Categoría: A luta dos oprimidos

  • A Teoria da Revolução Permanente e a luta dos oprimidos

    A Teoria da Revolução Permanente e a luta dos oprimidos

    Introdução

    Em nosso seminário sobre a opressão da mulher, em dezembro de 2014, ocorreu uma rica discussão e algumas controvérsias acerca da teoria da Revolução Permanente e de sua articulação com as lutas dos oprimidos. Nestes artigos, procuramos resumir a nossa intervenção no seminário.

    Por José Welmowicki e Alicia Sagra

    A Revolução Permanente é fundamental para a intervenção dos revolucionários em todas as áreas, pois é a teoria da revolução socialista internacional que combina diferentes tarefas, etapas e tipos de revoluções. Além disso, é a teoria que articula as relações entre as tarefas e os sujeitos no processo da revolução socialista mundial. Por isso, sem a compreensão do conceito de revolução permanente, torna-se impossível elaborar uma estratégia correta para a revolução e para a organização da classe operária e dos setores oprimidos.

    A origem da teoria

    Originada com a revolução de 1905, esta teoria trouxe uma nova interpretação da dinâmica da revolução em países atrasados, embora em 1905 ela tenha sido formulada apenas para a Rússia. Até então, associava-se a possibilidade de uma revolução socialista aos países com maior desenvolvimento capitalista. Consequentemente, em toda a II Internacional acreditava-se que os países maduros para a revolução socialista eram Inglaterra, França e Alemanha.

    Leon Trotsky, apoiando-se nas elaborações de Parvus e em textos de Marx sobre a revolução alemã de 1848, ao fazer o balanço da revolução de 1905, elaborou o que se tornaria uma nova visão na social-democracia, acerca da dinâmica de classes e do caráter da próxima revolução russa.

    Qual é a contribuição de Trotsky com a Teoria da Revolução Permanente?

    Tanto na primeira formulação de 1905 quanto na segunda, desenvolvida em 1929, ele estabeleceu uma relação entre as tarefas propostas e a dinâmica das classes. A burguesia já não é capaz de levar adiante, até o fim, as tarefas da revolução democrática burguesa; esta só se completará se for assumida pela classe operária, que deverá impor a ditadura do proletariado. “A dominação política do proletariado é incompatível com a situação de dominação econômica pela burguesia”, dizia Trotsky em 1905: resultados e perspectivas. Por isso, uma vez conquistado o poder político, ele passará a atacar a propriedade capitalista, a enfrentar a exploração, ou seja, combinará as tarefas democráticas com as socialistas. Em outras palavras, a dinâmica de classe conduzirá à revolução socialista. Esses dois aspectos – o proletariado como sujeito social da revolução e a combinação das tarefas – são as grandes contribuições de Trotsky, e não estavam presentes em Lenin antes de abril de 1917.

    Portanto, o novo na teoria da revolução permanente não é que a classe operária deva assumir as tarefas da revolução democrática, visto que a burguesia não o fará. Apesar de essa definição ser o ponto de partida da sua elaboração, conforme o próprio Trotsky esclarece em sua obra A Revolução Permanente, ele compartilhava com Lenin a convicção de que a burguesia fosse incapaz de completar sua própria revolução. E, nesse aspecto, ambos divergiam dos mencheviques, que defendiam que a revolução fosse conduzida pela burguesia.

    Entretanto, embora coincidirem no fato de que a burguesia não cumpriria sua tarefa, Lenin não definia qual classe a substituiria. Ele falava de operários e camponeses, mas sem definir qual seria o sujeito social da revolução. Junto a isso, mantinha a visão tradicional dos marxistas de sua época, de que a revolução proposta era democrática burguesa, a qual seria completada pela ditadura democrática dos operários e camponeses.

    Diferentemente de Lenin, Trotsky defendia que era impossível que os camponeses se organizassem de forma independente em um partido próprio, por isso via a classe operária, por seu papel social decisivo, como a única classe que poderia levar adiante a revolução democrática, mesmo com seu número reduzido na Rússia. E, a partir do sujeito social da revolução, concluía que, uma vez no poder, não seria possível limitar-se às tarefas da revolução burguesa. Assim, a revolução democrática burguesa se transformaria em socialista.

