Categoría: Reforma e Revolução

  • A decadência do antigo Secretariado Unificado a partir de sua visão sobre os processos do Leste

    A decadência do antigo Secretariado Unificado a partir de sua visão sobre os processos do Leste

    O morenismo 1 surgiu da luta frontal contra as revisões programáticas do pablismo 2 na década de 1950 e, em seguida, na luta contra a corrente majoritária do antigo Secretariado Unificado (SU), liderada por Ernest Mandel. 3 Livros como O Partido e a revolução e A Ditadura revolucionária do proletariado, ambos de Nahuel Moreno, são expressões dessas polêmicas.

    Por: José Welmowicki

    Contudo, após a morte de Moreno, nossa corrente acompanhou a evolução teórica e política do ex-SU apenas superficialmente. Isso ocorreu apesar de o próprio Moreno ter consolidado a Liga Internacional dos Trabalhadores – Quarta Internacional (LIT-QI) contra a corrente revisionista e liquidacionista organizada, então, no SU, que Moreno caracterizava como “o centro do revisionismo4 no seio do trotskismo.

    Há muitos anos, o ex-SU deu o salto de uma organização revisionista para o reformismo puro e simples: removeu explicitamente de seu programa a estratégia da ditadura do proletariado; abandonou a concepção de centralidade da classe operária no processo revolucionário; 5 seus dirigentes estiveram entre os principais ideólogos e apoiadores dos partidos amplos e anticapitalistas, principalmente na Europa; dissolveram sua seção mais importante, a Liga Comunista Revolucionária francesa, para fundar o Novo Partido Anticapitalista (NPA) com um programa reformista; não só apoiaram distintos governos burgueses que chamavam de progressistas, como o de Chávez, 6 promovendo a ideologia do “socialismo do século XXI”, como participaram diretamente de governos burgueses de colaboração de classes como o de Lula, no Brasil.

    Em nossa opinião, o SU, hoje Comitê Internacional (CI), é a corrente internacional com origem no trotskismo que ainda mantém alguma influência, e reflete de maneira mais nítida – teórica e politicamente – os efeitos do que chamamos de “vendaval oportunista”. Não é por acaso que seja atualmente um polo de atração para setores de diferentes origens, como o Movimento Esquerda Socialista (MES) brasileiro, o MST argentino, ou o Socialist Workers Party (SWP) britânico. Embora funcionem como uma federação frouxa de partidos e movimentos e, apesar de terem perdido força nas últimas décadas (como consequência de suas mudanças políticas que se refletem no declínio do NPA francês), suas elaborações têm alcance internacional e servem para justificar teoricamente a capitulação da esquerda à democracia burguesa e ao reformismo.

    Por essa razão, é importante retomar um estudo mais profundo sobre o conteúdo da elaboração do ex-SU no marco de nossa reelaboração programática. Demos um passo em relação à questão de seu programa e da ditadura do proletariado, sua concepção de Estado, a estratégia dos partidos anticapitalistas e sua visão sobre a Europa e o imperialismo. Porém, estamos atrasados no estudo rigoroso das premissas teóricas e das transformações de fundo em que se apoiaram para chegar à sua atual visão de mundo.

    Do revisionismo ao reformismo

    Nossa corrente sempre definiu o SU de Mandel como uma correte revisionista e liquidacionista. Ao caracterizá-los como revisionistas, dizíamos que seus desvios, zigue-zagues e capitulações não eram o resultado deste ou daquele erro político circunstancial. Pelo contrário, deviam-se ao fato de que o SU cristalizara-se como uma corrente que negava os pilares fundamentais do marxismo e do trotskismo.

    As Teses de Fundação da LIT-QI definem claramente as características do que chamamos de revisionismo:

    No decorrer desta longa marcha, todos os principais acontecimentos da luta de classes (principalmente cada grande vitória revolucionária de dimensões globais) motivaram, em algum setor de nosso movimento, uma tendência à adaptação à direção burocrática ou nacionalista dessas vitórias.

    A luta pela construção de uma direção revolucionária internacional implica a luta pela destruição de todas as direções burocráticas ou nacionalistas que concorrem conosco no seio do movimento de massas. O processo de construção de uma direção revolucionária significa, ao mesmo tempo, uma “guerra implacável” (como diz com razão o Programa de Transição) contra todas as outras correntes burocráticas e/ou pequeno-burguesas do movimento de massas.7

    Nesse sentido, as teses definem qual é a característica comum de todas as diferentes tendências revisionistas: “o fato de que propõem, não a guerra implacável, mas algum tipo de bloco com alguma tendência burocrática e/ou nacionalista, porque esta supostamente desempenha um papel progressista e até mesmo revolucionário”. 8

    A consequência não foi outra senão a liquidação do partido revolucionário e da IV Internacional. O revisionismo havia sido “o principal obstáculo subjetivo na longa marcha rumo à construção de uma direção revolucionária internacional”. 9

    Desde a década de 1950, Pablo e Mandel, impactados pelo fortalecimento relativo do stalinismo no segundo pós-guerra e pelo surgimento dos primeiros estados operários deformados, imprimiram um giro à IV Internacional, a partir da direção do então Secretariado Internacional (SI), orientando todos os seus partidos a realizarem o “entrismo sui generis” nos Partidos Comunistas ou em movimentos nacionalistas burgueses, porque, segundo eles, o stalinismo seria obrigado a dirigir revoluções no marco de uma III Guerra Mundial iminente. Isso levou à crise e inclusive à dissolução de quase todos os partidos que seguiram essa orientação. O SU como tal nasceu em 1963, em torno à defesa da revolução cubana, e Mandel encabeçou sua ala majoritária. Essa ala não fez o balanço dos graves erros do período anterior e continuou com a mesma linha impressionista, capitulando a qualquer fenômeno dito progressista que aparecesse e impactasse a vanguarda. Foi então a vez de capitular à direção castrista 10 e aos movimentos guerrilheiros, novamente com resultados desastrosos para o trotskismo internacional. O mesmo aconteceu diante do Movimento das Forças Armadas (MFA) de Portugal e, em seguida, com o chamado eurocomunismo. Na Nicarágua, o SU apoiou o governo de unidade nacional composto pelos sandinistas 11 e por Violeta Chamorro, 12 defendendo-o como um “governo operário e camponês”.

    A trajetória do revisionismo ao reformismo foi concluída a partir dos processos do Leste Europeu, aos quais caracterizam como uma profunda derrota do movimento de massas, que abriu uma crise no projeto socialista. Essa premissa e as conclusões dela derivadas levaram o SU a uma adaptação completa aos novos aparatos eleitorais surgidos da crise dos PCs e da social-democracia clássica, como o SYRIZA (Grécia), o Podemos (Espanha), etc. A tese do ex-SU é a de que os limites dessas novas direções obedecem às características de uma nova época, marcada pelo retrocesso da consciência das massas, que, por sua vez, resultaria da suposta derrota histórica no Leste Europeu. A partir daí, concluíram que não haveria outra saída a não ser apoiar ou ser parte dessas organizações.

    “Uma mudança de época”

    Os processos do leste significaram, para a grande maioria da esquerda, o início ou o agravamento de sua bancarrota teórica, programática e política. Influenciada pelo stalinismo e suas variantes – para o qual, como aparato, o fim da URSS significou, evidentemente, uma derrota histórica – em diferentes graus e com diferentes tons, a quase totalidade da esquerda chorou o suposto “fim do socialismo real”, a falência do “bloco socialista”, etc. O caso do ex-SU não foi diferente. Pelo contrário, o ex-SU foi a vanguarda desse processo.

    Para eles, a queda do Muro de Berlim produziu nada menos do que “uma mudança de época”. Daniel Bensaïd, principal teórico dessa corrente depois de Mandel, intitula, dessa maneira, um relatório apresentado no XIV Congresso do SU, em julho de 1995. Nesse texto, Bensaïd define o caráter das transformações decorrentes do fim da URSS como uma “grande transformação mundial”, especificamente, como uma “mudança de época”. Note-se que Bensaïd não fala de período, ou etapa, mas de época. Concretamente, para o ex-SU, estava encerrada a época histórica definida por Lenin como de “guerras, crises e revoluções”, aberta com a I Guerra Mundial e o Outubro russo – que o marxismo entendia como uma época revolucionária, a época imperialista –, dando lugar a outra diferente: “não estamos mais no período político de 1968, não saímos ainda da onda longa depressiva e estamos no final de uma época, aberta pela Primeira Guerra Mundial e pela Revolução Russa”. 13

    A nova época não só colocava tudo em questão, como, para Bensaïd, implicava um retrocesso para o movimento operário de quase um século ao identificar o ponto de partida dos marxistas numa coordenada anterior a 1914:

    “[…] o laboratório que se abre é de uma amplitude comparável à do início do século, onde a cultura teórica e política do movimento operário foi forjada: análise do debate sobre o imperialismo, sobre a questão nacional, organização política, social, parlamentar.14

    Esta nova época seria, essencialmente, defensiva, pois, de acordo com Bensaïd, inaugurava-se com uma profunda derrota do movimento operário: o “desmantelamento da União Soviética sem culminar numa revolução política”. 15 Assim, Bensaïd estabeleceu como características de toda uma época “o enfraquecimento social dos trabalhadores” e a “crise do projeto socialista”. 16

    Bensaïd atribuía essas “relações de força mundiais” desfavoráveis não a fatores objetivos, mas a elementos subjetivos, como o retrocesso ideológico do movimento operário, devido aos “profundos efeitos da crise do socialismo real”. 17 Destacamos este argumento desse informe para não haver confusão: Bensaïd não está afirmando que teria surgido um período de desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo e que, portanto, estaria prevendo a possibilidade de conquistar reformas que trouxessem melhorias ao nível vida das massas (como se fosse o período da livre concorrência anterior ao advento da época imperialista). Não é por isso que ele opina que estaríamos numa nova época. Ele acredita que ocorreu uma mudança reacionária da época histórica devido ao retrocesso da consciência e à “crise do movimento operário”, ou seja, devido a elementos subjetivos.

    Bensaïd diz:

    As mudanças nas relações políticas mundiais após a queda do Muro de Berlim, o desmantelamento da União Soviética e a Guerra do Golfo deram o golpe final, causando uma crise aberta, não conjuntural, nas formas do anti-imperialismo radical da fase precedente. […] Neste momento, a tendência dominante em escala internacional é o enfraquecimento do movimento social (começando pelo sindical). […] A esquerda revolucionária está hoje mais pulverizada e enfraquecida que há cinco anos […] Para a reconstrução de um projeto revolucionário e de uma Internacional, partimos de condições significativamente deterioradas.18 

    Em nenhum momento destaca não só a importância, mas o próprio fato da destruição do aparato contrarrevolucionário mundial do stalinismo pelas mãos das massas soviéticas. Ou seja, o ex-SU respondeu ao problema crucial de saber quem, quando e como o capitalismo foi restaurado fazendo coro com as viúvas do stalinismo: culpando os limites das massas trabalhadoras e não a burocracia termidoriana e totalitária do Kremlin.

    Para nós, a restauração do capitalismo foi obra daquela burocracia, que, para garantir a continuidade de seus enormes privilégios, decidiu, em completo acordo com o imperialismo, transformar-se em proprietários capitalistas no marco do retorno da economia de mercado e do desmonte dos estados operários. No entanto, alguns anos mais tarde, as massas soviéticas fizeram o stalinismo pagar caro por essa traição e, com a sua mobilização revolucionária, destruíram, um por um, em menos de dois anos, os terríveis regimes totalitários de partido único da URSS e da Europa Oriental. É verdade que a perda dos estados operários significou uma derrota e a perda de uma conquista enorme da classe trabalhadora. A questão, no entanto, é que o processo não parou por aí. As massas soviéticas, embora não tenham conseguido reverter o processo de restauração, liquidaram o maior aparato contrarrevolucionário da história, impondo-lhe uma derrota histórica. Ao destruir o aparato stalinista, os povos soviéticos libertaram forças gigantescas antes aprisionadas pelo stalinismo. Essa não é apenas uma imensa vitória, mas o principal fato da luta de classes mundial após a Revolução Russa.

    A tendência histórica do ex-SU à capitulação aos grandes aparatos e à opinião geral da esquerda, num momento decisivo da história, levou-o a um novo e fatal seguidismo: somou-se ao triste coro de lamentações daqueles que sentem saudades do stalinismo.

    O programa da nova época

    A nova época exigia, nas palavras de Bensaïd, uma “redefinição programática”, “construir um novo programa”. 19 Por si só, isso não é um problema. Qualquer mudança importante na realidade exige uma atualização programática. O problema foram as premissas teóricas das quais Bensaïd partiu para elaborar esse novo programa e o método usado para construí-lo.

    Bensaïd e o ex-SU partiram da hipótese de que a queda da União Soviética significou um “eclipse da razão estratégica”. 20 Tudo estava questionado e, por isso, tinham o caminho livre para deixar para trás qualquer legado trotskista. Assim, abandonaram o método trotskista de elaborar o programa a partir das necessidades objetivas da classe operária para absolutizar o elemento subjetivo: a consciência das massas e, por essa via, subordinar o programa à correlação de forças que, por sua vez, expressaria esse atraso da consciência das massas.

    Coerentes com a caracterização de que a época de crises e revoluções que se abriu em 1914 estava encerrada e com a suposição de que a nova época estaria marcada pelo retrocesso, o problema do poder foi relegado para um futuro incerto, porque as massas não o veem.

    Nesse marco, a conclusão a que chegaram foi a de adaptar o programa a essa nova época, desprovida de possibilidades revolucionárias. Bensaïd chegou a propor em seu texto as novas coordenadas programáticas pós-leste. Sobre a Europa, o centro histórico do SU, o objetivo estratégico, passou a ser a luta por “uma Europa social e solidária”, “uma Europa pacífica e solidária” em oposição à “Europa financeira e não democrática”. 21

    Após descrever o fim da URSS, as novas instituições da globalização, o problema da reestruturação produtiva, Bensaïd propôs uma visão e um programa completamente reformistas, nos moldes do conceito liberal de cidadania universal e da utópica democratização e humanização do capitalismo, ideias que, pouco depois, foram amplamente difundidas em espaços como os Fóruns Sociais Mundiais:

    Pode-se conceber outra forma de cooperação e de crescimento do pla-neta: organismos reguladores internacionais substituindo o BM/FMI/OM-C/G-7; organismos que promovam o comércio internacional entre países de produtividade similar; transferência planejada de riqueza dos países que a acumularam durante séculos em detrimento dos países pobres; novos dispo-sitivos para regular as trocas que permitam projetos de desenvolvimento di-ferenciados, desconexão parcial e controlada do mercado mundial e uma política de preços correta; uma política migratória negociada neste contexto.” 22

    Como parte da ideia de um mundo regulado e negociado, no momento de “reformular os primeiros contornos de uma proposta que conduza a uma contestação de conjunto da ordem estabelecida”, Bensaïd continua enunciando os pontos centrais do que ele chama de “programa de transição”. No entanto, o leitor rapidamente perce- be que o conteúdo de tal programa não passa de um programa mí- nimo socialdemocrata, marcado pela completa ausência de qualquer medida anticapitalista. A citação, embora extensa, é importante por sua clareza:

    a) Cidadania/democracia (política e social): em relação à universalidade dos direitos humanos proclamados, direitos civis e igualdade de direitos (imigrantes, mulheres, jovens), direitos civis e direitos sociais (igualdade ho-mens/mulheres); direitos sociais e serviços públicos;

    b) Contra a ditadura do mercado, suas consequências a curto prazo, sua lógica de desigualdades; direito à vida, a começar pelo direito ao emprego e à garantia de renda mínima; reinvestimento de lucros de produtividade (serviços de educação, saúde, habitação) com a expansão da gratuidade e ingerência no direito de propriedade privada. Direito de cidadãos/cidadãs à propriedade social das grandes empresas cujas opções e decisões tenham um impacto maior sobre suas condições de vida presentes e futuras. Esse direito não implica necessariamente uma nacionalização, mas uma socializa-ção efetiva (direito ao uso autoadministrado, descentralização, planificação);

    c) Solidariedade entre gerações (proteção social, ecologia);

    d) Solidariedade sem fronteiras: desarmamento, dívida, constituição de espaços políticos regionais, internacionalização dos direitos sociais.23

    Bensaïd chega a falar sobre a tarefa de reelaborar o programa de transição. No entanto, evidentemente, a partir do que lemos acima, sua proposta não tem nada a ver com o objetivo estratégico nem com o método usado por Trotsky. Bensaïd afirma estar disposto a encon-trar as novas pontes entre as reivindicações imediatas e a conquista do poder. Entretanto, apressa-se a dizer: “mas essas pontes e passarelas são, por enquanto, muito precárias”. 24 O problema central não é que as pontes sejam precárias, mas que o ex-SU, como Trotsky dizia, não tem “o objetivo de chegar à outra margem”. 25 Isso se demonstra no fato de que, após os processos do leste, abandonaram a concepção marxista de Estado e a estratégia da luta pelo poder operário, a dita-dura do proletariado, nada menos do que o centro do programa mar-xista. Sobre este assunto, dando uma piscadela para teorias como as de Toni Negri ou Holloway, Bensaïd chega inclusive a perguntar:

    “Onde está o poder? Ainda concentrado nos aparatos do Estado, mas também delegado a instituições regionais e internacionais. […] Hoje, a disso-ciação dos poderes políticos e econômicos, a dispersão dos centros de deci-são e dos atributos de soberania (em nível local, nacional, regional, mundial) fazem com que as passarelas projetadas a partir das reivindicações imedia-tas partam em direções diferentes.” 26

