Categoría: Materialismo Histórico

  • Contribuição à crítica das diferentes interpretações na esquerda sobre a revolução brasileira

    Contribuição à crítica das diferentes interpretações na esquerda sobre a revolução brasileira

    Este artigo é fruto da discussão realizada no seminário do PSTU, cujo tema foi “Teoria da Revolução Permanente e sua aplicação no Brasil”. Por que é importante a discussão sobre o PCB, a Cepal e os teóricos que os criticaram? Porque a interpretação do Brasil moderno que a esquerda em geral definiu para seus projetos vem dessa época, que marca as primeiras visões de conjunto sobre o Brasil.

    Por: José Welmowicki

    A evolução das visões sobre o Brasil desde os anos 1930 

    A primeira tentativa de interpretação da esquerda foi a do PCB. Aqui, cabe explicar o contexto internacional em que foi elaborada. Naquele momento, fins da década de 1920, começo dos anos 1930, os partidos comunistas, já dominados pelo stalinismo, eram hegemônicos no movimento operário do mundo inteiro. No Brasil, entre 1930 e 1964, o PCB foi amplamente majoritário no movimento operário e na intelectualidade de esquerda. 

    A visão que eles tinham do Brasil derivava de uma teoria que a própria Internacional Comunista elaborara como justificativa para sua desastrosa política para a revolução chinesa de 1926-28, no marco da afirmação do socialismo num só país e do combate à teoria da revolução permanente de Trotsky. A teoria stalinista deveria se aplicar a todos os países atrasados, classificando-os como feudais ou semifeudais, para os quais não estaria colocada a revolução socialista, e sim a revolução democrática burguesa. A partir dessa revolução, abrir-se-ia uma etapa de desenvolvimento nacional em que, aí sim, estaria colocada a luta pelo socialismo. No VI Congresso da III Internacional de 1928, essa teoria foi aceita como válida para todo o mundo colonial. 

    Coerente com essa teoria, o PCB classificava o Brasil como feudal, tirando como consequência programática a necessidade de  uma revolução democrática burguesa. Isso gerou a tese de que caberia à burguesia nacional, em aliança com o proletariado e o campesinato, cumprir as tarefas democráticas, acabar com o latifúndio e libertar o Brasil da dominação imperialista. Só a partir daí estariam colocados o desenvolvimento capitalista e a preparação da luta pelo socialismo. Essa compreensão esteve em todas as resoluções desde os anos 1930 (e foi criticada duramente pela Liga Comunista, a primeira organização trotskista brasileira) e continuou dominando a visão do PCB até a década de 1960, como mostra a resolução política do V Congresso, de 1960:

    […] Nas condições atuais, entretanto, o Brasil tem seu desenvolvimento entravado pela exploração do capital imperialista internacional e pelo monopólio da propriedade da terra em mãos da classe dos latifundiários. As tarefas fundamentais que se colocam hoje diante do povo brasileiro são a conquista da emancipação do país do domínio imperialista e a eliminação da estrutura agrária atrasada, assim como o estabelecimento de amplas liberdades democráticas e a melhoria das condições de vida das massas populares. Os comunistas empenham-se na realização dessas transformações, ao lado de todas as forças patrióticas e progressistas, certos de que elas constituem uma etapa prévia e necessária no caminho para o socialismo […] em sua etapa atual, a revolução brasileira é anti-imperialista e antifeudal.

    Houve outra corrente influente entre 1945 até a década de 1960, que desenvolveu uma compreensão que se aproximava da visão do PCB. Tratava-se de uma corrente articulada pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), a comissão da ONU dedicada a estudar a economia na América Latina, que serviu como instituição para uma serie de pensadores que tentavam entender nossa realidade a partir da dicotomia desenvolvimento/subdesenvolvimento. Segundo eles, o problema de países como o Brasil seria que seu desenvolvimento econômico tinha ficado retardado por uma série de barreiras por sua localização subordinada entre as nações e pelo tipo de estrutura produtiva, em que a produção agrícola e de matérias-primas eram o centro, ao contrário das nações mais desenvolvidas, que tinham como centro a indústria. Dessa tese, decorria a proposta de fomentar a industrialização como superadora do subdesenvolvimento. Essa corrente foi chamada de desenvolvimentista ou nacional-desenvolvimentista, pois pregava a luta pelo desenvolvimento autônomo da nação. Para garantir trilhar esse caminho, dever-se-ia fazer uma aliança entre a burguesia nacional, os trabalhadores e os camponeses. Celso Furtado era um dos principais teóricos da Cepal.

    Nos anos 1930, já estávamos na época imperialista. A partir da época imperialista, a economia já é mundial. Não há mais como separar nenhuma sociedade, nenhuma economia de um país do resto do mundo. O mesmo vale para a luta de classes: é um processo internacional. Já não era mais possível um desenvolvimento capitalista autônomo sob o imperialismo. Só a revolução socialista poderia emancipar o país. Como explica Trotsky em A Revolução permanente, “com a criação do mercado mundial, da divisão mundial do trabalho e das forças produtivas mundiais, o capitalismo preparou o conjunto da economia mundial para a reconstrução socialista”. 

    Por outro lado, não havia mais espaço para um desenvolvimento autônomo que rompesse com o imperialismo mantendo-se capitalista. Ao longo do século 20, o Brasil permaneceu uma semicolônia. Primeiramente, da Inglaterra e, depois, dos EUA, como é até hoje.

    Com o golpe de 1964, houve uma crise muito forte no PCB e nas forças que se apoiavam nas suas elaborações, assim como na visão cepalina, muito presente no PTB de João Goulart e Leonel Brizola. A capitulação do stalinismo ao governo Goulart e a derrota frente ao golpe militar geraram uma serie de dissidências e surgiu uma série de críticas às teorias que haviam embasado a prática de colaboração de classes da esquerda no período de 1945 a 1964.

    Uma série de autores ajudou a construir uma visão crítica do PCB e da Cepal nas décadas de 1970 e 1980. Estudamos e valorizamos muito as elaborações que existem. Mas, ao utilizarmos como marco teórico a revolução permanente, vemos importantes limitações e equívocos em suas elaborações. Até hoje, não foram elaboradas ou publicadas visões críticas e dialéticas sobre elas. Há, por exemplo, uma tendência a reivindicar, de maneira acrítica e sem apontar seus limites, Caio Prado Junior, por ele expressar uma visão crítica à interpretação do PCB ou a reivindicar acriticamente Florestan Fernandes e outros autores, como Chico de Oliveira. Nossa proposta aqui é analisar suas interpretações com um olhar crítico, valorizando o que na nossa maneira de ver são importantes acertos, mas também apontar seus limites e erros.

    A contribuição e nossa crítica a Caio Prado Junior

    Ronald Leon já analisou, na Marxismo Vivo nº 9, os avanços e os limites de Caio Prado. Ele teve grande importância na análise do Brasil e contribuiu para destruir o velho argumento de seu partido, o PCB, sobre a suposta formação feudal e também por mostrar a relação entre a burguesia nacional e o imperialismo. Nessa contribuição, entretanto, persistiam grandes contradições. Caio foi militante comunista a partir de 1931 e por toda sua vida membro do PCB e adepto da URSS e das teorias do stalinismo. Apoiou a política internacional de Stalin e a orientação da burocracia russa pós-morte de Stalin, com Nikita Kruschev e a linha da coexistência pacífica com o imperialismo.  Caio Prado Jr. não tinha diferenças com a estratégia de conciliação de classes aplicada pelo stalinismo em escala mundial –  e no Brasil também – e o demonstrou em sua participação como parlamentar no pós-guerra e intelectual de destaque nos anos 1950.

    Isso esteve na raiz de uma incoerência entre a análise que fazia da formação do Brasil e o programa. Apesar de no texto A Revolução Brasileira dizer que o Brasil já era capitalista em suas relações de produção no campo e na cidade e também afirmar o caráter submisso da burguesia brasileira em sua relação com o imperialismo, sua perspectiva era a revolução que tiraria o Brasil do atraso colonial, abrindo passo ao desenvolvimento nacional: “A revolução brasileira está marcada pelo processo geral que vai do Brasil colônia de ontem ao Brasil nação de amanhã, e que se trata hoje de levar a cabo. Tarefa essa que constitui a essência da revolução brasileira”. 

    Assim, mantinha-se nos marcos da proposta de revolução democrática burguesa, embora sem acreditar na necessidade de superar supostos restos feudais, mas sim os aspectos coloniais do país.

    Embora analise o caráter submisso da burguesia brasileira, ele não define quem é a classe capaz de assumir o projeto de desenvolvimento nacional autônomo, o Brasil nação. Mas o fato de não definir coloca-nos uma hipótese implícita e, em alguns de seus textos programáticos, ele fala em projeto nacional com a iniciativa privada. Qual classe social tem a iniciativa privada? A burguesia. Contraditoriamente, ele levanta a hipótese da burguesia nacional cumprir a tarefa de libertação nacional, que ele mesmo analisa como associada ao imperialismo. Essa contradição em seus textos tem a ver com a não superação programática e com uma concepção mais geral que não rompeu com as teses internacionais do stalinismo e, portanto, opostas à teoria da Revolução Permanente. Para essa teoria, a saída para a superação do caráter colonial ou semicolonial do capitalismo brasileiro é a revolução encabeçada pela classe operária que, ao tomar o poder, imporá a ditadura do proletariado que cumprirá as tarefas democráticas das quais a principal é a liberação nacional do imperialismo, mas essa revolução se fará contra a burguesia nacional.

    A contribuição e a crítica a Chico de Oliveira

    Francisco (Chico) de Oliveira chegou a trabalhar com Celso Furtado na Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) durante o período de 1959 a 1964.

    Para a Cepal, havia um Brasil moderno e um Brasil arcaico. Para eles, o Brasil arcaico, que era associado ao campo, ao latifúndio, impedia o desenvolvimento do país. Portanto, ele considerava que se o Brasil se industrializasse, iria se desenvolver, e superaria esse atraso se o Estado e um setor progressista da burguesia aceitassem essa proposta. Por isso, Celso Furtado criou e dirigiu a Sudene nos governos Juscelino Kubitschek e João Goulart, do qual foi ministro do Planejamento, com o objetivo de levar o desenvolvimento ao Nordeste atrasado. 

    Chico de Oliveira, no Crítica à razão dualista, faz uma crítica frontal a essa ideia de “dois Brasis” e demonstrou que há uma articulação entre ambos, porque esse Brasil atrasado é fundamental para o Brasil moderno, essa agricultura atrasada, que vende barato os produtos alimentícios, e esse tipo de propriedade são funcionais para o moderno, inclusive para as indústrias estrangeiras. Não há uma contradição entre nacional e estrangeiro nisso e não há uma contradição decisiva entre a burguesia industrial e os latifundiários do campo atrasado. Ele desmistifica a ideia de um desenvolvimentismo do Brasil a partir do avanço da indústria.

    Mas Chico de Oliveira, que teve o mérito de demonstrar que de-positar as esperanças num desenvolvimento industrial que pudesse superar o atraso do latifúndio era um projeto sem fundamento que levaria a fracassos seguidos, como os da aliança populista e do governo João Goulart, caiu num erro ao analisar os caminhos alternativos possíveis: ele também nutriu esperanças num caminho endógeno ao não dar a devida importância ao papel do Brasil no mundo, que, mesmo havendo um processo de industrialização, nunca deixou de ser uma semicolônia. Na época imperialista, já não existe essa possibilidade. Ele parte de um fato real: na década de 1930, entre as duas guerras mundiais, em particular após a crise de 1929, houve um momento, o período de passagem de semicolônia inglesa para semicolônia norte-americana, que permite às burguesias latino-americanas, entre as quais a brasileira, apoiarem-se nos seus proletariados para conseguir algumas concessões do imperialismo.

    Trotsky analisa esse processo em seus textos sobre a América Latina escritos no México. Esse processo, no entanto, não significou uma via autônoma ou independente e, quando o imperialismo norte-americano voltou a impor sua hegemonia na região, recortou as concessões. Para isso, recorreu a pressões duras e inclusive a golpes militares quando havia alguma ameaça maior.

    Ou seja, ele acerta em mostrar a relação de funcionalidade entre os setores atrasado e moderno, inclusive cita a teoria do desenvolvimento desigual e combinado de Trotsky, mas interpreta o crescimento da indústria como um processo endógeno, sem integrá-lo de forma submetida à economia mundial. Que sem uma revolução socialista era impossível sequer manter esses processos. O processo posterior no Brasil comprovou esse limite dado pela submissão da burguesia ao imperialismo. 

    No terceiro governo de Getúlio Vargas, houve um processo de ascenso operário que preocupou a burguesia e o imperialismo, e a maioria da burguesia nacional passou a articular um golpe. Getúlio suicida-se para evitar o golpe em preparação e, depois de uma série de crises, Juscelino Kubitschek (PSD) é eleito com o apoio do PTB e do PCB, que permitiram desviar o ascenso e ter um período de relativa estabilidade. Juscelino implementou o modelo de industrialização nas áreas de bens duráveis com a participação das empresas imperialistas e o Estado como garantidor da infraestrutura e de determinados insumos básicos, como a eletricidade e o aço. Em 1955, já era o modelo que posteriormente a ditadura viria a intensificar, com a entrada do imperialismo na área produtiva industrial. Aplicou-se o famoso tripé: burguesia imperialista no setor mais avançado, burguesia industrial brasileira nos setores de menos tecnologia – aproveitando a mão de obra migrante (em especial nordestina) para terem uma taxa de lucro altíssima – e o Estado entrando com toda a parte estrutural. Nenhum governo posterior à ditadura modificou esse modelo, ao qual a burguesia nacional adaptou-se. Tanto Fernando Collor, quanto FHC, que foram seus grandes entusiastas, e também os governos do PT, que inventaram o nome de neodesenvolvimentismo, aplicaram-no.