    Já na versão de 1929, Trotsky incorpora à teoria da revolução permanente aquilo que representava outra grande diferença em relação a Lenin em 1905: o partido centralizado como sujeito político da revolução. Dessa forma, no item 2 das Teses de 1929, ele postula que somente o proletariado, como seu líder, aliado aos camponeses e dirigido por um partido revolucionário, pode concluir de forma efetiva as tarefas democráticas e instaurar a ditadura do proletariado, que assumirá, ademais, as tarefas socialistas.

    Queremos reafirmar, então, que para Trotsky, o caráter da revolução é permanente, não porque as tarefas democráticas, por si só, aprofundadas, conduzam à revolução socialista, mas porque há uma relação direta com o sujeito social que pode efetivamente levar adiante essa revolução. E esse sujeito social é o proletariado, que, uma vez no poder, começará a executar as tarefas socialistas.

    O pós-guerra trouxe novos fatos, revoluções que expropriaram a burguesia sem que o sujeito social proletário e o partido revolucionário estivessem presentes. Isso não estava previsto por Trotsky, mas são suas elaborações – em especial a “Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado” e a hipótese teórica apresentada no Programa de Transição – que nos permitem interpretar tais acontecimentos. Foi a combinação de uma situação objetiva insustentável (guerra, derrotas, crise financeira…) com a pressão revolucionária das massas que obrigou direções da pequena burguesia, inclusive stalinistas, a ultrapassarem seu programa e expropriarem a burguesia. Essas revoluções questionam alguns aspectos das Teses da Revolução Permanente, mas não a teoria em si. Nenhuma dessas revoluções foi liderada pela burguesia; pelo contrário, foi necessário tomar o poder e expropriá-la para cumprir as tarefas principais da revolução democrática burguesa – a independência nacional e o problema da terra. Como observou Moreno:

    «A teoria da revolução permanente é muito mais abrangente do que as Teses escritas por Trotsky no final dos anos vinte; é a teoria da revolução socialista internacional que combina diferentes tarefas, etapas e tipos de revoluções na marcha rumo à revolução mundial. A realidade acabou sendo mais trotskista e permanente do que o próprio Trotsky e os trotskistas previram. Produziu combinações inesperadas: apesar das falhas do sujeito (ou seja, de que o proletariado em algumas revoluções não foi o protagonista principal) e do fator subjetivo (a crise de direção revolucionária, a fragilidade do trotskismo), a revolução socialista mundial obteve triunfos importantes, chegou à expropriação, em muitos países, dos exploradores nacionais e estrangeiros, embora a direção do movimento de massas tenha permanecido nas mãos de aparatos e direções oportunistas e contrarrevolucionárias. Se não reconhecermos esses fatos, abriremos margem para interpretações revisionistas que se baseiem neles para negar o caráter de classes e político da teoria da revolução permanente.» (Tese 39 da Atualização do Programa de Transição)

    Por outro lado, manteve-se o fio condutor da Teoria e das Teses: sem a classe operária e o partido, mais cedo ou mais tarde a revolução se paralisa e retrocede. Pode-se chegar até à expropriação da burguesia, mas, no fim, ela congela e retrocede. Se isso já era evidente em 1980, hoje a restauração do capitalismo na China, Cuba, Vietnã e em todo o Leste europeu está aí como a prova máxima. A ausência do proletariado na liderança e do partido revolucionário ocasionou que cada uma dessas vitórias, em vez de avançar rumo à liquidação do imperialismo em todo o planeta, fosse utilizada pelos aparatos burocráticos para frear, e até mesmo reverter, as conquistas.

    Por isso, como afirma Moreno, a teoria da revolução permanente permanece viva e correta em sua essência, mantendo seu caráter de classes e internacionalista: tal como Trotsky postulou, somente a classe operária e o partido na liderança podem conduzir a revolução socialista mundial até derrotar o imperialismo e estabelecer o socialismo em escala global.