    A questão de se saber se os processos do leste foram ou não uma derrota histórica é um debate aceitável entre marxistas. É uma dis-cussão sobre correlação de forças. Para nós, não houve tal derrota histórica. Essa não é, contudo, a discussão. O nó principal é que, mesmo que o ex-SU tivesse razão e houvesse ocorrido tal catástrofe, o seu abandono do programa revolucionário e da construção de partidos leninistas não se justificaria de forma alguma. Seu critério, diante de uma possível derrota ou situação muito desfavo-rável, é oposto, uma vez mais, ao de Lenin e Trotsky. Analisemos dois exemplos disso:

    1. Existe consenso quanto ao fato de que a eclosão da I Guerra Mundial, em 1914, foi uma grande derrota do proletariado europeu e mundial. A II Internacional e os principais partidos socialdemocratas, a direção inquestionável da classe operária, destruíram-se nessa ocasião como orga-nizações marxistas. A classe operária europeia, traída por essa direção, se dividiu e entrou na guerra imperialista, servindo como bucha de canhão para suas burguesias. O “retrocesso” no nível de consciência das massas chegou a tal ponto que os trabalhadores assassinavam-se uns aos outros em favor dos interesses de suas burguesias imperialistas. Não poderia haver perspec-tiva mais sombria. E, contudo, qual foi a atitude e a política de Lenin diante dessa derrota gravíssima? Adaptar o programa ao nível de consciência da classe operária naquele momento? Nada disso. Ele denunciou o colapso da II Internacional e convocou a construção da III Internacional revolucionária. Convocou os operários a transformar a guerra interimperialista em guerra civil contra os seus governos, mesmo que tal proposta não fosse sequer inte-ligível para a maioria dos operários europeus. Se Lenin houvesse raciocinado e atuado como o ex-SU, a partir de uma premissa similar, simplesmente a Revolução de Outubro não teria existido.
    2. O mesmo aconteceu quando o stalinismo completou a contrarrevolução política na ex-URSS, corrompeu a III Internacional e culminou sua traição suprema ao levar ao desastre a revolução alemã em 1933, facilitando a ascensão de Hitler. O que fez Trotsky diante de tamanha derrota da classe operária alemã e internacional, que significou a degeneração da III Internacional e a ascensão do nazismo? A classe operária e o punhado de revolucionários que não se curvaram diante do imenso poder de Stalin atravessavam o pe-ríodo de mais graves derrotas, traições e perseguições. Foi a “meia-noite do século 20”. Leon Trotsky, no entanto, chamou a construção da IV Internacional para manter vivo o programa revolucionário contra a burguesia mundial, o stalinismo e até mesmo contra os céticos de seu próprio movimento. As lições de nossos mestres refutam completamente a lógica usada pelo ex-SU, assimilada hoje pela maior parte da esquerda.

    Programa, direções e consciência

    Para Bensaïd, o programa que as direções do movimento de massas apresentam é uma expressão da consciência das massas:

    É surpreendente constatar que o programa do PT brasileiro foi muito mais moderado do que o programa reformista radical da Unidade Popular chilena de 1970 ou do que alguns programas radicais em alguns países europeus (redução da jornada de trabalho, direito dos imigrantes, suspensão da dívida e desmilitarização) e, muitas vezes, muito mais rebaixado do que os programas reformistas dos anos [19]70, pelo menos em sua forma escrita (nacionalização, elementos de controle e autogestão).27

    De acordo com esta lógica, a traição de partidos como o PT brasileiro seria responsabilidade não de sua direção burocrática, mas de um atraso da consciência do movimento operário. A traição deveria ser atribuída não à natureza dos aparatos contrarrevolucionários, mas sim à “crise do projeto socialista”, uma característica da nova época.

    Assim, o ex-SU acabou abandonando a compreensão trotskista do papel das direções e da crise de direção revolucionária.

    A razão de ser e o conceito central do Programa de Transição resumem-se na premissa de que: “a crise da direção do proletariado, que se transformou na crise da humanidade, só pode ser resolvida pela IV Internacional”. 28 Bensaïd, em seu informe, iguala a “crise de direção revolucionária” com a “crise do movimento operário”. Ou seja, as direções são a expressão da época. Neste caso, seria expressão da derrota do movimento operário e do retrocesso de sua consciência. Não seriam os aparatos contrarrevolucionários que passaram descaradamente para a ordem capitalista, mas sim as massas que estão confusas e atrasadas. Da mesma forma, o programa pró-burguês de partidos como o PT ou a social-democracia europeia não seriam produto de sua natureza contrarrevolucionária, mas um reflexo da nova época histórica.

    Este não foi o critério de Trotsky. Para o fundador da IV Internacional, a crise da direção revolucionária obedecia a fatores objetivos: a existência e força concreta (maior ou menor) dos aparatos contrarrevolucionários e da direção revolucionária. Independentemente do que pensassem os operários, as ações do stalinismo e dos aparatos contrarrevolucionários sempre estavam orientadas para evitar, a qualquer custo, o desenvolvimento da direção revolucionária, valendo-se ora de campanhas ideológicas, do engano e da calúnia, ora da repressão aberta.

    Foi exatamente sobre a relação entre a consciência do movimento operário e a direção revolucionária que Trotsky polemizou contra os defensores do Partido Operário de Unificação Marxista (POUM) espanhol no artigo Classe, partido e direção. Os apologistas do POUM diziam – da mesma forma como os liberais culpavam o povo pelo governo que tinham – que as massas tinham “a direção que merecem”. Algo similar às teses do SU, que esgrimem a imaturidade do proletariado e a suposta correlação de forças desfavorável para justificar o seu programa reformista.

    O mesmo método dialético deve ser utilizado para tratar a questão da direção de uma classe. Como os liberais, nossos sábios admitem tacitamente o  axioma segundo o qual cada classe tem a direção que merece. Na verdade, a direção não é, em absoluto, o “simples reflexo” de uma classe ou o produto de seu próprio poder criativo. Uma direção é formada no curso dos choques entre as diferentes classes ou do atrito entre as diferentes camadas dentro de uma mesma classe. Mas, assim que aparece, a direção, inevitavelmente, eleva-se sobre a classe e, por este fato, arrisca-se a sofrer a pressão e a influência de outras classes.

    O proletariado pode “tolerar” por bastante tempo uma direção que já tenha sofrido uma degeneração interna completa, mas que não tenha tido a chance de demonstrar isso no decorrer de grandes eventos. É necessário um grande choque histórico para revelar de forma aguda a contradição que existe entre a direção e a classe. Os choques históricos mais potentes são as guerras e as revoluções. Por essa razão, a classe trabalhadora é, muitas vezes, pega de surpresa pela guerra e pela revolução. Mas, inclusive quando a antiga direção já revelou sua própria corrupção interna, a classe não pode improvisar imediatamente uma nova direção, especialmente se não herdou do período anterior quadros revolucionários sólidos, capazes de tirar proveito do colapso do velho partido dirigente. A interpretação marxista, isto é, dialética e não escolástica, da relação entre uma classe e sua direção não deixa pedra sobre pedra dos sofismas legalistas de nosso autor.29

    Como se estivesse respondendo de antemão àqueles que, como Bensaïd, atribuem as derrotas e determinam o seu programa a partir do retrocesso geral da consciência ou à mera relação de forças, Trotsky expõe o problema de “como se deu o amadurecimento dos operários russos”:

    A maturidade do proletariado é concebida como um fenômeno puramente estático. No entanto, no decurso de uma revolução, a consciência de classe é o processo mais dinâmico que pode ocorrer, o que determina diretamente o curso da revolução. Era possível, em janeiro de 1917 ou mesmo em março, após a derrubada do czarismo, dizer se o proletariado russo havia “amadurecido” o suficiente para tomar o poder dentro de oito a nove meses? A classe operária era, naquele momento, totalmente heterogênea social e politicamente. Durante os anos de guerra, tinha sido renovada em cerca de 30 ou 40%, a partir das fileiras da pequena burguesia, frequentemente reacionária, à custa dos camponeses atrasados, à custa das mulheres e dos jovens. Em março de 1917, apenas uma insignificante minoria da classe operária seguia o partido bolchevique e, além disso, em seu seio, reinava a discórdia. Uma esmagadora maioria de operários apoiava os mencheviques e os socialistas revolucionários, ou seja, os sociais-patriotas conservadores. A situação do exército e do campesinato era ainda mais desfavorável. Devemos acrescentar, ainda, o baixo nível cultural do país, a falta de experiência política das camadas mais amplas do proletariado, especialmente nas províncias, para não mencionar os camponeses e soldados. Qual foi o trunfo do bolchevismo? No início da revolução, apenas Lenin tinha uma concepção revolucionária clara, elaborada até mesmo nos mínimos detalhes. Os quadros russos do partido estavam espalhados e bastante desorientados. Mas o partido tinha autoridade sobre os operários avançados e Lenin tinha grande autoridade sobre os quadros do partido. Sua concepção política correspondia ao desenvolvimento real da revolução e ele a ajustava a cada novo acontecimento. Esses elementos dos trunfos do bolchevismo fizeram maravilhas em uma situação revolucionária, isto é, nas condições de uma luta de classes encarniçada. O partido alinhou rapidamente sua política para fazê-la corresponder à concepção de Lenin, isto é, ao verdadeiro curso da revolução. Graças a isso, encontrou um forte apoio entre dezenas de milhares de trabalhadores avançados. Em poucos meses, com base no desenvolvimento da revolução, o partido foi capaz de convencer a maioria dos trabalhadores do acerto de suas palavras de ordem.

    «Esta maioria, por sua vez, organizada nos soviets, foi capaz de atrair os operários e camponeses. Como poderíamos resumir este desenvolvimento dinâmico, dialético, usando uma fórmula sobre a “maturidade” ou “imaturidade” do proletariado? Um fator colossal da maturidade do proletariado russo, em fevereiro de 1917, era Lenin. Ele não tinha caído do céu. Encarnava a tradição revolucionária da classe operária. Uma vez que, para que as palavras de ordem de Lenin encontrassem o caminho das massas, era necessário que existissem quadros, por mais fracos que fossem no início, era necessário que estes quadros tivessem confiança em sua direção, uma confiança baseada na experiência passada. Rejeitar estes elementos de seus cálculos é simplesmente ignorar a revolução viva, substituí-la por uma abstração, a “relação de forças”, já que o desenvolvimento das forças não deixa de se modificar rapidamente sob o impacto das mudanças na consciência do proletariado, de modo que as camadas avançadas atraem as mais atrasadas, e a classe adquire confiança em suas próprias forças. O principal elemento, vital, desse processo é o partido, da mesma forma que o elemento principal e vital do partido é a sua direção. O papel e a responsabilidade da direção em uma época revolucionária são de importância colossal.30 

    Os partidos amplos e as consequências do giro pós-Leste

    Para a visão do SU desde 1995, era tamanho o retrocesso da consciência no mundo que não era mais possível manter a construção de partidos leninistas com um programa revolucionário como o centro de sua atividade. Por isso, a partir daí, a proposta foi organizar revolucionários e reformistas honestos no mesmo partido. Esse projeto levou-os a dissolver a antiga Liga Comunista Revolucionária (LCR) francesa, em 2004, e a formar o NPA, um partido eleitoral que opera com base no programa que eles consideram aceitável pelos reformistas honestos.

    A ironia da história é que resolveram fazer isso para melhor dialogar com os trabalhadores na nova época, em 1995. Porém chegaram a essa conclusão justamente no momento em que o trotskismo francês começou a ter êxito no terreno eleitoral: a organização Lutte Ouvrière (Luta Operária) obteve 5,2% na eleição presidencial de 1995, e o trotskismo chegou a 10% nas eleições presidenciais. A própria LCR teve 4,25% em 2002, mostrando como sua análise sobre a consciência estava equivocada. Essa visão de mundo levou-os a um retrocesso real. A LCR, a antiga seção francesa do SU, rebaixou o seu programa e se dissolveu no NPA, procurando se aproximar desse nível de consciência e, agora, está sofrendo uma profunda crise ao ser superada pelos reformistas da Frente de Esquerda. Os militantes do ex-SU na França não são sequer a sombra do que era a antiga LCR no início dos anos 2000.

    Avançaram nessa dinâmica e, hoje, aceitam programas ainda mais rebaixados do que o do NPA. Armados com suas elaborações pós-Leste, transformaram-se em entusiastas e promotores dos partidos neorreformistas, aceitando seus programas de defesa da democracia burguesa radicalizada. É o caso do Podemos (em que também dissolveram o seu partido, a Esquerda Anticapitalista, diante das ameaças de Pablo Iglesias) e do Bloco de Esquerda português (em que também se dissolveram).

    Os militantes do SU já sequer propõem o conceito de anticapitalista para a formação desses partidos. Basta ser antiausteridade. Para eles, esses partidos neorreformistas são a alternativa possível nesta época. A proposta do ex-SU não é o entrismo, mas sim entrar e ser parte permanente desses partidos e de sua direção. Como prova, é revelador ler as declarações de Teresa Rodríguez e Miguel Urbán, dirigentes da Esquerda Anticapitalista do Estado Espanhol, quando proclamam orgulhosos que foram fundadores do Podemos, partido ao qual saúdam por ter canalizado uma “tempestade de entusiasmo pela mudança” e por ser uma “ferramenta de protagonismo popular e cidadão”, bem como “uma ferramenta eleitoralmente mais fluída”. 31

      Notas:

    1. Referente à corrente política fundada pelo argentino Nahuel Moreno, um dos mais importantes dirigentes trotskistas. ↩︎
    2. Referente ao dirigente trotskista do SU Michel Pablo, pseudônimo do grego Michel Raptis. ↩︎
    3. Ernest Mandel (1923-1995): foi um importante dirigente trotskista, economista e político alemão. Passou a maior parte de sua vida e militou na Bélgica. Também era conhecido pelos pseudônimos Ernest Germain, Pierre Gousset, Henri Vallin, Walter entre outros. ↩︎
    4. LIT-CI. Conferencia de fundación. Resoluciones y documentos. São Paulo: Ediciones Marxismo Vivo, 2012, p. 150. ↩︎
    5. Bensaïd afirmou em 2004: “Na realidade, os grandes sujeitos da mudança revolucionária – sobretudo os três Ps maiúsculos: Povo, Proletariado e Partido – foram fantasmas como grandes sujeitos coletivos. […] O problema hoje deveria ser colocado de outro modo: como, a partir de uma multiplicidade de protagonistas que são capazes de se unir por um interesse negativo – de resistência à mercantilização e privatização do mundo – conseguir uma força estratégica de transformação sem recorrer a esta duvidosa metafísica do sujeito […]”. BENSAÏD, Daniel. Entrevista inédita. Disponível em: http://www.vientosur.info/spip.php?article8797 ↩︎
    6. Hugo Chávez (1954-2013), presidente da Venezuela entre 1999 e 2013. ↩︎
    7. LIT-CI. Conferencia de fundación. Resoluciones y documentos. São Paulo: Ediciones Marxismo Vivo, 2012, p. 65. ↩︎
    8. Ibid, p. 65.  ↩︎
    9. Ibid, p. 66. ↩︎
    10. Fidel Castro (1926-2016), líder da revolução cubana, primeiro-ministro e presidente de Cuba entre 1959 e 2008. ↩︎
    11. Refere-se aos seguidores das ideias e políticas de Augusto César Sandino (1895-1934), que dirigiu a revolta contra a presença militar dos Estados Unidos na Nicarágua, iniciada em 1927. ↩︎
    12. Violeta Chamorro (1929-): política nicaraguense que se integrou à Junta de Governo de Reconstrução Nacional, assumindo o controle do país por um breve período após a revolução de 1979. A junta levou a revolução à derrota. ↩︎
    13. BENSAÏD, Daniel. Una nueva época histórica, julho de 1995. Disponível em: http://www.danielbensaid.org/Una-nueva-epoca-historica?lang=fr ↩︎
    14. Ibid. ↩︎
    15. Ibid. ↩︎
    16. Ibid. ↩︎
    17. Ibid. ↩︎
    18. Ibid. ↩︎
    19. Ibid. ↩︎
    20. Ibid. ↩︎
    21. Ibid. ↩︎
    22. Ibid. ↩︎
    23. Ibid. ↩︎
    24. Ibid. ↩︎
    25. TROTSKY, Leon. O Programa de Transição. ↩︎
    26. BENSAÏD, Daniel. Ibid. ↩︎
    27. Ibid. ↩︎
    28. TROTSKY, Leon. O Programa de Transição. ↩︎
    29. TROTSKY, Leon. Classe, partido e direção. ↩︎
    30. Ibid. ↩︎
    31. RODRÍGUEZ, Teresa; URBÁN, Miguel. Dos años de PODEMOS. Disponível em: http://blogs.publico.es/otrasmiradas/5852/dos-años-de-podemos ↩︎

    Publicado em novembro de 2016 na revista Marxismo Vivo N. 8

  • Uma história pouco conhecida: os Estados operários burocráticos do Leste Europeu

    Uma história pouco conhecida: os Estados operários burocráticos do Leste Europeu

    O livro de Jan Talpe, Los Estados obreros del glacis, 1 vem suprir uma lacuna importante. Desde a queda do Muro de Berlim e dos anos 1990, o processo da restauração capitalista é um foco de polêmica, em especial no interior da esquerda e entre aqueles que se reivindicam da tradição antistalinista. De sua interpretação, decorre toda uma visão da realidade de hoje.