    Essa contradição de Chico de Oliveira, ao ver centralmente uma dinâmica interna para explicar o processo, levou-o a pensar que não era imperioso o caminho revolucionário e a admitir um caminho reformista para o desenvolvimento nacional. Por isso, mais adiante, nos anos 1990, defendeu um welfare state brasileiro para alcançar uma melhor distribuição de renda, e viu no PT o sujeito político para instalá-lo. Em Os Direitos do antivalor (1992), ele propõe uma série de reformas emulando o welfare state europeu. Mas aconteceu justamente o oposto: um ataque permanente aos poucos direitos sociais conquistados a duras penas. Como Chico não via essa contradição estrutural, pensava ser isso possível, a partir de uma decisão interna de um sujeito político decidido a dar passos nessa direção de reformas substanciais no marco do capitalismo brasileiro. Uma visão reformista que o próprio PT decepcionou no campo dos direitos sociais, e fez Chico romper com esse partido, depois de militar nele por anos, quando Lula chegou ao governo e avançou na implementação da reforma da Previdência.

    A contribuição de Florestan Fernandes e nossa crítica

    Florestan Fernandes tem o grande mérito de ter caracterizado a incapacidade congênita da burguesia nacional de lutar pela revolução democrática burguesa no Brasil. Em seu texto A revolução burguesa no Brasil, aponta isso em vários momentos. Ele também recusa a ideia da formação feudal do país presente no PCB e aponta o caráter subordinado do capitalismo e a submissão da burguesia nacional em relação ao imperialismo.

    Por isso, quando se constitui, consolida-se e tal economia competitiva se expande, tende a redefinir e a fortalecer os liames de dependência, tornando impossível o desenvolvimento capitalista autônomo e autossustentado. 

    Florestan afirma que a burguesia é incapaz e, mais ainda, que ela necessita da contrarrevolução, e trata de mostrar que isso é estrutural. Em O que é revolução, de 1981, ele afirma:

    Os últimos 25 anos compreendem uma vasta transferência de capitais, tecnologia avançada e quadros empresariais técnicos e dirigentes, pela qual a economia e a sociedade brasileira foram multinacionalizadas através de uma cooperação organizada entre capitalistas, militares burocratas brasileiros com a burguesia mundial e seus centros de poder. […] o que interessa ressaltar nesse quadro? Primeiro, a relação siamesa entre a burguesia nacional e a burguesia externa, que não são mais divididas e opostas entre si quando o capitalismo atinge o seu apogeu imperialista.

    Porém, a contradição que ele não consegue superar – como outros autores – é sobre a atualidade e a afirmação do sujeito social da revolução socialista. Para ele, a classe operária brasileira arrasta um atraso cultural tão profundo que não teria condições por um longo período de se colocar como cabeça de uma revolução. Por isso, chega a prever um processo longo de amadurecimento tomando a tarefa da revolução democrática em si até que se possa colocar no horizonte a revolução proletária, mesmo que ela já esteja colocada em escala internacional. Ele localiza esse atraso na formação do proletariado após a abolição da escravatura:

    De um lado, fica patente que o negro ainda é o fulcro pelo qual se poderá medir a revolução social que se desencadeou com a Abolição e com a proclamação da República (e que ainda não se concluiu). De outro, é igualmente claro que, no Brasil, as elites não concedem espaço para as camadas populares e para as classes subalternas de motu próprio (de livre e espontânea vontade). […] Cabe às classes subalternas e às camadas populares revitalizar a República democrática, primeiro para ajudarem a completar, em seguida, o ciclo da revolução social interrompida e, por fim, colocarem o Brasil no fluxo das revoluções socialistas do século XX.

    O argumento para afirmar que a classe operária não tem condições de encabeçar esse processo é o atraso cultural, a falta de um período de formação. E não faz a comparação que deveria com a Revolução Russa. Afinal, se, como ele enfatiza, no Brasil havia a escravidão recente, que era um fator imenso de atraso, a classe operária da Revolução Russa também vinha do campo, dos servos recém-libertados, também era jovem, também tinha baixo nível cultural, mas devido ao seu papel objetivo na sociedade russa e à existência do Partido Bolchevique, cumpriu um papel revolucionário em outubro de 1917. 

    Outro elemento débil em Florestan é a associação direta entre classe operária e suas direções, como se essas refletissem imediatamente aquela. Não via a questão da direção como um problema central para impedir o desenvolvimento da classe em direção a ser uma alternativa de poder:

    Numa sociedade de classes, se a classe trabalhadora não amadurece politicamente, se não se desenvolve como classe independente, o intelectual que se identifica com ela não pode ser instrumental para nada. A menos que ele queira ser instrumental para as suas inquietações, para o seu nível de vida, para um trabalho pessoal criador. Mas, se você vai além disso, você se esborracha. O que aconteceu comigo foi que eu me esborrachei e daí o fato de que, até hoje, não me conformo com o nosso padrão de radicalismo e de socialismo.

    Para resumir essa primeira síntese sobre alguns dos mais importantes intérpretes do Brasil, é importante ressaltar que eles fizeram aportes muito importantes, mas parciais, para a superação da visão do PCB e da Cepal. Valorizamos muito essas elaborações. Mas todos tinham a limitação de não pensar a partir da revolução permanente e, por essa via, não conseguiam apresentar uma alternativa, mantendo um ceticismo sobre o papel da classe operária como sujeito social.

    Cabe agora basear-se na teoria da Revolução Permanente para fazer avançar a elaboração marxista sobre nossa formação social e a resposta que necessitamos: o programa revolucionário.

    Publicado em outubro de 2017 na revista Marxismo Vivo N. 10  

  • As contribuições de Engels ao marxismo

    As contribuições de Engels ao marxismo

    Um amplo leque de correntes e intelectuais centra seus ataques no legado teórico de Friedrich Engels ao marxismo. Parte dessa campanha inclui muitos que se reivindicam marxistas. Diante do nocivo mecanicismo stalinista, propõem um “retorno” às origens do pensamento de Marx, como uma espécie de “vacina” contra tudo que possa parecer determinismo, econômico ou natural. Como afirma Nahuel Moreno: “todas as correntes revisionistas modernas atacam a Engels em nome do marxismo”. 1 Devido ao imenso prestigio de Marx, o alvo escolhido foi Engels, que lhes pareceu um alvo menos difícil de atingir, apesar de ser um dos pais do próprio marxismo.

    Por José Welmowicki

    Em seus últimos anos, Engels foi um deformador da obra de Marx? Foi um determinista? Sua aplicação do materialismo dialético à natureza constitui uma extrapolação indevida de uma dialética que se aplica unicamente à sociedade? Sua visão sobre o tema preparou o terreno para a degeneração da II Internacional e para o stalinismo? Engels terminou caindo numa lógica positivista, isto é, numa visão de que o progresso da sociedade ocorre a partir de uma crescente incorporação da ciência em seu seio?

    A polêmica ao redor desses assuntos tem mais de um século; são temas recorrentes sempre que se discute a figura de Engels. Por isso, vamos aqui sistematizar os principais questionamentos que foram surgindo, ainda que não seja possível incluir todos. Entre os críticos mais conhecidos estão Lukács e vários de seus seguidores, alguns dos principais filósofos da Escola de Frankfurt (como Herbert Marcuse), Jean Paul Sartre, e correntes como os chamados “marxistas humanistas”, oriunda da Tendência Johnson-Forrest (pseudônimos de C.R.L. James e Raya Dunayevskaia, respectivamente), uma cisão do antigo SWP norte-americano na década de 1950, assim como boa parte dos intelectuais que, embora se reivindiquem marxistas, não defendem a revolução socialista, mas apenas a radicalização da democracia.

    Por outro lado, não partiremos do zero, porque já existe uma polêmica desenvolvida contra intelectuais anti-engelsistas. Rosa Luxemburgo, Lenin e Trotsky, durante toda sua vida apoiaram-se explicitamente nas elaborações de Marx e Engels, e defenderam-nas contra os revisionistas da II Internacional e contra o stalinismo no caso de Trotsky.

    Como essa polêmica não é nova, muitos autores estudaram a obra de Engels e demonstraram sua identidade com o pensamento de Marx, começando por David Riazanov. Mais recentemente, autores como Nahuel Moreno 2, John Rees 3 e o economista marxista Michael Roberts também se posicionaram nesse sentido.

    Entre estas contribuições, uma muito importante foi a do físico-químico Robert Havemann, que viveu na Alemanha Oriental, sobre a relação entre o materialismo dialético e as ciências.
    Havemann foi um cientista defensor do marxismo e também um ativista político contra o regime vigente. Ele se enfrentava no campo teórico com a concepção stalinista da burocracia da RDA e do Kremlin nas décadas de 1960 e 1970.

    O primeiro ataque: Lukács

    Uma das primeiras vozes nas fileiras marxistas a questionar Engels, argumentando contra a utilização do método dialético para analisar a natureza, foi o filósofo húngaro Georg Lukács. Seus primeiros comentários críticos aos conceitos de Engels sobre a relação entre homem e natureza aparecem no livro História e consciência de classe, publicado em 1923. No artigo “O que é o marxismo ortodoxo?”, incluído no livro, ele afirma numa nota de rodapé, em que fica mais claro o questionamento a Engels.

    «Esta limitação do método à realidade histórico-social é muito importante. Os mal-entendidos que o modo engelsiano de expor a dialética tem causado derivam essencialmente do fato de Engels – seguindo o mau exemplo de Hegel – ter estendido o método dialético ao conhecimento dos natureza; sendo assim as determinações decisivas da dialética; ação recíproca entre sujeito e objeto, unidade de teoria e prática, modificação histórica do substrato das categorias como base de sua modificação no pensamento, etc., não são encontrados no conhecimento da natureza. Infelizmente, não tenho espaço para discutir essas questões em detalhes4

    Para Lukács, Engels ignora a questão da dialética sujeito-objeto no processo histórico, segundo ele essencial ao marxismo. Essa determinação, de acordo com essa leitura, levaria a retirar do método dialético a questão da transformação prática, sua dimensão prática-revolucionária, e isso acarretaria uma volta ao materialismo contemplativo, ao estilo de Feuerbach. Ou seja, a busca de uma dialética que ligasse a história humana à história natural seria incorreta. Por isso, Lukács acusava Engels de obscurecer a dialética autenticamente revolucionária de Marx. 5

    O problema é que a realidade não pode ser separada em planos ou compartimentos intransponíveis, sujeitos a leis completamente diferentes, pois se um desses planos é considerado “real”, que nome poderia ser dado aos demais? Se existe um plano que não pertence àquilo que é real, só pode ser algo irreal, algo que não está no mundo objetivo e só tem significado enquanto obra da imaginação; portanto, a ideia criaria um outro mundo, e recaímos no idealismo. Ou seja, se a natureza forma uma totalidade, na qual está contemplada o mundo objetivo – e a humanidade faz parte dele –, não há sentido em isolar a humanidade ou isolar a natureza, vendo seu desenvolvimento em oposição ao homem e à sociedade. Por isso, é um erro ver a dialética “somente” na sociedade, não na natureza.

    Uma parte do chamado “marxismo ocidental» 6 posteriormente iria além e negaria completamente a existência de uma dialética na natureza. Isto leva diretamente ao idealismo filosófico.

    Afinal, se a natureza é alheia à dialética, se ela não tem um desenvolvimento através da história, e só quem tem uma história é a humanidade, isso significa que existem duas esferas paralelas e isoladas: a sociedade humana, que tem história, e a natureza 7. Assim, a humanidade estaria se movendo em base a leis próprias de sua esfera. E a natureza, por não possuir tais leis, seria estática e teria surgido de alguma origem/causa externa – o que era a convicção de Hegel. Lembremos que Hegel defendia que a ideia era a geradora da realidade objetiva (por isso, Lenin chama sua concepção de “idealismo objetivo”).

    As teorias científicas sobre a evolução do sistema solar e dos planetas, assim como a teoria da evolução das espécies de Darwin, dão base uma visão dialética da natureza, independente da ação humana até seu surgimento. A partir do surgimento da humanidade passa a haver uma interação em que o ser humano, diferentemente dos demais animais, atua sobre o mundo real, tal como ele é.

    A crítica de Lukács não teve grande repercussão imediata e ele se retratou depois, quando aderiu ao stalinismo. Mais tarde, em textos como Prolegômenos para uma Ontologia do ser social, publicado postumamente, voltou a fazer críticas às formulações filosóficas de Engels, embora reivindicando seu papel na elaboração e divulgação do marxismo.

    Mas o importante aqui não é seguir todo o percurso teórico de Lukács, com suas idas e vindas. O central é entender que essa crítica do jovem Lukács inaugurou uma linha de contestação às posições de Engels, assumida depois por vários intelectuais, lukacsianos ou não.

    Outros críticos

    A maioria dos “marxistas ocidentais” inspira-se nessa crítica para considerar o materialismo dialético e o materialismo histórico, além do conceito de socialismo científico, como parte de uma visão determinista, atribuída a Engels, e não a Marx (ou pelo menos não ao jovem Marx). 8

    A Escola de Frankfurt ficou conhecida no período pós-guerra, quando defendeu que houve um desvio do marxismo após os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, onde está o texto «O Trabalho Alienado», considerado por Erich Fromm como o texto central da “concepção marxista do homem”.

    Para alguns deles, após este texto, Marx e em particular Engels teriam supostamente abandonado o “humanismo” e caído numa visão cientificista. Coerente com essa revisão, alguns dos críticos da Escola de Frankfurt afirmavam que não é possível associar a luta pela liberdade humana e pela desalienação da humanidade a uma determinada classe, no caso o proletariado. Herbert Marcuse, um dos principais filósofos dessa escola, elaborou uma análise sobre o proletariado dos países avançados considerando que haveriam perdido seu caráter revolucionário pela transformação do capitalismo em ‘capitalismo dirigido’, com sua organização que incorporava a maior parte dos trabalhadores na sociedade estabelecida. 9 Eles rejeitavam o papel do proletariado como sujeito social e, nessa linha, deveria retomar-se conceitos como “essência humana” que estaria submetida a uma alienação na sociedade atual e passaram a deender como estratégia uma luta pela desalienação do ser humano em geral e centrada na libertação do indivíduo. 10

    O mesmo acabou acontecendo com o “marxismo humanista” de Raya Dunayevskaia 11, dos anos 1950-60. Após sair do SWP, focou sua estratégia nos conselhos operários, sem necessidade de um partido revolucionário, para logo depois deixar de ver a classe operária como sujeito social da revolução. O grupo foi pioneiro na procura de outros sujeitos sociais que substituíssem a classe operária, a partir dos setores oprimidos como os negros, as mulheres e outros. Esta tendência acabou deixando de se considerar um partido e permaneceu como um grupo intelectual de propaganda 12.

