universal antes e depois das revoluções burguesas. Só depois de 70 OU 80 anos, os operários do sexo masculino con­quistaram o sufrágio universal, que seria estendido às mulheres apenas no século XX.

    Com a derrubada da nobreza, o indivíduo passava a ser proprietário de si próprio, o que correspondia, para a imensa mai­oria da população, a ausência de proprieda­de ou, ainda, a separação entre o trabalha­dor e os meios de produção.

    Privado dos meios de produção, ao tra­balhador só restava um caminho: buscar seus direitos por meio da ação coletiva, a única esfera em que poderia se opor ao capitalista na disputa pelos frutos do traba­lho. Sua unidade para impor a ameaça da ausência da força de trabalho (a greve) e obrigar o capital a recuar, embora parci­almente, era sua única arma. Exatamente por isso, o capitalista opunha-se decididamente ao direito de coligação ou de coalizão, a possi­bilidade de associação operária que pudesse se con­trapor à força do capital. Contra essa possibilida­de, os capitalistas sempre impuseram leis contra a classe operária, justificadas em nome da liberdade individual.

    Tão necessária era essa imposição para a classe burguesa, que Marx denunciou-a em seus escritos sobre a própria Revolução Francesa:

    Logo no começo da tormenta revolucionária, a bur­guesia francesa teve a audácia de abolir o direito de associação dos trabalhadores, que acabara de ser conquistado. Com o decreto de 14 de junho de 1791, declarou toda coligação dos trabalhadores um atentado à liberdade e à declaração dos direitos do homem: a ser punido com a multa de 500 francos e a privação dos direitos de cidadania por um ano.19 

    Marx refere-se à lei Le Chapelier, promulgada justamente após uma greve de operários de Paris de diversos setores profissionais, que reivindicavam a redução da jornada de trabalho e aumento salarial. Eles haviam fundado “sociedades fraternais” para defender-se da exploração e sustentar suas reivindicações, o que alarmou a burguesia. Cabe notar que essa lei era tão importan­te para os interesses estratégicos da burguesia que ela se manteve inalterada durante 70 anos. 20 Marx ressalta os pontos da lei em que estão colocados os interesses estratégicos da burguesia e como eles são uma continuidade de leis anteriores:

    O artigo 1° dessa lei diz: “sendo uma das bases fundamentais da Constituição francesa a eliminação de todas as espécies de corporações da mesma classe e profissão, fica proibido restabelecê-las sob qualquer pretexto ou qualquer fim”. 0 artigo 4° declara que “se cidadãos da mesma profissão, arte ou ofício tomarem deliberações, fizerem convenções, com o fim de conjuntamente se recusarem a fornecer os serviços de sua indústria ou seus trabalhos, ou de só os fornecer a um preço determinado, essas deliberações e convenções serão declaradas inconstitucionais, atentatórias à liberdade e a declararão dos direitos do homem, etc.”; 21 crimes contra o estado, portanto, exatamente como já previam os velhos estatutos contra os traba­lhadores. 

    Mesmo em plena luta revolucionária contra o Antigo Regime, com todo o povo francês lutando a seu lado contra a nobreza, a burguesia preocupava-se em não deixar espaço para a organização independente da classe operária. A introdução da cidadania para a burguesia triunfante significava garantir a liberdade individual e, em particular, a ‘liberdade’ do trabalhador como indiví­duo, dono de si próprio, pronto para ser livremente explorado. Essa era a questão mais importante e devia ser colocada acima e contra qualquer tenta­tiva de união de classe. Liberdade de expressão, sim, até mesmo direito de voto, mas não liberdade de associação de classe para reivindicar direitos que acarretassem qualquer obstáculo ao livre arbítrio do capital.

    Chama a atenção a semelhança de pontos de vista nesse campo entre os dirigentes burgueses da França e os liberais da Inglaterra dos seculos XVII e XVIII. Um dos argumentos mais usados pela burguesia era a necessidade de acabar com os “privilégios corporativos”. Até hoje, os sucessores dos liberais do seculo XVIII ainda usam estes mesmos argumentos e a oposição entre liberda­de individual e direito de associação para justificar sua postura contra a livre associação dos trabalhadores. 22

    Marx e Engels e a ótica de classe do proletariado

    Para a burguesia, a conquista da cidadania era também um objetivo revolucionário e traçava os limites aos quais era necessário ater-se para assegurar a estabilização da nova sociedade. Seria necessário o crescimento e experiência de lutas do proletariado na Europa para que outra visão de mundo come­çasse a se consolidar.

    Os primeiros socialistas e dirigentes das primeiras lutas operárias, entre o final do século XVIII e começo do XIX, ainda ti­nham uma visão permeada pelas concepções burguesas derivadas do desenvolvi­mento insuficiente das for­mas capitalistas nesse período, sem ultrapassar os limites do li­beralismo. Foram Marx e Engels, a partir de seu intenso contato com o movimento operário nascente e sua ruptura com o hegelianismo, que co­meçaram a elaborar uma ciência política do ponto de vista do proletariado, uma visão assumidamente de classe. Am­bos percebiam, por baixo da igualdade jurídica da sociedade burguesa, as diferenças entre as classes sociais como o eixo fundamental na definição dos interesses distintos que se chocavam.

    Para Marx e Engels, os interesses das classes em disputa punham em lados opostos empresários e trabalhadores, e estes últimos teriam como maior arma a presença enquanto coletivo. Isso só seria possível conquistar numa guerra social implacável contra a burguesia, que teria o interes­se de evitar essa união e, para isso, além de repri­mir o movimento operário, trataria de ocultar sua situação de classe, as diferenças de interesses soci­ais que atravessam a sociedade capitalista. Em re­sumo, a noção de cidadania opõe-se à de identida­de de classe; existem propostas e interesses distin­tos por trás de cada uma delas. 23

    A separação – segundo Marx – entre a arena econômica, onde a oposição capitalista-operário aparece mais claramente, é a arena politica, onde impera a figura do cidadão, que não guarda nenhuma relação aparente com a esfe­ra econômica, e um traço fundamental da concepção de cidadania promovida pela burgue­sia ascendente. Cidadania passa a ser uma cate­goria abstrata, desligada da práxis real e dos confli­tos inerentes à sociedade capitalista, 24 e ignora os processos reais que se dão na esfera da produção e da sociedade, para falar de um homem abstrato. Portanto, joga um papel de cobertura ideológica, de capa para os conflitos de classe que atravessam a sociedade.

    Essa situação predominante na gênese da ci­dadania na sociedade capitalista europeia sofreu modificações, em particular com o advento do mo­vimento operário de massas a partir da metade do seculo XIX. O surgimento de pode­rosos movimentos sociais com identidade de clas­se na Europa Ocidental e depois em todo o mun­do, e as conquistas parciais que arrancaram dos capitalistas e governos após lutas encarniçadas, foram de tal monta que modificaram a situação e impuseram, entre outras questões, que fosse acei­to o direito de organização sindical, assim como a extensão do direito de voto aos operários.

    Desde as três ultimas décadas do seculo XIX e em todo o transcorrer do seculo XX, o cenário para o movimento operário da Europa Ocidental capitalista havia se modificado com as conquistas sociais, democráticas e trabalhistas arrancadas nos principais países europeus até a Primeira Guerra Mundial, entre elas a jornada de 8 horas, o reco­nhecimento dos sindicatos de massa, o direito de voto e a organização e legalização dos grandes partidos socialistas ou laboristas.

    A origem da versão moderna de cidadania

    A Primeira Guerra Mundial, se por um lado causou uma derrota e uma divisão nas fileiras do movimento operário internacional, por ou­tro, ao aproximar-se do final, despertou uma onda de revoluções sociais que causou um forte impacto no mundo inteiro. Essa onda revolucionária foi freada e os trabalhadores impedidos de chegar ao poder político, com exceção da própria URSS.

    Nos países capitalistas, era necessário, para a burguesia, canalizar o descontentamento social das massas, para que o regime pudesse voltar a se estabilizar na Europa e assegurar a recomposição dos estados capitalistas abalados pela guerra e os movimentos de massa em luta armada contra o nazi-fascismo. Aplicou-se então o Plano Marshall, a política de financia­mento direcionada aos novos governos europeus, com vistas a que pudes­sem reconstruir suas economias arrasadas e proceder às reformas sociais do assim chamado welfare state

    Um dos países que mais simbolizou essa política de estender direitos soci­ais aos setores operários atingidos pela crise e pela guerra foi a Inglaterra. Ao final da guerra, mesmo saindo vitoriosa do conflito, a Inglaterra sofria uma grande pressão social por parte dos trabalhadores. Após grandes sacrifícios, a classe operária inglesa sentia-se vitoriosa e reivindicava melhorias imediatas em seu padrão de vida. Um sintoma do estado de espírito reinante foi a derrota de Churchill, o condutor da guerra contra Hitler, na primeira eleição logo após o final da guerra, justamente para os laboristas, que propunham a introdução ou melhoria dos serviços públicos, dos direitos sociais e a intervenção estatal na economia para impulsionar a recuperação.

    O sociólogo T.H. Marshall, então, retoma a noção de cidadania. Tratava de dar conta da nova realidade criada pelas modificações impostas às relações sociais e politicas após um seculo de lutas operárias e populares, com a irrupção e extensão do movimento operário internacional durante o seculo XX e, em particular, a vitória contra o nazi-fascismo e as conguistas sociais que daí se seguiram. Marshall fez um esforço por adequar formulações anteriores sobre os direitos políticos e sociais à situação do capitalismo britânico do pós-guerra. Para isso, ressuscitou a bandeira da cidadania.

    Com o fim da Segunda Guerra, a burguesia viu-se obrigada a recorrer a medidas que em outros tempos seriam chamadas de ‘socialismo’ ou ‘intromissão’ do Estado na vida das pessoas, ao assumir os direitos sociais e serviços básicos, como educação, saúde e habitação. A concepção de cidadania deveria ter um verniz diferente; não podia basear-se na mesma visa que trazia desde o seculo XVIII, mas incluir os novos direitos sociais, mesmo que colocando os limites que sua adoção não deveria ultrapassar: as fronteiras da sociedade capitalista. Algumas das ideias de Marshall tiveram grande influência posterior na retomada da formulação de cidadania e para tentar compreender a evolução social a partir dela. Para isso, fez um histórico do desenvolvimento da cidadania moderna, divi­dindo-a em três partes: a civil (direitos individuais básicos), a política (participação no poder politico) e a social (bem-estar econômico e segurança). 25 

    Marshall considerava a aceitação pela burguesia da cidadania social fruto da própria evolução econômica, do interesse que a burguesia teria em aumentar a produção de bens de consumo e fortalecer o mercado interno, mesmo que para isso tivesse de enfrentar um maior poderio do movimento operário or­ganizado nos sindicatos. Ele insiste em que as medidas destinadas a elevar o nível de civilização dos trabalhadores não deveriam interferir no livre funcionamento do mercado. Na verda­de, a tese de Marshall é uma adaptação da concepção da cidadania burguesa clássica aos tem­pos do pós-guerra e do welfare state. Reflete um período em que as conquistas no terreno dos di­reitos sociais ampliaram-se e pareciam tender a uma generalização, e a burguesia europeia foi obri­gada a ceder aos trabalhadores para poder estabi­lizar os regimes políticos.

    Pietro Barcellona, em seu texto A estratégia improvável da cidadania, 26mostra que o centro da noção de cidadania em Marshall é atribuir a essa categoria um novo significado – de acesso dos membros da comunidade a direitos sociais básicos que permitam integrar os setores mais pobres à sociedade, dar-lhes um sentido de inclusão, à medida que no próprio status de cidadão estejam incorporados determinados di­reitos sociais e isso possa diminuir a desigualda­de social.

    Marshall tenta demonstrar que não haveria uma contradição entre uma política de universalização progressiva de direitos sociais e a lógica do sistema capitalista. E dava como per­manente algo que era imposto pela relação de forças daqueles anos. As conquistas não decor­riam de uma conversão das classes dominantes, mas uma adaptação aos tempos atípicos do pós-guerra. Se era compreensível que houvesse uma confusão quanto a isso entre 1950 e 1980 na Europa Ocidental, hoje, nos tempos do neoliberalismo, reaparece com toda a crueza a contradição entre uma ideia de progressiva cida­dania social cada vez mais estendida e a realida­de imposta pela lógica do mercado na sociedade capitalista.

    Para onde nos leva essa política?