    Por: José Welmowicki

    As polêmicas concentraram-se no processo da ex-URSS, mas para tirar todas as lições, é necessário analisar os demais países da Europa Oriental que, logo após a Segunda Guerra Mundial e a derrota do nazi-fascismo, foram ocupados pelo exército soviético e ficaram sob o comando da burocracia stalinista da URSS, que acabou criando novos Estados operários burocráticos deformados.

    Para os stalinistas, é simples. O que aconteceu resume-se a uma derrota do socialismo pela ofensiva esmagadora do capitalismo imperialista, e as massas foram enganadas. Por isso, não defenderam o regime “socialista”, que tinha seus problemas, mas era uma plataforma para o comunismo. Daí viria, segundo eles, a imensa dificuldade do projeto socialista que “ficou sem referências”. Para eles, estamos numa etapa defensiva e é necessário esperar outra etapa ou época em que se retome a capacidade de ofensiva do socialismo, derrotado na ex-URSS e no Leste Europeu.

    A maioria da esquerda que não se reivindica stalinista (incluindo aqueles que se reivindicam trotskistas), embora faça críticas muitas vezes duras aos regimes stalinistas, na prática, colocou-se como a ala esquerda desses regimes do chamado “socialismo real”. Isso porque atribuíram a restauração às debilidades do movimento operário e não à ação contrarrevolucionária da burocracia stalinista. Essa posição provinha de um grave erro teórico: consideravam a burocracia como uma camada de dirigentes que, embora fossem algozes do proletariado e da oposição de esquerda, jamais poderiam liderar a restauração por conta de uma suposta “dupla natureza”. Devido a seus interesses materiais associados, a manutenção das bases econômicas sociais do Estado operário, segundo essa visão, essa casta jamais poderia apoiar a restauração capitalista, nem na URSS, nem nos demais países do glacis. Viam a burocracia como uma barreira contra o capitalismo dominante em escala mundial.

    Essa era uma tese oposta às conclusões de Trotsky sobre a URSS após a contrarrevolução stalinista e a burocratização. Para Trotsky, como está em seu livro A Revolução Traída, de 1936, e no Programa de Transição, caso não houvesse uma revolução política que derrubasse a burocracia, defendendo as bases sociais e econômicas do Estado operário, a restauração era inevitável.

    No entanto, depois do assassinato de Trotsky, muitos dirigentes da jovem direção da IV Internacional do pós-guerra, como seu teórico mais conhecido, Ernest Mandel, caíram no erro de opinar que a burocracia jamais poderia liderar a restauração do capitalismo na URSS ou no Leste Europeu.

    Nesse sentido, ignoravam a própria elaboração de Trotsky, que afirmou com toda a nitidez que a partir da burocratização da URSS, exceto se houvesse uma revolução política que a expulsasse do poder, era inevitável que a burocracia conduzisse o Estado operário à restauração do capitalismo.

    Fatos esquecidos

    O texto de Talpe tem o mérito de estudar com profundidade o que se passou, em particular na região do Leste Europeu. Após a Segunda Guerra Mundial e a vitória das massas e do exército soviético sobre os nazistas e seus aliados, a região esteve sob controle direto das tropas russas e, portanto, da burocracia da URSS. A heroica luta do proletariado russo em Stalingrado – apesar da direção burocrática – durante cinco meses e com o saldo de dois milhões de mortos, levou à vitória nessa batalha decisiva contra o regime de Hitler, que havia sido aliado de Stalin nos primeiros anos do conflito, e permitiu mudar o curso da II Guerra Mundial.

    Essa vitória permitiu à burocracia russa “recuperar o prestígio do Kremlin”, negociar com o imperialismo o reconhecimento de sua influência sobre a região, no marco dos acordos de Yalta e Potsdam, e deixar cair no esquecimento seus acordos com Hitler que levaram à divisão da Polônia entre a URSS e a Alemanha nazista.

    A pesquisa de Jan Talpe ajuda a entender com profundidade como se originou o crescente ódio das massas de toda essa região aos ocupantes russos e aos burocratas locais que seguiam suas ordens, e assim entender as raízes das revoluções políticas que se sucederam, embora derrotadas, começando por Berlim Oriental e, depois, na Hungria, na Tchecoslováquia e na Polônia.

    Em 1939, Stalin havia feito um pacto de não agressão com Hitler e de divisão de áreas de influência (na Polônia, países bálticos, parte da Romênia e outras regiões) entre os dois países, o que incluía a invasão da Polônia pelos exércitos de Hitler, para ocupar a parte ocidental, e de Stalin para ocupar a parte oriental.

    Trotsky viveu esse episódio de invasão da Polônia em setembro de 1939, um pouco antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial e de ser assassinado. Assim, pôde deixar expressa sua posição sobre o que aconteceria sobre uma eventual ocupação da URSS nos territórios conquistados pelo Exército Vermelho e, de forma ampla, sobre as consequências da guerra.

    Trotsky opinava que o exército de Stalin, ao invadir a Polônia e os outros países, apesar de ter um objetivo contrarrevolucionário, expropriaria a burguesia desses países. Seria obrigado a tomar uma série de medidas progressistas, de caráter socialista, que dariam origem a Estados operários, embora burocratizados, assim como era a URSS.

    No entanto, para Trotsky, mesmo que o stalinismo tomasse esse tipo de medidas, que deveriam ser defendidas frente a um possível ataque de Hitler, a invasão do Exército Vermelho a esses países não podia contar com nenhum tipo de apoio dos revolucionários. Nisso, Trotsky era preciso e categórico: “Estivemos e continuamos contra ocupações de novos territórios pelo Kremlin”. 2

    Embora o acordo entre Hitler e Stalin tivesse sido rompido em 1941 por Hitler, quando o exército nazista invadiu o território da URSS, essa posição serviria para entender e dar referência ao que se passou no fim da Segunda Guerra Mundial, quando Stalin estabeleceu os acordos com seus novos aliados imperialistas, Inglaterra e Estados Unidos, para estabelecerem as áreas de influência. Os acordos ficaram conhecidos pelos nomes das cidades onde aconteceram as reuniões, Yalta e Potsdam.

    O glacis, Estados operários burocráticos sob um regime semelhante a colônias

    A partir desses acordos, o Exército Vermelho ocupou grande parte dos países do Leste Europeu e a burguesia foi expropriada nestes Estados. Assim, surgiram os Estados operários burocratizados do Leste Europeu, como previra Trotsky. Do mesmo modo que tinha prognosticado para a URSS sob a burocracia stalinista, aí também se cumpriu o prognóstico de Trotsky de que, se não houvesse a revolução política, a restauração do capitalismo seria inevitável.

    Contudo, além dessa ideia geral, era cada dia mais evidente o caráter contrarrevolucionário das burocracias na gestão diária da economia expropriada, no caso dos países do glacis. Eles estavam submetidos a uma dominação semelhante à pilhagem e à dominação colonial que o imperialismo capitalista exerce nos países dominados, bem como tinham seus governos, as instituições jurídicas repressoras e as polícias locais sob o controle direto do Kremlin.

    Tudo isso se dava no marco dos acordos de Yalta e Potsdam, no qual a URSS de Stalin comprometeu-se e respeitou de forma escrupulosa o acordo para manter o capitalismo na França, na Itália e na Grécia, instando os partidos comunistas locais a entregarem as armas à burguesia e aceitarem o apoio à “unidade nacional” para reconstituir o Estado burguês. No Ocidente, aceitavam a volta da burguesia local ao poder; no Leste, tinham o comando direto dos Estados para impedir que a mobilização das massas saísse do controle, utilizando as tropas russas para disciplinar as massas libertas do nazismo. E o monopólio do comércio exterior desses países era controlado… pela burocracia russa.

    Como escreve Jan Talpe:

    Em uma aliança contrarrevolucionária, o Kremlin e o imperialismo propuseram-se a domar o levante das massas. E a burocracia soviética aproveitou a oportunidade para implementar a pilhagem em grande escala. Para isso, foi capaz de criar um glacis de semicolônias, que descrevemos como “sui generis” porque não havia burguesia no país colonizador. A grande burguesia havia fugido diante do avanço das tropas do Exército Vermelho, abandonando armas e bagagens. Isso permitiu uma pilhagem selvagem no início, levando tudo o que fosse transportável, até mesmo a força de trabalho. Mas uma burguesia local 3 permaneceu e, a longo prazo, o regime teve de ser alinhado com o da URSS por meio da nacionalização da indústria ou, eventualmente, da industrialização do país, com relações de propriedade socialistas e a implementação da coletivização agrária. O controle sobre o que restava da burguesia e da pequena burguesia foi facilitado pelo peso do monopólio da força militar e realizado por plenipotenciários, comandados de Moscou, com as tropas russas. Em geral, Stalin garantiu o controle sobre o aparato de repressão (o Ministério do Interior) e “fundiu” os partidos da social-democracia com o que restava dos partidos comunistas.

    Com o CAME, 4 o Kremlin pôde assegurar um “monopólio do comércio exterior” particular, controlado desde Moscou. E, com o tempo, a pilhagem requereria também a planificação central da economia, em que “central” significava não só planos quinquenais, mas também sua sincronização com os do colonizador.

    Jan Talpe fez uma pesquisa detalhada, país por país da região do glacis, que explica como as massas ficavam numa penúria a cada dia que se passava e voltavam-se contra os governantes dos Estados burocráticos totalitários a serviço da burocracia da URSS. As massas desses Estados obtiveram, num primeiro momento, o benefício da expropriação das burguesias locais, base para os novos Estados operários, mas esse benefício era anulado em seguida pela pilhagem dos recursos que ficaram assim disponíveis.

    As massas nunca deixaram de lutar contra a tirania dos PCs, que asseguravam e impunham essa rapina. Essa foi a base das revoluções políticas e das rebeliões parciais em todo o glacis, de 1948 até a década de 1980. Porém, elas foram esmagadas pela repressão local e, quando as forças de repressão local eram ultrapassadas, como na Hungria de 1956 ou na Tchecoslováquia de 1968, foram sustentadas pela intervenção direta das tropas russas.

    Assim, com a manutenção das burocracias governantes à cabeça desses Estados, verdadeiras satrapias 5 do Kremlin, todos marchavam cada vez mais para a restauração capitalista.

    A burocracia pregava que caminhava para o socialismo enquanto impulsionava medidas que alimentavam a restauração capitalista

    Como Talpe demonstra, o resultado da permanência da burocracia foi o retrocesso cada vez maior da situação da economia e o aumento da penúria dos trabalhadores e da repressão. Assim, as burocracias iam abrindo o caminho para a volta do capitalismo. Ela tratava de cobrir a pilhagem com o nome de “socialismo”, inclusive criando novas “Constituições” que davam uma roupagem “socialista” ao país.

    Como diz Talpe:

    Mas, mesmo nesses casos, para cada Estado era sempre uma questão de “socialismo em seu próprio país”, em um mundo de “coexistência” e “paz” entre “estados”, independentemente de sua cor. E, em última análise, “socialismo” era um termo que cobria a “lealdade ao Kremlin”, e a acusação de “capitalista” era uma denúncia de infidelidade a ele.

    Essa colaboração contrarrevolucionária do Kremlin para controlar o ascenso das massas não anulava a política do imperialismo para recuperar o controle direto sobre a totalidade da economia mundial. A partir da crise mundial dos anos 1970, as possibilidades do Kremlin de defender suas aquisições coloniais foram se reduzindo. O imperialismo passou a competir de forma direta para assumir o papel de colonizador. Assim, encontramos o fenômeno de países como Romênia e Polônia, já no início dos anos 1980, como membros dos organismos imperialistas de dominação econômica, como o FMI, submeterem-se a seu controle e terem dívidas externas escorchantes junto aos bancos ocidentais.

    Como analisa Talpe em seu livro, o chamado “socialismo num só país”, naquele momento estendido a vários “países sós”, abriu o campo para que o imperialismo recuperasse sua hegemonia em todos eles. Quando a burocracia russa passou a abandonar de vez as bases da grande conquista da Revolução de Outubro na URSS, teve de ceder suas semicolônias também, uma após a outra, aos novos senhores. Esses países deixaram de ser Estados operários – sem, por isso, sair do status de semicolônias. Ao contrário, desceram mais um degrau e passaram a ser semicolônias diretas do imperialismo. Sua situação deteriorava-se a cada dia, mostrando que o capitalismo não dá qualquer saída a esses povos.

    Lições para o futuro

    A leitura do livro de Jan Talpe pode ajudar a entender o papel criminoso do stalinismo no Leste Europeu. Mostra como ele foi o responsável pela pilhagem de toda a região e por preparar o retorno do capitalismo, reprimindo de forma selvagem as revoluções que tentaram reverter essa situação, impondo derrotas sangrentas que deixaram o terreno aberto para a ofensiva restauracionista e para a submissão direta ao imperialismo e o desgaste profundo da ideia de socialismo em toda a área.

    Cabe aos revolucionários de hoje estudar essa experiência para se armarem para combater a propaganda imperialista que diz que o “socialismo morreu no Leste”, contestar as propostas dos stalinistas e de seus epígonos e, assim, apresentar uma alternativa oposta pelo vértice ao stalinismo em todas suas variantes, que diga claramente que o stalinismo não tem a nada a ver com o socialismo e com a revolução operária mundial.

    Passados 30 anos da queda do muro de Berlim, o livro de Jan Talpe chega em boa hora para subsidiar essa discussão tão necessária.

    Notas:

    1. Glacis é uma expressão usada no fim da Segunda Guerra para descrever a região entre o antigo território da Alemanha e a URSS que, na visão de Stalin, serviria de zona de proteção para impedir que a Alemanha pudesse atacar militarmente o território soviético. Correspondia aos territórios ocupados pelo Exército Vermelho no fim da guerra e incluía a parte oriental da Alemanha, Polônia, Hungria, Tchecoslováquia etc. ↩︎
    2. TROTSKY, Leon. Em defesa do marxismo. São Paulo: Proposta Editorial, p. 34. ↩︎
    3. Jan Talpe se refere a um curto período em que ainda havia uma burguesia local que, logo em seguida, foi expropriada pela burocracia russa. ↩︎
    4. CAME era a sigla do Conselho de Ajuda Mútua Econômica, cuja abreviação em inglês era Comecon. Era apresentado pela burocracia stalinista como uma organização de cooperação econômica formada a partir da URSS pelos diversos países do “campo socialista”. Seus objetivos declarados eram fomentar as relações comerciais entre os Estados membros, como um contraponto aos organismos econômicos internacionais da economia capitalista, assim como apresentar uma alternativa ao Plano Marshall desenvolvido pelos Estados Unidos para a reorganização da economia europeia após a Segunda Guerra Mundial. Na prática, serviu para impor as decisões da burocracia russa no campo do comércio e do planejamento econômico aos países que dele faziam parte. ↩︎
    5. Satrapias eram as províncias do primeiro Império Persa. Cada satrapia era governada por um sátrapa. As funções deste eram basicamente recolher impostos, reprimir e recrutar homens para o exército. ↩︎

    Publicado em novembro de 2019 na revista Marxismo Vivo N. 14

  • Reforma ou revolução: o embate que decidiu a  vitória em outubro de 1917.

    Reforma ou revolução: o embate que decidiu a vitória em outubro de 1917.

    Na formação do movimento operário, várias teorias foram sendo superadas, como o utopismo dos primeiros socialistas, que ainda continham a visão burguesa em seu seio, pois correspondia à sua “infância”; um fenômeno que vem desde a origem do movimento operário no século XIX.

    Por: José Welmowicki

    Marx e Engels citaram essas ideias na parte final do Manifesto Comunista e, por isso, combateram-nas ideologicamente de forma permanente. Naquele momento, o utopismo e o reformismo eram associados às correntes que ainda preservavam as ideias dominantes anteriores. Em sua trajetória, estreitamente vinculada à organização dos partidos operários na Europa e à Associação Internacional dos Trabalhadores, Marx e Engels tiveram que travar duras polêmicas com os setores sindicalistas que ainda refletiam a imaturidade da classe, ao mesmo tempo em que sofriam as pressões das classes dominantes. Com a conformação da Primeira Internacional, surgiram diversas controvérsias para superar os erros desses setores.

    Como exemplo dessas polêmicas, podemos citar a defesa da Comuna de Paris em 1871 e a conclusão da necessidade de destruição do Estado burguês, ou ainda a discussão do Programa de Gotha (1875), congresso que formou o SPD alemão. Contudo, até aquele momento, a questão do reformismo ainda não havia assumido a importância e as raízes que viria a tomar mais adiante, como um tremendo obstáculo à revolução proletária – determinando derrotas profundas, como a bancarrota da Segunda Internacional e da Terceira Internacional.

    No desenvolvimento da Revolução de Outubro, o papel do reformismo foi muito grande e a revolução só pôde triunfar devido à existência do Partido Bolchevique, que se opôs e derrotou os reformistas na disputa pelo apoio da classe operária e do povo, possibilitando a vitória da revolução socialista.


    I – O reformismo tornou-se predominante e levou à bancarrota da II Internacional

    A primeira vez que um socialista de relevância participou de um governo burguês (o deputado Millerand, na França, em 1899) pôs à prova o programa e a prática dos socialistas, causando uma grave crise.

    Rosa Luxemburgo denunciava o significado dessa participação: relegar os socialistas franceses a serem os sustentadores do governo burguês do Partido Radical, incapazes até mesmo de criticar abertamente ou propor medidas mais radicais no governo em que participavam, por medo de que este renunciasse – justificando que, se o fizessem, outro governo burguês ainda mais reacionário assumiria. Esse episódio gerou repúdio na época, tanto na social-democracia quanto na II Internacional.