    Jean Paul Sartre, filósofo de grande influência no pós-guerra, atacava Engels por repetir a mesma concepção que havia criticado em Hegel: impor as leis do pensamento à matéria. Segundo Sartre, Engels estenderia arbitrariamente a razão dialética, as leis que descobriu no mundo social, à natureza e às ciências. 13 Como observa Nahuel Moreno, por meio dessa crítica Sartre pensava valorizar a escolha individual, com sua filosofia existencialista – opondo-a ao determinismo stalinista, contra quem lutava nas décadas de 1950 e 60. Tal concepção levou-o a “levantar uma muralha chinesa entre o humano e a natureza orgânica e inorgânica”. 14 Assim, Sartre também caiu numa separação completa entre homem e natureza, ignorando a elaboração marxista sobre essa relação e absolutizando a opção política individual, independente da realidade, das condições objetivas.

    O materialismo mecanicista em sua versão stalinista é uma decorrência da dialética da natureza de Engels?

    Estas críticas levantam uma questão: a afirmação de uma lógica dialética aplicada à natureza seria uma base para o materialismo vulgar e mecanicista dos stalinistas? Muitos críticos de Engels opinam que o conceito de uma dialética da natureza presta-se inevitavelmente ao materialismo vulgar e ao positivismo.

    A maioria dos antiengelsistas toma os textos filosóficos de Engels – Anti-Dhuring, Dialética da natureza e Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã – como demonstração de um suposto enrijecimento mecanicista, comparando-o negativamente com Marx, que escaparia a esse processo de vulgarização. Marx não teria conseguido impedir o companheiro de luta e de elaboração teórica de toda a vida de cair em semelhante deriva e, ao morrer em 1883, teria deixado Engels ainda mais livre para dar asas a seus supostos desvios cientificistas e mecanicistas. Em particular, a Dialética da Natureza é permanentemente denunciada como uma aplicação que se afasta completamente da concepção materialista dialética de Marx.

    No entanto, neste texto, Engels foi explícito sobre a relação dialética entre o homem e a natureza. Como fundamento dessa visão está sua recusa à tese de Hegel de que a natureza – no sistema idealista hegeliano é um atributo da Ideia que viveria uma eterna repetição – não seria suscetível a um desdobramento histórico. Engels ressalta a posição ativa do homem em relação à natureza. E antecipa como essa relação pode levá-lo a modificar e até mesmo destruir a natureza, antecipando a preocupação atual com a crise climática.

    Em um capítulo dessa obra, O Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem, ele escreve:

    «Mas não nos regozijemos demasiadamente em face dessas vitórias humanas sobre a natureza […] A cada uma dessas vitórias, ela exerce sua vingança. Cada uma delas produz, em primeiro lugar, certas consequências com que podemos contar, mas, em segundo e terceiro lugares, produz outras muito diferentes, não previstas, que quase sempre anulam essas primeiras consequências. Os homens que, na Mesopotâmia, Grécia, Ásia Menor e em outras partes destruíram os bosques para obter terras cultiváveis, não podiam imaginar que, dessa forma, estavam dando origem à atual desolação dessas terras ao despojá-las de seus bosques, isto é, dos centros de captação e acumulação de umidade. […] Somos a cada passo advertidos de que não podemos dominar a natureza como um conquistador domina um povo estrangeiro, como alguém situado fora da natureza; mas sim que lhe pertencemos, com a nossa carne, nosso sangue e nosso cérebro; que estamos no meio dela; e que todo o domínio sobre ela consiste na vantagem que levamos sobre os demais seres de poder conhecer suas leis e aplicá-las corretamente […] Na realidade, a cada dia que passa, aprendemos a entender mais corretamente as suas leis e a conhecer os efeitos imediatos e remotos resultantes de nossa intervenção no processo que a mesma leva a cabo15

    É interessante notar como, já nesse texto, Engels problematiza a relação homem-natureza, a relação dialética entre o progresso econômico e científico de determinada sociedade e as possíveis consequências sociais contraditórias:

    «Mas, se foi necessário o trabalho de milênios para que chegássemos a aprender, den-tro de certos limites, a calcular os efeitos remotos de nossos atos orientados no sen-tido da produção, isso era muito mais difícil no que diz respeito aos efeitos sociais remotos desses atos. (…) E, quando Colombo descobriu a mesma América, não podia supor que, dessa forma, daria vida nova à escravidão, já superada, desde muito, em toda a Europa, estabelecendo os fundamentos para o tráfico negreiro16

    Robert Havemann: o combate ao stalinismo na ex-Alemanha Oriental, apoiado em Engels

    Durante o domínio stalinista na antiga Alemanha Oriental, o cientista Robert Havemann escreveu o livro Dialética sem dogma. Havemann intervinha nos debates científicos quando as academias oficiais da ex-URSS e da ex-Alemanha Oriental se recusavam a aceitar as descobertas de cientistas como Linus Pauling 17, porque seriam uma “negação do materialismo dialético”. 18

    Robert Havemann viu-se obrigado a defender as descobertas científicas de Pauling e mostrar como a tentativa de vetar determinadas evidências, supostamente passíveis de um “idealismo burguês”, conduzia à negação do marxismo. Nesta defesa, Havemann colocava-se em defesa do marxismo contra o stalinismo, do materialismo dialético contra a deformação mecanicista da burocracia e, para contestar a burocracia soviética, apoiava-se em Marx e, particularmente, nos trabalhos filosóficos sobre a relação entre natureza e sociedade feitos por Engels.
    Sobre a relação entre ciência e método dialético, o cientista alemão escreve:

    «Vamos lembrar mais uma vez o que os clássicos falam sobre isso. Eles sempre enfatizaram que o problema capital das ciências naturais, como de todas as ciências para o resto, consiste em passar do pensamento mecanicista, metafísico, a um pensamento dialético cada vez mais consciente… Nenhum filósofo em todo o mundo pode dizer como a teoria das partículas elementares deve ser posta dialeticamente. Mas essa teoria não pode ser desenvolvida sem o pensamento dialético, nem o conhecimento já adquirido nelas será compreendido em toda a sua profundidade sem assimilar o pensamento dialético19

    «Essas ideias 20, não apenas admiravelmente confirmadas pela teoria científico-natural mas, além disso, aprofundados por ela, têm grande importância para toda a nossa relação com o mundo. A imagem do mundo traçada pelo materialismo mecanicista não nos deixou liberdade para uma ação real. Todo o futuro, incluindo todas as nossas ações, já estava totalmente determinado pelo passado.

    «A primeira ruptura com esse determinismo rígido e, além disso, com a reinterpretação dos conceitos de passado, presente e futuro, ocorreu motivado pelos resultados da teoria da relatividade […] o passado é tudo aquilo de que podemos ter conhecimento; futuro é tudo em que ainda podemos intervir. Nem uma coisa nem outra existem no mundo do determinismo metafísico clássico.

    «… O fato de que desafiamos a ideia mecanicista clássica de que o futuro é totalmente determinado não significa, é claro, que vamos declarar que o futuro é totalmente indeterminado. O futuro é codeterminado pelo passado, mas não é determinado de forma definitiva e absoluta. […]. O homem, com a sua atividade, não é uma mera bola com a qual jogam as casualidades fantásticas, mas justamente o inverso: o homem utiliza praticamente a casualidade dos acontecimentos para conseguir o que deseja. Se esse acaso cego não existisse, não poderíamos transformar o mundo com nossos olhos videntes. A liberdade do homem baseia-se precisamente no fato de que o futuro do mundo pode ser determinado porque ainda não está determinado21

    Como explicaremos mais adiante, o raciocínio de Havemann é bem semelhante ao de Lenin e Trotsky sobre como o materialismo dialético pode e deve ser aplicado à ciência e ao estudo da natureza: não como uma filosofia externa que se impõe à realidade, mas um auxílio para os cientistas melhor entenderem os processos complexos das ciências naturais.

    Evidentemente, há diferenças na aplicação das leis da dialética na natureza e na história, mas ambas são parte do real, do mundo objetivo.

    Engels tinha uma concepção oposta à de Marx na aplicação da dialética à natureza?

    De modo algum. Não só porque Engels trabalhou em equipe com Marx, havendo uma divisão de tarefas entre ambos em relação às suas áreas de estudo, mas porque a visão de Marx, elaborada em conjunto com Engels, permaneceu fundamentalmente a mesma quanto à interação entre homem, natureza e sociedade.

    No texto A Ideologia alemã – que, segundo Marx 22, serviu para colocar no papel a concepção materialista da história desenvolvida por ele e por Engels –, há uma série de referências a essa questão:

    «Por exemplo, a importante questão sobre a relação do homem com a natureza (ou então, como afirma Bruno na p. 110, as ‘oposições em natureza e história’, como se as duas ‘coisas’ fossem coisas separadas uma da outra, como se o homem não tivesse sempre diante de si uma natureza histórica e uma história natural), da qual surgiram todas as ‘obras de insondável grandeza’ sobre a ‘substância’ e a ‘autoconsciência’, desfaz-se em si mesma na concepção de que a célebre ‘unidade do homem com a natureza’ sempre se deu na indústria e se apresenta de modo diferente em cada época de acordo com o menor ou maior desenvolvimento da indústria; o mesmo vale no que diz respeito à ‘luta’ do homem com a natureza, até o desenvolvimento de suas forças produtivas sobre uma base correspondente. A indústria e o comércio, a produção e o intercâmbio das necessidades vitais condicionam, por seu lado, a distribuição, a estrutura das diferentes classes sociais e são, por sua vez, condicionadas por elas no modo de seu funcionamento – e é por isso que Feuerbach, em Manchester, por exemplo, vê apenas fábricas e máquinas onde cem anos atrás se viam apenas rodas de fiar e teares manuais, ou que ele descobre apenas pastagens e pântanos na Campagna di Roma, onde na época de Augusto não teria encontrado nada menos do que as vinhas e as propriedades rurais dos capitalistas romanos23

    Marx teria modificado essa posição em uma fase posterior? Vejamos o trecho de O Capital em que Marx defende uma concepção idêntica:

    «Aqui, como nas ciências da natureza, se comprova a verdade da lei descoberta por Hegel em sua Lógica, segundo a qual, ao chegar a um determinado ponto, as mudanças meramente quantitativas se convertem em variações qualitativas. E, em uma nota de rodapé, Marx desenvolve essa ideia: a teoria molecular da química moderna… baseia-se em nenhuma outra lei além dessa24

    Riazanov, o maior estudioso sobre a obra de Marx e Engels e responsável pela formação do Instituto Marx-Engels na antiga URSS, resgatou várias obras inéditas ou publicadas de forma fragmentada pelos seus executores testamentários alemães (entre eles, Bernstein). Segundo ele,

    «Entre o ponto de vista da Ideologia Alemã e o que se desenvolveu no primeiro volume de O Capital não há qualquer tipo de ‘salto’. As concepções básicas que Engels desenvolveu no Anti-Dühring na seção de Filosofia, mesmo nas partes relacionadas às ciências naturais, já tinham sido completamente formuladas em O Capital em uma série de observações, que foram tão distorcidas por Dühring. No Anti-Dühring, Engels desenvolve o método dialético que Marx e ele tinham criado e que tinham empregado desde 1846, desde o tempo da Ideologia alemã. Quando publiquei Dialética da Natureza de Engels, que eu tinha descoberto, meu prefácio enfatizou que, em comparação com o que Engels havia dito no Anti-Dühring, este não continha nenhuma ideia nova. Eu escrevi ‘nenhuma ideia nova’ intencionalmente. A tentativa insustentável de alguns companheiros de encontrar algumas diferenças entre o Anti-Dühring e Engels da década de oitenta, que tinha ‘concepções completamente opostas’, surge do entendimento pouco claro de algumas observações no Anti-Dühring e de uma leitura desatenta do prefácio de Engels para a segunda edição do Anti-Dühring25

    Colocadas as premissas do problema e da discussão, no próximo texto veremos as consequências das críticas às elaborações de Engels na elaboração teórico-programática.