    Qual é o problema de fundo que a concepção de cidadania omite? Que a sociedade é dividi­da em classes. Que existem cidadãos proprietários dos meios de produção e cidadãos despossuídos. Os interesses da maioria explo­rada não são os mesmos da minoria explora­dora. Os lucros de uns implicam na miséria de outros. Essa minoria continua governando por­que tem a seu favor o aparato de Estado, os governos, os congressos, as Forças Armadas; enquanto os trabalhadores, apesar de serem maio­ria, só contam com sua própria organização e consciência para reagir e lutar. Omitir essa oposição em nome de uma pretensa igualdade entre todos a ser atingida na sociedade atual desvia os explo­rados da busca da necessária unidade de classe para acabar com a exploração. E deixa-os à mercê do canto de sereia por uma saída conjunta com seus exploradores, sem radicalismos

    No movimento sindical, a ideologia da ci­dadania, em nome de ‘abrir o sindicato à soci­edade’, prega a colaboração entre trabalhadores e empresários; e a ideia do sindicato cidadão, que deveria participar lado a lado com os pa­trões na defesa do emprego, na luta contra a miséria, ou o analfabetismo. É o que vem fazen­do a direção da CUT brasileira, que há muito abandonou o discurso classista da década de 80 para adotar uma proposta de parcerias e progra­mas integrados de ‘inclusão social’. Exemplo dessa política foi o projeto conjunto (Travessia) entre o Sindicato dos Bancários de São Paulo e os banqueiros americanos do Bank of Boston, que se propuseram a trabalhar com meninos de rua para melhorar o problema da violência e da exclusão no centro de São Paulo. Essa política começa assim e culmina com a negociação per­manente, concretizada nos acordos tripartites entre as centrais, governos e empresários, im­postos aos trabalhadores, como fazem as cen­trais europeias e as câmaras setoriais.

    A real situação dos trabalhadores demons­tra, ao contrário, que para lutar por esses direi­tos mínimos, que qualquer cidadão mereceria ter, necessita-se uma organização independen­te dos trabalhadores contra a reação burgue­sa! Essa organização independente, política e sindical, pressupõe uma consciência de clas­se e uma ação classista. Do contrário, não se travará a luta.

    A batalha contra o neoliberalismo hoje exige uma luta de classes sem trégua. A estratégia da cidadania, que se propõe a defender os direitos conquistados sob esse nome, difunde a visão no interior do movimento operário de que seja possível uma melhoria para todos baseada na parceria, na ação conjunta de toda a sociedade. É a velha política da colaboração de classes com outra roupagem. O resultado é o que se vê na ação da social-democracia e centrais sindicais europeias, que nem sequer conseguem de­fender os direitos sociais remanescentes em base a essa estratégia.É uma dialética implacável. A cidadania, algo que se considera pleno e de toda a sociedade, só poderá ser realmente alcançada com uma política de classe, ou seja, de uma parte desse todo que aponta uma saída anticapitalista para o conjunto. A colaboração de classes, a defesa da união de todos pelo bem comum, a aceitação do poder estatal burguês travestido de Estado de Direito como único horizonte possível, além de utópica, não permite sequer a defesa consequente desses direitos. É como se todas as contradições do sistema capitalista-imperialista pudessem ser re­solvidas mediante a conscientização, as ações locais e o convencimento pelo diálogo. Seria fácil. Mas o capitalismo não deixa saída. A história da humanidade moderna continua sendo a história da luta de classes.

    Notas

    1. El Mundo, 10/11/1999 ↩︎
    2. Manifesto de Daniel Cohn Bendit. Por uma Terceira Esquerda Verde, Le Monde 26/2/2000. ↩︎
    3. Vide a proposta de Moção de Orientação apresentada pela Mesa Promotora do Bloco de Esquerda. ↩︎
    4. «As redes que incentivam as marchas contra o desemprego e a organização de conferên­cias intercidadãs como contraponto às conferên­cias intergovernamentais que constroem a Europa neoliberal, revelam uma resistência que está em construção… Mas teria então que adotar uma democracia individual e coletiva que permitisse aos cidadãos, homens e mulheres, e aos povos, o controle dos meios e fins dessa construção.» Samary, Catherine, «De las crisis de las sociedades realmen­te existentes a la uropía socialista» in Monereo, Manuel e Chaves, Pedro (orgs.). Para que el socialismo tenga futuro, El Viejo Topo, 1999, p.117. ↩︎
    5. Jüergen Habermas, «Nos Limites do Estado», artigo publicado na Folha de S. Paulo, caderno
      Mais, 18/07/1999. ↩︎
    6. Démota: membro do demo (tribo). ↩︎
    7. Aristóteles, A constituição de Atenas. SP, Hucitec, 1995, p. 87. ↩︎
    8. Perry Anderson, Transiciones de la Antiguedad al Feudalismo. México, Siglo XXI, 1996, p. 33. ↩︎
    9. Aristóteles, Política. Madrid, Espasa-Calpe, 1972, III, iii, p.2. ↩︎
    10. A Revolução Gloriosa de 1688 foi a que permitiu a ascensão da burguesia inglesa ao poder, desta vez de forma definitiva. ↩︎
    11. John Locke, «Formas de Governo». ln Wcffort, Francisco (org.). Clássicos da Política. São Paulo, Ática, p. 199. ↩︎
    12. Idem ↩︎
    13. «Agora, do lado capitalista, na propriedade revela-se o direito de apropriar-se de trabalho alheio não pago ou do seu produto, e, do lado do trabalhador, a impossibili­dade de apropriar-se do produto de seu trabalho. A dissociação entre proprie­dade e trabalho é consequ­ência necessária de uma lei que claramente derivava da identidade existente entre ambos.» (O Capital, Livro I, vol.2, SP, Difel, 1982, 8ª ed., p. 679). ↩︎
    14. A Riqueza das Nações, vol. 1. São Paulo, Abril Cultural, 1978, p.140. ↩︎
    15. Idem, ibidem, p.104. ↩︎
    16. Como a passagem do servo para o cidadão separa o homem ‘político’ do ‘econômico’. «No fêudalismo não havia uma definição clara entre poder econômico e político; a relação entre o senhor e o servo era indistintamente econômica e política: não existia uma diferença entre o status econômico e seu status político; a servidão impli­cava em uma inferioridade tanto econômica quanto política. So­mente no capitalismo surge uma diferença clara entre econômico e o político, o surgimento desta. diferença é parte integrante da mudança na forma de exploração. No feudalismo se explo­rava os trabalhadores numa estreita relação com o senhor, que exercia um domínio total sobre eles (…) Esta mudança na forma de exploração implica em mudanças fundamentais entre a classe exploradora e a classe explorada. A relaçãode exploração já não se estabelece através da servi­dão por toda a vida, senão através… da compra e venda de trabalho. O operário encontra-se ‘livre’. Esta liberdade implica que o explorador imediato não pode exercer a mesma coerção que o senhor feudal exercia sobre seus trabalhadores. Um capitalista não pode normalmente encarcerar seus operários nem condená-los à morte. No entanto, está claro que se necessita de fato coerção física em qualquer sociedade para manter a ‘ordem’, a ordem da classe dominante. Ao contrário das sociedades anteriores, esta coerção … encontra-se no capitalismo separa­da do processo imediato de exploração e se localiza em uma instância diferente: no Estado.» (…) Através de um longo pro­cesso histórico, o servo feudal converteu-se em dois personagens diferentes: por um lado, trabalhador assalariado; por outro, cidadão». Holloway, John. Marxismo, Estado y Capital. Buenos Aires, Cuadernos del Sur, 1994, pp.108-109. ↩︎
    17. «A livre comunicação dos pensamentos e opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo pelo abuso da liberdade, nos casos determinados pela lei.»(artigo 11). «E, finalmente, o direito mais importante para os constituintes, representantes da burguesia: o direito ‘à propriedade, direito inviolável’» Ostermann, Nilse Wink, Às armas, cidadãos! São Paulo, Atual Editora. 1995, p.49. ↩︎
    18. Karl Marx, O Capital, Livro 1, vol.2. São Paulo, Difel, 1982, p. 858. ↩︎
    19. Karl Marx, op. cit., p. 859. ↩︎
    20. Manfred, A. A Grande Revolução Francesa. 2″ edição, SP, Ícone Editorial, 1986, p. 96. Também descrito em Bernard Epin et alli. A Revolução Francesa: Ela inventou nossos sonhos. SP, Brasiliense, 1989, p.44. ↩︎
    21. Karl Marx, op. cit., p. 859. ↩︎
    22. Milton Friedman é claro: «Na área econômica, um problema importante surge a respeito do conflito entre a liberdade de se associar e a liberdade de competir. (…) Talvez o problema específico mais importante neste caso, diga respeito à associação de trabalhadores, onde o problema da liberdade de associar-se e da liberdade de competir apresenta-se de modo mais agudo.» Friedman, Milton. Capitalismo e liberdade. SP, Abril, 1984, p. 83. ↩︎
    23. «A ‘guerra permanente entre a burguesia e o proletariado’ é uma característica da sociedade capitalista moderna. Por isso, quando o operário desperta, em geral para lutar contra a exploração, ou melhor dito, contra os efeitos da exploração capitalista, como os baixos salários ou a extensão da jornada ou diferentes tipos de opressão (trabalho feminino, infantil, etc.); então, ele é obrigado a assumir movimentos coletivos, pois sozinho estará submetido aos desígnios do capital. A ação conjunta proletária é a reação contra a guerra social que lhe é movida, e necessariamente se enfrenta ao capital.» F. Engels, Prefácio de A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. SP, Paz e Terra. 1982, p.12 ↩︎
    24. «O homem real só é reconhecido sob a forma de indivíduo egoísta; o homem verdadeiro, apenas sob a forma de citoyen abstrato.» Marx denuncia, neste enunciado, que a burguesia quer limitar o homem, na sua vida cotidiana, àquele individuo isolado, que compete com os demais, e deixa a atividade política para o cidadão. Como cidadão, o homem torna-se público, passa a pensar no interesse coletivo, como se se pudesse separar um do outro.» Cf. «A Questão judaica«, ln Octavio Ianni, (org.). Marx-Sociologia, São Paulo, Ática, 1992, p. 196 ↩︎
    25. T. Marshall. Cidadania, Classe Social e status. R.J., Zahar Editores, 1967, p.63. ↩︎
    26. Pietro Barcellona, O egoísmo maduro e a insensatez do capital. São Paulo, Ícone Editorial, 1996. ↩︎

    Publicado em junho de 2000 na revista Marxismo Vivo.

  • Cidadania, democracia e sociedade civil, o retorno de Eduard Bernstein

    Cidadania, democracia e sociedade civil, o retorno de Eduard Bernstein

    A falência do modelo neoliberal, a crise do capitalismo global e o colapso do stalinismo nos últimos anos do século XX – e ainda mais neste início do século XXI – combinaram-se com o ascenso de poderosos movimentos de contestação antiglobalização e de trabalhadores, camponeses e indígenas contra as condições de vida impostas pelo neoliberalismo. Assim, gera-se uma efervescência política em relação a um programa alternativo ao capitalismo imperialista.

    Por José Welmowicki

    O Fórum Social Mundial é uma expressão dessa intensa busca por um projeto alternativo. No entanto, as propostas apresentadas por suas principais referências até agora se baseavam em teorias que buscavam reformar ou humanizar o capitalismo. Conceitos como “sociedade civil”, a conquista da “cidadania, democracia radical” passaram a substituir – dentro da elaboração de diversas correntes de esquerda – o conceito de luta de classes. A própria ideia de revolução socialista é rejeitada. Seu lema é “Outro mundo é possível”, sem definir qual é o caráter desse outro mundo nem como alcançá-lo. Algumas dessas correntes, que anteriormente se posicionavam como marxistas, propõem “atualizar o marximo» sob essas bandeiras. A característica mais geral é que rejeitam a revolução socialista e propõem-se a mudar o mundo por uma via reformista em nome da “justiça, do direito universal” e da transformação democrática do Estado. Propõem, como linha de orientação política, a “democracia participativa” ou “radical”, ou seja, a ampliação dos direitos e dos espaços democráticos do Estado burguês por meio de uma maior participação popular.

    Porém, seus autores sempre omitem a origem dessas ideias. Em geral, apresentam-nas como elaborações originais, como fruto das modificações da realidade, como a globalização, ou como fruto de uma reflexão, de um repensar da teoria socialista frente aos impasses pós-queda do muro de Berlim. Tentam se apresentar como uma saída renovadora, após o colapso do stalinismo. Correntes social-democratas, stalinistas, ex-stalinistas e até algumas que ainda se reivindicam do marxismo revolucionário atribuem a Lenin – ou a outros – os desastres dos chamados países socialistas e do stalinismo em geral e, assim, justificam suas posições cada vez mais defensoras da “sociedade democrática”.

    Ao apresentarem-se como formulados a partir de uma “nova estratégia socialista”, tentam ocultar sua dívida com pensadores e correntes de esquerda bastante anteriores, que em sua imensa maioria já haviam escrito posições semelhantes.