    Entretanto, o episódio francês expressava na prática posições já firmemente presentes na direção da social-democracia alemã e da II Internacional, cujo centro dirigente era o SPD alemão. As bases materiais para essa concepção reformista situavam-se no período de crescimento do capitalismo na segunda metade do século XIX, após a Comuna de Paris.

    Esse período possibilitou conquistas importantes ao proletariado, como aumentos salariais, redução da jornada de trabalho, melhores condições laborais e maior liberdade organizacional na Europa Ocidental. Sindicatos e partidos social-democratas cresceram e se fortaleceram, gerando uma perspectiva falsa de uma evolução gradual no capitalismo, com cada vez mais conquistas e poder político. A conquista de direitos políticos – como o do sufrágio – possibilitou que, na Alemanha das últimas décadas do século XIX, o Partido Social-Democrata conquistasse cada vez mais parlamentares. Fruto dessa conquista e da pressão direta que o parlamento e os sindicatos exerciam sobre o partido, uma camada de quadros foi se adaptando ao funcionamento legal e à rotina parlamentar, formando uma burocracia partidária, assim como se consolidava uma burocracia própria nas organizações sindicais.

    Bernstein foi o dirigente que forneceu a formulação teórica para toda a prática da social-democracia alemã de adaptação ao sistema parlamentarista, à rotina de aprimoramento sindical e à construção de uma burocracia na Alemanha. Assim, criou-se a base para a concepção reformista de que seria possível alcançar o socialismo por meio de reformas, sem a necessidade de rupturas ou da destruição do Estado burguês – ou seja, sem a revolução operária. A tese de Bernstein era que a democracia significava a “ausência de um governo de classe”, isto é, um Estado em que nenhuma classe governaria, e, portanto, prevaleceria uma “vontade popular” abstrata. A conquista dessa almejada democracia ocorreria por meio de mudanças graduais, reformas paulatinas que conduzissem a avanços rumo ao socialismo, sem rupturas nem a necessidade de tomada do poder por meio de uma revolução social. O socialismo seria uma sociedade a ser alcançada via mudanças graduais e pela democratização progressiva do Estado. Bernstein calificava como “blanquismo” qualquer tentativa de tomada do poder pela classe operária, rotulando-a de “terrorismo operário”.

    Rosa Luxemburgo respondeu em seu clássico Reforma ou Revolução:

    Bernstein condena os métodos de conquista do poder político, censurando-os por retomar as teorias blanquistas da violência; ele comete a infelicidade de equiparar o blanquismo a um erro profundamente prejudicial, erro que, desde que existam sociedades de classes, e a luta de classes seja o motor essencial da história, a conquista do poder político sempre foi o objetivo de todas as classes ascendentes, constituindo o ponto de partida e o ponto final de todo o período histórico.

    A Primeira Guerra expôs nitidamente o grau de adaptação da II Internacional e dos partidos social-democratas às burguesias, seus Estados e regimes. Uma vez declarada a guerra, os grandes partidos socialistas europeus decidiram apoiar suas respectivas burguesias numa guerra mundial, o que significava empurrar a classe operária de um país para lutar contra a de outro, matando-se entre si. Isso levou à bancarrota da II Internacional. Apenas uma pequena minoria de dirigentes – como Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, na Alemanha, e os bolcheviques russos – manteve uma posição de princípio, convocando a combater seus respectivos governos, a acabar com a guerra e a transformá-la em guerra civil.

    Todavia, essa catástrofe que atingiu a II Internacional deixou claro que a adaptação ao Estado burguês havia chegado a um ponto sem retorno, e agora as teorias de Bernstein passaram a ser plenamente adotadas, como ocorreu no partido alemão, em um congresso de 1921.

    Os partidos social-democratas passaram a se tornar obstáculos à revolução socialista e demonstraram, durante a onda revolucionária posterior à Primeira Guerra Mundial, seu caráter abertamente contrarrevolucionário. Ao assumirem o governo em alguns países da Europa, como na Alemanha, passaram de um discurso que propunha lutar por reformas para conter a revolução a uma defesa aberta do Estado burguês frente à revolução operária. Quando a Revolução Alemã explodiu em 1918, e a monarquia do Kaiser foi derrubada, a social-democracia assumiu o governo e defendeu o Estado burguês com os instrumentos da repressão. Ficou demonstrado na prática que o discurso das reformas pacíficas e da democracia não conduzia ao socialismo. Passou-se a reprimir os revolucionários dissidentes da Liga Espartaquista – que, posteriormente, formaria o Partido Comunista da Alemanha. Os grandes revolucionários Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht foram assassinados pela polícia do governo social-democrata de Ebert.


    III – Os mencheviques e o caráter da Revolução Russa

    Desde sua fundação, havia, no interior da social-democracia russa, uma polêmica sobre a natureza da revolução, que se aprofundou com a Revolução de 1905. Os mencheviques defendiam que, devido ao atraso da sociedade russa, aos seus resquícios feudais, ao fato de que a imensa maioria da população era camponesa e de que o regime era uma monarquia absolutista, a Revolução Russa seria de caráter democrático-burguês, tendo à sua frente a burguesia nacional, apoiada pelo proletariado e pelo campesinato em sua luta conjunta contra a monarquia czarista. Somente após um longo desenvolvimento do novo regime e das forças produtivas sob o capitalismo, a revolução socialista proletária seria proposta. Nesse período ou etapa de desenvolvimento democrático, caberia ao proletariado e à social-democracia russa assumir o papel de ala esquerda, lutando para aprofundar as reformas e preparando um novo momento em que a tomada do poder estaria em pauta. Ou seja, qualquer tentativa de revolução socialista seria precipitada, um salto sem passar pelas etapas necessárias da luta. Essa concepção equivocada enfraqueceu os mencheviques para a Revolução Russa e, especialmente quando a Revolução de Fevereiro triunfou, tornou-se um poderoso obstáculo ao seu desenvolvimento.


    IV – O papel dos mencheviques durante a Revolução Russa, de fevereiro a outubro

    A queda da monarquia em fevereiro colocou os socialistas diante da disjuntiva de apoiar ou não o governo provisório. Os mencheviques, coerentes com sua visão de que a Revolução Russa deveria inicialmente ter uma etapa democrática-burguês, apoiaram o primeiro governo provisório após a queda do czar.

    Considerando que, por si só, a Revolução de Fevereiro era essencialmente burguesa – havia chegado tarde demais e não possuía, por si, nenhum elemento de estabilidade – estando dilacerada por contradições que se manifestaram desde o início na dualidade de poderes, ela deveria se transformar, ou como uma introdução direta à revolução proletária (o que de fato ocorreu) ou lançar a Rússia, sob um regime de oligarquia burguesa, a um Estado semicolonial.

    Por conseguinte, poderia ser considerado o período subsequente à Revolução de Fevereiro, ora como de consolidação, de desenvolvimento ou de conclusão da revolução democrática, ora como uma etapa preparatória para a revolução proletária (…)” (Trotsky, Lições de Outubro).

    Os mencheviques adotaram a primeira hipótese. Sua antiga tese de que a Revolução Russa seria democrática-burguês parecia estar corroborada pela realidade: segundo sua visão, cabia à burguesia dirigir o país durante toda uma etapa histórica. Seguindo essa lógica, os mencheviques continuaram apoiando – ainda que de maneira crítica – os sucessivos governos de coalizão, desde aquele liderado pelo príncipe Lvov, com figuras destacadas da burguesia, como Miliukov, dirigente do partido cadete (liberal).

    “(…) Durante anos, os líderes mencheviques afirmaram que a revolução futura seria burguesa, que o governo de uma revolução burguesa apenas poderia realizar as aspirações da burguesia, e que a social-democracia não poderia assumir as tarefas da democracia burguesa, devendo, ‘sem deixar de impulsionar a burguesia para a esquerda’, limitar-se a um papel de oposição.” (Trotsky, op. cit.)

    Porém, a realidade forçou os mencheviques a aprofundar as consequências de sua orientação estratégica: diante da velocidade dos acontecimentos – típica de um processo revolucionário em andamento – a própria Revolução de Fevereiro acabou por levar os mencheviques a integrar o governo. Mais uma vez, os socialistas não apenas priorizavam a defesa das instituições democráticas, como chegaram a adotar a mesma posição de Millerand, na França de 1899, aceitando fazer parte do governo e comprometendo-se com a política (burguesa) do governo de coalizão. Como escreveu Trotsky: “De sua posição original, preservaram apenas a tese de que o proletariado não deveria conquistar o poder.

    Posteriormente, os mencheviques passaram a assumir diretamente o governo de coalizão e foram fundamentais para compor o governo Kerensky, mantendo a linha de manter a Rússia na Primeira Guerra Mundial, sem alterar a propriedade burguesa ou o latifúndio secular. Desempenharam um papel essencial na sustentação desse governo, pois, até então, juntamente com os social-revolucionários, constituíam a maioria na direção dos sovietes de operários, soldados e camponeses. Ao ver ministros desses dois partidos no governo – como Tserelli ou Chernov –, e contando com o apoio do soviete de Petrogrado por meio de dirigentes como Chkeidze e Dan, as massas de operários, camponeses e soldados passaram a acreditar que aquele era “seu governo”. Diante dessa realidade, tornou-se necessária uma alternativa revolucionária com estratégia clara, papel que coube aos bolcheviques.


    V – A Revolução de Outubro foi contra o governo liderado pelos reformistas

    Diferentemente do caso francês de Millerand, os reformistas enfrentavam uma revolução proletária em curso. A questão da posição dos revolucionários em relação ao governo Kerensky definiu a trajetória da Revolução Russa e a possibilidade de tomada do poder pelos sovietes em outubro.

    Essa questão não se restringe apenas aos mencheviques e aos social-revolucionários. Dentro do Partido Bolchevique, a maioria do Comitê Central, até a chegada de Lenin em abril, seguia uma orientação semelhante à dos mencheviques. Se não houvesse uma dura batalha de Lenin contra a ala hesitante de Stalin e Kamenev, a revolução poderia ter se perdido. E mesmo após abril, e com a mudança de orientação do partido para preparar a tomada do poder pelo proletariado por meio dos sovietes, houve uma resistência permanente a essa nova orientação por parte de importantes dirigentes bolcheviques.

    Quando a contrarrevolução surgiu, por meio do golpe de Kornilov em agosto, e foi derrotada pela ação dos trabalhadores e camponeses, e quando o Partido Bolchevique assumiu a liderança dessa luta vitoriosa – convocando à unidade e revitalizando os sovietes, de modo que os bolcheviques passaram a conquistar a maioria de alguns dos principais sovietes, a começar pelo de Petrogrado e logo depois pelo de Moscou – aproximou-se o momento oportuno para a insurreição operária que derrubaria o governo e instituiria o poder dos sovietes.

    Kerensky tentou utilizar a derrota de Kornilov para se reacomodar e convocou uma Conferência Democrática, de 14 a 22 de setembro, que originou um “pré-Parlamento”, marcando uma nova etapa no desenvolvimento das divergências. Abriu-se então um novo momento de hesitação. Os mencheviques ligados a Kerensky queriam obrigar os bolcheviques a se submeterem a esse novo órgão, aceitando entregar o poder crescente e o protagonismo adquirido pelos sovietes. A direção bolchevique convocou o boicote ao “pré-Parlamento” e exigiu que o poder fosse transferido aos sovietes. A ala conciliadora, liderada por Zinoviev e Kamenev, defendeu a participação em ambos os fóruns e o estreitamento dos laços com os mencheviques.

    Trotsky explicava:

    A conduta dos partidos conciliadores na Conferência Democrática foi de uma lamentável baixaria. Contudo, nossa proposta de abandonar ostensivamente a conferência – correndo o risco de ficarmos presos nela – colidia com uma resistência categórica dos elementos de direita, que ainda detinham grande influência na direção do nosso Partido. Essas coalizões, nesse caso, serviram de porta de entrada para a luta sobre a questão do boicote ao pré-Parlamento. Em 24 de setembro – isto é, após a Conferência Democrática –, Lenin escrevia: ‘Os bolcheviques devem se retirar como forma de protesto, para não cair na armadilha pela qual a Conferência tenta desviar a atenção popular das questões sérias’.” (tradução nossa)

    Contudo, apesar das hesitações dentro do próprio Partido Bolchevique, prevaleceu a orientação de Lenin, e assim se preparou a insurreição operária, vitoriosa em outubro. Isso significou uma ruptura frontal tanto com os mencheviques quanto com os social-revolucionários, que defendiam permanecer nos marcos da democracia burguesa – o que, por sua vez, ocasionou uma divisão entre os social-revolucionários, na qual uma ala de esquerda aderiu à proposta dos bolcheviques, formando a maioria dos sovietes.

    No congresso dos sovietes, em outubro, foi declarado a transferência do poder para os órgãos soviéticos, expulsando Kerensky e seu governo. Contudo, a insurreição foi planejada para coincidir com a convocação do Congresso. Essa preparação foi realizada pelo Partido Bolchevique, que já liderava os principais sovietes: os de Petrogrado e Moscou.

    A Revolução de Outubro só foi possível por meio da derrota do reformismo, derrubando o governo de colaboração de classes liderado por Kerensky. Esse destino ficou selado naquele mesmo congresso dos sovietes, quando, diante do repúdio à resolução de tomada do poder apresentada por Martov e da retirada da delegação menchevique, Trotsky dirigiu-se a eles afirmando que haviam escolhido seu destino, saindo de cena e indo para “o lixo da história”.


    VI – O reformismo após a Revolução de Outubro

    O reformismo teve um papel desastroso entre as décadas de 1920 e 1940. Sua política na Alemanha, de 1919 a 1933; na França e na Espanha, de 1931 a 1936; juntamente com o novo aparato surgido com a degeneração da URSS – ou seja, os partidos comunistas sob a direção do estalinismo – foi decisiva para infligir derrotas históricas ao proletariado mundial, para o isolamento da Revolução Russa, para o ascenso do nazismo e do fascismo, e para o deflagramento da Segunda Guerra Mundial, de 1939 a 1945.

    Com a derrota do nazifascismo e o fim da Segunda Guerra, a resistência assumia o controle dos países, mas a social-democracia e os partidos comunistas novamente traíram e desviaram a revolução socialista na França e na Itália. Uma vez estabilizada a situação, iniciou-se um período de crescimento econômico, no qual os reformistas recuperaram algum prestígio e conseguiram capitalizar um período denominado Estado de Bem-Estar, em que, devido à destruição causada pela guerra e em meio à revolução operária, a burguesia foi forçada a permitir melhorias significativas nas condições de trabalho, nos direitos sociais, etc. A social-democracia e os partidos comunistas apresentaram-se como defensores dos direitos sociais, reestruturaram-se na Europa Ocidental e integraram os governos na Alemanha, França, entre outros países.
    Frente aos processos que derrubaram regimes ditatoriais, novamente serviram como desvios para a revolução operária na Grécia – com o Pasok de Papandreu; em Portugal – com o PSP de Mário Soares após a Revolução dos Cravos; e até mesmo na Espanha pós-franquista, com Felipe González, que pactuou a transição com a monarquia dos Bourbons.

    Já na década de 1970, iniciou-se uma nova crise capitalista e, a partir daí, com a aplicação das políticas neoliberais de Thatcher e Reagan nos anos 1980, a social-democracia passou a abandonar cada vez mais as bandeiras das reformas parciais do Estado de Bem-Estar, adotando os mesmos planos neoliberais de seus adversários políticos de direita, o que resultou em uma nova grave crise nos partidos que passaram a ser chamados – com razão – de “socio-liberais”, pois não se diferenciam de seus adversários conservadores, excetuando-se apenas elementos retóricos. O mesmo fenômeno ocorreu com os antigos partidos comunistas após a restauração promovida na ex-URSS e em toda a Europa Oriental, os quais foram destruídos pelas revoluções que derrubaram seus regimes políticos no final dos anos 1980 e início dos anos 1990.

    A “Terceira Via” de Tony Blair foi uma das expressões mais claras desse processo: o abandono da defesa do Estado de bem-estar e a aproximação à política dos “planos de austeridade” e dos cortes nos direitos dos trabalhadores. Os governos trabalhista britânico, do Partido Socialista francês e do PSOE espanhol foram fundamentais para o retrocesso nas conquistas operárias, para a implementação dos planos neoliberais e para a construção do Tratado de Maastricht e da União Europeia.

    No entanto, toda essa traição resultou em uma queda violenta no prestígio do velho reformismo social-democrata e estalinista: o PASOK grego mergulhou em profunda crise, reduzindo-se a uma bancada parlamentar fraca; o PSOE saiu desgastado pela gestão da crise econômica, não atraindo mais os jovens nem os dirigentes operários; o PS francês, após governar de 1970 até 2000 e ter tido o último presidente, registrou seu pior resultado histórico devido à desastrosa gestão de Hollande; o Partido Comunista italiano desapareceu, dando origem ao PD, que é um partido burguês, fruto da fusão dos antigos comunistas com os democratas-cristãos, e já não exerce a mesma atração para os jovens e para o movimento operário.

    No Brasil, o PT, que surgiu tardiamente em relação a essas forças, teve um rápido e potente ascenso nas décadas de 1980 e 1990 e, em seguida, passou por um processo igualmente rápido de adaptação: ao assumir o governo, tornou-se também executor da política neoliberal e passou por um desgaste violento em função da implementação desses planos e da estreita colaboração com os bancos e as grandes empresas que o financiavam, o que o envolveu em um gigantesco escândalo de corrupção, ocasionando um profundo desgaste que afetou todos os seus principais quadros, inclusive Lula.