    Notas

    1. MORENO, Nahuel. Lógica marxista y ciencias modernas, México: Xolotl, 1973, p. 33. ↩︎
    2. Moreno em seu texto aborda também esse tema em relação aos críticos de Engels da época, Sartre e Della Volpe. ↩︎
    3. Foi membro da direção do SWP inglês. Rompeu com outros dirigentes em 2009 e fundou o grupo Counterfire. ↩︎
    4. LUKÁCS, Georg. Historia y conciencia de clase. Buenos Aires: Ediciones R. y R., 2013, p. 91. ↩︎
    5. [5] Por outro lado, é verdade que Lukács, nesse mesmo livro História e consciência de classe, tem uma variação sobre esse tema: primeiro nega que o método dialético seja aplicável à natureza, por falta de dimensão subjetiva; e em outro trecho do mesmo livro reconhece a existência de uma dialética distinta e objetiva na natureza. ↩︎
    6. Apesar de ser um termo muito genérico, optei por utilizar o conceito de Perry Anderson, que serve para abarcar uma série de correntes que tiveram em comum essa localização teórica, apesar das diferenças entre elas. ↩︎
    7. Marx, nos Manuscritos econômico-filosóficos, escreve: “o pensamento que é alienado e abstrato e ignora o homem e a natureza reais. O caráter externo desse pensamento abstrato… a natureza como existe para esse pensamento abstrato. A natureza é externa a ele, uma privação dele mesmo, e só concebida como algo externo, como pensamento abstrato, mas pensamento abstrato alienado”. ↩︎
    8. Apoiam-se em particular nos Manuscritos econômico-filosóficos. ↩︎
    9. Mas precisamente nos países industriais avançados, já por volta da passagem do século, as contradições internas foram sendo dominadas por uma organização progressivamente eficiente, e a força negativa do proletariado foi sendo progressivamente reduzida”, Razão e revolução, Rio, Paz e Terra, 1978, p. 404. ↩︎
    10. Idem, pag. 407 ↩︎
    11. Raya Dunayevskaia foi uma militante russo-americana que trabalhou por um curto período como tradutora e secretária de Trotsky em seu exílio no México. Rompeu com o SWP junto com Schatchman e Burnham em 1940, voltou a este partido em 1947 para afinal romper definitivamente no início dos anos 1950. Considerava a ex-URSS como “capitalismo de estado”. ↩︎
    12. Alguns de seus integrantes, como o professor universitário Kevin Anderson, autor de Marx nas margens defendem essas posições nos debates sobre o marxismo na academia. ↩︎
    13. Sartre escreve: “O resultado desse belo esforço [de Engels] é paradoxal: Engels censura Hegel por impor as leis do pensamento à matéria. Mas é precisamente o que ele mesmo faz, pois obriga as ciências a verificar uma razão dialética que ele descobriu no mundo social. Somente no mundo histórico e social, como veremos, existe verdadeiramente uma razão dialética; ao transportá-lo para o mundo «natural», dando-lhe força, Engels tira sua racionalidade. Não se trata mais de uma dialética que o homem faz , fazendo-se a si mesmo, mas de uma lei contingente da qual só se pode dizer: é assim e não de outra forma”. in Marxismo y Existencialismo. Buenos Aires: Sur, p. 128, apud Moreno, Lógica marxista y ciencias modernas, p. 38. ↩︎
    14. MORENO, Nahuel. Lógica Marxista y ciencias modernas. México: Ed. Xolotl, 1981, p. 39. ↩︎
    15. Citados por Michael Roberts, Engels sobre a natureza e a humanidade, em: <litci.org/pt/michel-roberts-engels-sobre-natureza-e-humanidade/>. ↩︎
    16. Idem ↩︎
    17. Pauling foi pioneiro na aplicação da Mecânica Quântica em química e recebeu o prêmio Nobel de Química em 1954. ↩︎
    18. Houve também o famoso caso Lyssenko, cientista russo que defendeu que a genética era estranha ao materialismo dialético e conseguiu impor esse ponto de vista e banir a genética da URSS por anos. Lyssenko não se cansou de atribuir suas teses diretamente a Stalin e ao suposto mérito deste último como o “maior cientista” dos tempos atuais. ↩︎
    19. ENGELS, Friedrich. Dialética da natureza. Berlim 1952, p. 223. ↩︎
    20. Havemann refere-se à seguinte citação da Dialética da Natureza: “Os pesquisadores da natureza, ainda que se revolvam são dominados pela filosofia. A questão é se eles querem sê-lo por uma má filosofia que esteja na moda ou por uma forma de pensamento teórico que se baseia no conhecimento da história do pensamento e de suas conquistas. Os pesquisadores da natureza ainda estão permitindo uma vida vegetativa para a filosofia, ao utilizar os restos da antiga metafísica. Somente quando a dialética haja sido assimilada pelas ciências da natureza e da história e tornar supérflua a velha bugiganga filosófica – exceto para a pura teoria do pensamento – então desaparecerá absorvida pela ciência positiva”. ↩︎
    21. HAVEMANN, Robert. Dialéctica sin dogma, 10ª lección, p. 87. ↩︎
    22. No Prefácio à Contribuição à crítica da economia política: “Friedrich Engels, com quem mantive uma troca constante de ideias por correspondência desde que a publicação de seu brilhante ensaio sobre a crítica das categorias econômicas … chegou por outro caminho (compare sua A Situação da classe trabalhadora na Inglaterra) ao mesmo resultado que eu, e quando, na primavera de 1845, ele também veio morar em Bruxelas, decidimos apresentar em conjunto nossa concepção, em oposição à concepção ideológica da filosofia alemã, de fato, para prestar contas com nossa antiga consciência filosófica”. ↩︎
    23. In A Ideologia alemã, Feuerbach, História, S. Paulo, Boitempo p. 31. ↩︎
    24. Citado em: Anti-Dühring, Parte I, Dialética, Capítulo XII: “Quantidade e qualidade”. ↩︎
    25. RIAZANOV, David. 50 anos do Anti-Dühring, 1928. ↩︎

    Publicado em novembro de 2020 na revista Marxismo Vivo N. 16

  • Consequências programáticas das críticas à obra de Engels

    Consequências programáticas das críticas à obra de Engels

    Como analisamos, uma miríade de tendências questiona o legado de Engels. Alguns acusam-no de ser responsável pela deriva reformista na social-democracia do século XX; outros veem nele a justificação dos totalitarismos estalinistas e da crise que estes provocaram no seio do marxismo.

    Por José Welmowicki

    Temos um exemplo desta última visão no texto de Héctor Benoit, “Da dialética da natureza à exagerada estratégia política de Engels”, publicado no livro A obra teórica de Marx.

    Héctor Benoit foi um dos fundadores e referência teórica do grupo brasileiro Negação da Negação, que atualmente tem o nome Transição Socialista. Embora se trate de um grupo de pequena influência política, Benoit, que leciona na Universidade Estadual de Campinas, possui certa influência no “marxismo académico”, na área da filosofia.

    Segundo Benoit, dessa obra de Engels partiria a visão determinista – que se teria expresso na Introdução de 1895 a As Lutas de Classes na França, de Marx – que constituiria a base teórica não só de toda a orientação reformista e revisionista subsequente do SPD, como também do estalinismo. O materialismo dialético e o materialismo histórico seriam criações de Engels, que serviram aos desígnios do estalinismo.

    «Nesta obra, Dialética da Natureza, assim como em algumas páginas de Anti-Dühring, de fato citando muitas vezes Hegel, Engels desenvolve precisamente a teoria de que existe uma dialética objetiva presente na natureza. Essa dialética apareceria refletida nas leis gerais descobertas pelas modernas ciências naturais, nas leis do pensamento e seria reencontrada e confirmada na concepção dita “científica” da história humana (aquela desenvolvida por Marx e por ele próprio). Engels esboça assim a hipótese de que existiria uma certa legislação dialética única que governa a história da natureza, do pensamento e da história humana, estas últimas subjugadas àquela. Essa hipótese apoiava-se fundamentalmente em três fontes teóricas: a dialética hegeliana, a conceção marxista da História e as modernas ciências naturais (…) Por outro lado, onde encontraremos seguidores dessas conceções políticas do último Engels? Exatamente naqueles que também se distinguiram por adotar uma versão cientificista do marxismo: Bernstein, Kautsky e o stalinismo (…) Ambos, Bernstein e Kautsky, são declaradamente seguidores de um materialismo evolucionista e, não por acaso, foram inspiradores teóricos diretos do reformismo que desembarcou em agosto de 1914, e que se desenvolveu posteriormente provocando sucessivas derrotas da classe operária europeia, derrotas que levaram, finalmente, ao fascismo e ao nazismo.

    «Paralelamente, encontramos a doutrina engelsiana, sobretudo nos manuais do marxismo stalinista. Os quais repetem, de fato, os grandes esquemas de Engels relativamente à dialética da natureza, às leis lógicas gerais que se presumiriam válidas no domínio da natureza e da História, e que assim fundariam, de um lado, o materialismo dialético (uma espécie de epistemologia marxista que conteria as leis da teoria do conhecimento marxista) e, de outro lado, o materialismo histórico (uma sociologia dinâmica e antropológica que conteria as leis do desenvolvimento humano). Estaríamos, assim, com o materialismo dialético e com o materialismo histórico, em contraposição ao “sistema de mundo marxista”, um sistema naturalista-positivista que permitiria prever, com um rigor científico inegável, o curso da natureza e da História.» 1

    Em primeiro lugar, Benoit reproduz uma versão vulgarizada da compreensão de Engels sobre a dialética da natureza, “uma certa legislação dialética única que governa a história da natureza, o pensamento e a história humana, estas últimas imersas nessa mesma legislação”, e repete as acusações infundadas de que Engels simplesmente aplica essas leis gerais à natureza e à história como se fossem um todo idêntico, numa visão mecânica e evolucionista.

    Em segundo lugar, procura as raízes do reformismo da II Internacional apenas nas ideias e não nas contradições concretas que atravessaram a social-democracia face à ascensão do imperialismo e, mais adiante, as bases do stalinismo. Considera que todo o desenvolvimento do reformismo e do stalinismo já estava implícito na tese do último período de Engels, sucedendo-se numa evolução linear: do último Engels a Bernstein, depois a Kautsky, depois… ao stalinismo. Eis a explicação, segundo essa versão, da bancarrota da II Internacional e do papel contrarrevolucionário do estalinismo. Por essa versão, o “pecado original” estaria em Engels, pelo menos desde o Anti-Dühring (1877-1878) e a Dialética da Natureza (póstumo).

    O artigo de Benoit associa os últimos anos de Engels diretamente ao revisionismo e ao reformismo, aceitando a falsificação de Bernstein, que considera a Introdução de 1895 de Engels em As Lutas de Classes na França, de Marx, como o seu Testamento. Um artigo de Francesco Ricci 2 já demonstrou que a versão popularizada é uma edição deturpada do texto original de Engels. O artigo de Marcos Margarido neste dossiê mostra que outro artigo 3 utilizado por Benoit não resiste a uma análise séria. Como mostra Lenin em O Estado e a Revolução 4, entre 1878 e 1895 Engels escreveu várias obras nas quais reafirma as conceções marxistas do Estado e da necessidade de uma revolução violenta, extraídas das lições da Comuna de Paris de 1871.

    Em 1879 (isto é, depois da publicação do Anti-Dühring), Marx e Engels escrevem uma circular ao partido alemão 5, atacando impiedosamente um grupo sediado em Zurique, do qual fazia parte Bernstein, como pequenos-burgueses que pretendiam retornar ao socialismo verdadeiro 6 e contagiar o SPD com ideias reformistas 7, repudiando-os energicamente. Alguns dos textos desse período são clássicos, como A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, de 1884, do qual Lenin extraiu boa parte das citações para escrever O Estado e a Revolução, para demonstrar que o Estado é constituído essencialmente pelo aparato represivo militar, cujo objetivo é impor o poder burguês e explorar as classes dominadas, e que é necessário quebrar a máquina do Estado burguês, mesmo nas suas formas republicanas.

    Em 1891, Engels, por ocasião do 20º aniversário da Comuna, publica um prefácio ao texto de Marx, A Guerra Civil na França 8, de 1871, e reflete sobre o “filisteu social-democrata” que expressava “horror” à “ditadura do proletariado”. Em 1894, escreve uma carta a Paul Lafargue, combatendo a intervenção reformista de Jean Jaurès no parlamento francês. Lenin referiu-se a todos esses textos nas suas anotações para escrever O Estado e a Revolução, publicados nas suas obras completas, no tomo 33, como Cadernos sobre Marxismo e o Estado. Mas, para justificar o argumento da “exagerada fase de Engels”, era necessário ignorar esses textos, incluídos trechos do próprio Anti-Dühring, citados por Lenin.

    Além disso, a incoerência é de tal magnitude que não se percebe uma contradição evidente no seu raciocínio: como é que os dirigentes marxistas revolucionários mais importantes do século XX, como Rosa Luxemburgo, Lenin e Trotsky, continuaram a reivindicar toda a obra de Engels? Lenin e Trotsky reivindicavam, explicitamente, a elaboração filosófica dos textos de Engels, que Benoit ataca como mecanicistas e base para o reformismo. Todos eles foram categóricos em defender, até ao fim das suas vidas, Marx e Engels como os seus mestres. Ou será que os três não conseguiram perceber o grau de revisionismo presente em Engels nessa fase? Mesmo nessa visão de sucessão linear e esquemática, que vai de Engels a Bernstein e a Kautsky, Benoit está equivocado, pois vê Kautsky como um revisionista desde o início do seu papel como teórico no SPD. Contudo, a realidade é dialética. Kautsky foi reivindicado tanto por Lenin como por Trotsky até a Primeira Guerra Mundial, quando se produziu a grande traição que marcou a bancarrota da Segunda Internacional.

    Portanto, essa tese de uma sucessão evolutiva de teorias carece de base na realidade no que diz respeito à evolução da própria social-democracia e ignora todo o complexo processo de luta de classes e da sua adaptação contraditória à democracia burguesa, que, segundo Lenin 9, foi produto do surgimento de uma base social – a aristocracia operária – que sustentou a revisão social-democrata. Ignora um duro processo de luta política interna, sob a pressão da burguesia imperialista e dos Estados burgueses sobre os partidos social-democratas e a burocracia sindical, que levou a Segunda Internacional à degeneração.

    Da mesma forma, o surgimento da burocracia soviética e de Stálin ocorreu devido ao processo objetivo de isolamento da revolução russa num país atrasado e à criação de uma base social na própria burocracia do Estado operário soviético. Para controlar o poder, a burocracia entablou uma feroz luta contrarrevolucionária, renunciando ao programa e à teoria marxistas, à herança teórica de Marx e Engels.

    Stálin rejeitou explicitamente princípios como o internacionalismo que Marx e Engels expressaram claramente tanto no Manifesto Comunista como na Primeira e Segunda Internacionais, de que o socialismo se realizaria numa escala mundial – uma ideia oposta à do socialismo num só país, típica do stalinismo. Para Marx e Engels, o desenvolvimento internacional do capitalismo determina o caráter internacional da revolução operária. Isto demonstra como o stalinismo se opõe a Marx e Engels e o retrocesso que a teoria do “socialismo num só país” significou.