    A origem histórica do primeiro revisionismo

    Bernstein foi o primeiro teórico oriundo do movimento operário a elaborar uma revisão completa do marxismo, adaptada às perspectivas da burocracia sindical e política e da intelectualidade reformista, que já tinham grande influência no seio do Partido Social-Democrata alemão. Essa posição era minoritária entre os dirigentes do partido social-democrata no final do século XIX. Somente após a Primeira Guerra Mundial passou a dominar, teorica e politicamente, o partido. Por isso, Bernstein tentou, a princípio, apresentar suas ideias como uma atualização e correção parcial das posições de Marx e Engels, para aparecer como um seguidor crítico do marxismo – e não como alguém frontalmente contrário às suas posições. 1

    Essa primeira reação no seio do movimento operário e do marxismo – contrária às posições marxistas revolucionárias – incorporava a visão liberal-burguesa (sob outro nome) para justificar seu reformismo. Era, como não se cansava de afirmar em sua defesa, a expressão programática de uma prática, cada vez mais presente na intervenção política diária dos organismos do partido alemão, em uma época de luta por reformas que durou desde o último quarto do século XIX até o início do século XX e que acostumou o partido social-democrata à vida legal e às conquistas graduais. Seu encanto pela democracia burguesa provinha dessa expressão material, pela via reformista: sua renúncia a levantar antagonismos de classe, sua crença na moral e no possível idealismo desinteressado de todos os setores da sociedade. Em suma, sua aceitação da realidade da ordem burguesa vigente – do parlamento, do direito e da justiça burguesa – como horizonte e limite da prática e da luta social-democrata. Suas posições teóricas e programáticas assentavam-se numa inquestionável coerência com essa visão política de transformação gradual rumo a uma sociedade mais justa dentro da ordem vigente. Por isso, com razão, seus críticos no partido – em particular Rosa Luxemburgo – qualificavam-no de “revisionista” do marxismo.

    As principais posições de Bernstein: cidadania e emancipação de classe

    No principal texto de Bernstein, As premissas para o socialismo e as tarefas da social-democracia, 2 é sintomático como já aparece a luta “pela cidadania” como substituta da luta “pela emancipação do proletariado”. Uma característica de sua posição é negar a ideia de uma classe em nome de uma cidadania a ser alcançada: “A social-democracia não deseja aniquilar essa sociedade e fazer de todos os seus membros novos proletários; trabalha quase incessantemente para elevar o trabalhador, de uma posição social de proletário, à posição geral de cidadão e, assim, fazer da cidadania um direito universal”. Isso, segundo Bernstein, seria alcançado pela ampliação dos direitos dos setores desfavorecidos.

    A consequência política dessa posição era aceitar a ordem burguesa, pois, ao considerar a “cidadania” como o estado superior para todas as classes, significava aceitar a sociedade burguesa como a sociedade humana, como bem replicava Rosa Luxemburgo: “quando (Bernstein) usa a palavra cidadão, sem distinções, para se referir tanto ao burguês quanto ao proletário, querendo com isso referir-se ao homem em geral, identifica o homem em geral com o burguês e a sociedade humana com a sociedade burguesa”. 3

    Comparando com os atuais defensores da cidadania como estratégia, fica claro que a lógica é a mesma: nega-se o antagonismo de classe, nega-se a contradição estrutural entre burguesia e proletariado, para justificar a possibilidade de avançar em direção a uma sociedade justa sem romper com o capitalismo, sem expropriar os meios de produção, com a ampliação contínua dos direitos individuais e sociais. Assim como os atuais estrategistas da cidadania, em vez de derrotar a burguesia, Bernstein pensava em alcançar uma civilização superior sem destruir o capitalismo, que deveria ter uma construção independente e por cima das classes.

    Colocar a cidadania como horizonte superior exigia a aceitação de leis e procedimentos no interesse de todos, o que acabava conduzindo apenas à defesa da reforma da ordem vigente. Já discutimos em um artigo anterior 4 que também aqueles que defendem a cidadania planetária – como a ATTAC, um dos principais motores do Fórum Social Mundial – aplicam, em escala internacional, essa mesma lógica que identifica a cidadania em um país com a aceitação da ordem capitalista. Por isso, dirigem seus esforços para fazer da ONU um governo democrático mundial, assim como propõem que os estados mudem seu papel e adquiram mais força frente àqueles que manejam os mercados internacionais. 5

    A sociedade civil para Bernstein

    A visão de Bernstein sobre a sociedade civil tinha a mesma base teórica: a redução da sociedade a uma soma de indivíduos que podem se desenvolver de forma harmônica. Ele sustentava que todas as classes possuem um interesse comum na manutenção e no aperfeiçoamento dos valores civilizados, e que esse interesse comum seria o objetivo da atividade política.

    Para Bernstein, os valores da “sociedade civil desenvolvida” continham e transcendiam todos os interesses e pontos de vista setoriais, de classe. “A moralidade da ‘sociedade civil desenvolvida’ de forma alguma é idêntica à moralidade da burguesia”.

    Em Socialismo evolucionário, Bernstein chamava a atenção para o fato de que a palavra alemã “bürgerlich” significava tanto “civil” quanto “burguesa”, e que essa ambivalência linguística teria criado a falsa impressão de que, ao clamar pela abolição da sociedade burguesa, os socialistas também estariam exigindo o fim da sociedade “civil”.

    Os social-democratas de hoje costumam usar essa mesma referência:

    A sociedade civil que queremos criar é uma sociedade de liberdade e autodeterminação, de solidariedade e de justiça. Uma sociedade que não seja dominada por uma classe, mas que confere aos cidadãos soberanos sua independência e responsabilidade próprias”. Assim proclamava, em seu discurso, o presidente do Partido Social-Democrata (SPD) da Alemanha, o chanceler Gerhard Schröder, em comemoração ao 125º aniversário do “Congresso de Unificação” (Congresso de Ghota) dos Eisenachianos com os Lassalleanos, origem do moderno SPD. 6

    Bernstein e a democratização do Estado

    Para Bernstein, o Estado burguês moderno, democrático, era a concretização da civilização, dos interesses de todos os homens, desvinculado das lutas de classes. A democracia burguesa era associada à “ausência de governo de classe” – ou seja, um governo que podia e devia ser aperfeiçoado, mas sem romper suas regras básicas. O texto a seguir ilustra o pensamento bernsteiniano:

    «Esta pergunta envolve outra. O que é o princípio da democracia? A resposta parece muito simples. Para começar, pensar-se-ia ficar tudo acertado com a definição: ‘»‘governo pelo povo’. Mas mesmo uma pequena meditação logo nos diz que, por essa definição, apenas nos é dado um conceito muito superficial e puramente formal, enquanto a maioria das pessoas que hoje usam a palavra democracia a entendem por algo mais do que uma simples forma de governo. Estaremos muito mais próximos da definição se nos exprimirmos negativamente e considerarmos a democracia como uma ausência de governo de classes, como indicação de uma condição social onde um privilégio político não pertence a qualquer classe, em oposição à comunidade inteira.«

    «A idéia de democracia inclui, no conceito contemporâneo, uma noção de justiça – uma igualdade de direitos para todos os membros da comunidade e, nesse princípio, o governo da maioria, para o qual, em todos os casos concretos, a vontade da maioria se estende e encontra seus limites.«

    É claro que democracia e ausência de leis não são a mesma coisa. A democracia distingue-se de outros sistemas políticos não pela ausência de leis em si, mas pela ausência de leis que criem sanções ou limitem direitos individuais com base na propriedade, nascimento ou confissão religiosa. A democracia é tanto o meio quanto o fim. É uma arma de luta pelo socialismo e a forma pela qual o socialismo se realizará. É claro que ela não pode realizar milagres.7

    Para Bernstein, o socialismo era “o legítimo herdeiro do liberalismo”. Para ele, “Não existe hoje um pensamento realmente liberal que não pertença também aos elementos do ideário socialista”. Por isso, quando várias personalidades da esquerda de hoje defendem “a democracia como valor universal”, sem qualquer definição de classe, convém lembrar que Bernstein já tinha essa concepção muito clara em seu pensamento no final do século XIX.

    Rosa Luxemburgo contestou frontalmentre essa visão: “Quando (Bernstein) fala do caráter humano geral do liberalismo e transforma o socialismo em uma variante do liberalismo, priva o movimento socialista (em geral) de seu caráter de classe e, portanto, de seu conteúdo histórico; o corolário disso é que se reconhece na classe que representa historicamente o liberalismo – a burguesia -, a campeã dos interesses gerais da humanidade.8

    Para Bernstein, o Estado não era necessariamente – nem, em geral, deveria ser – o instrumento de dominação de classe. Era o meio pelo qual a barbárie e a desumanidade poderiam ser eliminadas, onde os princípios da civilização avançada poderiam ser impostos a todos os aspectos da vida pública. Essa expansão da civilização, para ele, deveria ser o objetivo último da social-democracia, embora admitisse, em última instância, que quando a classe operária era sistematicamente excluída da arena política, não teria outra opção senão a luta revolucionária. Mas, se e quando a democracia fosse alcançada e todas as classes pudessem participar dos direitos civis e políticos, então seria possível atender às reivindicações dos trabalhadores por meios políticos normais e estabelecer compromissos políticos com base no “interesse comum”. O primeiro objetivo do movimento socialista deveria, por isso, ser a democracia plena, e é significativo que Bernstein definisse a democracia como “a ausência de um governo de classe”. 9

    Essa concepção era contrária à essência da teoria marxista, que analisava tudo tendo como referência a dominação de classe e, no caso da sociedade capitalista, da dominação burguesa. Para Marx e Engels, todo Estado burguês – por mais democrático que fosse – correspondia a uma ditadura da burguesia. Lenin, em O Estado e a Revolução, deixava claro a necessidade de destruir a máquina estatal burguesa e revolucionar toda a superestrutura, construindo um Estado proletário, pela destituição e expropriação da burguesia, como demonstrado pela experiência da Comuna de Paris.

    A atualidade do revisionismo de Eduard Bernstein: a esquerda e a democratização do Estado

    A proposta de democratização do Estado é uma matriz de pensamento comum, atualmente, a uma gama de posições de esquerda que vão desde a social-democracia em todas as suas variantes (Terceira Via e outras) até o PC francês e o PT brasileiro, incluindo diversos ex-comunistas e setores que participam do FSM.

    Para sustentar essa posição, alguns teóricos trabalharam o tema da defesa de uma sociedade democrática em contraposição a todas as sociedades “totalitárias”. Ou seja, a diferença seria dada pelo regime político e não pela natureza de classe. Outros defendem o que chamam de revolução democrática, tentando reformular teoricamente a problemática da revolução socialista. Ambas as correntes incorporam formulações de Bernstein e suas consequências, influenciando, na mesma direção reformista, várias correntes da esquerda atual.

    Claude Lefort, ex-membro do antigo grupo Socialismo ou Barbarie, fundado por Castoriadis e outros ex-trotskistas dos anos 50, destacou-se por tentar fazer da crítica ao stalinismo um ponto de partida para negar o marxismo, buscando nele uma suposta raiz para o “totalitarismo”. Para isso, Lefort realiza uma leitura peculiar dos textos de Marx, nos quais define o Estado e os direitos burgueses, como na Questão Judaica, na Ideologia Alemã e outras obras.

    Depois de recriminar Marx por sua “desprezo aos direitos humanos”, Lefort defende a superioridade da “sociedade democrática”, onde, segundo ele, “haveria um espaço vazio no poder, sem ser ocupado por ninguém – nem classes nem partidos”.

    Ora minha convicção continua sendo a de que só teremos alguma oportunidade de apreciar o desenvolvimento da democracia e as oportunidades para a liberdade com a condição de reconhecer na instituição dos direitos do homem os sinais do nascimento de um novo tipo de legitimidade e de um espaço público no qual os indivíduos são tanto produtos quanto instigadores; com a condição de reconhecer, simultaneamente, que esse espaço só poderia ser devorado pelo Estado ao custo de uma violenta mutação que daria nascimento a uma nova forma de sociedade.” 10

    São os enunciados que sempre são tomados como alvo dos críticos dos direitos do homem, particularmente o mais virulento entre eles, Marx, que persegue todos os sinais do individualismo e do naturalismo para lhes atribuir uma função ideológica. Na liberdade de ação, na liberdade de opinião, garantidas a cada um, na segurança individual, Marx só demarca a instalação de um novo modelo que consagra ‘a separação do homem com o homem’ e, mais a fundo, ‘o egoísmo burguês’.11

    Lefort alega que Marx ignora a subversão das relações sociais e políticas encoberta pela representação dos direitos. Para ele, os direitos do homem suscitam uma nova rede de relações entre os homens, a sociedade democrática. Reivindica Tocqueville como precursor, que foi além nessa análise. Entre outros, Lefort influenciou Tarso Genro, atual prefeito de Porto Alegre e teórico – além de importante dirigente do PT brasileiro – de formulações – defensivas – da “sociedade democrática” e do Estado de Direito:

    «Abordarei o tema ‘instituições políticas do socialismo’ como instituições políticas de um Estado democrático de direito, que abram perspectivas para um projeto socialista democrático, e não como instituições de um Estado ‘totalmente outro’, para usar uma expressão de Claude Lefort. Faço isso porque acredito ser arriscado avançar mais do que isso. Diante da total inoperância dos sovietes, parece imprudente partir dessa instituição política da democracia direta para pensar um novo Estado. […] É necessário, pois, reinventar a democracia para repor a confiança da sociedade nas instituições políticas do Estado democrático»,

    Não se pode negar a clareza do posicionamento de Genro, que recusa o caminho dos sovietes (ou seja, de um Estado operário) para optar pela democratização radical do Estado burguês.