    VII – O neorreformismo

    Diante da profunda crise do velho reformismo, que se transformou no social-liberalismo, e do colapso do estalinismo nas décadas de 1990 e 2000, abriu-se um espaço resultante desse ascenso popular, a partir da reação contra a aplicação dos planos de austeridade da União Europeia. Especialmente a partir da crise de 2008, surgiram novas formações reformistas que tentaram preencher esse vácuo: o primeiro a obter um forte apoio popular foi o Syriza, na Grécia. Contudo, novamente, a lei de ferro da adaptação à democracia burguesa recaiu sobre esses novos partidos. Agora, o ritmo é ainda mais intenso, uma vez que não há espaço nem mesmo para reformas mínimas.

    O caso grego foi o mais revelador. Nesse contexto, a guinada foi completa: o Syriza se apresentou como a oposição frontal ao Pasok, sendo visto como a “esquerda radical contra a austeridade”. Após diversas greves gerais e quedas de governo, o SYRIZA venceu as eleições parlamentares, formando governo com um partido burguês de direita. Logo após assumir o governo, tornou-se o substituto do PASOK, implementando os planos de expolição da Troika e até mesmo a política repressiva da UE contra os refugiados, estabelecendo-se como sócio e aliado de Israel. Em “contrapartida a essa generosidade”, Tsipras implementou a décima quarta onda de cortes contra a classe trabalhadora grega, com novos cortes nos benefícios e mais privatizações.

    Na França, Mélenchon, candidato da “França Insubmissa”, limita-se a abordar – de forma insatisfatória – os efeitos da crise, sem atacar a propriedade das grandes empresas ou dos bancos. Seu economista-chefe vangloria-se de que seu programa é “sério e realista”. Propõe reformas moderadas e a convocação de uma assembleia constituinte para refundar uma VI República parlamentarista, sem sequer propor uma ruptura com o poder burguês. Seu projeto, na prática, não é a revolução operária, mas a “Revolução Cidadã”.

    Na realidade, todas as forças que se identificam com a “nova esquerda europeia” – os neorreformistas do Podemos, do Bloco de Esquerda português, da Die Linke na Alemanha – veem no SYRIZA sua referência. Em comum, essas forças apostam em mudanças por via eleitoral, sem romper com a legalidade burguesa. Não há sequer a perspectiva revolucionária. Elas não propõem a ruptura com a UE, mas apenas negociar para “modificar os tratados”. E, em outras partes do mundo, existem fenômenos semelhantes, como o PSOL brasileiro, que tenta ocupar o espaço deixado pelo PT, mas com um programa muito similar.

    A diferença hoje é que, em geral, esses partidos não possuem as mesmas raízes que o antigo reformismo tinha na classe operária – tanto os social-democratas quanto os ex-estalinistas –, tratando-se essencialmente de fenômenos eleitorais.


    VIII – Uma lição de Outubro: a revolução socialista exige derrotar os reformistas

    Como demonstra a Revolução de Outubro, de forma positiva, bem como a história das revoluções abortadas ou derrotadas dos séculos XX e XXI, os processos revolucionários não se transformam espontaneamente em revoluções triunfantes. É necessário haver um partido, como os bolcheviques, com um programa revolucionário claro, que compreenda a necessidade de enfrentar e derrotar não apenas a burguesia, mas também seus agentes dentro do movimento de massas. Essa é uma das mais importantes lições de Outubro: sem derrotar os inimigos da revolução presentes no seio do movimento operário, não se pode conquistar o poder.

  • A luta pela reconstrução da IV contra o «trotskismo» reformista (Parte II)

    A luta pela reconstrução da IV contra o «trotskismo» reformista (Parte II)

    O Leste Europeu provoca um salto de qualidade no SU: do revisionismo ao reformismo

    Hoje, o SU – que ainda se autodenomina “IV Internacional” – deixou de ser trotskista, embora mantenha o nome da IV. E já abandonou o programa revolucionário de tomada do poder, de luta pela ditadura do proletariado. O curso do revisionismo para o reformismo completou-se a partir dos processos do Leste, que caracterizaram como uma profunda derrota do movimento de massas e abriram uma “crise” no “projeto socialista”.

    Por: José Welmowicki

    Dessa forma, o ex-SU deu um “salto” de uma organização revisionista para o reformismo: além de eliminar explicitamente de seu programa a estratégia da ditadura do proletariado, tudo passou a se orientar pela democracia burguesa ou pela “radicalização da democracia”, abandonando inclusive a concepção da centralidade da classe operária no processo revolucionário. A perda de referência a partir do Leste refletiu-se no fato de que passaram a agir como os partidos reformistas social-democratas ou estalinistas.

    A experiência do Brasil

    O que aconteceu no Brasil ilustra bem esse processo. O SU, por meio de sua organização, a DS, esteve presente na formação do PT nos anos 1980, quando caracterizou a direção lulista como clasista ou mesmo revolucionária, acompanhando seus passos como sua ala esquerda, na verdade, uma oposição à “sua majestade”.

    Não se tratava de um entrismo para eles; era uma participação como corrente dentro de um partido estratégico. Já nos anos 1990, a DS integrou-se cada vez mais ao aparato petista. Quanto mais elegiam parlamentares e, posteriormente, prefeitos, mais se integravam, e seus quadros passavam a fazer parte do aparato partidário e do Estado burguês.

    Chegou-se a defender, de forma tática, a participação em governos burgueses de colaboração de classes, como no governo de Lula no Brasil. Quando Lula assumiu o governo federal em 2003, a DS – então seção brasileira do SU – indicou ministros como Miguel Rossetti e uma série de quadros para funções governamentais.

    A partir da prefeitura de Porto Alegre, foram os impulsionadores locais das “políticas sociais” do PT, semelhantes às que a social-democracia havia aplicado anteriormente. O resultado foi que a DS acabou se afastando do SU e um pequeno setor de quadros formou um novo grupo que permaneceu no SU e, mais tarde, foi para o PSOL, passando por novas divisões. Mais uma vez, considerando o PSOL como partido estratégico.

    Uma “mudança de época”

    Os processos do Leste significaram, para a imensa maioria da esquerda, o início – ou o aprofundamento – da bancarrota teórica, programática e política. Influenciada pelo stalinismo e por suas variantes – de modo que o fim da URSS representou, evidentemente, uma derrota histórica –, em diferentes medidas e com diferentes tons, quase toda a esquerda lamentou o “fim do socialismo real”, o epílogo do “bloco socialista”, etc.

    Dessa forma, ficaram ainda mais expostos aos efeitos da brutal campanha ideológica do imperialismo sobre a “morte do socialismo” e a “invencibilidade” do capitalismo e da democracia burguesa. O caso do ex-SU não foi diferente; ele foi, na verdade, vanguarda teórica desse processo.

    Para o ex-SU, a queda do muro de Berlim gerou nada menos que uma “mudança de época”. Daniel Bensaïd, principal teórico dessa corrente após Mandel, intitulou um documento – apresentado no XIV Congresso do SU em julho de 1995 – com esses termos. Nesse texto, Bensaïd define os impactos das mudanças ocasionadas pelo fim da URSS como uma “grande transformação mundial”, especificamente, como uma “mudança de época”. Destaca-se que ele não fala de “período” ou de “etapa”, mas sim de “época histórica”. Concretamente, para o ex-SU, havia terminado a época definida por Lenin como a de “guerras, crises e revoluções”, iniciada com a Primeira Guerra Mundial e a Revolução de Outubro – que o marxismo entende como uma época revolucionária, a época imperialista – dando lugar a outra diferente:

    Não estamos mais no período político de 1968, ainda não saímos da onda longa depressiva e estamos no final de uma época, iniciada com a Primeira Guerra Mundial e com a Revolução Russa.” 1

    Essa “nova época” não só põe tudo em questão, como, para Bensaïd, representa um retrocesso do movimento operário de quase um século, ao identificar o “ponto de partida” dos marxistas numa coordenada anterior a 1914:

    «[…] o laboratório que se abre tem uma amplitude comparável à do início do século, onde se forjou a cultura teórica e política do movimento operário: análise do debate sobre o imperialismo, sobre a questão nacional; debate estratégico acerca da reforma e da revolução, batalha sobre as formas de organização política, social, parlamentar.«

    Essa “nova época” seria essencialmente defensiva, pois, segundo Bensaïd, inaugurou-se com uma derrota profunda do movimento operário: o “desmantelamento da União Soviética sem resultar em uma revolução política”. Dessa forma, delinearam-se os contornos para toda uma época: “o enfraquecimento social dos trabalhadores” e a “crise do projeto socialista”.

    Bensaïd atribuía tais relações de forças desfavoráveis não a fatores objetivos, mas a elementos subjetivos, como o retrocesso ideológico do movimento operário decorrente dos “efeitos profundos da crise do ‘socialismo realmente existente’”.

    Alertamos para o critério metodológico de Bensaïd: ele não defende a abertura de um longo período de desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo, que possibilitaria reformas duradouras e a elevação do padrão de vida das massas. Nada disso. Bensaïd afirma que se inicia uma nova época – que ele considera reacionária – a partir do “retrocesso na consciência” e da “crise do movimento operário”, ou seja, a partir de elementos subjetivos.
    Bensaïd declara:

    As mudanças nas relações políticas globais, depois da queda do Muro de Berlim, do desmantelamento da União Soviética e da Guerra do Golfo, deram o último golpe, causando uma crise aberta – não apenas conjuntural – nas formas de anti-imperialismo radical da fase anterior […] Neste momento, a tendência dominante internacionalmente é o enfraquecimento do movimento social (começando pelo sindical) […] A esquerda revolucionária está hoje mais pulverizada e enfraquecida do que há cinco anos […] Para a reconstrução de um projeto revolucionário e de uma Internacional, partimos de condições deterioradas.

    Em nenhum momento ele ressalta, não somente a importância, mas o próprio fato da destruição do aparato contrarrevolucionário stalinista mundial pelas massas soviéticas. Esse fato colossal sequer aparece na análise de Bensaïd. E o mais importante, ele não responsabiliza a velha burocracia stalinista pela restauração do capitalismo na ex-URSS, mas sim uma “derrota” ou “retrocesso” político-ideológico do movimento operário. O ex-SU respondeu, assim, à grande questão de quem, quando e como o capitalismo foi restaurado, em uníssono com as viúvas do stalinismo: culpando os “limites” das massas trabalhadoras e não a burocracia termidoriana e totalitária do Kremlin.

    A tendência histórica do ex-SU à adaptação e capitulação aos grandes aparatos e à “opinião geral” da esquerda, num momento decisivo da história, levou-o a um novo seguidismo: juntaram-se ao triste coro de lamentos dos nostálgicos do stalinismo.

    O programa da “nova época”

    Tudo isso serve para justificar uma grande mudança na estrutura programática. Para Bensaïd e para o SU, hoje a revolução socialista não está à vista no horizonte.

    A “nova época” exige, nas palavras de Bensaïd, uma “redefinição programática”, a “construção de um novo programa”. Isso, por si só, não é um problema. Qualquer mudança importante na realidade requer uma atualização programática. O problema do ex-SU foram as premissas teóricas a partir das quais se iniciou a elaboração desse “novo” programa, e o método que se empregou para construí-lo.

    Bensaïd e o ex-SU partiram do fato de que a queda da URSS significou um “eclipse da razão estratégica”. Tudo estava “em questão” e eles teriam carta branca para abandonar de vez qualquer legado trotskista. Assim, abandonaram o método trotskista de elaborar o programa a partir das necessidades objetivas da classe trabalhadora, para absolutizar o elemento subjetivo – a consciência das massas – subordinando, dessa forma, o programa à “correlação de forças” que expressaria esse “atraso” da consciência das massas.

    Consistente com a caracterização de que a época de crises e revoluções, iniciada em 1914, havia chegado ao fim, e a nova época estava marcada pelo retrocesso, o problema do poder foi relegado a um futuro incerto, pois as massas não o encarariam como “imediato”.

    Nesse contexto, a conclusão que se tirou foi de “adaptar” o programa a essa nova época sem possibilidades revolucionárias. Bensaïd chegou a propor, em seu texto, as “novas” coordenadas programáticas pós-Leste. Na Europa – o centro histórico do SU – o objetivo estratégico tornou-se a luta por “uma Europa social e solidária”, “uma Europa pacífica e solidária”, em oposição à “Europa financeira e antidemocrática”. Algo muito semelhante às formulações atuais de boa parte da esquerda europeia.

    Depois de descrever o fim da URSS, as “novas instituições” da “globalização”, o problema da “reestruturação produtiva”, etc., na nova ordem unipolar, Bensaïd propôs uma visão e um programa completamente reformista, nos moldes do conceito liberal de “cidadania universal” e da utópica “democratização” e “humanização” do capitalismo – ideias que logo foram divulgadas amplamente em espaços como os Fóruns Sociais Mundiais e diversas ONGs.

    Outra forma de cooperação e crescimento pode ser concebida: organismos reguladores internacionais substituindo o Banco Mundial, FMI, OMC e o G-7; organismos para a promoção do comércio internacional entre países de produtividades similares; transferência planejada de riquezas dos países que as acumularam durante séculos em detrimento dos países pobres; novos mecanismos de regulação dos intercâmbios que permitam projetos de desenvolvimento diferenciados; desconexão parcial e controlada do mercado mundial e uma política de preços justa; uma política migratória negociada neste contexto.” (Citações extraídas do texto “Uma mudança de época”.)

    Como parte da ideia de um mundo “regulado” e “negociado” na tentativa de “reformular os primeiros contornos de uma proposta que responda ao conjunto da ordem estabelecida”, Bensaïd continua enunciando os pontos centrais do que ele chama de “programa de transição”. Contudo, o leitor demora a perceber que o conteúdo de tal programa não passa de um programa mínimo social-democrata, baseado no conceito de “cidadania” e de direitos civis (dentro do Estado burguês), com a ausência marcante de qualquer medida anticapitalista. Por isso, quando fala em programa, refere-se ao que é hoje seu programa de transição… um programa de reformas!

    Esse quadro pode ser utilizado para tudo, exceto para estabelecer um programa para um partido revolucionário e uma internacional que se identifique com a IV Internacional de Leon Trotsky.

    O que é hoje o SU?

    Apesar de utilizar o nome “IV Internacional”, a organização internacional e os partidos do SU funcionam de maneira oposta ao programa e aos estatutos da IV, fundada em 1938, pois se configuram como uma federação frouxa de partidos e movimentos reformistas e centristas. Apesar de terem perdido força nas últimas décadas, em consequência de seu giro político – como se reflete em seu último congresso, em 2018, com uma queda significativa no número de militantes – hoje eles servem como ponto de encontro para grupos, dirigentes ou intelectuais de esquerda que se afastaram das posições revolucionárias e evoluíram para a direita após a queda do stalinismo, em decorrência dos processos do Leste europeu. Mas suas elaborações possuem alcance internacional e hoje servem para justificar, teoricamente, a capitulação da imensa maioria da esquerda à democracia burguesa e ao reformismo. Como é típico das organizações reformistas, as referências políticas do SU atual são seus parlamentares ou dirigentes de partidos como o Bloco de Esquerda e o Podemos.

    O SU foi uma das principais correntes ideológicas impulsionadoras dos partidos “amplos” e “anticapitalistas”, que na realidade apresentam um programa reformista, principalmente na Europa (como o Bloco de Esquerda em Portugal, o Podemos no Estado espanhol, entre outros).

    Sua organização mais importante, a Liga Comunista Revolucionária (LCR) francesa, foi dissolvida para fundar o Novo Partido Anticapitalista (NPA) em 2009, com um programa reformista, abandonando explicitamente a luta pela ditadura do proletariado.

    Também possuem partidos e movimentos na Ásia, como o LPP paquistanês, que evoluiu do trotskismo para um partido amplo reformista no modelo europeu. Em seu grupo italiano, a Sinistra Crítica (Esquerda Crítica), historicamente comandada por Livio Maitán – que teve papel importante no SU e praticou a linha do entrismo sem diferenciação na Refundação Comunista –, chegou a ter parlamentares, inclusive um senador, e acompanhou o fracasso e a decadência da Refundação, devido ao seu apoio ao governo burguês de Romano Prodi. Hoje, após uma queda significativa de sua militância, o Sinistra Crítica dividiu-se em dois, e o SU na Itália ficou reduzido a um punhado de militantes sem intervenção real no movimento.

    Na França, o SU inclui tanto o NPA (a maior parte dos militantes, com alguns setores fora do SU) quanto a Esquerda Anticapitalista, corrente que rompeu com o NPA em 2011-2012 para aderir à Frente de Esquerda, de Jean-Luc Mélenchon.

    Mas não fizeram nenhum balanço crítico da sucessiva decadência dos partidos mais importantes que chegaram a ter, pois para eles a culpa desses fracassos é atribuída à “crise do projeto socialista”, ou ao “retrocesso da consciência das massas”.