    Stálin teve de liquidar fisicamente a ala revolucionária que lutava por manter as bases programáticas e teóricas de Marx e Engels: a Oposição de Esquerda na URSS e o seu principal dirigente, Trotsky.

    Entre aqueles que consideravam os textos de Engels como os precursores do stalinismo, existe outra vertente: aquela que critica a proposta de se chegar ao socialismo apenas através da tomada do poder pela classe operária e da destruição do Estado burguês. Segundo estes, seria uma visão reducionista, por ser de classe, que levaria necessariamente a uma visão destrutiva e autoritária, expressa na defesa da ditadura do proletariado.

    Para este tipo de posição, Engels cometia o pecado de não ver o papel da política, das mediações no terreno do Estado – variantes de medidas de corte “democrático radical”. Essa corrente de pensamento teve grande divulgação e alcançou uma série de setores que se reivindicavam marxistas, até mesmo uma corrente que surgiu do trotskismo, a maioria do Secretariado Unificado da IV Internacional, cujo maior dirigente e teórico foi Ernest Mandel. Já nos anos 70-80, este refletia a pressão do eurocomunismo para abandonar a defesa da ditadura do proletariado. Posteriormente, com a restauração do capitalismo no Leste europeu, teóricos como Daniel Bensaïd e Michael Lowy levaram a uma dinâmica na direção do reformismo. No Brasil, Juarez Guimarães, dirigente e teórico da DS, uma tendência do PT, no seu livro Democracia e Marxismo 10, acusa Engels de ver apenas como saída socialista a ditadura do proletariado, numa perspetiva clasista (para ele, equivocada). Herdeiro dessa interpretação, Guimarães passou a defender uma “revolução democrática” e a combater a “ditadura do proletariado”. 11

    É verdade que Guimarães identifica a origem dos problemas em Marx, onde já haveria “tensões constitutivas”. Ou seja, haveria contradições entre o determinismo presente em obras como O Capital e o Prólogo à Contribuição para a Crítica da Economia Política e uma visão “praxiológica da história”, presente em obras anteriores, como O 18 Brumário de Luís Bonaparte 12. Engels seria responsável pela “primeira onda determinista”, que acabaria por preparar o terreno para o determinismo de Kautsky e do “DIAMAT” 13 de Stálin.

    De forma muito superficial, com citações fora de contexto e interpretadas de modo unilateral, Guimarães afirma que, a partir do Anti-Dühring, Engels teria uma visão em que “o marxismo seria, então, compreendido de forma dual: materialismo histórico (a ciência da sociedade e da natureza) e materialismo dialético (o estudo das leis do conhecimento). O Capital seria a expressão máxima do primeiro e a sistematização contida na obra filosófica de Engels, a referência fundamental para a edificação do segundo. O edifício dogmático do marxismo estava de pé, subordinando ou restringindo o mundo polimórfico e variante da política às rígidas certezas das ciências, paradoxalmente ancorando toda essa construção num método exterior e dotado do paradigma das ciências naturais da época.

    De forma semelhante a Benoit, Guimarães coloca-se contra o materialismo dialético e histórico e acusa Engels de ser o responsável pela construção do “edifício dogmático” do marxismo, que seria depois assumido pelo estalinismo. Guimarães cita as cartas de Engels a Joseph Bloch e C. Schmidt de 1890, comentando que o seu conteúdo mal “revela as inconsistências lógicas contidas no sistema formulado por Engels14, embora, justamente, nessas cartas Engels alertasse contra a distorção de suas ideias por alguns seguidores, a ponto de tornar “absurda” a conceção marxista.

    Na verdade, o que Guimarães questiona é que a política tenha de se basear numa conceção materialista da história, elaborando a sua proposta a partir da definição das bases econômicas e sociais concretas da sociedade, numa perspetiva de classe. Para ele, isso seria “subordinar ou restringir o mundo polimórfico e variante da política”, embora Engels alertasse justamente contra alguns seguidores que tentassem extrair das suas elaborações e das de Marx conclusões materialistas vulgares e deterministas, baseadas exclusivamente na estrutura econômica da sociedade – algo que Engels refuta com firmeza, afirmando que é necessário compreender a relação entre a economia e as formas políticas, jurídicas e culturais, não de forma mecânica, mas reconhecendo a existência de uma ação recíproca entre os factores superestruturais, culturais ou ideológicos da sociedade e a economia, deixando claro que esses seguidores não compreenderam que a determinação econômica prevalece, em última análise, não como uma relação direta e mecânica. 15

    Podemos deduzir que, para Guimarães, no mundo polimórfico da política, as propostas devem ser completamente autônomas da base social e económica, abandonando a visão marxista contida em A Ideologia Alemã.

    Rosa Luxemburgo recorre a Engels na luta contra os reformistas da Segunda Internacional

    Vejamos como os revolucionários que lideraram o combate teórico e político contra a degeneração reformista da II Internacional e, posteriormente, contra a contrarrevolução stalinista, apelaram aos ensinamentos deixados por Engels.

    Comecemos por dizer algo sobre Rosa Luxemburgo. Rosa foi a vanguarda do combate ao revisionismo de Eduard Bernstein já em 1899, no seu clássico texto Reforma e Revolução. Rosa nunca aceitou a tentativa de Bernstein de pintar Engels como se este tivesse se transformado num reformista no final da sua vida. Coerente com essa posição, no seu famoso texto escrito na prisão, no qual denuncia a traição da social-democracia na Primeira Guerra – A Crise da Social-Democracia, conhecido como o Panfleto Junius –, ela apoia-se nas elaborações de Engels para contestar a posição do Partido Social-Democrata e da maioria da II Internacional:

    “… que leva a converter-se num sistema de dogmas – que também exercem a sua influência nas lutas históricas e, em muitos casos, determinam a sua forma como fator predominante. Trata-se de um jogo recíproco de ações e reações entre todos esses fatores, no qual, através de uma infinita multitude de acasos (isto é, de coisas e acontecimentos cuja conexão interna é tão remota ou tão difícil de demonstrar que podemos considerá-la inexistente ou subestimá-la), acaba por impor-se, como necessidade, o movimento econômico. Se não fosse assim, a aplicação da teoria a qualquer época histórica seria mais fácil do que resolver uma simples equação do primeiro grau. Nós mesmos fazemos a nossa história, mas isso ocorre, em primeiro lugar, de acordo com premissas e condições muito concretas. Entre elas, são as premissas e condições económicas que decidem, em última instância.Os homens não fazem a história arbitrariamente, mas, apesar disso, fazem-na eles mesmos. A ação do proletariado depende do grau de maturidade do desenvolvimento social. Mas o desenvolvimento social não é independente do proletariado. Este é, na mesma medida, a sua força motriz e a sua causa, bem como o seu produto e a sua consequência. A própria ação do proletariado integra a história, contribuindo para a defini-la (…). É por isso que Friedrich Engels invoca a vitória definitiva do proletariado como um salto da humanidade do reino animal para o reino da liberdade. Esse salto também está ligado às leis de bronze da história, aos mil elos de um desenvolvimento anterior, doloroso e demasiado lento. Mas nunca poderia ser realizado se, do conjunto dos pré-requisitos materiais acumulados pelo desenvolvimento, não surgisse a centelha da vontade consciente das grandes massas populares.» 16

    Teria Lenin superado Engels e seu “mecanicismo”?

    Existe outra lenda também transmitida por vários autores, segundo a qual Lenin teria seguido Engels no terreno filosófico, referindo-se aos chamados Cadernos Filosóficos de 1915. Entre eles, Raya Dunayevskaya, fundadora do marxismo humanista 17 – que fez a primeira tradução para o inglês dos Cadernos Filosóficos de 1915.

    No entanto, vejamos a verdadeira história. Na homenagem a Engels, quando este falece em 1895, Lenin declarou:

    A filosofia de Hegel tratava do desenvolvimento do espírito e das ideias; era idealista. Do desenvolvimento do espírito, a filosofia de Hegel deduzia o desenvolvimento da natureza, do homem e das relações entre os homens no seio da sociedade. Retomando a ideia hegeliana de um processo perpétuo de desenvolvimento… Marx e Engels rejeitaram a concepção idealista pré-concebida; analisando a vida real, constataram que não é o desenvolvimento do espírito que explica o fenômeno da natureza, mas, ao contrário, é necessário explicar o espírito a partir da natureza, da matéria… Ao contrário de Hegel e dos hegelianos, Marx e Engels eram materialistas. Partindo de uma concepção materialista do mundo e da humanidade, verificaram que, tal como todos os fenômenos da natureza têm causas materiais, igualmente o desenvolvimento da sociedade humana é condicionado pelo desenvolvimento das forças materiais, as forças produtivas.» 18

    Em 1913, Lenin escreveu As Três Fontes e as Três Partes Constitutivas do Marxismo e, em 1914, para uma enciclopédia, escreveu Karl Marx, um Breve Esboço Biográfico Seguido de uma Exposição do Marxismo, mantendo a mesma compreensão do texto de 1895.

    Os Cadernos Filosóficos são a edição de um caderno de anotações de Lenin sobre as suas leituras dos clássicos de Hegel durante a Primeira Guerra Mundial, decisivos para o avanço da elaboração do principal dirigente do Partido Bolchevique relativamente ao caráter da Revolução Russa, ao imperialismo e para compreender as raízes da bancarrota da Segunda Internacional e do seu revisionismo. Esse estudo, portanto, foi decisivo para que Lenin progredisse na sua elaboração.

    Mas, vários intelectuais utilizam-nos como suposta demonstração de que Lenin seguiu, de forma acrítica, Engels até 1914, mas que, ao ler Hegel, percebeu os erros de Engels e passou a negá-los e superá-los. Como eram cadernos de anotações das suas leituras, constituíam-se em observações pontuais para a sua autocompreensão e uso posterior. Ainda assim, não é difícil perceber que é falsa a interpretação de que Lenin questiona Engels em uma forma semelhante à desses intelectuais. Em relação ao tema da dialética da natureza e a elaboração de Engels, Lenin fez os seguintes comentários, a partir da leitura de Hegel:

    «‘Na natureza’, os conceitos têm ‘carne e osso’ – isso é excelente! Mas isso é exatamente materialismo. Os conceitos humanos são a alma da natureza – isso é apenas uma maneira mística de dizer que, nos conceitos humanos, a natureza reflete-se de modo peculiar (isso NB 19: de modo peculiar e dialético!!), NB De onde vem essa coincidência? 20 De Deus (eu, ideia, pensamento, etc., etc.) ou da natureza? Engels tem razão em seu modo de colocar a questão21

    Como se elucida na edição da Boitempo editora, Lenin apoia-se no texto de Engels, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã para mostrar que a dialética se aplica à natureza, mas de modo peculiar, ou particular, assim como faz Engels em seu texto.

    «O conceito (o conhecimento) revela no ser (nos aparecimentos imediatos) a essência, a lei da causa, da identidade, da diferença, etc. – é esse realmente o curso geral de todo conhecer (toda a ciência) humano em geral. Esse é o curso tanto da ciência da natureza como da economia política ‘e da história’. A dialética de Hegel é, nessa medida, a generalização da história do pensamento. Parece uma tarefa extraordinariamente grata seguir isso mais concretamente, mais detalhadamente, na história das ciências singulares. Na lógica, a história do pensamento deve, no geral, coincidir com as leis do pensamento.» 22

    Mais uma vez Lenin afirma ter a mesma posição de Engels (e Marx), que a dialética se aplica tanto nas ciências naturais quanto na história. Mais adiante, ele volta a ressaltar que a ciência natural mostra as mesmas leis da dialética, aplicadas à natureza:

    «… a ciência da natureza contudo mostra-nos (e aqui, mais uma vez, é preciso mostrar isso em qualquer exemplo simplicíssimo) a natureza objetiva em suas próprias qualidades, a transformação do singular no universal, do contingente no necessário, transições, fluíres, e a conexão mútua dos opostos…» 23

    A afirmação de que Lenin “supera o determinismo de Engels” é baseada em apenas uma citação:

    A exatidão deste aspeto do conteúdo da dialética deve ser comprovada através da história da ciência. Habitualmente (por exemplo, em Plekhanov) dá-se atenção insuficiente a este aspecto da dialética: a identidade dos opostos é tomada como somatória de exemplos (‘por exemplo, o grão’; ‘por exemplo, o comunismo primitivo’). Isto também acontece em Engels. Mas isto ‘a fim de popularizar’ e não como lei do conhecimento (e lei do mundo objetivo).” 24

    A única coisa que Lenin afirma, ao criticar o materialismo de Plekhanov – para quem a identidade dos opostos é tomada como soma de exemplos e transformada em lei do conhecimento – é que Engels, sem cair nesse tipo de interpretação mecânica, apresenta alguns problemas em textos de divulgação.

    Enfim, na quase totalidade dos casos, Lenin cita Engels para reivindicar a sua elaboração filosófica nos livros Anti-Dühring e Ludwing Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã, e como base de apoio para as suas críticas a Hegel.

    Anos mais tarde, em 1922, Lenin faz uma conferência na Academia de Ciências da URSS, publicada sob o título O Materialismo Militante, onde refere, com toda a clareza, a necessidade de aplicar o materialismo dialético às ciências naturais, de forma semelhante a Engels:

    E, para não abordar tal fenómeno de forma inconsciente, devemos compreender que, sem uma sólida fundamentação filosófica, não há ciência da natureza nem materialismo que possa suportar a luta contra o investidura das ideias burguesas e o reestabelecimento da conceção burguesa do mundo […] Os cientistas modernos encontrarão (se souberem procurar e se nós aprendermos a ajudá-los) na interpretação materialista da dialética de Hegel uma série de respostas às questões filosóficas suscitadas pela revolução nas ciências naturais e que fazem ‘patinar’ para a reação dos admiradores intelectuais da moda burguesa”. 25

    Como se pode constatar, Lenin, no seu processo de elaboração acerca da dialética materialista, fez importantes progressos, mantendo, contudo, um ponto de vista idêntico ao de Engels sobre a relação entre a natureza, o homem e a sociedade e sobre a aplicação da dialética na natureza e, portanto, nas ciências naturais.