    O pós-guerra e os efeitos sobre o trotskismo

    Esses acontecimentos do período pós-guerra levaram a muitas revisões no interior do trotskismo. Órfãos de direção pelo assassinato de Trotsky, os jovens e inexperientes quadros que estavam à frente da IV Internacional sucumbiram ao impressionismo, sob a pressão da esquerda de corte stalinista, fortalecida pelo triunfo contra o nazismo e pelo surgimento dos novos estados operários burocráticos. Foi o momento em que Mao, Ho Chi Minh e, pouco depois, Fidel Castro, emergiram como referências.

    O que dizia o Secretariado Internacional da IV, sob a direção de Pablo?

    A posição era de que aquelas direções não eram contrarrevolucionárias, mas sim direções centristas que, como produto da pressão das massas, poderiam se tornar revolucionárias. Essa mudança de 180º nas posições da IV levou a uma profunda crise. Essa visão – que identificou o que se chamou de “pablismo” – foi combatida pela corrente de Moreno e pelo SWP dos EUA durante 1952-1953.

    Mais tarde, o Secretariado Unificado (SU), formado em 1963 sob a direção de Mandel, continuou a revisão, atribuindo a direções pequeno-burguesas, como o Partido Comunista chinês de Mao, e ao castrismo, um papel revolucionário, dando origem à tendência guerrilheira que foi enfrentada tanto por Moreno quanto pelo SWP.

    Contudo, as posições foram se alterando. A evolução subsequente do SU unificou o mandelismo com o SWP, abandonando o critério leninista para caracterizar as direções por seu programa e caráter de classe. Para eles, uma direção da pequena burguesia ou stalinista pode se transformar em revolucionária. Confundiram o que era produto da combinação entre a radicalização das massas e uma situação extrema de crise catastrófica – guerras, etc. – que as impulsionava adiante, com um suposto caráter revolucionário dessas direções. Em especial, aplicaram esse critério para definir o castrismo, do qual opinavam que, por não derivar do stalinismo, podia ser considerado uma direção revolucionária por estar à frente de uma revolução que expropriou a burguesia. Fidel Castro chegou a ser identificado por Novack como um dirigente igual ou superior a Lenin.

    Por outro lado, outro setor do trotskismo, como Healy, da Inglaterra, e Lambert, da França, tomando as Teses da Permanente como uma espécie de “bíblia”, não reconheceram essas revoluções como socialistas por terem expropriado as burguesias, tampouco reconheceram como tais os estados operários formados a partir delas.

    O SWP revê a teoria da revolução permanente em relação aos oprimidos

    Na década de 1960-1970, nos EUA, houve um grande ascenso do movimento das mulheres, liderado por diferentes correntes feministas, e um avanço do movimento negro em prol dos direitos civis, contra a discriminação racial, em um contexto no qual não havia grandes lutas operárias. Frente a essa realidade, o SWP realizou uma revisão teórica muito profunda. Trabalhamos bastante com o material de Mary Alice Waters, mas a base teórica é de Novack.

    George Novack, em seu livro Democracia e Revolução (1971), introduz conceitos que, na verdade, constituem uma revisão global da teoria da Revolução Permanente.

    Em primeiro lugar, ele afirma que a defesa da democracia contra seus inimigos levaria, por si só, à luta pelo socialismo, e que a estratégia revolucionária consiste em defender e expandir a democracia. No referido texto teórico-histórico, ele explica:

    Hoje em dia, as classes médias urbanas e rurais declinaram em importância econômica e social; os pequenos proprietários já não terão, por muito tempo, força independente suficiente para resistir a ataques frontais contra a democracia. Há apenas uma força social com poder suficiente para defender a democracia contra o ‘perigo claro e presente’ da reação capitalista. É a classe operária, que representa a esmagadora maioria da população. Os operários brancos, os afro-americanos e os povos do Terceiro Mundo, a juventude radical, as mulheres que se rebelam contra seu status de ‘segundo sexo’ e os intelectuais e profissionais dissidentes formam uma falange de forças que devem ser unidas em um único front para defender a democracia.” (Como defender e expandir a democracia?, Capítulo 12)

    Partindo da afirmação de Trotsky de que há uma tendência crescente ao fascismo e/ou à bonapartização da democracia burguesa, Novack apresenta um posicionamento programático geral (algo que Trotsky não fez): a estratégia da revolução permanente, em democracias como a dos EUA, é lutar para defender a democracia de ataques em todas as suas dimensões; a luta pelas liberdades democráticas, contra a opressão da mulher, contra o racismo e pelos direitos da juventude, devem ser o centro – e a chave é radicalizá-las até alcançar a ditadura do proletariado. O caminho para o socialismo passa, portanto, pela defesa e ampliação da democracia burguesa. Essa luta encaminharia diretamente para a conquista do poder.