    Outros teóricos, como Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, defensores do que chamam de “revolução democrática” – na verdade outro nome para a democratização radical do Estado – tiveram grande influência na esquerda latino-americana, utilizando praticamente os mesmos argumentos.

    A discussão entre Mouffe e Laclau parte da questão do que eles chamam de “reducionismo de classe”. Em seu texto “Hegemonia e radicalização da democracia”, esses autores afirmam que:

    (…) “a alternativa da esquerda deve consistir em se posicionar plenamente no campo da revolução democrática (…). Do ponto de vista da determinação dos antagonismos fundamentais, o obstáculo básico tem sido, como vimos, o caráter de classe – ou seja, a ideia de que a classe operária representa o agente privilegiado no qual reside o impulso fundamental da mudança social...” 12

    A conclusão sobre a revolução democrática é que ela não é necessária no momento da tomada do poder, a não ser nos termos que Bernstein propunha (vide acima), ou seja, no caso de um regime em que a liberdade civil esteja comprometida; para Laclau e Chantal Mouffe, não se trata de uma revolução social contra o sistema capitalista de classes, pois isso seria, segundo eles, cair em uma visão reducionista. Seus autores preferem se posicionar no campo da democratização radical da sociedade, que nada mais é do que a ampliação dos direitos sociais e políticos, a reforma do Estado vigente – isto é, o aperfeiçoamento dentro dos marcos do Estado, desde que este seja democrático de direito.

    A importância de suas elaborações pode ser vista pela influência nas propostas da maioria do PT brasileiro, que estão explicitadas nas resoluções do primeiro Congresso, em 1991:

    Para o PT, o socialismo é sinônimo de radicalização da democracia. […] Por isso, encaramos a democracia política, econômica e social como a base constitutiva de nossa sociedade. O socialismo pelo qual o PT almeja prevê, portanto, a existência de um Estado de Direito no qual prevaleçam as mais amplas liberdades civis e políticas […]. Nossa perspectiva, entretanto, não se limita à democratização e à socialização da política apenas a partir do Estado. Nosso objetivo é construir, no socialismo, uma esfera pública na qual a ‘política’ não se restrinja às iniciativas estatais-institucionais,… na perspectiva de que a população se aproprie de funções hoje reservadas às esferas estatais-institucionais, exercendo em plenitude uma nova cidadania.” 13

    Reforma ou revolução? A atualidade da crítica de Rosa Luxemburgo

    Para Bernstein, revolução era sinônimo de “blanquismo” – no capítulo II, item b de seu livro Marxismo e Blanquismo, ele afirma:

    Na Alemanha, Marx e Engels, trabalhando sobre a base da dialética hegeliana, chegaram a uma doutrina muito semelhante ao blanquismo. 14 O herdeiro da burguesia só poderia ser sua contrapartida mais radical, o proletariado, esse produto intrínseco da economia burguesa. As exigências da vida econômica moderna eram totalmente desprezadas e a força relativa das classes e suas práticas de desenvolvimento eram completamente superestimadas. Ainda o terrorismo proletário – o qual, dado o estado das coisas na Alemanha, poderia apenas manifestar-se em forma destrutiva e, portanto, desde o primeiro dia em que estivessem atuando dessa forma especificada – contra a democracia burguesa.

    Bernstein esclarece que não se refere apenas ao aspecto de formar ligas secretas e buscar golpes rápidos para tomar o poder, típico do blanquismo.

    O blanquismo assemelha-se mais a uma teoria do que a um método; seu método, por outro lado, é simplesmente a conclusão, o resultado de uma determinada teoria implícita, bem mais profunda. E essa é simplesmente a teoria da potência inconmensuravelmente criativa da força política revolucionária e de sua manifestação, a expropriação revolucionária.15

    Mas, claro, isso é impossível. Para ele, a revolução operária está, por definição, associada a uma aventura ultraesquerdista, “destrutiva” por se confrontar com a democracia; segundo ele, a doutrina revolucionária despreza a situação real da economia moderna, o desenvolvimento das classes e, sobretudo, a democracia burguesa.

    A grande revolucionária Rosa Luxemburgo respondeu a essa posição em um texto que continua atual frente aos argumentos de seus herdeiros políticos:

    Bernstein, ao demonstrar a conquista do poder político como teoria blanquista da violência, tem a infelicidade de rotular como erro blanquista aquilo que sempre foi o pivô e a força motriz da história da humanidade. Desde a primeira aparição das sociedades de classes, com a luta de classes como conteúdo essencial de sua história, a conquista do poder político sempre foi o objetivo das classes em ascensão.16

    É por isso que a concepção da conquista de uma maioria parlamentar reformista é um cálculo de espírito tipicamente burguês liberal, que se ocupa apenas de um aspecto – o formal – da democracia, mas não considera o outro: seu verdadeiro conteúdo. Definitivamente, o parlamentarismo não é um elemento socialista que impregna gradualmente o conjunto da sociedade capitalista. Ao contrário, é uma forma específica do Estado de classe burguês, que ajuda a amadurecer e desenvolver os antagonismos existentes do capitalismo.17

    Entretanto, nesse aspecto, a ideia de revolução operária, socialista – tão clara em Marx e Engels e tão questionada há um século por Bernstein – sofre hoje ataques muito semelhantes por parte de correntes, dirigentes e intelectuais que se reivindicam marxistas ou socialistas. A moda atual é iniciar uma luta por valores, afirmando que qualquer confronto radical ou enfrentamento entre as classes é radicalismo que não leva a nada, apenas ao autoritarismo ou ao totalitarismo.

    Hoje, é comum ver diversos dirigentes, cientistas sociais, políticos ou filósofos alegarem que, em função das mudanças sociais e do avanço tecnológico, seria inviável qualquer projeto de revolução. Alguns, como Offe e Habermas, partem do “fim da sociedade do trabalho”; outros, dos novos sujeitos sociais para construir a “soberania popular descentralizada” ou ainda da utopia da razão. Mas todos têm em comum a negação, como autoritária e destrutiva, da revolução socialista.

    A visão idealista de Bernstein

    A última ideia que coroou a tentativa de Bernstein de esvaziar o marxismo de toda a sua força enquanto concepção de mundo – e que hoje possui inúmeros seguidores – é a visão do socialismo como ideia moral, e não como necessidade material. O socialismo enquanto realização moral, enquanto difusão de valores universais e atemporais, partia, para Bernstein, de sua recusa em aceitar a ideia de “objetivo final” como meta a serviço de uma classe. Embora nesse ponto ele não fosse propriamente original (basta lembrar os socialistas utópicos), também foi ele quem diferenciou e deixou um legado para todos seus sucessores reformistas: como buscar suavizar o antagonismo de classe com a burguesia e como apontar as “baterias” para os marxistas revolucionários, apelando à moral e aos valores eternos.

    Em uma citação publicada na Vorwärts, periódico social-democrata alemão, Bernstein dizia que via o objetivo final do socialismo não como um futuro estado de coisas, mas como um conjunto de princípios que regeria o cotidiano da atividade política no Partido18. A atividade política seria, segundo ele, regida por princípios atemporais que funcionavam como imperativos morais ao estilo kantiano: “o ponto de desenvolvimento econômico atingido hoje deixa aos fatores ideológicos e particularmente aos éticos um espaço bem maior para a atividade independente do que era o caso antes”; não por acaso ele fechava esse trabalho com um apelo por “um retorno a Kant”.

    Essa é a outra faceta do pensamento de Bernstein que exerce influência poderosa hoje no campo da esquerda. A ideia de conquistar uma sociedade justa pela propaganda dos valores da ética e da justiça.

    Habermas, renomado filósofo alemão – cuja influência se estende não só entre os verdes e social-democratas de seu país, mas também em âmbito mundial – defende a ação comunicativa e o diálogo racional entre todos os cidadãos como instrumentos na luta de classes, considerada obsoleta. Ele direciona seus esforços para buscar, através da filosofia política, um direito racional e normas éticas universais que permitam um exercício democrático renovado, livre das determinações impostas pelo poder econômico (ou de mercado) ou pelo Estado (poder administrativo).

    Para tanto, apela à participação e à liberação do “mundo da vida” (os homens comuns), supostamente mais imunes às intervenções do mercado e da burocracia, e que poderiam chegar a um “consenso racional”, como se fosse possível isolar essas esferas da organização capitalista da sociedade. O peso dado ao “diálogo” e à construção de uma ética superior, transmitida a todos a partir desse “consenso”, levou os seguidores de Habermas a se limitarem a uma luta pela ampliação do direito e dos valores éticos.

    Os ecos dessa posição chegam também ao outro lado do mundo, para aqueles que apelam à em sua militância à ética na política. José Genuino, presidente em exercício do PT (2002-2005), diz: “Ao contrário da pretensão universalista do neoliberalismo e do socialismo do passado,… o que deve ser universalizado são alguns valores, alguns objetivos e alguns direitos comuns a todos os seres humanos…”. Coerente com essa formulação, sua proposta para o Brasil resume-se a postular “a democracia republicana”. 19

    Podemos dizer que, se há alguma diferença entre esses reformistas de hoje e Bernstein, é que eles são ainda mais claros que ele em sua inspiração kantiana ou rousseuniana. A aposta em uma ética racional leva-os a intermináveis debates sobre um direito universal.

    Bernstein começou a elaborar as implicações idealistas de sua posição em Socialismo evolucionário. Não chegou a rejeitar completamente o materialismo nem se declarou um idealista. Mais tarde, em um ensaio intitulado O socialismo científico é possível?, Bernstein deixou clara sua posição. Após reiterar que a tese do “colapso do capitalismo” e, portanto, da necessidade histórica do socialismo é incapaz de ser comprovada cientificamente, ele foi além, afirmando que nenhum tema de pensamento é científico “quando seus objetivos e pressupostos incluem elementos que estão fora dos limites do conhecimento desinteressado” e que o socialismo é um sistema de pensamento que contém justamente esses elementos – ou seja, um conjunto de objetivos que não expressam os resultados de uma investigação científica, mas os interesses da classe operária. A ciência, sendo mera cognição, não poderia mover os homens para a ação; e, por essa razão, o socialismo, como um movimento que tem objetivos a ser conquistados – um movimento rumo ao que deveria ser – não poderia ser científico. 20

    Rosa Luxemburgo contestou, argumentando que, para os socialistas, a ciência seria uma questão de demonstrar o que é “objetivamente necessário” no sentido histórico, e que a atividade prática era científica na medida em que fosse guiada pelo reconhecimento da necessidade objetiva, em oposição a qualquer ideia preconcebida do que deveria ser.

    Bernstein não gosta que se fale de uma ‘ciência do partido’, ou mais precisamente, de uma ciência de uma classe, assim como não quer que se fale do liberalismo de uma classe ou da moral de uma classe. Ele acredita conseguir expressar a ciência humana em geral, abstrata, o liberalismo abstrato, a moral abstrata. No entanto, dado que a sociedade é composta por classes que possuem aspirações e concepções diametralmente opostas, uma ciência humana em geral, um liberalismo abstrato, uma moral abstrata, são, na realidade, ilusões, pura utopia. A ciência, a democracia, a moral – que Bernstein considera gerais, humanas – são, na verdade, nada mais que a ciência, a democracia e a moral dominantes, ou seja, burguesas.21

    Ela acrescentava que, segundo Bernstein, a consciência de classe do proletariado deixaria de ser “um simples reflexo intelectual das contradições crescentes do capitalismo e de seu declínio progressivo” e, ao invés disso, passaria a ser “apenas um ideal cuja força persuasiva reside unicamente nas imperfeições a ele atribuídas”. Não bastava ao proletariado reconhecer que, medido por certos princípios éticos, o sistema capitalista é defeituoso. Portanto, ao ver o socialismo não como uma necessidade histórica, mas como uma condição de compromisso moral, Bernstein teria “oferecido uma explicação idealista do socialismo”.