    Pior ainda, avançam cada vez mais no sentido da dissolução e da adaptação à democracia burguesa. Foram avançando mais ainda nessa dinâmica e hoje aceitam programas ainda mais amenos do que os iniciais do giro para os partidos amplos. Seu último congresso confirmou a orientação dos anos anteriores. O ex-SU, armado com suas elaborações pós-Leste, transformou-se num entusiástico impulsionador dos partidos neorreformistas, aceitando seus programas, que não defendem o socialismo – nem sequer nos dias de festa – e não só defendem a democracia burguesa, como são diretamente pró-imperialistas. É o caso do Podemos (onde também dissolveram seu partido Esquerda Anticapitalista); do Bloco de Esquerda português, que integravam com uma força muito importante e também acabaram se dissolvendo; ou do SYRIZA na Grécia, no qual continuaram defendendo a participação da DEA mesmo depois que o SYRIZA assumiu o governo, submetendo-se totalmente à União Europeia, apesar de sua ala grega, OKDE-Spartacus, estar ligada ao Antarsya e ser contrária a essa política. E, algum tempo depois, obrigados pela traição de Tsipras ao apoiar a saída da DEA do SYRIZA, não fizeram um balanço sério e continuaram aplicando a mesma política desastrosa em Portugal e no Estado espanhol.
    Os militantes do SU sequer propõem mais o conceito “anticapitalista” para a conformação desses partidos. Basta ser “antiausteridade”.

    Em Portugal, os quadros do SU formam a espinha dorsal da direção do Bloco de Esquerda. O Bloco apoiou o Partido Socialista (PSP) – o velho partido social-democrata português, que se desgastou profundamente quando seu ex-primeiro-ministro Sócrates foi processado e preso – para que pudesse formar um governo, defendendo, assim, o governo burguês do PSP de Antônio Costa, com o argumento de que este adotaria medidas mínimas “antiausteridade” contra a “direita”. Mas esse governo, chamado de “geringonça”, só pode se manter porque se baseia no apoio do Bloco e do Partido Comunista português, e tampouco é “antiausteridade”. Não pode ser antiausteridade se se submete à União Europeia e aos seus ditames. Recentemente, o próprio Bloco, em resolução da direção nacional de 22/04/18, simplesmente pediu que fossem cumpridos certos compromissos – “compromissos para valer. O acordo entre o partido socialista e os partidos de sua esquerda assentou um compromisso. O Bloco de Esquerda e o PCP negociaram sucessivos orçamentos dentro do quadro de restrições impostas pelo governo, sob imposição de Bruxelas, mesmo não concordando com elas”. Em seguida, faz queixas e reclamações sobre medidas, como a ausência de concursos, etc. Ou seja, a política do Bloco é sustentar o governo do Partido Socialista português, que, segundo eles, não rompeu com a austeridade por não ter rompido os ditames da União Europeia.

    O Podemos passou de se declarar “antissistema” e de “não se aliar com as castas” para buscar uma aliança com o PSOE, o velho partido social-democrata, e continua sendo a aposta do Esquerda Anticapitalista, o grupo do SU no Estado espanhol. Os integrantes do Esquerda Anticapitalista não só se dissolveram, como incorporaram o programa e o discurso da direção do Podemos, como Iglesias.

    O caso da França demonstra os resultados dessa estratégia, pois é o país onde o antigo SU possuía seu partido mais importante, a LCR. Depois que o SU implementou a política para que a LCR suavizasse seu programa e se dissolvesse no NPA, ocorreu uma profunda crise, ao ser superado eleitoralmente pelos reformistas da Frente de Esquerda (FDG) de Mélenchon, o que levou ao surgimento de uma ruptura à direita no NPA – a corrente Esquerda Anticapitalista, que aderiu ao FDG. Assim, reduziu-se de forma drástica a força que a LCR chegou a ter no início dos anos 2000, quando contava com cerca de 2.000 a 3.000 militantes e alcançava aproximadamente 5% dos votos em termos eleitorais.

    Contudo, também aparece resistência. Hoje, há uma crise no NPA, com uma disputa entre quadros de várias tendências de esquerda que se opõem ao giro para a direita e aos setores que seguem a direção do SU. Os setores de esquerda chegaram a ter maioria na direção a partir de 2015, com um projeto que contrariava a direção majoritária do SU. Esta fez grandes esforços para construir uma plataforma comum entre os setores que respondiam à maioria. Para conseguir unir esses setores, a maioria sequer defendeu sua política no congresso, aceitando que, na França, o NPA disputasse as eleições com um candidato operário, P. Poutou, e não apoiasse Mélenchon, que está ligado ao Podemos e ao Bloco de Esquerda. Dessa forma, na França, o SU tolerou uma política diferente de sua orientação geral de apoio aos neorreformistas. Mas, ainda assim, não se conseguiu formar uma maioria no último congresso do NPA em 2018, e a crise persiste.

    Após oito anos sem congresso, em 2018 realizou-se o congresso do SU e, mais uma vez, foi votada a política dos partidos amplos e a orientação de construir o Podemos, o Bloco de Esquerda etc. Houve uma plataforma de oposição, com posições enfrentadas à maioria, mas com um voto bastante reduzido.

    O SU, hoje, já não cumpre um papel nem tem qualquer possibilidade de participar da luta pela IV Internacional, pela internacional revolucionária. Aqueles que ainda participam dessa federação e têm outra perspectiva – se ainda desejam lutar pela IV Internacional – veem, cada vez mais, a necessidade de buscar alternativas. O caminho passa pela reconstrução da IV a partir das bases programáticas fundacionais, com todas as atualizações necessárias e com a mesma concepção de partido e de Internacional que esteve na base de sua fundação. Essa é a proposta da LIT.


    Notas:

    1. Todas as citações de Bensaïd correspondem ao seu documento apresentado no congresso de 1995. ↩︎

    Leia a primeira parte desta série.

  • A luta pela reconstrução da IV e o papel do revisionismo trotskista (parte I)

    A luta pela reconstrução da IV e o papel do revisionismo trotskista (parte I)

    Uma corrente revisionista assumiu a direção e foi o maior obstáculo para a construção da IV

    A IV Internacional, algum tempo depois de fundada, teve de enfrentar pressões violentas contra seu programa e sua existência. Mesmo em vida de Trotsky, a luta contra os “antidefensistas” polarizou o caminho da Internacional. Mal havia sido fundada e já se iniciava uma luta contra o revisionismo, que ameaçava a existência da IV. Mas, terminada a polêmica interna no SWP com a vitória da posição marxista, os problemas não cessaram. Logo após o fim da Segunda Guerra, surgiram posições com consequências desastrosas para o desenvolvimento da IV, que levaram à sua dispersão e que, ainda hoje, atuam contra ela.

    Por: José Welmowicki


    Os novos processos do pós-segunda guerra e a IV Internacional

    O pós-guerra se abriu com vitórias espetaculares do movimento de massas mundial: por um lado, a derrota completa do nazifascismo e, por outro, um ascenso operário e popular – que só não chegou à expropriação da burguesia em países centrais, como França e Itália, devido às traições de Stalin, que impôs que os partidos comunistas pactuassem com suas burguesias e entregassem o poder. Tais traições impediram a tomada do poder que teria mudado o mundo.

    O imperialismo manteve o controle da Europa Ocidental graças aos pactos de Yalta e Potsdam, firmados entre Stalin, Roosevelt e Churchill, mas novos Estados operários burocráticos surgiram na Europa Oriental, e, em 1949, na China e na Coreia, apesar da política traidora dos partidos comunistas. A dissolução da III Internacional fora decretada por Stalin em 1943, deixando o movimento operário sem uma referência internacional.

    O assassinato de Trotsky, em 1940, descabeçou a recém-fundada IV Internacional, poucos instantes antes de se abrir uma situação revolucionária que deixava para trás os 20 anos de derrotas desde 1924, quando o ascenso do nazismo e do stalinismo impunham um retrocesso geral. Não havia nenhum dirigente que se aproximasse sequer da experiência de seu fundador. Ao contrário do que previa Trotsky, a IV não se popularizou. A jovem direção da IV, depois de adotar uma postura sectária ao não reconhecer a nova realidade dos Estados, fez uma virada para não só reconhecer esse fenômeno, mas também para estabelecer uma política completamente contraditória com a própria razão de ser da IV: enfrentar os aparelhos burocráticos, como está expresso na introdução do Programa de Transição.

    Nesse período, a vitória sobre o nazifascismo levou a um fortalecimento do stalinismo. Devido ao papel decisivo das massas soviéticas na resistência ao nazismo e do Exército Vermelho na derrota de Hitler, o prestígio dos partidos comunistas cresceu enormemente, mesmo que o stalinismo o utilizasse para trair a revolução operária na França, na Itália e na Grécia.


    O surgimento do pablismo

    O nome “pablismo” deriva do dirigente principal dessa corrente, o grego Michel Pablo. Essa direção da IV, fraca e sem experiência na luta de classes, foi incapaz de responder à nova situação e, pior, cedeu à imensa pressão do pós-guerra. Abandonou, assim, a base fundacional da IV: combater o stalinismo e avançar na construção da direção revolucionária, tanto nacional quanto internacional. Em 1951, durante o período da Guerra Fria, todos os comentaristas internacionais afirmavam que um confronto armado entre os Estados Unidos e a URSS era inevitável. Pablo e Mandel, impressionados com as análises da imprensa burguesa, chegaram a uma conclusão funesta para a Internacional: para eles, a Terceira Guerra Mundial era inevitável. Sustentavam que, diante do ataque imperialista, os partidos comunistas, em seu afã de defender a URSS, adotariam métodos violentos para enfrentar os EUA, o que os levaria a lutar pelo poder em diversas partes do mundo; o mesmo ocorreria com os movimentos nacionalistas burgueses nos países dependentes.

    Com base nesse panorama, Pablo e Mandel propuseram o “entrismo sui generis” nos partidos comunistas e nos partidos nacionalistas burgueses, e acompanhá-los sem críticas mesmo depois da tomada do poder. Eles enxergavam um processo revolucionário irreversível, liderado pelas direções burocráticas e pequeno-burguesas do movimento de massas, e não se propunham a construir novas direções que derrotassem as tradicionais – algo que é a verdadeira razão de ser da IV Internacional. Tal posição abandonava a definição da burocracia stalinista como contrarrevolucionária e, consequentemente, abdicava da luta contra ela. Essa revisão foi um completo revisionismo de um dos pontos essenciais do programa trotskista, que parte do princípio de que a humanidade se encontra em crise em razão da crise de direção do movimento de massas. Ou seja, o principal obstáculo para o avanço da humanidade rumo ao socialismo é que as massas estão sob a direção de organizações contrárias à revolução, como o stalinismo, a social-democracia e o nacionalismo burguês.

    Essas definições tiveram consequências graves para a IV Internacional durante a revolta em Berlim Oriental e na revolução boliviana.

    Com essa caracterização, Pablo opôs-se a exigir a retirada dos tanques russos que confrontaram o levante dos trabalhadores de Berlim em 1953 – ou seja, apoiou, de fato, a burocracia soviética.

    Contudo, a consequência mais trágica dessa política foi a traição à revolução boliviana. Em 1952, na Bolívia, ocorreu uma típica revolução operária. Trabalhadores organizaram milícias, derrotaram militarmente a polícia e o exército, e surgiu a COB (Central Operária Boliviana) como um organismo de poder dual. As minas foram nacionalizadas e irrompeu a revolução camponesa, que invadiu os latifúndios e ocupou as terras. Até 1954, a principal força armada da Bolívia era formada pelas milícias operárias dirigidas pela COB.

    Desde a década de 1940, a organização trotskista boliviana (POR) vinha conquistando enorme influência no movimento operário, contando com importantes dirigentes do setor minerador, fabril e camponês. Seu principal dirigente, Guillermo Lora, foi o articulador das Teses de Pulacayo – uma adaptação do Programa de Transição à realidade boliviana, adotada pela Federação dos Mineiros. Lora foi eleito senador por uma frente dirigida pela Federação dos Mineiros, nas eleições de 1946. Na revolução de 1952, o POR codirigiu as milícias e foi cofundador da COB, detendo considerável peso de massas na Bolívia.

    Infelizmente, o POR, seguindo a orientação do Secretariado Internacional da IV Internacional, liderado por Pablo, não insistiu na política de que a COB tomasse o poder. Ao contrário, apoiou criticamente o governo burguês do MNR (movimento nacionalista burguês). Sem a orientação revolucionária, o movimento de massas foi gradualmente desarmado e desmobilizado, e a revolução foi desmontada em poucos anos. Como consequência dessa traição, o trotskismo boliviano deteriorou-se, entrando em um processo de sucessivas divisões.

    Junto a essa política, a direção internacional, conduzida por Pablo, adotou um método nefasto: interveio no partido francês, destituindo sua direção – que não estava de acordo com sua política – e tentou formar uma fração secreta no SWP norte-americano.

    Repudiando a linha do “entrismo sui generis” e os métodos burocráticos e desleais de Pablo, a maioria dos trotskistas franceses (liderados por Lambert) e ingleses (liderados por Healy), do SWP (EUA) e dos trotskistas sul-americanos (com exceção do POR boliviano e do grupo de Posadas na Argentina), romperam com o Secretariado Internacional (SI) dirigido por Pablo e criaram, em 1953, o Comitê Internacional (CI).

    Seguem-se anos de dispersão, pois, embora uma minoria tenha permanecido com Pablo e Mandel, a maioria não se organizou de forma centralizada para dar resposta – especialmente o SWP, que não assumiu como tarefa central reorganizar e reconstruir a IV. Dessa forma, a crise persistiu desde 1953, e, por isso, foi proposta a tarefa de reconstrução da IV Internacional.


    A revolução cubana impulsiona a reunificação: nasce o SU

    Em 1959, um novo processo revolucionário sacudiu o mundo. A insurreição armada liderada pelo Movimento 26 de Julho derrubou a ditadura de Batista em Cuba; iniciou-se um processo que, apesar de sua direção pequeno-burguesa, culminaria na expropriação da burguesia. O reconhecimento e apoio à revolução cubana foram a base para a reunificação da IV Internacional em 1963. Assim, nasceu o SU (Secretariado Unificado da Quarta Internacional), liderado por Mandel e pelo SWP – enquanto Pablo havia se desligado da IV e se tornado assessor do governo burguês de Ben Bella, na Argélia. No SU, integraram-se todas as forças trotskistas que viam em Cuba um novo Estado operário. Ficaram de fora os grupos ingleses e franceses que não reconheceram esse significado da revolução cubana. Esse foi um ponto de avanço para reagrupar os grupos dispersos que se reivindicavam trotskistas. Contudo, essa unificação já nasceu com graves problemas, evidenciados pelo fato de não se aceitarem quaisquer balanços das divisões nem dos graves erros do período anterior do SI de Pablo e Mandel.

    Isso foi ainda mais grave pelo fato de que essa reunificação teve uma direção com Mandel à frente. Mais tarde, verificou-se que essa direção, em vez de revisar e superar as posições anteriores, representava uma continuidade da metodologia de adesão às direções burocráticas do movimento de massas. Não se fez um balanço dos graves erros do período anterior e manteve-se a mesma linha impressionista, capitulando a qualquer fenômeno “progressista” que aparecesse e impactasse a “vanguarda”. Isso começou a se manifestar logo com relação à direção cubana. Mais uma vez, confundia-se o movimento de massas com sua direção, vista como revolucionária.

    Foi, então, a vez de capitular diante da direção castrista e dos movimentos guerrilheiros – novamente com resultados desastrosos para o trotskismo, que alimentou ilusões e, posteriormente, perdeu preciosos militantes para o aventurismo guerrilheiro. Mas a lógica era a mesma: diante de uma direção prestigiosa como a cubana, o SU aderiu à linha foquista, propondo a criação de “focos” guerrilheiros em toda a América Latina junto aos guevaristas, e, se necessário, de forma isolada. Isso levou seus grupos a se envolverem em aventuras desvinculadas do movimento operário e de massas – como o PRT-ERP argentino e o POR (C) da Bolívia – entre os quais muitos se afastaram do trotskismo ou se integraram ao aparato castrista.

    A adaptação às direções do movimento de massas na revolução portuguesa e em relação ao eurocomunismo

    Uma revolução derrubou o império português em 1974. Como resultado da profunda crise nas Forças Armadas, obrigadas a manter a guerra nas colônias africanas, o 25 de abril foi deflagrado por um levante de oficiais do exército, cansados da interminável guerra colonial e da ditadura que os obrigava a lutar em uma guerra sem futuro. Dessa forma, emergiram setores rebeldes da oficialidade – inclusive de alta patente – que formaram o MFA e organizaram um levante que expulsou do poder o ditador Caetano. Contudo, a queda da ditadura gerou um profundo processo revolucionário operário e popular, que propiciou formas de poder dual, semelhante ao processo da revolução russa. As sucessivas ondas de lutas levaram a governos burgueses com crescente influência do MFA e do Partido Comunista, com um discurso radical. Nesse processo, o ativismo e as tendências maoísta e ultraesquerdista apoiavam o Movimento das Forças Armadas – uma organização pequeno-burguesa pró-imperialista, mas que se autodenominava de esquerda. Na realidade, o MFA era o pilar que sustentava o Estado burguês contra a revolução. A LCI, organização que seguia a linha de Mandel, assumiu as posições dos maoístas e ultra-esquerdistas, apoiando até mesmo o MFA que governava ou cogovernava o império português. Mais uma vez, capitulavam à direção do movimento de massas.

    Mais tarde, o seguidismo do SU assumiu outra faceta, acompanhando o chamado eurocomunismo. Surgido nos partidos comunistas da Europa Ocidental – especialmente o italiano e o espanhol –, na década de 1970, o eurocomunismo representava, nesses partidos, sua crescente integração às instituições da democracia burguesa, seja a nível parlamentar ou na administração municipal. Assim, passaram a depender, inclusive economicamente, da burguesia de seus países, enfraquecendo sua dependência tradicional em relação à URSS. Isso era positivo apenas no sentido de aprofundar a crise do stalinismo como aparato mundial. Na prática, transformavam esses partidos comunistas “de servos do Kremlin em servos de sua burguesia imperialista” (declaração da Fração Bolchevique, de 1979). Por essa razão, eles não podiam originar nenhuma tendência progressista, muito menos revolucionária. Contudo, Mandel atribuía a eles um caráter progressista – ou quase progressista.