    Esse conceito foi posteriormente aplicado pela direção do SWP em sua resolução sobre a luta das mulheres.

    Em consonância com essa perspectiva, atribui a capacidade de dirigir a revolução a todos os setores que sofrem opressão, discriminação – a todos os oprimidos, que devem se unir em um único front para defender a democracia.

    «Os marxistas abordam o problema de uma forma fundamentalmente distinta. Consideram a democracia burguesa não como um fim em si, mas como uma etapa na evolução da soberania popular, cujas conquistas progressistas precisam ser preservadas. Contudo, essas conquistas estão constantemente ameaçadas pela crescente dominação reacionária dos ricos, durante o declínio do capitalismo. Só podem ser mantidas e expandidas através da ação e organização independente das massas operárias e de todos os oprimidos contra os monopolistas e os militaristas, que devem ser direcionadas, em última análise, para despojar os primeiros do poder.» (Novack, op.cit.)

    Dessa perspectiva, defende-se que o sujeito social não é exclusivamente a classe operária, mas uma soma dos sujeitos dos movimentos de massas democráticos – sem distinção de classes – que englobam o movimento negro, das mulheres, da juventude e, inclusive, a própria classe operária.

    Por esse motivo, rejeita-se o critério de classe da Teoria da Revolução Permanente, conforme proposto por Moreno na Tese 39 da Atualização do Programa de Transição:

    … a direção do SWP está engajada em outro ataque à teoria trotskista da revolução permanente. Para esta nova teoria do SWP, o proletariado ou o trotskismo não são essenciais para o contínuo desenvolvimento da revolução permanente. Eles são, na melhor das hipóteses, um ingrediente a mais. A nova teoria da revolução permanente defendida pela atual direção do SWP é a teoria dos movimentos unitários progressistas dos oprimidos, e não do proletariado e do trotskismo. Todo movimento de oprimidos – se for unitário e englobar o conjunto destes, ainda que sejam de classes diferentes – é, por si só, cada vez mais permanente e conduz inevitavelmente – sem diferenciações de classe ou políticas – à revolução socialista nacional e internacional. Essa concepção é expressa, particularmente, em relação aos movimentos negro e da mulher. Todas as mulheres são oprimidas, assim como todos os negros; se se conseguir mobilizar um movimento que una esses setores oprimidos, essa mobilização não cessará e os conduzirá, através de diferentes etapas, à realização de uma revolução socialista.

    … Para o SWP, o socialismo é uma combinação de diferentes movimentos multitudinários – sem distinção de classes – de importância semelhante: o movimento negro, o feminino, o operário, o juvenil, o dos idosos, que quase que pacificamente conduzem ao triunfo do socialismo. Se todas as mulheres marcharem juntas, isso representa 50% do país; se o mesmo ocorrer com os jovens (70% em alguns países latino-americanos, além dos operários, negros e camponeses), a combinação desses movimentos fará com que a burguesia seja encurralada – em um pequeno espaço – pois serão os adultos burgueses, homens brancos, os que se oporão à revolução permanente. É a teoria de Bernstein combinada com a revolução permanente: o movimento é tudo e a classe e os partidos nada. Essa teoria rapidamente se transforma em um humanismo anticlassista, que reivindica a práxis como categoria fundamental, em oposição à luta de classes como motor da história. Nós – em confronto com o SWP – devemos, mais do que nunca, reafirmar o caráter de classes e trotskista da revolução permanente. Nenhum setor burguês ou reformista nos acompanhará no processo da revolução permanente. Em algumas conjunturas excepcionais, quando a ação não representar uma ameaça à burguesia e à propriedade privada, poderão marchar juntos jovens burgueses e operários, mulheres burguesas e operárias, negros oportunistas e revolucionários; mas essa marcha conjunta será excepcional e não permanente. Nós continuamos a defender, de forma intransigente, a essência – tanto da teoria quanto das próprias Teses – da revolução permanente: somente o proletariado liderado por um partido trotskista pode conduzir de maneira consistente, até o fim, a revolução socialista internacional e, por conseguinte, a revolução permanente. Apenas o trotskismo pode impulsionar a mobilização permanente da classe operária e de seus aliados, principalmente os operários.