    Ele respondeu: “Eu, francamente, admito que tenho muito pouca inclinação ou interesse pelo que geralmente se chama ‘objetivo final do socialismo’. Esse objetivo, independentemente do que seja, não significa nada para mim; o movimento é tudo”. 22 Bernstein, com essa frase, desprezava a noção essencial para os marxistas, que é um programa revolucionário e uma estratégia de classe que deveria dar sentido a toda a prática política e às táticas que o partido adotaria. Ao priorizar os objetivos imediatos, perder-se-ia a perspectiva histórica e a própria razão de ser do partido socialista revolucionário, transformando-o num movimento por pequenas conquistas, devido à integração na ordem vigente. O destino potencial da social-democracia é a maior prova dessa contradição da qual não se pode escapar.

    Bernstein e a colonização: a posição frente ao imperialismo

    Outra questão na qual Bernstein tentou se justificar teoricamente na esquerda para a adaptação ao capitalismo europeu foi sua posição em relação ao imperialismo, sobre a questão colonial. Os parágrafos seguintes são extraídos de seu artigo publicado em 1900, “O socialismo e a questão colonial”:

    Medindo-se com esse padrão, a cultura superior possui sempre em face da cultura inferior, sob condições iguais, em circunstâncias diversas, o Direito incondicional do seu lado, em verdade, possui o dever de subjugar a cultura inferior.

    Não se pode conceder a nenhuma tribo, a nenhum povo, a nenhuma raça, o direito incondicional a qualquer parte de terra habitada. A terra não pertence a nenhum mortal. Ela é propriedade e herança do conjunto da humanidade.

    «Tão interessados quanto possam ser os representantes das culturas inferiores, originários, pelos etnólogos, não hesitará o sociólogo, por nenhum instante, em declarar como sendo necessária e justa, em sentido histórico mundial, sua perda de terreno em face dos representantes das culturas superiores.23

    Como se vê, já aparece nitidamente a ideia do direito de uma cultura “superior” dispor das riquezas e do território das “inferiores”. A comparação com os social-democratas de hoje é gritante. E não apenas com as correntes que estão no governo, mas com uma gama de posições chamadas de esquerda.

    Habermas, bastante ouvido pelos social-democratas e verdes alemães, promoveu uma campanha em defesa do Patriotismo Constitucional – orientação que ele já havia defendido na época da Guerra na ex-Iugoslávia, justificando sua posição a favor da intervenção militar do imperialismo quando se tratava de enfrentar “nações desprovidas de Direito Constitucional e liberdades fundamentais”.

    “Naturalmente, os EUA e os Estados-membros da União Europeia, que possuem responsabilidade política, partem de uma posição comum. Após o fracasso das negociações de Rambouillet, eles executam a ação punitiva militar contra a Iugoslávia com o objetivo declarado de impor regulamentações liberais para a autonomia de Kosovo, no interior da Sérvia. No âmbito do Direito Internacional Público clássico, esse ato seria visto como intromissão nos negócios internos de um Estado soberano – isto é, enquanto violação da interdição de intervenção. Sob as premissas da política de Direitos Humanos, essa ingerência deve ser entendida como uma missão armada que gera, porém, por obra da comunidade dos povos (tacitamente, também sem um mandato da ONU) – a paz autorizada.24

    Segundo essa interpretação ocidental, a Guerra de Kosovo poderia significar um salto do Direito Internacional Público clássico para o Direito Cosmopolita de uma sociedade civil mundial.

    Apesar de Habermas concentrar sua utopia na busca de uma compreensão comum e de uma ética universal, isso não o impede, em caso de guerra – e, portanto, de “necessidade imperativa” – de disputar com os europeus burgueses a necessidade de violar a soberania de países periféricos em nome da ética racional e do direito cosmopolita de uma sociedade civil mundial, da futura “Sociedade de Cidadãos do Mundo” (?!), ou do “patriotismo constitucional”, o qual hoje se apresenta e é exercido, claramente, pela vontade de um punhado de grandes potências imperialistas.

    Seu raciocínio é, evidentemente, muito semelhante às elucubrações de Bernstein sobre a cultura superior. Quem define o que é a “cultura superior” ou onde reside o “direito internacional da sociedade civil dos cidadãos do mundo” é o G-7, ou o governo dos EUA. O mesmo argumento pode ser usado hoje contra o Afeganistão ou qualquer inimigo do imperialismo, considerado o guardião da civilização e dos “valores” ocidentais. Ou, se usássemos os argumentos de Bernstein, é progressista, onde prevalece uma cultura «inferior’, que se imponha a vontade dos “civilizados” e “superiores” europeus.

    Civilização ou barbárie: o caráter benigno da colonização para os social-democratas

    Nesse mesmo texto sobre as colônias, Bernstein defende uma ideia muito cara aos “humanitários” de hoje, mas que havia sido antecipada por alguns representantes do liberalismo burguês.

    Tocqueville, o liberal burguês que é o ídolo de alguns desses teóricos, como Lefort, alertava seus compatriotas, já no século XIX, sobre o perigo de provocar entre os árabes a ilusão ou a pretensão de que poderiam ser tratados “como se fossem nossos concidadãos ou nossos iguais”. A ideia de igualdade entre os homens não poderia se estender ao ponto de incluir os “povos semicivilizados”.

    Em uma carta, antecipando de forma notável o discurso do imperialismo na guerra atual contra o Afeganistão, Tocqueville escrevia: “a recaída da Índia na barbárie seria desastrosa para o futuro da civilização e para o progresso da humanidade”. Por isso, depositava sua esperança em uma repressão eficaz por parte dos ingleses, o império hegemônico da época: “hoje em dia quase nada é impossível para a nação inglesa, se ela empregar todos os seus recursos”. 25

    Também hoje, quando social-democratas como Blair, Jospin ou Schröder apoiam o lado da “civilização contra a barbárie”, como o ataque norte-americano ao Afeganistão em nome do “direito à legítima defesa” de Bush; quando os “pacifistas” Verdes da Alemanha servem de embaixadores imperiais, como orgulhosamente fez o ministro Joschka Fischer, para negociar com os países vizinhos como fechar o cerco ao Afeganistão; quando o PDS de D’Alema, na Itália, apoia a intervenção dos EUA e mesmo assim quer aparecer como pacifista, podemos constatar que o cinismo defensor da colonização e a postura pró-imperialista de Bernstein têm inúmeros herdeiros, um século depois, entre aqueles que se dizem de esquerda, socialistas ou comunistas.

    As consequências do reformismo, ontem e hoje

    A verdade é que os resultados práticos da posição reformista não ajudam a defender a posição bernsteiniana e de seus sucessores envergonhados. Em primeiro lugar, o reformismo desorienta a classe em sua luta contra a burguesia, alimenta a crença nas instituições; em vez da desconfiança e da intransigência classista; faz a classe acreditar em uma via pacífica e gradual a cujos fracassos se segue uma desmoralização política quando a utopia se mostra inviável. Recordemos o processo da luta de classes alemã e europeia quando a Primeira Guerra Mundial estourou. A divisão instalou-se entre os trabalhadores por culpa da direção social-democrata, justamente quando mais necessitavam de sua unidade internacionalista.

    Mas o problema assume contornos ainda mais graves quando os governantes sociais democratas e todas as demais variantes reformistas, coerentes com essa concepção, assumem a gestão do Estado burguês para “democratizá-lo” e acabam por defendê-lo, bem como a ordem que propõem reformar. Os reformistas, como Bernstein, alertam contra o perigo de uma “revolução prematura”. Aconselhavam o caminho “mais lento e seguro” das reformas graduais. E aqueles que querem revolucionar esse Estado, destruir a ordem burguesa – os marxistas revolucionários – acabam sendo tratados por eles como “inimigos da democracia”. O assassinato de Rosa Luxemburgo, perpetrado sob um governo social-democrata durante o processo revolucionário que explodiu na Alemanha ao final da I Guerra Mundial, foi a dramática expressão dessa lógica infernal da posição reformista e de seu antagonismo em relação à revolução.

    O papel dos atuais governos social-democratas e laboristas na Europa; dos defensores destacados da reconversão econômica em seus países para adaptá-los às diretrizes de Maastricht – a antiga coalizão de L’Olivo na Itália com o PDS, o Partido Comunista Italiano, à frente da aliança em defesa dos planos econômicos “para implantar o euro” e da diminuição do Estado -; dos governos estaduais e municipais do PT brasileiro com sua aplicação da política do FMI em nome do cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, são expressões dessa concepção. Seu posicionamento leva-os a confrontar as aspirações dos movimentos de massa e, consequentemente, a recorrer a políticas de austeridade para defender a ordem em nome da democracia. É a demonstração do vínculo entre teoria, programa e política.

    Porém, a realidade da ofensiva imperialista colonizadora, inerente à chamada globalização, coloca a questão do reformismo não somente diante da opção de estar ou não a favor da democratização do Estado nacional, mas também de estar a favor da destruição ou da reforma do imperialismo, das instituições internacionais e de uma articulação europeia em contraposição aos EUA: posicionam-se como a alternativa dos cidadãos contra os mercados. Essa corrente diferencia-se dos desgastados governos da Terceira Via e inclui setores críticos da social-democracia, como o ex-ministro das Finanças e da Fazenda do primeiro governo Schröder, Oskar Lafontaine, ONGs, a ATTAC, o jornal Le Monde Diplomatique e correntes oriundas do trotsquismo e do marxismo revolucionário, que têm em comum a proposta de uma maior regulação do fluxo de capitais (a Taxa Tobin), o fim dos paraísos fiscais e do segredo bancário (proposta que até George W. Bush defende atualmente como medida contra os grupos terroristas).

    Lafontaine propõe que a Europa reforce seus laços e “utilize seu poder frente à Wall Street”. E que a ONU adquira mais vigor na hora de aplicar os direitos humanos. 26 Essa corrente contrapõe a atuação conjunta da ONU à ação isolada dos EUA. Mas não conseguem sair dos tópicos já batidos das medidas relacionadas à ordem financeira, à ampliação das prerrogativas da ONU e à reforma das atuais instituições internacionais. Para eles,é possível que o imperialismo europeu tenha uma postura mais “social” ou “progressista” do que o norte-americano.

    Hoje, ser reformista implica não só aceitar o status quo em seu país, mas, em nome de uma mudança gradual, aceitar na prática a ordem imperialista. Esse neorreformismo termina por desarmar os movimentos que se radicalizam contra o imperialismo, ao optar por um caminho propositivo de criação de “espaços democráticos no mundo”, ou seja, por reformas “viáveis” dentro do capitalismo globalizado. Por isso, como evidencia a guerra contra o Afeganistão, o século XXI começou com uma disjuntiva para a esquerda: reforma da ordem imperialista ou revolução mundial.