    No processo de adaptação à democracia burguesa, o eurocomunismo repudiou a expressão “ditadura do proletariado”. Exaltava a “democracia como valor universal” e, na prática, defendia a democracia burguesa, a democracia imperialista, com argumentos semelhantes aos de Kautsky contra os bolcheviques, entre 1918 e 1920.

    Mandel saiu em defesa da expressão “ditadura do proletariado” em um texto intitulado Democracia socialista e ditadura do proletariado, posteriormente aprovado pelo congresso do SU, no qual, ao alegar defendê-la, cedeu totalmente às pressões dos eurocomunistas. Acabava por apresentar um modelo de ditadura do proletariado que era, na verdade, uma capitulação ao eurocomunismo e à social-democracia. Mais uma vez, adaptava-se ao fenômeno político da hora. Contra esse texto, Moreno escreveu Ditadura revolucionária do proletariado.

    Cabe destacar que, naquele momento, o SU começava a mudar o enfoque de sua capitulação. Como se veria mais tarde de forma plena e aberta, as pressões mais intensas passaram a vir da democracia burguesa europeia.

    Nicarágua: o salto adaptativo que dividiu o SU

    No final da década de 1970, um processo revolucionário se abriu na Nicarágua e na América Central. Na Nicarágua, em 1979, o conflito estendeu-se pelo interior do país e pelas cidades, e a ditadura de Somoza não resistiu à guerrilha sandinista; as Forças Armadas foram dizimadas e o FSLN entrou em Manágua e tomou o poder. Contudo, apesar de terem o poder em mãos, os sandinistas formaram um governo de “unidade nacional” com a burguesia opositora – integrando nomes como Violeta Chamorro, Alfonso Robelo, entre outros. A corrente morenista, então organizada como Fração Bolchevique (FB) no SU, organizou a Brigada Simón Bolívar para atuar na Nicarágua – oficialmente reconhecida pelo PST colombiano, tendo alcançado mais de mil inscritos. Essa brigada dirigiu-se à Nicarágua e participou da luta armada, e, após a derrota da ditadura, estabeleceu-se na capital para defender a formação de sindicatos independentes. A FB criticava a participação da burguesia no governo. O SU apoiou esse governo, defendendo-o como “governo operário e camponês”. Aí se configurou o fato crucial: a FSLN deteve e expulsou os integrantes da Brigada Simón Bolívar, entregando-os à polícia panamenha, que os torturou. O SU enviou uma delegação à Nicarágua que apoiou a decisão do governo e não defendeu os integrantes da brigada. Mais uma vez, o apoio vergonhoso foi direcionado às direções pequeno-burguesas, qualificando-as como revolucionárias – desta vez, com dois agravantes: em termos de princípios – pois se recusaram a construir uma organização trotskista no país e em Cuba e El Salvador, alegando que já existia uma direção revolucionária – e, moralmente, por se negarem a defender os revolucionários perseguidos e apoiarem sua expulsão. Foi a esse ponto que chegou o apoio vergonhoso à FSLN.

    Além dessa falta de moral e princípios, tais atitudes entravam em contradição com a própria tese sobre “democracia socialista e ditadura do proletariado”. Em menos de um ano, os defensores renegaram suas teses sobre “democracia socialista” e apoiaram a decisão da FSLN de expulsar os revolucionários brigadistas simplesmente por quererem adotar uma política distinta na revolução nicaraguense. Nesse momento, a FB decidiu romper com o SU.

    Havia um traço permanente em toda essa trajetória de capitulação, que as Teses de Fundação da LIT definiram claramente: no curso dessa longa marcha, cada grande acontecimento da luta de classes – sobretudo cada grande triunfo revolucionário de dimensão mundial – provocava, em determinado setor do nosso movimento, uma tendência de adaptação à direção burocrática ou nacionalista desse triunfo.

    A luta pela construção de uma direção revolucionária internacional implica também a luta pela destruição de todas as direções burocráticas ou nacionalistas que competem entre si para dirigir as massas. O processo de edificação de uma direção revolucionária significa, ao mesmo tempo, uma “guerra implacável” (como diz com razão o Programa de Transição) contra qualquer corrente burocrática e/ou pequeno-burguesa do movimento de massas.

    O apoio a Gorbatchov

    Entre as adaptações não mais de processos revolucionários, mas sim de processos reacionários – como a restauração na União Soviética –, destacou-se a posição de Mandel e do SU sobre a perestroika e a glasnost de Gorbatchov. Partindo do pressuposto de que a burocracia jamais poderia restaurar o capitalismo, o SU embarcou em apoio à ala restauracionista, declarando-a progressista por ser democratizante. Mais uma vez, apoiavam setores reacionários em nome de supostamente serem uma ala progressista. Dessa vez, isso conduziu a uma adaptação à nova direção do Kremlin, que liderou a restauração no Leste europeu utilizando a chamada “reação democrática”, atraindo a velha esquerda de origem stalinista, que se reconverteu em escala mundial.

    A partir daí, após a queda do muro de Berlim, a adaptação do SU intensificou-se cada vez mais, passando de se relacionar com direções de processos revolucionários para seguir o que acontecia na esquerda em geral; o foco passou a ser a adaptação aos fenômenos eleitorais.

    Leia a segunta parte dessa série.

  • O surgimento e o papel do reformismo stalinista e social-democrata

    O surgimento e o papel do reformismo stalinista e social-democrata

    A III Internacional, com a força da vitória da Revolução Russa, rapidamente adquiriu influência de massas em uma disputa frontal com a social-democracia. Sua estratégia era a revolução mundial, a luta pela destruição do Estado burguês e pelo poder operário como transição para o socialismo.

    Por: José Welmowicki

    No entanto, o isolamento da Revolução Russa, a destruição causada pela guerra civil contra o poder operário devido às invasões dos mais de 20 exércitos mantidos pelas potências imperialistas em um país atrasado e com um grande peso do campo, gerou um processo de burocratização do Estado e do partido comunista, levando a uma contrarrevolução política. Encabeçada pela fração dirigida por Stalin, esta assumiu o controle do poder e do partido e imprimiu uma orientação oposta à de Lenin.

    Em primeiro lugar, mudou a política de Lenin e a visão marxista de que, para triunfar, o socialismo precisava ser mundial. Também acabou com a democracia no Estado e no partido. Esses princípios foram substituídos pela defesa do “socialismo em um só país”, pela burocratização do aparato estatal, pela perseguição aos opositores no partido e no Estado e pela opressão das nacionalidades e de todos os setores oprimidos. Coroando esses retrocessos, surgiu a nova doutrina, o stalinismo, que assumiu como política, para os países coloniais e semicoloniais, a aliança estratégica com as burguesias nacionais ou seus setores supostamente progressistas.

    O stalinismo passou a defender os governos de colaboração de classes, as chamados frentes populares com a burguesia, como na França e na Espanha da década de 1930.
    Como afirmava Trotsky no Programa de Transição, em 1938:

    A Internacional Comunista alinhou-se no caminho da social-democracia na época do capitalismo em decomposição, quando não há mais lugar para reformas sociais sistemáticas nem para a elevação do nível de vida das massas, quando a burguesia retoma sempre com a mão direita o dobro do que deu com a esquerda, quando cada reivindicação séria do proletariado, e até mesmo cada reivindicação progressista da pequena burguesia leva, inevitavelmente, além dos limites da propriedade capitalista e do Estado burguês.

    A partir daí, o stalinismo assumiu as posições essenciais do reformismo e passou a defender a via das reformas e a confiança na democracia burguesa, abandonando de vez a independência de classe.


    Colaboração com a burguesia. O pós-Segunda Guerra e o Estado de bem-estar social

    Na Segunda Guerra Mundial ocorreu uma das maiores batalhas e uma das maiores vitórias dos trabalhadores e dos povos do mundo: a derrota do nazifascismo. Isso, apesar de todas as traições, dos acordos da Inglaterra e da França com o nazismo, dos pactos de Stalin com Hitler em 1938 – o papel das massas na URSS, como em Stalingrado, foi decisivo nessa luta e nessa vitória, apesar da sua direção. Por essa razão, os partidos comunistas saíram prestigiados pela resistência e pela vitória final contra os nazistas.

    Isso possibilitou aos partidos comunistas uma situação privilegiada. Frente à colaboração das burguesias locais com Hitler e Mussolini, após a invasão da URSS pelos alemães em 1941, os comunistas desempenharam papel destacado na guerrilha iugoslava, nas resistências francesa e italiana, na resistência grega, na China e no Vietnã.

    Ao final da Segunda Guerra Mundial, abriu-se uma situação revolucionária em toda a Europa. A resistência assumia o controle de países decisivos. Estava-se cogitando a possibilidade de tomar o poder em países-chave. Uma revolução operária e popular abriu-se na França, na Itália e na Grécia. Os trabalhadores armados e vitoriosos haviam destruído o ocupante nazista e o Estado burguês.

    Sob as ordens de Stalin, ele apostou totalmente nos pactos de Yalta e Potsdam e na coexistência com o imperialismo, inclusive dissolvendo a III Internacional em 1943, a pedido de Winston Churchill. Essa traição histórica à revolução e ao legado de Lenin permitiu, por exemplo, o massacre da resistência grega por parte do exército inglês, e os partidos comunistas entregaram o poder à burguesia na França e na Itália.

    Diante de uma situação explosiva na Europa, o imperialismo foi forçado a fazer uma série de concessões aos trabalhadores e permitir que a social-democracia e os partidos comunistas justificassem seu apoio aos novos governos de “unidade nacional pela paz”. O imperialismo estadunidense organizou o Plano Marshall para financiar a reconstrução capitalista da Europa Ocidental, arrasada pela guerra.

    Uma série de medidas de proteção social, antes rejeitadas pelas burguesias imperialistas, acabou sendo implementada, como a legalização de diversos direitos trabalhistas e a criação ou ampliação da seguridade social. Esse foi o chamado welfare state (Estado de bem-estar social), que, ao trazer melhorias no nível de vida, passou a ser apresentado como “prova” da possibilidade de uma reforma gradual do capitalismo – um modelo que poderia ser mantido e expandido.

    Nesse processo, os reformistas conseguiram retomar seu prestígio ao capitalizarem o período em que, devido à destruição causada pela guerra e ao medo de uma revolução operária, a burguesia viu-se obrigada a permitir uma melhora importante nas condições de trabalho e nos direitos sociais. A social-democracia e os partidos comunistas apresentaram-se como defensores dos direitos sociais, reestruturaram-se na Europa Ocidental e passaram, com frequência, a integrar os governos da Alemanha, da Inglaterra, da França, entre outros países. Isso ocorreu nos anos 1950 e perdurou até o final da década de 1960, com fortes partidos reformistas – fossem eles socialistas ou comunistas – em toda a Europa Ocidental.

    À medida que avançavam os anos 1940 e começavam os anos 1950, a pressão do imperialismo anglo-americano na chamada Guerra Fria gerou um discurso mais duro por parte da burocracia stalinista. No entanto, o stalinismo nunca rompeu seu compromisso com a ordem mundial definida em Yalta e Potsdam. Ele passou a adotar uma postura de colaboração aberta e de “coexistência pacífica” com o imperialismo. A partir dessa doutrina, os discursos passaram a defender o diálogo e a conciliação, com os partidos comunistas contribuindo para a manutenção da dominação imperialista no mundo e do Estado burguês.

    A partir do final dos anos 1950, os partidos comunistas passaram a ser campeões no apoio a governos burgueses supostamente progressistas em todos os continentes. Na Itália, por exemplo, defenderam o “compromisso histórico” entre o Partido Comunista – o maior partido comunista do Ocidente – e a Democracia Cristã, o maior partido burguês do país.

    América Latina: fracasso do reformismo e do nacionalismo burguês no mundo semicolonial

    Na América Latina, entre os anos 1950 e 1970, as presenças do reformismo e do nacionalismo burguês seguiram o caminho de chegar ao poder para tentar desviar os processos revolucionários: desde a Bolívia, em 1952, até a Argentina, com Perón. Nesses processos, em nome da aliança com a burguesia, os partidos comunistas apoiaram os chamados governos progressistas, como o de João Goulart, no Brasil (1962–1963), e a Unidade Popular de Allende, no Chile (1970–1973). Em nome dessas alianças, passaram a defender a legalidade e o Estado, e invocaram a confiança nas forças armadas – consideradas patrióticas –, desarmando, assim, a resistência aos golpes, tanto no Brasil quanto no Chile.

    Neoliberalismo. A crise na social-democracia e no stalinismo

    A social-democracia, que se havia fortalecido na reconstrução do pós-guerra e por sua identificação com o Estado de bem-estar social, começou a sofrer um forte desgaste no final dos anos 1960. Nesse momento, iniciaram-se os ataques a esses direitos sociais – ataques que vieram tanto da direita quanto dos próprios social-democratas, quando estes estavam no governo.

    Na França, na Alemanha e na Espanha do pós-Franco, a partir dos anos 1970 e durante os anos 1980, esse desgaste se aprofundou com a implementação do chamado “neoliberalismo”. Essa política econômica consistia em reduzir os direitos conquistados em nome de um “Estado menor” e da “liberdade de iniciativa”. Iniciado por Margaret Thatcher (Reino Unido) e Ronald Reagan (Estados Unidos) e experimentado na ditadura chilena de Augusto Pinochet, o neoliberalismo acabou sendo adotado também por governos social-democratas – Mitterrand, na França (1981–1988); Felipe González, na Espanha (anos 1980); os laboristas, na Inglaterra; e os social-democratas, na Alemanha. Desse processo surgiu a terceira via, defendida pelo laborista Tony Blair, primeiro-ministro britânico (1997–2007).

    Surgiu, então, o fenômeno do eurocomunismo, tendo como carro-chefe o Partido Comunista italiano. Levando até o fim a política de aceitar o Estado burguês em nome da democracia, formulou-se a doutrina da “democracia como valor universal”. Para esses, a evolução da democracia conduziria ao socialismo sem a necessidade de revoluções sociais – ou seja, adotaram um programa similar ao que a social-democracia havia defendido no passado.

    Outras vertentes do stalinismo, como o maoísmo e o castrismo, apesar da estratégia guerrilheira que, num primeiro momento, atraiu a simpatia de milhares de militantes, acabaram por se tornar a expressão das burocracias que governam a China e Cuba. Em pouco tempo, passaram a apoiar as mesmas burguesias progressistas e colocaram-se contra a tomada do poder pelos trabalhadores em uma série de revoluções. Fidel Castro demonstrou isso ao apoiar a aliança de Allende com a burguesia no Chile e também ao dizer, aos sandinistas, durante a Revolução de 1979, que não se deveria expropriar a burguesia, mas sim aliar-se a ela. “A Nicarágua não deveria ser uma nova Cuba”, afirmou.

    Tanto a burocracia chinesa quanto a cubana foram a linha de frente na restauração do capitalismo em seus países. Hoje, o Partido Comunista cubano representa a nova burguesia que restaurou o capitalismo na Ilha. Por sua vez, o Partido Comunista chinês transformou-se em um partido que governa, de maneira totalitária, o Estado capitalista chinês.

    Após a restauração do capitalismo na ex-URSS, partidos eurocomunistas como o Partido Comunista italiano completaram um processo de reconversão em partidos burgueses.

    A social-democracia e o que restou dos antigos partidos stalinistas, como os de Portugal ou da França, transformaram-se em partidos do “establishment”, cujo programa é a defesa do Estado burguês. Dessa forma, tornaram-se instrumentos auxiliares para que a burguesia implementasse sua guerra social e destruísse o Estado de bem-estar social.

    Artigo publicado em www.pstu.org.br

  • Reforma ou revolução em tempos de pandemia

    Reforma ou revolução em tempos de pandemia

    A situação para os trabalhadores na pandemia recoloca o debate sobre a questão da reforma e da revolução.

    Os Estados Unidos, país mais poderoso do capitalismo, são incapazes de evitar a situação que se abate sobre sua população. Os 100 mil mortos da pandemia já são um número maior do que o das guerras do Vietnã, da Coreia e do Afeganistão. O cenário é devastador: os dados são piores que a crise de 1929. Naquela época, houve 9% de desemprego. Hoje já são 25%, 38 milhões de desempregados e 27 milhões de indocumentados que não possuem seguro-desemprego, pois não têm direitos de nenhuma espécie.

    Por: José Welmowicki

    O problema, contudo, atinge todo o globo. Os países imperialistas e não imperialistas e o capitalismo só apresentam saídas que atacam os trabalhadores. Os planos dos governos capitalistas falam em salvar a economia, mas são para salvar os setores monopolistas da burguesia, bancos e grandes empresas.

    Nesse momento, uma questão chave volta à ordem do dia: é possível que se possa garantir a todos ao menos a vida sob o capitalismo? É possível o acesso a conquistas básicas da civilização, como a eliminação da fome, acesso à água, saneamento e saúde para toda a humanidade? O capitalismo tem possibilidade de, por meio de uma evolução gradual, chegar a uma sociedade socialista? É possível, assim, reformar o capitalismo?

    Essa disjuntiva, “reforma ou revolução”, ou como traduziu Rosa Luxemburgo, “socialismo ou barbárie”, é um tema presente. Neste artigo, vamos examinar a origem dessa discussão entre os socialistas. Em textos futuros, analisaremos como ela continuou até hoje.