    Trotsky e Engels

    O grande dirigente da Revolução Russa e fundador da IV Internacional defendeu o materialismo dialético durante toda a sua trajetória, e a aplicação da dialética à ciência, tal como fizeram Engels e Lenin. Na luta contra a burocracia stalinista, escreveu o texto As Tendências Filosóficas do Burocratismo, de dezembro de 1928, no qual afirma:

    Que, desde logo, é a principal função social da burocracia e a fonte da sua preeminência; deixam, inevitavelmente, uma marca bem definida em todo o seu modo de pensar. Não é por acaso que palavras como ‘burocrático’ e ‘formalismo’ se aplicam não só a um sistema de administração ou gestão, mas também a um modo definido do pensamento humano… Essas características podem também ser encontradas na filosofia (…) O materialismo não rejeita os fatores, assim como a dialética não rejeita a lógica. O materialismo utiliza os fatores como um sistema de classificação dos fenômenos que surgiram historicamente – qualquer que seja o modo em que a sua essência espiritual possa ser ‘delimitada’ – a partir das forças produtivas subjacentes e das relações sociais e, a partir das bases naturais, históricas, isto é, materiais, da natureza” (…) “Não há dúvida de que uma aplicação consciente do materialismo dialético às ciências naturais, com uma compreensão científica da influência da sociedade de classes sobre os objetivos, os métodos, as metas da investigação científica, enriqueceria as ciências naturais e as reestruturaria em muitos aspectos, revelando novos laços e conexões, e dando às ciências naturais um lugar de renovada importância na nossa compreensão do mundo (…).» 26

    Pouco antes de ser assassinado, em 1939, Trotsky volta sobre o assunto no livro Em Defesa do Marxismo:

    Chamamos ‘materialista’ a nossa dialética porque está baseada não no céu nem no nosso ‘livre arbítrio’, mas na realidade objetiva, na natureza. A consciência surge da inconsciência, a psicologia da fisiologia, o mundo orgânico do inorgânico, o sistema solar das nebulosas. Em todos os elos desta cadeia, as mudanças quantitativas transformam-se em saltos qualitativos. O nosso pensamento, incluído o pensamento dialético, não é senão uma forma de expressão deste mundo mutável. Neste sistema não há lugar para Deus, nem para o destino, nem para a alma imortal, nem para normas, leis ou morais eternas. O pensamento dialético que surgiu da natureza dialética do mundo possui, consequentemente, um carácter totalmente materialista. O darwinismo, que explica a evolução das espécies através de ‘saltos qualitativos’, foi o maior triunfo da dialética no campo das ciências naturais. Outro grande triunfo foi a descoberta da tabela de pesos atômicos dos elementos químicos e dos processos de transformação de um elemento noutro.” 27

    Por que reivindicar Engels contra os ataques infundados é decisivo hoje para desenvolver o marxismo?

    Não estamos perante uma discussão abstrata. As correntes que questionaram Engels em nome de um marxismo “crítico”, “autêntico”, “humanista” cresceram em virtude da crise do estalinismo e foram ganhando peso, especialmente no chamado “marxismo acadêmico”.

    Muitos, em nome de um marxismo “não determinista”, afastaram-se da conceção materialista da história, negando que esta possa ter qualquer desenvolvimento dialético. Acabaram, assim, por golpear os pilares do marxismo. Como demonstraram Havemann e Trotsky, o stalinismo é uma distorção total de Marx e Engels, e não a “extensão” das posições de Engels, que seria uma suposta primeira onda determinista ou uma versão cientificista do marxismo.

    Por outro lado, rejeitar a ideia clássica mecanicista de que o futuro está plenamente determinado não pode levar à conclusão de que o futuro esteja totalmente indeterminado. Como diz Havemann, “o futuro está codeterminado pelo passado, mas não está determinado de forma definitiva e absoluta”, ou, nas palavras de Marx, em O 18 Brumário de Luís Bonaparte:

    Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias da sua escolha, mas sim sob aquelas com que se deparam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.” 28

    No surgimento do stalinismo, tanto os adversários declarados do marxismo como o próprio Stálin divulgaram a ideia de que a sua “doutrina” era a verdadeira continuidade de Lenin. Os stalinistas opunham Trotsky a Lenin, falsificando a história e apresentando-se como os continuadores de Lenin, atacando o trotskismo. Em que pontos atacavam o Trotsky? Justamente nos princípios do internacionalismo, na visão de que o socialismo só era possível se a revolução socialista se alastrasse pelos países desenvolvidos e se desenvolvesse a nível mundial – pontos com os quais Trotsky concordava profundamente com Lenin desde 1917 em diante.

    Os antiengelsistas pretendem, em nome da busca por um Marx autêntico, atacar as bases do próprio marxismo. Em oposição ao determinismo estalinista, querem reconstruir um tipo de teoria do “indeterminismo”, em que tudo é fortuito, nada tem história, nada é fruto das leis do desenvolvimento; a consequência é a negação do materialismo histórico. Para Guimarães, essa concepção não se aplica nem ao passado nem ao presente.

    A rejeição do materialismo histórico pelos antiengelistas abre, por um lado, terreno para a defesa do acaso absoluto na história, onde o que predomina é a nossa consciência. Por conseguinte, procuram convencer-nos da virtude da democracia, da igualdade e da justiça, para que, dessa forma, a humanidade chegue organicamente ao socialismo. Nesse caso, o socialismo seria essencialmente fruto da afirmação de um ideal, uma proposta ética, de cunho moral, e não uma proposta científica baseada na realidade, num análise rigorosa e verificável das tendências do desenvolvimento da nossa sociedade. Isso nada tem a ver com as posições de Marx e Engels, com o socialismo científico. Estaríamos, assim, de volta – por mais que esses setores não o mencionem – ao socialismo utópico, à defesa do “homem novo”, da essência humana, etc. No pleno século XXI, isso se materializa na proposta de uma democracia radical como substituta do socialismo.

    Contra os socialistas utópicos do século XIX, Engels apontou a necessidade de se fundamentar no desenvolvimento real da sociedade e no domínio crescente do homem sobre a natureza e, simultaneamente, na contradição antagônica entre o caráter social da produção e a sua apropriação individual pelos capitalistas.

    Para Benoit, os problemas encontram a sua origem no capitalismo. As teses de Benoit conduzem a um reducionismo que limita o marxismo ao estudo da sociedade capitalista. Considera o materialismo histórico, assim como o materialismo dialético, como um “sistema naturalista-positivista que permitiria prever o curso da natureza e da história”, o qual, portanto, deveria ser abandonado como herança nefasta do estalinismo apoiado no “exagerado Engels”.

    Benoit deixa o proletariado sem qualquer ferramenta teórica, pois nega a possibilidade de existir uma teoria que permita ter uma perspetiva histórica. Qual seria então a orientação para a estratégia da revolução?

    Como escreveu Trotsky, essa conceção materialista da história foi o que permitiu elaborar o Manifesto Comunista em 1847, que foi aplicado de forma magistral em O 18 Brumário e noutras obras de Marx e Engels. Toda a elaboração subsequente, incluindo as de Lenin e Trotsky, a Teoria da Revolução Permanente, as Teses da III Internacional e o programa da IV Internacional, apoia-se numa análise materialista da história da sociedade capitalista, numa análise marxista da sociedade, da economia e da luta de classes. Como se pode continuar a desenvolver o programa revolucionário sem uma concepção materialista da história? Basear-se apenas na crítica da economia política? Essa posição, aparentemente de esquerda, acaba por desarmar a classe operária para ter um programa e responder às tarefas políticas concretas.

    Trotsky, na sua elaboração da teoria da revolução permanente, explicava que esta se baseava na aplicação consistente do materialismo histórico à realidade concreta e contra o materialismo vulgar. Imaginar que a ditadura do proletariado depende, de algum modo, automaticamente do desenvolvimento técnico e dos recursos de um país é um pré-conceito do materialismo “econômico” simplificado ao absurdo. Esse ponto de vista nada tem em comum com o marxismo. 29

    O primeiro programa operário escrito por Marx e Engels, o Manifesto Comunista, foi baseado no materialismo histórico. Nas suas páginas estão concentrados os descobrimentos efetuados um pouco antes pelos fundadores do marxismo e transformados numa orientação de ação para todos os militantes revolucionários, que continua válido até hoje.

    Trotsky, no seu texto “A 90 anos do Manifesto Comunista”, afirma:

    1. «A conceção materialista da história, formulada por Marx pouco tempo antes da aparição do texto e aplicada nele com perfeita mestria, resistiu completamente à prova dos acontecimentos e aos golpes da crítica hostil. Constitui, atualmente, um dos instrumentos mais preciosos do pensamento humano. Todas as outras interpretações do processo histórico perderam todo o significado científico. Podemos afirmar com segurança que, hoje em dia, é impossível ser não só um militante revolucionário, mas mesmo um observador politicamente instruído, sem assimilar a conceção materialista da História.
    2. A história de todas as sociedades até aos nossos dias não é senão a história das lutas de classes”. O primeiro capítulo do Manifesto começa com essa frase. Essa tese, que constitui a conclusão mais importante da conceção materialista da História, em pouco tempo transformou-se num elemento da luta de classes. A teoria que trocava o ‘bem-estar comum’, a ‘unidade nacional’ e as ‘verdades eternas da moral’ pela luta entre interesses materiais – considerados como a força motriz da História – sofreu ataques particularmente ferozes por parte de hipócritas reaccionários, doutrinários liberais e democratas idealistas. Posteriormente, agregaram-se a esses os ataques, agora por parte do próprio movimento operário, dos chamados revisionistas, isto é, dos partidários da revisão do marxismo a favor da colaboração e da conciliação de classes. Finalmente, na nossa época, os desprezíveis epígonos da Internacional Comunista (os stalinistas) seguiram o mesmo caminho: a política das chamadas “frentes populares” decorre inteiramente da negação das leis da luta de classes. Entretanto, vivemos na época do imperialismo que, levando todas as contradições sociais ao extremo, demonstra o triunfo teórico do Manifesto do Partido Comunista.» 30

    Essas palavras de Trotsky alertam-nos contra aqueles que pretendem separar a teoria do programa, desprezando a contribuição de Engels para o marxismo e abandonando a concepção materialista da história. Essa postura só pode abrir espaço para um idealismo tardio, que acaba por propor uma saída interior ao capitalismo, ou para um desarmamento teórico na elaboração do programa revolucionário.