    NOTAS

    1. Para fortalecer suas posições, Bernstein utilizava o papel de executor testamentário das obras de Engels, posto que dividiu com outro grande dirigente e teórico do SPD, Kautsky. Apesar de alguns momentos e posições ocasionalmente mais principistas – como o voto contra os créditos de guerra em 1915 – ele foi a primeira grande referência teórica e programática para aqueles que, dentro do movimento operário, abandonavam os princípios essenciais do marxismo. Seu apogeu como teórico da social-democracia ocorreu no Congresso de Giirlitzer, em 1921, quando foi um dos redatores e inspiradores do programa votado que rompeu totalmente com o marxismo revolucionário e tornou o partido num partido abertamente reformista, que até hoje serve de referência ao SPD alemão. ↩︎
    2. Esse foi o título do trabalho mais ambicioso de Bernstein (publicado no Brasil com o nome Socialismo evolucionário, pela Jorge Zahar Editor), escrito em resposta às críticas de militantes e dirigentes a seus artigos na imprensa, publicado pela primeira vez em 1899. Dele extraímos a maior parte das citações aqui utilizadas, na edição inglesa de Henry Tudor, Preconditions of Socialism, Cambridge, 1996. ↩︎
    3. Rosa Luxemburgo enfrentou essa questão em “Reforma o revolución – Obras escogidas”, Tomo. I. Bogotá: Pluma, 1979, p. 137 ↩︎
    4. Welmowicki, José. «Fórum Social Mundial: morte ao capitalismo ou capitalismo cidadão?» em Marxismo Vivo N. 3, (maio de 2001), p. 14 ↩︎
    5. Recentemente, o ex-ministro alemão Lafontaine esteve presente em um congresso da ATTAC para apoiar a proposta da entidade: “O ex-ministro das Finanças e da Fazenda do primeiro governo Schröder pediu uma maior regulação do tráfego de capitais, o que agora, curiosamente, George W. Bush defende como medida contra os grupos terroristas. ‘Reclamamos o fim dos paraísos fiscais e do segredo bancário, que só favorecem quem quer evadir impostos’, explicou Lafontaine. Ele instou a Europa a reforçar seus laços e a utilizar seu poder frente à Wall Street. O ex-líder social-democrata também se referiu à necessidade de que a ONU adquira mais vigor na aplicação dos direitos humanos. ‘É preciso criar as condições sociais e econômicas adequadas para a paz, não só autorizar a guerra’, ressaltou Lafontaine. Após o 11 de setembro, Lafontaine destacou que fica mais claro que ‘a mais desigualdade, mais violência e mais terrorismo’, daí a necessidade do trabalho de movimentos como a Attac, que o ex-ministro alemão apoia.” Fonte: El País, 23/10/01 ↩︎
    6. In: http://www.spd.de/events/congress/ ↩︎
    7. Bernstein, “Preconditions”, p. 141. ↩︎
    8. Luxemburgo, R., op. cit., p. 136. ↩︎
    9. “Em princípio, a democracia é a abolição do governo de classe, embora ela não seja em si a abolição das classes”, p. 143. ↩︎
    10. Lefort, Claude. Pensando o Político, p. 47, idem, p. 49. ↩︎
    11. Idem, p. 49 ↩︎
    12. “Laclau, Ernesto, MOUFFE, Chantal. In Hegemonía y estratégia socialista. Madrid: Siglo XXI, 1987.” ↩︎
    13. “Partido dos Trabalhadores: Resoluções, Encontros, Congressos. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 1998.” ↩︎
    14. Blanquismo era o nome de uma corrente que defendia a tomada do poder pelos operários oprimidos através de um golpe conduzido por uma minoria selecionada de revolucionários bem preparados, posição sempre criticada por Marx em seus escritos. Seu nome deve-se ao revolucionário francês Louis Blanqui, que teve papel destacado nas revoluções de 1830, 1848 e na Comuna de de Paris, em 1871. ↩︎
    15. Bernstein, L. Preconditions…, p. 38. ↩︎
    16. Luxemburgo, Rosa, op. cit., p. 123. ↩︎
    17. Idem, p. 90. ↩︎
    18. Tudor, H. and Tudor, Introduction to Preconditions of Socialism. Cambridge, 1996, p. xxx. ↩︎
    19. Este foi o título da Tese da corrente de Genoíno ao II Congresso do PT. ↩︎
    20. Tudor, H. and Tudor, p. xxxiv ↩︎
    21. Luxemburgo, op. cit., p. 135. ↩︎
    22. Tudor, H. and Tudor, p. xxviii ↩︎
    23. “Bernstein, El Socialismo e as Colônias, tradução de Emil von Munchen, Instituto José Luiz & Rosa Sunderman.” ↩︎
    24. Habermas, J. Brutalidade e Humanidade. Uma guerra entre o direito e a moral. 1999, tradução de Emil von Munchen, Instituto José Luiz & Rosa Sunderman. ↩︎
    25. Idem, p. 28. ↩︎
    26. El País, 23/10,2001 ↩︎

    Publicado em dezembro de 2001 na revista Marxismo Vivo N. 4

  • A negação do trabalho e do proletariado: as raízes do elitismo em Hannah Arendt

    A negação do trabalho e do proletariado: as raízes do elitismo em Hannah Arendt

    A importância do pensamento de Hannah Arendt para as elaborações sobre espaço público e democracia tem sido destacada a partir de sua conhecida crítica ao totalitarismo. A obra de Arendt influencia a esquerda brasileira desde os anos 90 nas formulações sobre cidadania, Estado e democracia. De seus trabalhos, distintos pensadores extraem e saúdam o privilégio ao político, colocado em uma esfera acima e isolada da esfera do trabalho e da sociedade. Autores de origens diversas como Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, Cornelius Castoriadis e Claude Lefort, ou ainda Jürgen Habermas; no Brasil os que defendem a cidadania como alternativa, como Vera Telles, entre outros, inspiram-se na visão de Arendt. Em geral, ainda que de distintos ângulos, enfatizam sua contribuição como uma redescoberta da liberdade e da democracia pluralista.

    Por José Welmowicki

    No entanto, uma pesquisa mais profunda e crítica demonstra o sentido elitista de seu arcabouço teórico. Um viés aristocrático, cuja base está em sua negação do papel do trabalho, condiciona o pensamento da autora. Aqui discutiremos a partir do livro A Condição Humana, que ela considerava ser seu texto filosófico mais desenvolvido. Nele, a autora inquieta-se com a transformação da sociedade moderna em sociedade operária e sonha com uma sociedade que possa ser verdadeiramente humana, uma vez que privilegie a ação e o discurso, que consigam se elevar acima do homem comum para realizar a atividade humana mais nobre, a política (ação):

    «Mas isto é assim apenas na aparência.  A era moderna trouxe consigo a glorificação teórica do trabalho e resultou na transformação efetiva da sociedade em uma sociedade operária. Assim, a realização do desejo, como sucede nos contos de fadas, chegou num instante em que só pode ser contraproducente. A sociedade que está para ser libertada dos grilhões do trabalho é uma sociedade de trabalhadores, uma sociedade que já não conhece aquelas outras atividades superiores e mais importantes em benefício das quais valeria a pena conquistar essa liberdade. Dentro dessa sociedade, que é igualitária porque é próprio do trabalho nivelar os homens, já não existem classes nem uma aristocracia de natureza política ou espiritual da qual pudesse ressurgir a restauração das outras capacidades do homem. Até mesmo presidentes, reis e primeiros-ministros concebem seus cargos como tarefas necessárias à vida da sociedade.» (Arendt, 1997, pp. 12-13, grifos nossos)

    Esta citação serve para avançar uma questão sobre a natureza da filosofia política de Arendt: sua visão do trabalho sustenta uma concepção política excludente. Para ela o labor equaliza e rebaixa a atividade humana, o que dá o embasamento teórico para uma posição que despreza a participação social e coletiva, típica do movimento dos trabalhadores.  Sua defesa da política é desde um ponto de vista individualista, que, portanto, recusa uma visão realmente emancipadora da humanidade.

    A concepção negativa de Arendt sobre o trabalho e o labor

    Arendt trabalha com 3 categorias da atividade humana, labortrabalho e ação. Ao optar por essa classificação tríplice da atividade humana, Arendt elaborou uma distinção entre duas atividades normalmente abrangidas pela denominação trabalho: 1) a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujo crescimento e eventual declínio tem a ver com as necessidades vitais imediatas do homem (o que ela chama de labor). Esta interfere apenas sobre a vida do homem, sua sobrevivência; 2) o trabalho, que corresponderia ao artificialismo da existência humana, ou seja, aquela atividade realizada com alguma finalidade/intenção por parte do homem e que produz um mundo artificial de coisas, que tende a transcender à sua própria e a todas a(s) vida(s) individual(is). Esta interfere sobre o mundo.

    Já a terceira atividade humana, a ação, seria a única atividade que se exerce entre os homens, sem a mediação da coisa ou da matéria. Corresponderia à condição da pluralidade humana, já que os seres humanos seriam iguais como tal, mas plurais, pois nenhum ser humano é idêntico ao outro. Esta pluralidade seria então especificamente a condição de toda vida política.

    Para ela, a única atividade verdadeiramente humana é a política, enquanto labor etrabalho seriam atividades pré-humanas. Arendt distingue a política, agregando que só se poderia realizar no espaço público. 1 Tudo o que os homens teriam em comum com outras formas de vida animal seria procurar vencer suas necessidades básicas. O que eles teriam de específico seria justamente a procura de uma atividade superior, a política. 2

    O Labor, atividade biológica

    A partir dessa divisão arbitrária, Arendt caracteriza o operário (o laborer) como animal laborans. Com essa denominação quis marcar o aspecto ‘biológico’ que a atividade laborativa adquiriu na sociedade capitalista. Partiu de um fato correto, o caráter repetitivo, alienado, da produção e do papel do operário na fábrica. Mas ao fazer este recorte, ela atribui à natureza do trabalho do operário em si (para ela o labor), aquilo que é fruto da situação imposta pelo capital a partir da divisão do trabalho e da introdução da máquina. Chama a atenção que, apesar de dialogar em boa parte do livro com obras de Marx, não tenha levado em conta o texto O Trabalho Alienado (ou O Trabalho Estranhado). 3

    Neste texto, Marx desenvolve a forma como se dá a alienação do trabalhador, como ele se nega em seu trabalho, não se sente bem, mas sim infeliz nele. Marx indica nada menos que 4 características que fazem o trabalho na sociedade capitalista não passar de uma aparência de atividade, de um trabalho estranhado: Primeiro, que ele é exterior ao trabalhador, já que é imposto a ele, é compulsório. Segundo, que o fruto de seu trabalho não lhe pertence, nem o próprio trabalho em si. O trabalho significa a perda de si mesmo para o trabalhador. Terceiro, a alienação faz o trabalho (que é sua atividade vitalhumana) aparecer ao homem como simples meio para sua existência. Quarto, tira do homem a característica mais importante como ser genérico, a de poder trabalhar o conjunto da natureza e não só para as necessidades físicas imediatas, como os animais. Portanto, ao contrário do que entende Arendt, para Marx o trabalho não é apenas ‘biológico’, mas sim o instrumento de intercâmbio e domínio do homem sobre a natureza, que se encontra alienado pela subordinação ao capital, estranhado. 4

    Um aspecto que impede Arendt de captar essa realidade é o não entendimento do caráter dialético existente entre a necessidade de responder às questões vitais, embutida no trabalho desde as comunidades mais primitivas, e sua característica especificamente humana. Foram as próprias necessidades básicas para a sobrevivência como a coleta, a caça e a defesa contra os inimigos que levaram o homem a se diferenciar de seus ancestrais símios e a desenvolver a capacidade de interferir sobre a natureza. Já a caça e a pesca exigiam conhecimentos do meio ambiente e determinados instrumentos, embora se limitassem a retirar da natureza frutos ou animais que ali estavam. Embora nesse momento ainda tivesse semelhanças com os demais animais, a utilização pensada dos materiais foi abrindo um crescente diferencial entre o homem e as demais espécies. Como Engels mostrou em seu texto clássico O papel do trabalho na transformação do macaco em homem, essa evolução, esse salto, torna-se claro quando o homem já utiliza as mãos não somente como o macaco para agarrar frutos nas árvores ou arrancar galhos para se proteger, mas para produzir um machado ou uma faca de pedra.

    Já a agricultura exigiu não só conhecimento sobre a natureza, como atuar de forma planejada sobre ela, com a semeadura, irrigação, colheita, etc. Ter noção de tempo, de como contabilizá-lo, e, mais importante ainda, criar formas de trabalho social. A finalidade da agricultura era alimentar a população crescente, evitar as fomes periódicas que acompanhavam o crescimento vegetativo das comunidades anteriores. No entanto, ao contrário do modelo que Arendt elaborou, ao separar labor e trabalho, (onde o primeiro se limitaria a produzir objetos de consumo que garantissem a vida biológica, sem permanência, enquanto o segundo produziria instrumentos, ferramentas, etc.,) foi a atividade agrícola que obrigou o homem a realizar obras de tal envergadura que permaneceram por muito tempo como exemplos do prodígio humano, como os diques da Mesopotâmia, ou a rede de canalização dos egípcios antigos, fundamentais para impedir que as enchentes dos rios Tigre/Eufrates ou do Nilo destruíssem as plantações e garantir condições de uso perene às terras férteis nas margens desses rios.

    Como bem observou Lukács no capítulo sobre o Trabalho em sua Ontologia do Ser Social, apoiando-se na visão de Marx e Engels, o trabalho é o elemento central e inseparável do salto qualitativo e estrutural da passagem do ser animal (biológico) para o ser especificamente humano(social).

    «Somente o trabalho tem, como sua essência ontológica, um claro caráter intermediário: ele é essencialmente, uma inter-relação entre homem (sociedade) e natureza, tanto inorgânica como orgânica, inter-relação que pode até estar situada em pontos determinados da série a que nos referimos, mas antes de mais nada, assinala a passagem, no homem que trabalha, do ser meramente biológico ao ser social.» (Lukács, 1981, p.3 )

    Assim, a oposição entre labor trabalho aventada por Hannah Arendt não esclarece a condição humana e acaba por subestimar o papel do trabalho como capacidade de interferir de forma consciente na natureza 5 sempre enfatizada por Marx, presente apenas no homem. Como também alerta Marx, o trabalho modifica o próprio homem e é fundamental na construção da consciência humana. Tanto o labor como o trabalho humanos, se utilizarmos a terminologia de Arendt, são únicos em relação às demais espécies animais. O homem desenvolveu através do trabalho uma atividade onde efetivamente existe a teleologia. Onde é necessário o conhecimento da causalidade, dos processos naturais e vitais para poder preparar e completar a produção, criando algo novo, mas que já havia sido pensado antes do ato laborativo. 6 Dizer que o labor é ‘apenas a atividade biológica’ como se fosse igual à dos animais, confunde e despreza a atividade laborativa humana.