    A discussão entre os primeiros socialistas

    Karl Marx

    A primeira crítica ao reformismo

    No Manifesto Comunista, Marx e Engels dedicam um capítulo à “Literatura socialista e comunista” e definem cinco correntes que elaboraram teses e influenciavam as visões naquela época: 1) os socialistas feudais, que idealizavam a sociedade feudal e se reduziam à medida que o capitalismo avançava; 2) o socialismo pequeno-burguês, que expressava a reação da pequena burguesia e de camadas médias arruinadas pela burguesia e propunham voltar no tempo, o que era utópico e reacionário nas palavras de Marx e Engels; 3) o socialismo burguês ou conservador, que desejava “a sociedade atual sem os elementos que a revolucionam e a dissolvem”; para Marx, essa corrente não conseguia superar a visão do “pequeno-burguês oscilando constantemente entre o capital e o trabalho, entre a economia política e o comunismo”, e era contra os movimentos políticos da classe operária; 4) o socialismo alemão ou «verdadeiro» socialismo, um pensamento típico da pequena burguesia, que refletia a realidade econômica da sociedade alemã naquele momento, ainda desenvolvida de forma insuficiente em termos capitalistas; opunha-se à burguesia, bem como ao comunismo, e colocava-se contra a irrupção política dos operários; 5) os “socialistas utópicos” – como Fourier e Owen –, cujas teorias eram antecipações geniais, mas ao aparecer antes das condições econômicas e sociais estarem desenvolvidas, não viam um papel revolucionário para o proletariado, mas apenas como classe oprimida e pobre; por isso buscavam convencer a todas as classes, inclusive a burguesia, de suas teses; opunham-se, assim, a todo movimento político próprio dos operários naquele momento.

    Ao lado dessas doutrinas, havia uma questão central para o programa que se expressaria já a partir do século XIX: os operários devem buscar tomar o poder como classe ou podem e devem governar com a burguesia ou setores progressistas dela? Louis Blanc, um socialista francês, aceitou entrar no governo burguês saído da revolução de 1848 como ministro do Trabalho. Foi o primeiro exemplo histórico de participação de dirigentes socialistas em governos da burguesia e Marx dedicou a ele duras críticas em seu As lutas de classes na França.

    Em 1899, a polêmica em torno à participação de ministros socialistas em governos burgueses, o ministerialismo, dividiu a II Internacional socialista quando o partido francês, por meio da ala de Jaurés, aceitou indicar Millerand.

    Rosa Luxemburgo escreveu um texto teórico condenando essa posição e explicando como a participação num governo burguês significava o abandono da visão marxista do Estado e da revolução socialista.

    Rosa Luxemburgo

    A crise da social-democracia: Bernstein e Rosa Luxemburgo

    O primeiro grande esforço teórico para apresentar uma elaboração em defesa das reformas como caminho para o socialismo foi de Eduard Bernstein no SPD alemão (Partido Social-Democrata) em 1899. Sua visão também defendia a cidadania como substituta da luta pela emancipação do proletariado. “A social-democracia não deseja romper a sociedade civil e fazer de todos seus membros proletários; na verdade, ela trabalha incessantemente para elevar o trabalhador da posição social de proletário para a de cidadão e, portanto, para tornar a cidadania universal”, dizia.

    Essa concepção, como lhe respondia Rosa Luxemburgo, significava aceitar a sociedade burguesa como horizonte: “quando [Bernstein] utiliza a palavra cidadão referindo-se tanto ao burguês como ao proletário, querendo com isso, referir-se ao homem em geral, identifica o homem em geral com o burguês e a sociedade humana com a sociedade burguesa”. Por isso, denunciava a revolução socialista como um caminho blanquista ou, ainda, “terrorista”.

    Bernstein considerava a democracia como “ausência de um governo de classe. Isso indica um Estado em que nenhuma classe tem o privilégio político”. Assim, cada governo eleito seria o responsável por implementar o seu programa segundo a classe que representasse. Para ele, o caminho para o socialismo passava pela democracia e pela implementação gradual de reformas. Bastaria ao partido operário triunfar nas eleições.

    Como Rosa Luxemburgo afirmava em Reforma e revolução, essa posição contrariava toda a concepção marxista do Estado e se identificava com os socialismos utópicos e reformistas que Marx e Engels combateram. Afinal, Bernstein colocava-se de forma explícita contra o programa marxista de revolução socialista e de tomada do poder, acusado por ele de terrorista.

    A I Guerra Mundial transformou essa questão teórica em questão política: a social-democracia alemã e a maioria esmagadora da II Internacional votaram o apoio a seus governos burgueses para entrar em guerra (os créditos de guerra), colocando os operários de seus países para combater e matar seus irmãos de outros países. Foi o abandono de um princípio básico do movimento operário desde a I Internacional, expresso na frase: “Proletários de todo o mundo, uni-vos.” Uma traição que custou a vida de milhões. Bernstein ficou associado a essas traições e derrotas históricas e, por essa razão, os novos setores que assumiram a mesma posição dele, em geral, não o reivindicam.

    Karl Kautsky

    O reformismo “de centro”

    Frente à I Guerra Mundial, não foram somente os seguidores de Bernstein que apoiaram suas burguesias para que entrassem em guerra. Em nome da “defesa da pátria”, os principais dirigentes abandonaram os princípios e inclusive o compromisso político do Manifesto de Basileia, de lutar contra a guerra e seus governos, votado pela II Internacional dois anos antes.

    O teórico mais destacado da II Internacional, Karl Kautsky, participou dessa virada e do abandono da posição marxista. Uma ala bem minoritária havia resistido a essa traição. Nela estavam Lenin, Rosa Luxemburgo, Trotsky, entre outros, que mantiveram a posição revolucionária contra a guerra. Quando as trágicas consequências da guerra em vidas e miséria abriu uma crescente indignação, levando à eclosão da Revolução Russa em fevereiro de 1917, os bolcheviques, liderados por Lenin, chamaram a preparar a revolução socialista que se efetivou em outubro.

    Em outubro, os sovietes tomaram o poder sob a direção dos bolcheviques. Kautsky encabeçou o combate contra os bolcheviques, alegando que os sovietes não deveriam tomar o poder, mas entregá-lo à Assembleia Constituinte. A natureza pró-burguesa da posição reformista consistia, então, em ser contra a revolução proletária na Rússia. Essa mesma posição de Kautsky materializou-se na revolução alemã que eclodiu no fim da guerra, na qual se formaram os conselhos operários, semelhantes aos sovietes, influenciados pela Revolução Russa. Ele defendeu que os conselhos operários não tomassem o poder e se subordinassem à Assembleia Constituinte. Essa posição, vitoriosa no congresso dos conselhos, levou à derrota a revolução alemã.

    Lenin

    O resgate revolucionário

    Lenin fez uma dura polêmica com Kautsky nos livros O Estado e a revolução e A revolução proletária e o Renegado Kautsky e afirmava que, por utilizar uma terminologia marxista para defender posições reformistas, “Kautsky é ainda pior que Bernstein”.

    Lenin considerou morta a II Internacional e chamou a formar a Internacional Comunista para agrupar os revolucionários. A social-democracia transformou-se numa federação de partidos reformistas que participam de governos burgueses como regra geral e cumprem um papel de aparatos contrarrevolucionários, defensores do Estado burguês e administradores do capitalismo.

  • O surgimento e o papel do reformismo stalinista e social-democrata

    O surgimento e o papel do reformismo stalinista e social-democrata

    A III Internacional, com a força da vitória da Revolução Russa, rapidamente adquiriu influência de massas numa disputa frontal com a social-democracia. Sua estratégia era a revolução mundial, a luta pela destruição do Estado burguês e pelo poder operário como transição ao socialismo.

    Por: José Welmowicki

    No entanto, o isolamento da Revolução Russa, a destruição causada pela guerra civil contra o poder operário pelas invasões dos mais de 20 exércitos sustentados pelas potências imperialistas, num país atrasado com um grande peso do campo, gerou um processo de burocratização do Estado e do partido comunista, levando a uma contrarrevolução política. Encabeçada pela fração dirigida por Stalin, ela tomou o controle do poder e do partido e imprimiu uma orientação oposta à de Lenin.

    Em primeiro lugar, mudou a política de Lenin e a visão marxista de que, para triunfar, o socialismo tinha de ser mundial. Também acabou com a democracia no Estado e no partido. Esses princípios foram substituídos pela defesa do “socialismo num só país”, pela burocratização do aparato estatal, pela perseguição aos opositores no partido e no Estado e pela opressão às nacionalidades e todos os setores oprimidos. Coroando esses retrocessos, surgiu a nova doutrina, o stalinismo, que assumiu como política para os países coloniais e semicoloniais a aliança estratégica com as burguesias nacionais ou seus setores supostamente progressivos.

    O stalinismo passou defender os governos de colaboração de classes, as chamadas frentes populares com a burguesia, como na França e na Espanha da década de 1930. Como afirmava Trotsky no Programa de Transição, em 1938: “A Internacional Comunista enveredou pelo caminho da social-democracia na época do capitalismo em decomposição, quando não há mais lugar para reformas sociais sistemáticas nem para a elevação do nível de vida das massas, quando a burguesia retoma sempre com a mão direita o dobro do que deu com a mão esquerda, quando cada reivindicação séria do proletariado, e mesmo cada reivindicação progressista da pequena burguesia, conduzem inevitavelmente além dos limites da propriedade capitalista e do Estado burguês.” O stalinismo assumiu as posições essenciais do reformismo.

    COLABORAÇÃO COM A BURGUESIA
    Depois da Segunda Guerra e o estado de bem-estar

    Na Segunda Guerra Mundial, deu-se uma das maiores batalhas e maiores vitórias dos trabalhadores e dos povos de todo o mundo: a derrota do nazifascismo. Isso apesar de todas as traições, dos acordos da Inglaterra e da França com o nazismo, dos pactos de Stalin com Hitler em 1938. O papel das massas da URSS, como em Stalingrado, foi decisivo nessa luta e nessa vitória apesar de sua direção. Por isso os partidos comunistas saíram prestigiados, pela resistência e pela vitória final contra os nazistas.

    Isso permitiu aos partidos comunistas uma situação privilegiada. Frente à colaboração das burguesias locais com Hitler e Mussolini, após a invasão da URSS pelos alemães em 1941, os comunistas cumpriram um papel de destaque na guerrilha iugoslava, na resistência francesa e italiana, na resistência grega, na China, no Vietnã.

    No fim da Segunda Guerra Mundial, uma situação revolucionária se abriu em toda a Europa. A resistência tinha o controle de países decisivos. Estava colocada a possibilidade de tomar o poder em países-chave. Uma revolução operária e popular se abriu na França, na Itália e na Grécia. Os trabalhadores armados e vitoriosos haviam destruído o ocupante nazista e o Estado burguês.

    Mais uma vez a traição das direções burocráticas foi decisiva para manter o capitalismo, sob as ordens de Stalin, que apostou tudo nos pactos de Yalta e Potsdam e na coexistência com o imperialismo, inclusive dissolvendo a III Internacional, em 1943, a pedido de Winston Churchill. Uma traição histórica à revolução e ao legado de Lenin. Essa conduta permitiu o massacre da resistência grega pelo exército inglês, e os PCs entregaram o poder à burguesia na França e na Itália.

    Diante de uma situação explosiva na Europa, o imperialismo foi obrigado a fazer uma série de concessões aos trabalhadores e permitir que a social-democracia e os PCs pudessem justificar seu apoio aos novos governos de “unidade nacional pela paz”. O imperialismo estadunidense organizou o Plano Marshall para financiar a reconstrução capitalista da Europa Ocidental arrasada pela guerra.

    Uma série de medidas de proteção social, antes recusadas pelas burguesias imperialistas acabaram sendo implementadas, como a legalização de vários direitos trabalhistas e a criação ou extensão da previdência social. Foi o chamado welfare state (estado de bem-estar social), que ao trazer melhorias no nível de vida passou a ser apresentado como “prova” da possibilidade de uma reforma gradual do capitalismo: um padrão que podia ser mantido e estendido.

    Nesse processo, os reformistas conseguiram uma retomada de seu prestígio ao capitalizar esse período em que, devido à destruição causada pela guerra e o medo da revolução operária, a burguesia se viu obrigada a permitir uma melhora importante nas condições de trabalho e nos direitos sociais. A social-democracia e os PCs se apresentaram como os defensores dos direitos sociais, reconstruíram-se na Europa Ocidental e passaram com frequência a ser parte dos governos da Alemanha, da Inglaterra, da França, entre outros países. Isso ocorreu nos anos 1950 e até o final da década de 1960 com fortes partidos reformistas, sejam partidos socialistas, sejam comunistas, em toda Europa Ocidental.

    No final dos anos 1940 e começo dos anos 1950, a pressão do imperialismo anglo-estadunidense na chamada “guerra fria” gerou um discurso mais duro da burocracia stalinista. Porém o stalinismo nunca rompeu seu compromisso com a ordem mundial de Yalta e Potsdam. O stalinismo passou a uma posição de colaboração aberta e de “coexistência pacífica” com o imperialismo. A partir dessa doutrina, os discursos são a defesa do diálogo e da conciliação, com os PCs ajudando a sustentar a dominação imperialista no mundo e o Estado burguês.

    A partir do final dos anos 1950, os PCs passaram a ser campeões em apoiar governos burgueses supostamente progressistas em todos os continentes. Na Itália, por exemplo, defenderam o “compromisso histórico” entre o PC, o maior partido comunista do ocidente, com a Democracia Cristã, maior partido burguês na Itália.

    AMÉRICA LATINA
    Fracasso do reformismo e do nacionalismo burguês no mundo semicolonial

    Na América Latina, entre os anos 1950 e 1970, a presença do reformismo e do nacionalismo burguês seguiram esse processo de chegar ao governo para tentar desviar os processos revolucionários desde a Bolívia, em 1952, até a Argentina, com Perón. Nesses processos, em nome da frente com a burguesia, os PCs apoiaram os governos ditos progressistas, como Joao Goulart no Brasil, em 1962-63, e a Unidade Popular de Allende no Chile, entre 1970-73. Em nome dessas alianças, passaram a defender a legalidade e o Estado e chamaram a confiar nas forças armadas, ditas patrióticas. Com isso, desarmaram a resistência aos golpes tanto no Brasil quanto no Chile.

    NEOLIBERALISMO
    A crise na social-democracia e no stalinismo

    A social-democracia, que havia se fortalecido na reconstrução do pós-guerra e por sua identificação com o Estado de bem-estar social, passou a sofrer um forte desgaste no final dos anos 1960. Nesse momento, começou o período de ataques a esses direitos sociais. Ataques que vieram pela direita, mas também pelos sociais-democratas quando estavam nos governos.
    Na França, na Alemanha e na Espanha pós-franquista, a partir dos anos 1970 e nos anos 1980, começou um forte desgaste que se aprofundou com a implantação do chamado “neoliberalismo”.

    Este consistia numa política econômica de retirada dos direitos conquistados em nome de “menos Estado” e da “liberdade de iniciativa”. Iniciado por Margaret Thatcher (Reino Unido) e Ronald Reagan (EUA) e experimentado na ditadura chilena de Augusto Pinochet, o neoliberalismo foi sendo tomado como pauta também por governos social-democratas: Mitterrand na França, em 1981-88, Felipe González na Espanha, nos anos 80, os trabalhistas na Inglaterra e os sociais-democratas na Alemanha. Desse processo, surgiu a terceira via do trabalhista Tony Blair, primeiro-ministro da Grã-Bretanha (1997 a 2007).

    Por outro lado, abriu-se uma crise nos partidos comunistas europeus stalinistas com a repressão do Exército Vermelho russo contra as revoluções políticas no Leste Europeu nos anos 1950, 1960 e 1970.

    Surgiu, então, o fenômeno do eurocomunismo, tendo como carro-chefe o PC Italiano. Levando até o fim a política de aceitar o Estado burguês em nome da democracia, formularam a doutrina da “democracia como valor universal”. Para eles a evolução da democracia levaria ao socialismo sem necessidade de revoluções sociais. Ou seja, adotaram um programa tal como a social-democracia havia feito no passado.

    As outras vertentes do stalinismo, como o maoísmo e o castrismo, apesar da estratégia guerrilheira, que num primeiro momento atraiu a simpatia de milhares de militantes, acabaram por ser a expressão das burocracias que governam China e Cuba. Em pouco tempo, apoiavam as burguesias ditas progressistas e se colocaram contra a tomada do poder pelos trabalhadores numa série de revoluções. Fidel Castro mostrou isso apoiando a aliança de Allende com a burguesia no Chile e também quando disse aos sandinistas na revolução da Nicarágua, em 1979, que não se devia expropriar a burguesia, mas sim se aliar a ela. “A Nicarágua não deveria ser uma nova Cuba”, disse.

    Tanto a burocracia chinesa quanto a cubana foram linha de frente da restauração do capitalismo em seus países. Hoje, o PC cubano representa a nova burguesia que restaurou o capitalismo na ilha. Já o PC chinês passou a ser um partido que governa de forma totalitária o Estado capitalista chinês.

    Após a restauração do capitalismo na ex-URSS, os partidos eurocomunistas como o PC Italiano completaram um processo de reconversão em partidos burgueses.

    A social-democracia e o que restou dos antigos partidos stalinistas, como o português e o francês, transformaram-se em partidos da ordem, cujo programa é a defesa do Estado burguês. Assim, tornaram-se instrumentos auxiliares para a burguesia implantar sua guerra social e destruir o welfare state.