    Notas

    1. A Obra teórica de Marx. São Paulo: Xamã, 2000, pp. 91-104. ↩︎
    2. O “testamento” falsificado de Engels: uma lenda dos oportunistas, na revista Marxismo Vivo
      – Nova Época n.° 11, 2018. ↩︎
    3. MARGARIDO, Marcos. “Teria Engels se transformado Engels em um reformista…?”, neste dossiê. ↩︎
    4. “Como conciliar na mesma doutrina essa apologia da revolução violenta, insistentemente repetida por Engels, aos social-democratas alemães de 1878 a 1895, isto é, até a sua morte, com a teoria do ‘definhamento’ do Estado?”, in O Estado e a Revolução, parte I, item 4. ‘Definhamento’ do Estado e a Revolução Violenta. ↩︎
    5. Carta-circular de Marx e Engels a August Bebel, Wilhelm Liebknecht, Wilhelm Bracke e outros
      (1879), M&E Collected Works, V. 45. Londres: Lawrence & Wishart, 2010, p. 394. ↩︎
    6. Refere-se a uma corrente “socialista” da Alemanha que é duramente criticada no Manifesto
      Comunista. ↩︎
    7. Na circular, Marx e Engels reproduzem e condenam o seguinte trecho do texto dos três socialistas sediados na Suíça: “Precisamente agora, sob a pressão da lei antissocialista, o Partido mostra que não deseja seguir o caminho da revolução sangrenta, violenta, mas que está decidido… a trilhar o caminho da legalidade, isto é, da reforma”. ↩︎
    8. “Segundo a concepção filosófica, o Estado é a ‘realização da ideia’, isto é, traduzido na linguagem filosófica, o reino de Deus na Terra, o campo onde se fazem ou devem se fazer realidade a verdade e a justiça eternas. (…). E as pessoas acreditam ter dado um passo enormemente audaz ao libertar se da fé na monarquia hereditária e jurar pela República democrática. Na realidade, o Estado não é mais que uma máquina para a opressão de uma classe por outra, tanto na República democrática quanto sob a monarquia; e no melhor dos casos, um mal que o proletariado herda depois que triunfa na sua luta pela dominação de classe. O proletariado vitorioso, tal como fez a Comuna, não poderá menos que amputar imediatamente os piores aspectos deste mal, até que uma geração futura, educada em condições sociais novas e livres, possa se desfazer de todo esse velho lixo do Estado. Ultimamente as palavras “ditadura do proletariado” têm voltado a colocar em terror o filisteu social-democrata. Pois bem, cavalheiros, querem saber o que atualmente representa essa ditadura? Olhem a Comuna de Paris: eis aí a ditadura do proletariado!” (original em espanhol, tradução nossa, destaques meus). ↩︎
    9. Vide, entre outros, A Falência da II Internacional (1915). ↩︎
    10. GUIMARÃES J. Democracia e Marxismo, São Paulo: Xamã, 1999. ↩︎
    11. Em seu texto “Marx e a Revolução democrática”, publicado em Democracia Socialista nº 1,
      dezembro de 2013. ↩︎
    12. Segundo Juarez Guimarães, essa posição de Marx teria primado no período 1845-1857. ↩︎
    13. Sigla com que se notabilizou o chamado materialismo dialético do período stalinista. ↩︎
    14. GUIMARÃES J. Democracia e Marxismo. São Paulo: Xamã, 1999, p. 83. ↩︎
    15. Na carta de Engels a Bloch, Londres 21/22 de setembro de 1890: “Segundo a concepção
      materialista da história, o fator que, em última instância determina a história é a produção e a reprodução da vida real. Nem Marx, nem eu afirmamos uma vez sequer, algo mais do que isso. Se alguém o modifica, afirmando que o fato econômico é o único fato determinante, converte aquela tese numa frase vazia, abstrata e absurda. A situação econômica é a base, mas os diferentes fatores da superestrutura que se levanta sobre ela – as formas políticas da luta de classes e seus resultados, as constituições que, uma vez vencida uma batalha, a classe triunfante redige, etc., as formas jurídicas e, inclusive os reflexos de todas essas lutas no cérebro dos que nela participam, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as ideias religiosas e o desenvolvimento ulterior que as leva a converter-se num sistema de dogmas – também exercem sua influência nas lutas históricas e, em muitos casos, determinam sua forma como fator predominante. Trata-se de um jogo recíproco de ações e reações entre todos esses fatores, no qual, através de toda uma infinita multidão de acasos (isto é, de coisas e acontecimentos cuja conexão interna é tão remota ou tão difícil de demonstrar que podemos considerá-la inexistente ou subestimá-la), acaba sempre por impor-se, como necessidade, o movimento econômico. Se não fosse assim, a aplicação da teoria a uma
      época histórica qualquer seria mais fácil do que resolver uma simples equação de primeiro grau. Nós mesmos fazemos nossa história, mas isso se dá, em primeiro lugar, de acordo com premissas e condições muito concretas. Entre elas, são as premissas e condições econômicas as que decidem em última instância.
      ↩︎
    16. LUXEMBURGO, Rosa. Panfleto Junius, A crise da social-democracia (1915). ↩︎
    17. Ela manteve um intenso intercâmbio de ideias com Marcuse e Erich Fromm. No livro Filosofia
      e revolução
      , prefaciado por Fromm, ela afirmaria: “Em contraste com a perspectiva multilinear, graças à qual Marx se absteve de traçar um programa para as gerações futuras, a interpretação unilinear conduziu Engels pelo caminho do positivismo e o mecanicismo”. Filosofía y revolución, México, cap.9, p. 329. ↩︎
    18. LENIN, V. I. Friedrich Engels, 1895. ↩︎
    19. Nota Bene – termo latino que significa ‘preste atenção’. ↩︎
    20. LENIN, V. I. Cadernos filosóficos. São Paulo: Boitempo Ed. (2010), p. 291. ↩︎
    21. Idem, p. 292. Nessa citação há uma Nota da edição da Boitempo: ver “Engels, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã”, cit. p. 390. ↩︎
    22. Idem, p. 326. (Os negritos e destaques são de Lenin). ↩︎
    23. Idem, p. 335. ↩︎
    24. Idem, p. 331 (negritas de Lenin). ↩︎
    25. “El significado del materialismo militante”, 1922 em Obras Completas, Tomo 45, Ed. Progreso (original em espanhol, tradução nossa). ↩︎
    26. “Las tendencias filosóficas del burocratismo”, in Escritos filosóficos. Buenos Aires: CEIP, 2011,
      p. 157 y pp. 159-160 (original em espanhol, tradução nossa). ↩︎
    27. TROTSKY, León. En defensa del marxismo. (original em espanhol, tradução nossa). ↩︎
    28. MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: ed. Escriba, 1968, p. 15. ↩︎
    29. TROTSKY, Leon. Resultados e Perspectivas (1906). ↩︎
    30. TROTSKY, Leon. “A 90 anos do Manifesto Comunista”, 1937. ↩︎

  • Engels, coautor da concepção materialista da História

    Engels, coautor da concepção materialista da História

    200 anos de Engels

    A colaboração entre Engels e Marx teve como ponto de partida a elaboração da concepção materialista da história: esta foi o resultado de uma convergência de ideias e, a partir daí, de uma parceria na elaboração teórica, na militância política de ambos por toda a vida.

    Por: José Welmowicki

    O marxismo contra o determinismo

    Em seu Prefácio a Contribuição à crítica da economia política, Marx escreveu:

    “…Friedrich Engels, com quem mantive por escrito uma constante troca de ideias desde o aparecimento do seu genial esboço para a crítica das categorias econômicas (nos Anais Franco-alemães), tinha chegado comigo, por uma outra via (compare-se a sua Situação da Classe Operária na Inglaterra), ao mesmo resultado, e quando, na Primavera de 1845, ele radicou-se igualmente em Bruxelas, decidimos esclarecer em conjunto a oposição da nossa maneira de ver contra a [maneira de ver] ideológica da filosofia alemã, de fato ajustar contas com a nossa consciência filosófica anterior. Este propósito foi executado na forma de uma crítica à filosofia pós-hegeliana. O manuscrito, 1 dois grossos volumes em oitavo, chegara havia muito ao seu lugar de publicação na Vestfália quando recebemos a notícia de que a alteração das circunstâncias não permitia a impressão do livro. Abandonamos o manuscrito à crítica roedora dos ratos de tanto melhor vontade quanto havíamos alcançado o nosso objetivo principal — autocompreensão. Dos trabalhos dispersos em que apresentamos então ao público as nossas opiniões, focando ora um aspecto ora outro, menciono apenas o Manifesto do Partido Comunista, redigido conjuntamente por Engels e por mim”.

    Essa convergência teórica levou os dois amigos a sistematizar suas ideias e que os levaram a romper com os jovens hegelianos, como os irmãos Bauer, Stirner e outros. Esse grupo estava dedicado à crítica do sistema político e jurídico da Alemanha, mas sua crítica permanecia no terreno ideológico, sem relacionar a crítica da realidade na sociedade alemã à de sua base material. Limitavam-se ao terreno das ideias. Para criticar essa corrente que não saía dos limites do idealismo de Hegel, Engels e Marx escreveram juntos, em 1845, A Sagrada Família (ou Crítica da Crítica crítica). Naquele momento, aproximaram-se de Feuerbach que fazia a crítica a Hegel de um ponto de vista materialista.

    Mas, logo em seguida, chegaram à conclusão de que Feuerbach era uma superação parcial e unilateral de Hegel, pois ele não passava de afirmar um materialismo contemplativo, ou seja, que a relação homem/natureza era vista como passiva, não valorizava a ação do ser humano sobre a natureza e sobre a sociedade. A expressão dessa ruptura com Feuerbach se expressará em A Ideologia Alemã, que os dois elaboraram conjuntamente em 1845 e à qual se refere o texto citado acima.

    Foi nesse texto – que não chegou a ser impresso por várias dificuldades a que Marx se refere no Prefácio acima (e cujo manuscrito foi mais tarde recuperado e publicado por Riazanov no Instituto Marx-Engels da URSS nos anos 1920) – que eles desenvolveram a nova concepção materialista da história. Marx e Engels incorporaram a defesa do lado ativo do ser humano, que a ação humana sobre a natureza e a sociedade podia transformá-las, podia ser revolucionária, como Marx sintetizou em suas Teses sobre Feuerbach, escritas no mesmo período:

    […] A principal insuficiência de todo o materialismo até aos nossos dias – o de Feuerbach incluído – é que as coisas, a realidade, o mundo sensível são tomados apenas sob a forma do objeto ou da contemplação; mas não como atividade sensível humana, práxis, não subjetivamente. Por isso aconteceu que o lado ativo foi desenvolvido, em oposição ao materialismo, pelo idealismo – mas apenas abstratamente, pois que o idealismo naturalmente não conhece a atividade sensível, real, como tal.

    Essas Teses foram publicadas por Engels em 1886 em seu livro Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. Como diz Marx no Prefácio, o Manifesto Comunista foi baseado nesta concepção.

    Entre os textos sobre processos revolucionários que ambos escreveram naquela época, destacam-se O 18 Brumário de Louis Bonaparte, de Marx, sobre a revolução e contrarrevolução na França de 1848-1851. Engels escreveu em 1850 A Guerra dos camponeses na Alemanha aplicando a concepção materialista da história para estudar como seu desenlace havia sido decisivo para a formação da Alemanha, comparada a outros países como a Inglaterra e França.

    Nesse texto, Engels faz uma análise da economia e da composição de classe da Alemanha de então. Em seguida, analisa o surgimento e os programas das distintas oposições. Em especial, explica profundamente as diferenças entre Lutero (o teólogo da Reforma Protestante) e Münzer (o líder radical da guerra camponesa) e como elas influenciaram as insurreições camponesas do final do século XV e começo do XVI, quando estava começando a Reforma Protestante. Também explica as características das revoltas contra os nobres e os líderes da nobreza, como Sickingen. A partir daí, relata os episódios da guerra camponesa e as causas de sua derrota final. Por fim, analisa as consequências dessa derrota na história da Alemanha.

    Todo o trabalho de Engels concentra-se na necessidade de uma luta de classes implacável contra os senhores feudais para abrir condições mais favoráveis para uma revolução proletária. Também analisa como as correntes burguesas que surgiram foram incapazes de levá-la. Lições da história que os levam a uma formulação semelhante na célebre «Mensagem de 1850 ao Comitê Central da Liga dos Comunistas», que ele e Marx escreveram sobre a revolução alemã de 1848-1850.

    O texto de Engels sobre a guerra camponesa é um exemplo de como a concepção materialista da história permite analisar as sociedades, inclusive as não capitalistas e tirar conclusões políticas, opostas aos ideólogos e os representantes das classes dominantes.

    Engels continuou aplicando a concepção sistematizada na Ideologia alemã ao longo de toda sua trajetória, nos combates ideológicos que teve que dar contra os distintos teóricos que voltavam ao idealismo ou ao materialismo mecanicista e negavam a concepção materialista da história, assim como aos políticos reformistas.

    É curioso que haja críticos de Engels que o atacam justamente pelos textos que escreveu para combater esse tipo de visão mecânica, como o seu clássico conhecido pelo nome de o Anti-Dühring. Hoje já não se menciona a Dühring, mas na época ele teve sucesso e exerceu uma influência ampla entre as fileiras do partido operário alemão e inclusive na sua direção. O que Dühring defendia em seus livros era um “sistema” fechado com leis rígidas, que atacavam os textos centrais de Marx e Engels. Em seu livro, Dühring investia contra a dialética, e para poder atacar Marx e impactar seus leitores, fazia tergiversações de várias partes de O Capital, entre outros textos para contrapor “uma teoria geral da ciência, pretendendo encontrar nela uma conexão interna, da natureza, da história, da sociedade, o Estado, o Direito”. 2 Para poder contrapor-se “à filosofia da natureza do senhor Dühring”, 3 Engels teve que desenvolver polêmicas em todos os terrenos que Dühring incursionou, como a economia política, as ciências naturais, a filosofia, etc.

    Assim, Engels defende a concepção materialista da história em seu texto polêmico. Para realizar esse objetivo, Engels teve que atacar de maneira frontal o determinismo e o mecanicismo de Dühring. No entanto, cada vez mais existem autores, inclusive alguns que se reivindicam marxistas, que criticam esse texto, assim como os manuscritos publicados postumamente como Dialética da Natureza por um suposto determinismo ou mecanicismo.

    Nessa polêmica, existem aqueles que opinam que o marxismo é uma visão determinista da história. Outros, em maior quantidade, dizem que Engels seria a fonte dessa visão determinista, em oposição ao próprio Marx.

    Como revela Engels no Prefacio à 2ª edição do Anti Dühring, ele escreveu o livro em contato permanente com Marx, que o leu e inclusive redigiu a parte sobre a historia crítica das teorias econômicas: “como o ponto de vista aqui desenvolvido foi em sua maior parte fundado e desenvolvido por Marx, e em sua mínima parte por mim, era óbvio entre nós que esta exposição minha não podia realizar-se sem o seu conhecimento. Li o manuscrito inteiro antes de levá-lo à imprenta, e o décimo capítulo da seção sobre economia («Da História crítica») foi escrito por Marx”. Para que não reste dúvidas, reproduzimos uma carta de Marx em que ele recomenda a um correspondente, Moritz Kaufmann, que leia o Anti-Dühring de Engels. Nela pode se comprovar que Marx não só participou de sua elaboração, mas que o considerava uma ótima exposição do socialismo cientifico:

    Londres, 3 de outubro de 1878

    Meu estimado Senhor,

    O Sr. Petzler informou-me que o Sr. teria redigido um artigo sobre meu livro «O Capital» e sobre minha vida, artigo esse que deverá ser impresso, juntamente com outros de sua autoria, bem como que o Sr. apreciaria que eu ou Engels corrigíssemos alguns erros seus. […]
    Por correio, enviar-lhe-ei igualmente – caso o Sr. dele já não disponha – um novo escrito de meu amigo Engels, intitulado “A Subversão da Ciência do Sr. Eugen Dühring”, escrito esse muito importante para a uma correta apreciação do socialismo alemão.

    Respeitosamente, seu Karl Marx.” 4

    Engels teria se tornado um determinista ao final de sua vida?

    Alguns autores afirmam que Engels teria adotado uma concepção determinista em seu último período de vida. Que Engels teria retrocedido ao materialismo mecanicista. A acusação, como antecipamos, tenta se apoiar em textos como Anti-Dühring e Dialética da Natureza.


    Na verdade, Engels analisa nesses textos como a evolução das ciências naturais e da tecnologia foram frutos da ascensão da burguesia e da necessidade do capitalismo intervir sobre os processos produtivos, na indústria (como a máquina a vapor, mais tarde a eletricidade, etc.) e na agricultura, de acelerar a circulação de mercadorias e, portanto o transporte, (trens, navegação mais rápida, etc.). Portanto, era necessário conhecer melhor a natureza, daí o estímulo às ciências naturais. Houve nesse período uma tendência das ciências naturais de encontrar uma explicação linear de causa e efeito e ver a própria natureza como uma evolução contínua. Contrapunham-se, nesse sentido, às explicações religiosas anteriores do clero cristão e às restrições típicas do período feudal.