    A famosa citação de O Capital sobre a diferença entre o trabalho da abelha e o do pior mestre de obras ou arquiteto joga luz sobre essa questão

    «Nós pressupomos o trabalho plasmado sob uma forma exclusivamente humana. A aranha realiza operações que se parecem com as do tecelão, a abelha faz corar de vergonha muitos mestres de obras, por sua perfeição ao construir as suas células de cera. Mas o que distingue, essencialmente, o pior mestre de obras da melhor abelha, é que ele projetou a célula em sua cabeça antes de fazê-la em cera. No fim do processo de trabalho aparece um resultado que já estava presente desde o início na mente do trabalhador que, deste modo, já existia idealmente. Ele não se limita a efetuar uma mudança de forma no elemento natural; ele imprime no elemento natural, ao mesmo tempo, seu próprio fim, claramente conhecido por ele, o qual governa como uma lei o seu modo de agir e ao qual tem de subordinar à sua vontade7

    O comentário de Arendt sobre esta mesma citação de Marx surpreende pela superficialidade com que se pretende ignorar toda a rica elaboração sobre o trabalho, e as contradições que o alienam na sociedade capitalista. 8 A diferença entre Marx e Arendt não reside em uma suposta falta de importância que este daria ao caráter de ‘imaginação’ que teria o trabalho humano, mas sim na denúncia que Marx permanentemente faz do papel do capital que, ao se apropriar da força de trabalho, aprisiona e transforma em seu oposto a força produtiva do trabalho social. Para o trabalhador concreto, é na máquina, em um objeto estranho a ele, no trabalho morto, que aparece a finalidade do trabalho, seu projeto. A máquina materializa um roteiro de tarefas prescrito, geralmente montado a partir de uma substituição das tarefas executadas pelos antigos instrumentos de trabalho, como na tecelagem, metalurgia, etc. Então não é que tenha deixado de existir a teleologia, a finalidade (ou a imaginação, conforme a terminologia de Arendt) no processo de trabalho. O problema é que uma figura nova, que antes não participava na produção, o capital, apropriou-se desta e através da máquina se faz presente no processo de trabalho, onde ele impõe em forma tirânica ao trabalhador todos os passos a seguir.

    A separação entre labor e trabalho

    Arendt confunde a diferença entre o trabalho qualificado ou que produz instrumentos e o trabalho não qualificado, com a diferença entre o trabalho artesanal pré-capitalista e o trabalho assalariado sob o capital (e alienado). Para ela, não foi o capital, mas uma abstração, tipo ‘a sociedade’ ou ‘ a revolução industrial’ que criou uma divisão do trabalho que reduziu o trabalhador ao papel de mero fornecedor de “força de trabalho”, e tornaram seus produtos meros objetos para o consumo (ou como diria melhor Marx, mercadorias).

    «A revolução industrial substituiu todo artesanato pelo labor; o resultado foi que as coisas no mundo moderno tornaram-se produtos do labor, cujo destino final é serem consumidos, ao invés de produtos do trabalho, que se destinam a ser usados. A divisão do labor, e não um aumento de mecanização, substituiu a rigorosa especialização antes exigida para todo tipo de artesanato.” (Arendt, 1997, p.137).

    A explicação que dá Arendt para a substituição do que ela chama de trabalho pelo labor ignora o papel do capital nessa transformação e na subsunção do trabalho, que passa a ser incorporado como trabalho abstrato e ser absorvido enquanto força de trabalho (labor power) pelo capital, atribuindo-a a uma tendência natural de busca da abundância. Esquece que justamente uma contradição central da sociedade capitalista é a que se dá entre a multiplicação da produção e a situação do trabalhador expropriado dos meios de produção, entre a possibilidade (potencial) de satisfação das necessidades, que é barrada continuamente pela apropriação privada capitalista e a dura realidade da classe operária

    «Os ideais do homo faber, fabricante do mundo, que são a permanência, a estabilidade e a durabilidade, foram sacrificados em benefício da abundância, que é o ideal do animal laborans. Vivemos numa sociedade de operários, porque somente o labor, com sua inerente fertilidade, tem possibilidade de produzir a abundância; e transformamos o trabalho em labor, separando-o em minúsculas partículas até que ele prestou-se à divisão na qual o denominador comum da execução mais simples é atingido para eliminar do caminho do <labor power> humano –  que é parte da natureza e talvez a mais poderosa das forças naturais – o obstáculo da estabilidade <inatural> e puramente mundana do artifício humano.”  (Arendt, 1997,  p.138.)

    Para Arendt, já estaríamos em uma sociedade da abundância. Esquece novamente o fato fundamental que os produtos que surgem do ‘labor’ são propriedade do capitalista, são mercadorias que só podem ser consumidas pelo trabalhador se este realizar a compra, se o seu salário permitir. Mais ainda, como Marx explica, a ampliação da produção pelo capitalista empobrece o trabalhador! Se olharmos o mundo de hoje, essa observação parece consistente e válida mais de 100 anos depois de ter sido redigida.

    «As contradições e os antagonismos inseparáveis da utilização capitalista da maquinaria não existem porque decorre da própria maquinaria, mas de sua utilização capitalista! Já que, portanto, considerada em si, a maquinaria encurta o tempo de trabalho, mas enquanto utilizada como capital aumenta a jornada de trabalho; em si facilita o trabalho, mas utilizada como capital aumenta sua intensidade; em si, é uma vitória do homem sobre a força da Natureza, mas utilizada como capital, submete o homem por força da Natureza; em si, aumenta a riqueza do produtor; mas utilizada como capital, pauperiza-o.» (Marx, 1973, V. I, p.58, grifos nossos).

    A divisão do trabalho, portanto, não é uma vitória do animal laborans sobre o homo faber, mas segue a lógica do capital, de reduzir o poder de fogo do trabalhador, subordinando-o à totalidade do processo dirigido pelo capital. As mudanças introduzidas pela nova divisão capitalista do trabalho não foram uma conseqüência das novas tecnologias, mas sim de uma determinada lógica da ordem econômica e social capitalista. Tiram a potência do trabalhador para concentrá-la no capital:

    «As potências intelectuais da produção ampliam sua escala por um lado, porque desaparecem por muitos lados. O que os trabalhadores parciais perdem, concentra-se no capital com que se confrontam. É um produto da divisão manufatureira do trabalho opor-lhes as forças intelectuais do processo material de produção como propriedade alheia e poder que os domina. Esse processo de dissociação começa na cooperação simples, em que o capitalista representa em face dos trabalhadores individuais a unidade e a vontade do corpo social de trabalho. O processo desenvolve-se na manufatura que mutila o trabalhador, convertendo-o em trabalhador parcial. Ele completa-se na grande indústria, que separa do trabalho a ciência como potência autônoma de produção e a força a servir ao capital.» (Marx, 1973, V. I, cap. 12, pp. 274-275).

    Um último comentário sobre essa questão do labor e do trabalho: com os desenvolvimentos da reestruturação produtiva, a interação entre ciência e produção, entre execução e elaboração é cada vez maior nos setores de ponta da indústria. Se as fronteiras do trabalho não qualificado e qualificado são cada vez mais tênues, já que o capital busca reduzir a componente do trabalho improdutivo na produção das mercadorias, e se apropriar da sabedoria do operário, obrigando os participantes da linha de produção a fazer eles mesmos o controle de qualidade, a sugerir medidas para melhorar a produtividade da fábrica, como nomear o trabalho desse operário hoje? Como labor ou como trabalho, se aplicássemos as categorias de Arendt? 9

    O movimento operário é considerado incapaz de atividade política

    Mas é na análise do movimento operário que aparecem as consequências políticas dessa avaliação que Arendt tem da condição humana e do papel inferior do labor. Arendt recusa-se a reconhecer no trabalho um potencial de sociabilidade capaz de gerar uma prática política digna do nome entre os homens. Sua primeira definição é coerente com as definições teóricas aqui discutidas

    «Embora não seja capaz de criar uma esfera pública autônoma, na qual os homens possam aparecer qual  homens, a atividade do trabalho, para a qual o isolamento em relação aos outros é condição prévia necessária, está ainda vinculada de várias maneiras a esse espaço da aparência; na pior das hipóteses permanece ligada ao mundo tangível das coisas que produz. O trabalho, portanto, talvez seja um modo apolítico de vida, mas certamente não é antipolítico. Este último é precisamente o caso do labor, atividade na qual o homem não convive com o mundo nem com os outros: está a sós com o seu corpo ante a pura necessidade de manter-se vivo. É verdade que também vive na presença e na companhia de outros, mas essa convivência não possui nenhuma das características da verdadeira pluralidade.» (Arendt, 1997, p.224, grifos nossos)

    Mas essa definição não poderia explicar a intensa participação política e revolucionária do movimento operário; por isso, ela se espanta com a participação ativa e decisiva do movimento dos trabalhadores desde o século XIX, o que não a impede de prever um rápido fim a essa situação.

    «A surpreendente ausência de rebeliões sérias por parte dos escravos nos tempos antigos e modernos parece confirmar a incapacidade do animal laborans para diferenciação e, por conseguinte, para a ação e o discurso. Não menos surpreendente é o papel súbito e, muitas vezes, extraordinariamente produtivo que os movimentos operários desempenharam na política moderna.» (p.227, grifo nosso)

    Obrigada a reconhecer a discrepância entre sua definição e a realidade, chega a se confessar surpreendida; no entanto, para explicar como um movimento que se baseia no labor conseguiu obter a relevância que teve nos séculos XIX e XX, busca uma explicação política externa ao fato: seria a conquista da cidadania política, do direito ao voto em particular e por aí de sua inclusão na sociedade que teria feito o movimento operário, distinto dos escravos e servos, capaz de interferir no processo político.

    «Esta discrepância aparentemente flagrante entre o fato histórico – produtividade política da classe operária – e os dados fenomenológicos obtidos da análise da atividade do labor tende a desaparecer após exame mais profundo do desenvolvimento e da substância do movimento operário. A principal diferença entre o trabalho escravo e o moderno trabalho livre não é a posse da liberdade pessoal, mas o fato de que o operário moderno é admitido na esfera pública enquanto cidadão. O momento crucial da história do movimento operário foi a abolição do requisito de propriedade para o exercício do direito de voto.» (Arendt, 1997, p.229). (grifos nossos).

    A seguir dá o exemplo dos sansculottes da França. Apareciam como tal, aproveitando o impacto causado por uma aparição pública com suas roupas idênticas e lutavam por direitos democráticos e trabalhistas.

    «A mola propulsora dessa tentativa [refere-se ao papel protagonista que os operários cumpriram em 1789, 1848, etc.] não foi o labor – nem a rebelião sempre utópica contra as necessidades da vida –  mas sim aquelas injustiças e hipocrisias que desapareceram com a transformação da sociedade de classes em uma sociedade de massas, e a substituição do salário diário ou semanal por um salário anual garantido.» (Arendt, 1997, p. 231)

    Coerente com essa visão, sustenta a perspectiva de rápida desaparição do fenômeno do movimento operário enquanto contestação à ordem. Tenderia a se reduzir à expressão de qualquer outro ‘grupo de pressão’. E se adaptaria à ordem vigente como todos os outros:

    «A importância política do movimento operário hoje é a mesma de qualquer grupo de pressão; já se foi o tempo – que durou quase um século – em que podia representar o povo como um todo, se entendemos por le peuple o verdadeiro corpo político diferente portanto da população e da sociedade.» (Arendt, 1997, p. 231).

    «Ambíguo em seu conteúdo e objetivos desde o princípio, o movimento operário perdia imediatamente essa representação, e, por conseguinte, seu papel político, sempre que a classe operária tornava-se parte integrante da sociedade.» (Arendt, 1997, p.232).

    Esse argumento encerra uma contradição lógica com o trecho citado acima que afirmava como motivo da participação surpreendente do movimento operário a sua emancipação (política), em particular com a conquista do direito de voto: se o motivo da intervenção dos trabalhadores como protagonistas das revoluções era essa conquista, como esperar que eles perdessem imediatamente seu papel político uma vez que se tornassem ‘parte integrante da sociedade’? Então, o que levara a que eles tivessem um papel político revolucionário, completamente inesperado para Arendt, imediatamente os colocaria em uma situação de integração e igual a qualquer grupo de pressão?

    Mais uma observação sobre seu argumento: as revoluções operárias nem sempre se colocaram em locais onde a classe operária já havia se emancipado politicamente nem tinha tradição de participação ou mesmo direito a voto. Citemos apenas a russa de 1917 para exemplificar, onde inclusive a classe operária propriamente dita era uma ínfima minoria na população.