    Iluminismo era a ideologia típica da burguesia em ascensão, que se colocava como representante das ‘luzes’: assim como na política, falava da igualdade entre os homens, dos direitos humanos em contraponto com aos velhos privilégios típicos dos sistemas feudais com toda sua hierarquia, suas ideias e sua resistência à ciência. Uma vez consolidado o poder da burguesia, esta posição se altera. A versão para esse período torna-se conservadora, a ordem social deve ser conservada e a ciência social deve explicar como essa ordem é natural, tão natural como a geologia, a física ou a química. Surge daí um ambiente ideológico de fé no progresso oriunda do desenvolvimento econômico e da conservação social.

    A filosofia resultante dessa aplicação das ciências naturais à sociedade está muito ligada à figura de August Comte, o fundador do positivismo: uma concepção que estendia essa compreensão de maneira linear às sociedades, com pretensões científicas, inclusive criando uma disciplina para estudar cientificamente a sociedade: a Sociologia ou, como a nomeava Comte, a física social.

    Comte considerava que a sociedade tinha leis causais da mesma natureza das leis da física e que nela havia uma evolução permanente, um progresso que era um processo como o da natureza. 5 Ele e outros teóricos construíram uma visão determinista a partir daí, em que os eventos históricos estão previamente definidos por essas leis da física social.

    Os críticos de Engels acusam-no de ter sido influenciado por esse tipo de visão.  No entanto, os próprios textos de Engels atacam exatamente esse tipo de determinismo e a visão mecânica da aplicação de leis físicas ou biológicas à sociedade e inclusive mostram que na natureza tampouco se aplica a visão determinista como pensam os materialistas vulgares.

    No Anti-Dühring, Engels escreve:

    “O sistema de Hegel foi um aborto gigantesco, porém o último de sua espécie. Com efeito, sua filosofia padecia ainda de uma contradição interna incurável, pois, se, por um lado, considerava como pressuposto essencial da concepção histórica, segundo a qual a história humana é um processo de desenvolvimento que não pode, por sua própria natureza, encontrar solução intelectual no descobrimento disso que se chama de verdades absolutas, por outro, se nos apresenta precisamente como resumo e compêndio de uma dessas verdades absolutas, um sistema universal e compacto, definitivamente plasmado, no qual se pretende enquadrar as ciências da natureza e da história, é incompatível com as leis da dialética. […] Verificamos, assim, que o socialismo tradicional era incompatível com a nova concepção materialista da história bem como a concepção dos materialistas franceses, sobre a natureza, não podia coexistir com a dialética moderna e com as novas ciências naturais.” 6

    Em sua carta a Mehring de 1893, Engels, depois de elogiar seu livro A lenda de Lessing e o apêndice escrito por Mehring sobre o materialismo histórico, não tem rodeios em atacar a interpretação que tenta fazê-los aparecer como materialistas vulgares mecanicistas e contrapor-se a esse suposto materialismo de Marx e Engels para justificar seu idealismo.

    Londres, 14 de julho de 1893

    Caro Sr. Mehring,

    Começo pelo fim – i.e. com o apenso, intitulado “Acerca do Materialismo Histórico”, onde o Sr. apresenta as coisas principais magnifica e convincentemente para toda pessoa imparcial… Dito isso, falta ainda apenas mais um ponto que, porém, nos escritos de Marx e nos meus, não surge, em regra, suficientemente destacado e em relação ao qual somos culpados ambos, em igual medida.

    Com efeito, ambos colocamos o peso principal, em primeiro lugar, na dedução das representações políticas, jurídicas e todas as outras noções ideológicas e, assim também, dos atos intermediados por essas representações, a partir dos fatos econômicos fundamentais, sendo que assim tivemos de fazer.

    Nisso, negligenciamos, então, o lado formal, i.e. : o modo e a maneira segundo os quais emergem essas representações etc., em favor do lado conteudístico…

    ideólogo da história (o histórico deve significar aqui, de modo simplesmente resumido, o político, jurídico, filosófico, teológico, em suma: todos os domínios que pertencem à sociedade – e não meramente à natureza) – o ideológo da história possui, portanto, em cada domínio científico, um material que se formou autonomamente a partir do pensamento de gerações precedentes e percorreu uma série própria e autônoma de desenvolvimento no cérebro dessas gerações que se seguiram umas às outras.

    Certamente, fatos externos que pertencem a um domínio peculiar ou a outros domínios podem ter atuado, de maneira codeterminante, sobre esse desenvolvimento.

    Porém, esses fatos mesmos constituem, precisamente, segundo o pressuposto tácito, novamente, apenas frutos de um processo do pensamento e, assim, permanecemos ainda no campo do mero pensamento que, por si mesmo, digeriu os fatos mais duros, com aparente satisfação. É sobretudo essa aparência de uma história autônoma das constituições do Estado, dos sistemas jurídicos, das representações ideológicas, em cada domínio especial, que cega a maioria das pessoas.

    Nesse contexto, situa-se também a seguinte estúpida noção dos ideólogos: precisamente porque subtraimos às diferentes esferas ideológicas, que desempenham um papel na história, um desenvolvimento histórico autônomo, estaríamos subtraindo-lhes também todo e qualquer efeito histórico.

    Esse raciocínio é aqui embasado com a noção ordinária, não-dialética, de causa e efeito, concebidos enquanto polos rigidamente opostos um ao outro, o que significa o total esquecimento da interação.

    Frequentemente esses senhores esquecem, quase propositadamente, que um momento histórico, tão logo seja colocado no mundo, em dada ocasião, através de outras causas, em última instância, causas econômicas, acaba reagindo também sobre o seu redor, podendo reagir até mesmo sobre as suas próprias causas.” 7.

    E no texto Dialética da natureza, 8 Engels escreveu no cap. XII: Apontamentos Dialética e Ciência…

    História
    Em posição contrária a essa opinião, está o determinismo, que se transferiu do materialismo francês para a ciência e que procura liquidar a casualidade, desconhecendo-a. Segundo essa concepção, na Natureza impera apenas a necessidade simples e direta… Que esta semente de dente de leão tenha germinado e a outra não; o fato de que, esta noite, às quatro da madrugada, uma pulga me tenha mordido e não às três ou cinco; e justamente do lado direito do ombro e não da barriga da perna esquerda: todos esses são fatos produzidos por uma irrevogável concatenação de causa e efeito, por uma irremovível necessidade e, certamente, de uma tal maneira que a esfera gasosa da qual se originou o sistema solar estava já constituída de forma que esses fatos teriam que se verificar assim e não de outro modo. A verdade é que, com essa espécie de necessidade, não nos libertamos da concepção teológica da Natureza [...]
    “As leis eternas da Natureza transformam-se, cada vez mais, em leis históricas. O fato de que a água se apresente no estado líquido entre 0˚ e 100º C é uma lei natural eterna, mas para que seja válida é necessário haver: 1) água; 2) determinada temperatura; 3) pressão normal. Na Lua não há água, no sol existem apenas seus elementos; para esses corpos celestes a lei, portanto, não existe
    .”

    Nesse mesmo texto, em sua Introdução, Engels deixa bem claro a relação dialética entre homens e sociedade, natureza e história: 9

    “Com os homens, entramos na história. […] Os homens, pelo contrário, quanto mais se afastam do animal, em sentido restrito, tanto mais fazem eles a sua própria história com consciência, tanto mais diminuta se torna a influência de efeitos imprevistos, de forças incontroladas, sobre esta história, tanto mais exatamente corresponde o resultado histórico ao objetivo previamente fixado. Se aplicarmos, porém, esta escala à história humana, mesmo dos povos mais desenvolvidos do presente, verificamos que aqui continua a existir uma desproporção colossal entre os objetivos previamente colocados e os resultados alcançados, que os efeitos imprevistos predominam, que as forças incontroladas são, de longe, mais poderosas do que as postas planificadamente em movimento. E isto não pode ser de outra maneira enquanto a atividade histórica mais essencial dos homens — aquela que os elevou da animalidade à humanidade, que forma a base material de todas as suas restantes atividades: a produção daquilo de que necessitam para viver, isto é, hoje em dia, a produção social — estiver, por maioria de razão, submetida ao jogo recíproco de efeitos inintencionais de forças incontroladas e só realizar o objetivo querido de maneira excepcional, e de longe mais frequentemente o seu preciso contrário. Nos países industriais mais avançados, domamos as forças da Natureza e compelimo-las ao serviço dos homens; com isso, multiplicamos a produção ao infinito, de tal modo que, agora, uma criança produz mais do que anteriormente cem adultos. E qual é a consequência? Trabalho excessivo crescente e miséria crescente das massas e, a cada dez anos, uma grande crise”.

    A confusão entre o pensamento de Engels e o da social democracia posterior e o stalinismo

    A maioria dos críticos de Engels esquece um fato: durante toda a vida de Marx e Engels, houve uma batalha de ambos contra as pressões que o partido social democrata alemão sofria e as reações de sua direção, nas quais ambos identificavam tendências a recuar no programa e na teoria.

    O Anti-Dühring só foi escrito porque as ideias de Dühring haviam causado impacto na própria direção do partido. Após sua morte, e combinado com um processo objetivo de aristocratização de setores da classe operária alemã (e em outros países imperialistas) e burocratização das direções sindicais vinculadas ao partido, o que terminou por levá-los ao abandono do programa comunista, à traição na Primeira Guerra em 1914, à substituição da teoria marxista por um evolucionismo, ou seja, a ideia de que naturalmente a sociedade capitalista evoluiria para o socialismo sem necessidade de rupturas revolucionárias. Kautsky, o mais importante teórico da social democracia foi o elaborador decisivo dessa nova teoria justificativa evolucionista que dava base ao reformismo. Bernstein, que o havia antecedido em 1899 e foi combatido por Rosa Luxemburgo (e naquele momento por Kautsky) foi derrotado dentro do partido. Mas, em 1914 ele e Kautsky juntaram-se nessa visão que era o oposto de Marx e de Engels. O oposto no programa e na teoria. Era a substituição da concepção materialista da história por um materialismo vulgar e evolucionista, que mais tarde foi adotado por Stalin e a burocracia russa quando assumiram o poder na URSS.

    Um dos textos que deu sustentação a essa concepção mecanicista é o Tratado de Materialismo Histórico de Bukarin, que tem o subtítulo de Ensaio de Sociologia Popular.

    Mas como Lenin sempre afirmou contra Kautsky, e depois Trotsky em seu combate à burocracia stalinista, essas concepções eram opostas às de Marx e Engels. Nos 200 anos de Engels, é fundamental o resgate de sua contribuição ao marxismo e a importância de sua elaboração, em conjunto com Marx, da concepção materialista da história para a armação programática da militância revolucionária nesse momento histórico em que as pressões do reformismo e do pós-modernismo, que pregam que nada está determinado e nada pode ser comprovado, são utilizados a todo momento.

    Nas palavras de Trotsky, em seu texto 90 anos do Manifesto Comunista, de 1937:

    “[…] A concepção materialista da história, formulada por Marx pouco tempo antes da aparição do texto e que nele se encontra aplicada com perfeita maestria, resistiu completamente à prova dos acontecimentos e aos golpes da crítica hostil. Constitui-se, atualmente, em um dos mais preciosos instrumentos do pensamento humano. Todas as outras interpretações do processo histórico perderam todo significado científico. Podemos afirmar, com segurança, que atualmente é impossível não apenas ser um militante revolucionário, mas simplesmente um observador politicamente instruído sem assimilar a concepção materialista da História.

    Notas

    1. Refere-se à Ideologia Alemã ↩︎
    2. Carta de Engels a Marx em Londres de 28 de Maio de 1876. ↩︎
    3. Este “sistema natural de um saber, precioso por si mesmo, para o espírito, “descobriu, com toda a certeza, sem transigir quanto à profundidade da ideia, as formas fundamentais do Ser”, Desde a sua “plataforma verdadeiramente crítica”, o Sr. Dühring nos apresenta os elementos de uma filosofia real, projetada, portanto, sobre a realidade da natureza e da vida, ante a qual não se mantém um só horizonte apenas aparente, mas se desenrola ante os nossos olhos surpreendidos, em suas potentes comoções, todas as terras e os céus da natureza exterior e interior; oferece-nos, pois, um novo método especulativo e seus frutos são “resultados e observações radicalmente novos…, ideias originais criadoras de sistema… verdades comprovadas.” Nela, temos “um trabalho que encontrará a raiz de sua força na iniciativa concentrada”… supondo-se que isso queira dizer alguma coisa; uma “investigação que desce até as raízes…, uma ciência radical…, uma concepção rigorosamente científica das coisas e dos homens…, um trabalho especulativo que penetra em todos os aspectos e modalidades das coisas…, um esboço criador das hipóteses e consequências domináveis pelo pensamento…o absolutamente fundamental.” Anti Dhuring, parte II, Paz e Terra, 1979, 2ª ed., pg. 25 ↩︎
    4. In http://www.scientific-socialism.de/FundamentosCartasMarxEngelsCapa.htm ↩︎
    5. “Sem admirar ou maldizer os fatos políticos, vendo‐os essencialmente, como em qualquer outra ciência, como simples temas de observações, a física social considera, portanto, cada fenômeno sob o duplo ponto de vista elementar de sua harmonia com os fenômenos coexistentes e desencadeamento como estado anterior e posterior do desenvolvimento humano” citado por Michael Lowy in As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Munchhausen, Cortez, São Paulo, 2003, 8ªed., p.24 ↩︎
    6. Anti-Dühring, Rio, Paz e Terra, 1979, pp. 23 e 24 ↩︎
    7. https://www.marxists.org/portugues/marx/1893/07/14.htm ↩︎
    8. Extraído de https://www.marxists.org/portugues/marx/1882/dialetica/06.htm. Dialética da Natureza, Parte XII ↩︎
    9. Idem. Introdução ↩︎

    Publicado em novembro de 2020 em www.litci.org/pt