    O fenômeno da participação institucional e da integração das lideranças sindicais e partidos operários reformistas à ordem burguesa, em particular em países da Europa Ocidental é objeto de larga discussão na literatura sociológica e política, pois aí entram as mediações políticas, a luta de classes, as possibilidades de concessões econômicas, como no período do Welfare State e o papel mais poderoso dos regimes democráticos (e do Estado) dos países imperialistas. Mesmo assim, ao generalizar, Arendt esquece a realidade das revoluções operárias (ainda que não tenham triunfado) em países de tradição democrática e participação dos movimentos operários na política institucional, como a França (1936 e 45), Itália (1921 e 45), Alemanha (1919, 21 e 23, para não falar da conjuntura pré-ascensão do nazismo em 1933).

    Para explicar essa força e presença do movimento operário nestes 160 anos e os poderosos movimentos e correntes políticas que gerou, teríamos que partir do caráter social do trabalho operário sob o capitalismo, da contradição ente o trabalho social e apropriação privada do seu fruto para entender a revolta operária contra sua condição sob o capital, contra a alienação do trabalho que o capital permanentemente reproduz. Ao contrário do que afirma Arendt, o labor/trabalho sob o capital é fonte de uma atividade política, humana, da luta política pela emancipação do trabalhador, contra a alienação do trabalho e do homem.

    E o fato de que a humanidade esteja submetida a essa situação (ou ainda pior, quando está marginalizada, sem trabalho) em todo o mundo é a base para o internacionalismo operário e o que Marx chamava de libertação/emancipação dos trabalhadores, como estava inscrito no lema da Associação Internacional dos Trabalhadores. Nas Teses sobre Feuerbach ele afirmava a “humanidade socializada” como o horizonte do materialismo moderno, e não o que entendeu Arendt, quando afirma

    «E por isso é que Platão sugeriu que os operários e escravos eram não apenas sujeitos a necessidades e incapazes de liberdade, mas incapazes também de dominar o lado ‘animal’ de sua própria natureza. Uma sociedade de massas de operários, tal como Marx tinha em mente quando falava de <humanidade socializada>, consiste em exemplares da espécie humana isolados do mundo, quer sejam escravos domésticos, levados a essa infeliz situação pela violência de terceiros, quer sejam livres, exercendo voluntariamente suas funções.» (Arendt, p.131, grifos nossos).

    Aqui Arendt deixa muito clara sua posição, apoiando-se em Platão, de que os trabalhadores, sejam livres ou escravos, são incapazes por definição de superar seu lado animal e alcançarem a dimensão da ‘liberdade’.

    A única atividade considerada humana: a ação

    Esta revisão crítica das categorias de labor e trabalho utilizadas por Arendt permite agora que analisemos seu conceito de Ação: esta seria o diálogo entre ‘iguais’ (homens livres que buscam o bem comum) em um livre intercâmbio de opiniões possível somente em um espaço público. O espaço público é por definição uma arena comum separada da vida privada, das famílias, e opõe-se ao espaço privado, onde impera a dominação, a submissão, o egoísmo, etc. Arendt acredita que as pessoas tenham na ação política, ‘por seus atos e palavras’, uma oportunidade de ser livres. A conquista da liberdade estaria na esfera do político, no espaço público, e seria uma superação do reino da necessidade típica do espaço privado, da família, 10 etc. Apoiando-se numa interpretação do que teria sido a polis grega,  Arendt relaciona liberdade e política, esfera pública e privada:

    «O que todos os filósofos gregos tinham como certo por mais que se opusessem à vida na polis, é que a liberdade situa-se exatamente na esfera política; que a necessidade é primordialmente um fenômeno pré-político, característico da organização do lar privado; e que a força e a violência são justificadas nesta última esfera por serem os únicos meios de vencer a necessidade – por exemplo, subjugando escravos – e alcançar a liberdade.» (Arendt, 1997, p.40)

    Para Arendt só é atividade verdadeiramente política, aquela em que o indivíduo se move não por necessidade, mas pelo bem comum. O espaço público é definido também por este caráter de lugar onde os homens, livres das necessidades e das questões típicas do espaço privado, podem reunir-se para, através do diálogo, utilizando o discurso, deliberar sobre os destinos comuns. O reconhecimento público é o prêmio a alcançar. Esse espaço não pode ser ocupado por associações de iguais (de classes ou setores sociais), pois isso seria atentar contra a pluralidade:

    «A união de muitos em um só é basicamente antipolítica: é o exato oposto da convivência que prevalece nas comunidades comerciais ou políticas que – para citar o exemplo de Aristóteles – não é a associação <koinonia> de dois médicos, mas de um médico e um agricultor e, de modo geral, de pessoas diferentes e desiguais.» (Arendt, 1997, p.227).

    Para ela, portanto, o movimento operário é incapaz de uma verdadeira ação política. Ação e discurso só têm sentido para ela no espaço público, como forma de interação entre homens desligados de sua localização social ou privada. O espaço público seria o espaço da deliberação conjunta, através do qual os homens, na medida em que são capazes de ação e opinião, tornam-se interessados e responsáveis pelas questões que dizem respeito a um destino comum, que é a matéria própria da esfera do político. E este, para ser livre, deve estar desvinculado do trabalho e do labor. Nele, o número das pessoas não pode ser grande, pois levaria a uma irresistível tendência ao conformismo e à tirania da maioria.

    «Os gregos, cuja cidade-estado foi o corpo político mais individualista e menos conformista que conhecemos, tinham plena consciência do fato de que a polis, com sua ênfase na ação e no discurso, só poderia sobreviver se o número de cidadãos permanecesse restrito. Grandes números de indivíduos agrupados numa multidão desenvolvem uma inclinação quase irresistível para o despotismo pessoal ou o governo da maioria; e embora a estatística, isto é, o tratamento matemático da realidade fosse desconhecido antes da era moderna, os fenômenos sociais possibilitaram esse tratamento – grandes números justificando o conformismo, o behaviorismo e o automatismo nos negócios humanos – eram precisamente o que, no entendimento dos gregos, distinguia da sua a civilização persa.» (Arendt, 1997, pp.52-53, grifos nossos).

    As consequências dessa concepção sobre a visão política de Arendt

    A visão de Hannah Arendt sobre política opõe a ação (Política) ao social. Ela opina que a predominância do labor antes descrita trouxe consigo a invasão da esfera pública pela necessidade. Em tal proporção, que esta terminou por se desfigurar, transformando-se numa vasta administração técnica e burocrática que existe apenas em função da economia. Por isso, preocupa-se com “a ‘invasão do social’ sobre as outras esferas públicas, característica da esfera moderna”, 11 e com as multidões que não estariam em condição de resistir ao despotismo.

    Também se recusa a reconhecer na ‘polis’ a existência do conflito, como sua dimensão e, portanto, qualquer luta política entre classes e movida por interesses é considerada não política ou antipolítica. Assim, por extensão, qualquer conflito de classes ou setores de classe deturpa a esfera pública, vai contra a ideia central em sua visão do que é fortalecer o político e a esfera pública (pois seria uma expressão da esfera privada).

    Ela lamenta que as classes proprietárias modernas tenham abdicado de sua participação na esfera pública em prol do bem comum, como, em sua visão, faziam os gregos.  “Logo que passou à esfera pública, a sociedade assumiu o disfarce de uma organização de proprietários, que ao invés de se arrogarem acesso à esfera pública em virtude de suas riquezas, exigiram dela proteção para o acúmulo de mais riqueza.” (Arendt, 1997, p.78).

    Ela pressupõe o espaço público como o lugar por excelência da política, mas como atividade de poucos. Qualquer movimento social de massas deturparia o diálogo, introduziria o conformismo na esfera pública. Assim, ela separa a esfera política do social e da realidade concreta da vida cotidiana. Dessas considerações, só se pode entender que, como materialização contemporânea do espaço público, ela pensa em uma recriação da polis grega, que teria de ser baseada naqueles que tem condição de pensar, de elevar-se acima de seus interesses imediatos.

    Sua visão de cidadania seria inspirada na participação política entre iguais no espaço público (a isonomia), implicando em uma preparação para a vida política, para que possa ser uma ação entre iguais sem vinculação a interesses outros que não o bem comum da polis. Ou seja, para os melhores, os que não vivem do labor, nem do trabalho, para aqueles capazes de realizar a ação e o discurso com o sentido em que o faziam os cidadãos gregos.

    Para sinteticamente responder à hipótese inicial levantada no início deste texto, acreditamos que a formulação política de Arendt tem a ver com sua concepção, que despreza o trabalho e desconhece a potencialidade emancipadora do movimento dos trabalhadores. A consequência é defender uma visão restrita de política, baseada na interlocução de uma elite, desligada da sociedade, que se presuma estar acima dos interesses privados para poder decidir, em nome do bem comum, o que é legítimo ou ilegítimo.

    Num mundo dominado pela classe capitalista, em que o Estado responde aos interesses de classe dessa ‘elite’, a posição de Arendt, ao contrário do que ela tenta transmitir, tem um significado completamente antidemocrático, reacionário, pois propõe uma ‘democracia’ que exclui os trabalhadores, considerados incapazes de articular uma política. Mas para ela, os empresários que conseguissem abstrair de seus interesses (sic) seriam capazes de pensar no bem comum! O que tem esse modelo idílico a ver com a realidade, seja das democracias modernas, seja a dos partidos europeus, seja da América Latina?

    Na contramão de Marx e Engels, que identificaram no proletariado a classe que tinha de se organizar em forma autônoma para poder revolucionar a sociedade, ela defende a exclusão dos trabalhadores da arena política. Qualquer movimento social de massas seria nocivo, distorceria a ‘esfera pública’.

    Arendt reivindica a ‘democracia grega’, que excluía os escravos, mas para justificar essa exclusão, os gregos não os consideravam humanos ou como definia Aristóteles os escravos seriam ferramentas falantes. Para ela, assim como eram considerados os escravos na Grécia antiga, os proletários no capitalismo são inferiores por sua atividade. Esse é o pano de fundo da concepção de Hannah Arendt.


    Bibliografia:

    ANTUNES, Ricardo – Os Sentidos do Trabalho, São Paulo, Boitempo, 1999.

    ARENDT, Hannah – A Condição Humana. São Paulo, Forense, 8ª edição, 1997.

    FERNANDES, Florestan (org.) – Marx-Engels, História. São Paulo, Ática, 3ªed.,1989

    LUKÁCS, Gyorgy – Ontologia do Ser Social. (O Trabalho). tradução de Ivo Tonet

    MARX, Karl – El Capital, vol. I. México, Fondo de Cultura Económica, 8ª ed.,1973.

    MARX, Karl – Elementos fundamentales de la Economia Política (Gundrisse). México, Siglo XXI edit., 17ª edição, 1997.


    Notas

    1. Arendt, 1997, em especial, as partes II e VI. ↩︎
    2. “somente duas eram consideradas políticas e constituintes do que Aristóteles chamava de bios politikos: a ação(praxis) e o discurso(lexis), dos quais surge a esfera dos negócios humanos(o ton anthropon pragmata, como chamava Platão) que exclui estritamente tudo aquilo que seja apenas necessário ou útil.” Idem, pág.34 ↩︎
    3. Fernandes (org.), em especial Marx, K. “Trabalho alienado e superação da auto-alienação humana”, Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, pp. 148-156. ↩︎
    4. “Ao definir o trabalho como ‘metabolismo do homem com a natureza’, em cujo processo ‘o material da natureza é adaptado às necessidades do homem’, de sorte que ‘o trabalho se incorpora ao sujeito’, Marx deixou claro que estava ‘falando fisiologicamente’, e que o trabalho e o consumo são apenas dois estágios do eterno ciclo da vida biológica.” Arendt, 1997, p.110. ↩︎
    5. Arendt, 1997, nota de rodapé 35 da p.111: “Marx chamava o labor de ‘consumo improdutivo’ e jamais perdia de vista que se tratava de uma condição fisiológica.” ↩︎
    6. Seguimos raciocínio de Lukács no mesmo texto. ↩︎
    7. Marx, 1973, cap. V, pp.130/131. ↩︎
    8. “É obvio que aqui Marx já não se referia ao labor, mas ao trabalho – no qual não estava interessado; e a melhor prova disso é que o elemento de «imaginação», aparentemente tão importante, não desempenha papel algum em sua teoria do trabalho.” Arendt, 1997, p.111, nota 36 ↩︎
    9. Ver cap. VII de Antunes, 1999. ↩︎
    10. “A polis diferenciava-se da família pelo fato de somente reconhecer “iguais”, ao passo que a família era o centro da mais severa desigualdade.”  Idem, p .41 ↩︎
    11.  Idem, p. 55 ↩︎

    Publicado originalmente em www.teoriaerevolução.pstu.org.br