    A posição do SWP e suas propostas para a libertação da mulher

    Relacionada a essa revisão teórica, surge também a revisão do conceito de opressão e a proposta do movimento unificado das mulheres, articulada por Mary Alice Waters. Em A Revolução Socialista e a Luta pela Libertação da Mulher, Waters afirma:

    A opressão da mulher é indispensável para a manutenção da sociedade de classes. Portanto, a luta de massas das mulheres contra essa opressão é uma forma de combater a dominação capitalista. As mulheres são um componente importante e um poderoso aliado potencial da classe operária na luta contra o capitalismo… Sem a mobilização de massas das mulheres, a classe operária não pode realizar suas tarefas históricas.

    Dessa forma, o apoio à construção de um movimento feminista autônomo passa a fazer parte da estratégia do partido revolucionário da classe operária.

    Waters parte de uma definição equivocada: que a opressão da mulher é indispensável para a manutenção da sociedade capitalista – tema que será abordado mais adiante. Por outro lado, ela encara o conjunto das mulheres como aliadas da classe operária, defendendo que as lutas pelas tarefas democráticas, por si sós, conduzem à tomada do poder. E se as mulheres, em conjunto, sem distinção de classe, são consideradas o sujeito social de uma importante luta democrática, é estratégica a formação de um movimento feminista unificado – o que remete à proposta da Irmandade de Mulheres, defendida pelas feministas radicais.

    Essa visão contrasta com a da dirigente revolucionária Clara Zetkin, que impulsionou as ações e as resoluções acerca da mulher na II e, posteriormente, na III Internacional. Em A Contribuição da mulher operária é indispensável para a vitória do socialismo, Zetkin afirmava:

    O objetivo final da luta da mulher não é competir livremente com o homem, mas conquistar o poder político pelo proletariado. A mulher operária luta lado a lado com o homem de sua classe contra a sociedade capitalista. Isso não significa que ela não deva apoiar também as reivindicações do movimento feminino burguês. Mas a conquista dessas reivindicações representa apenas um instrumento, um meio para um fim – para entrar na luta com as mesmas armas ao lado do proletariado. … A mulher operária posiciona-se ao lado do proletariado, enquanto a burguesa fica do lado da burguesia.

    Não devemos nos deixar enganar pelas tendências socialistas presentes no movimento feminino burguês: essas se manifestarão enquanto as mulheres burguesas se sentirem oprimidas, mas não além disso.

    Nos anos 80, o SU incorporou e passou a defender essa visão elaborada pelo SWP, aprofundando-a e acolhendo as posições das feministas radicais. Em 1989, a então seção do SU, a LCR espanhola, desenvolveu as teses intituladas “A Rebelião das Mulheres”. Para elas, a revolução é a soma de lutas democráticas que são, por si só, anticapitalistas se forem levadas de forma radical e independente da classe e de sua direção – seja ecológica, feminista, etc.

    Elas defendem que a opressão “da mulher é exercida de forma individualizada pelos ‘homens’ em conjunto”, e a esse conjunto de relações denomina-se patriarcado, alinhando-se com a posição das feministas radicais, conforme analisado no seminário e no artigo de Florence Oppen desta revista.

    O sujeito social da libertação das mulheres seria “as mulheres”, isto é, todas, sem distinção de classe: “O movimento feminista surge como expressão do despertar da consciência de muitas mulheres e se configura como o sujeito determinante na luta por sua libertação” (p. 3), considerando-as parte do conjunto dos setores que se unirão até o final na luta pelo socialismo, dos quais estaria incluída a classe operária. (Tese 14: … Além disso, existem outros movimentos de libertação, e particularmente a classe operária, que para alcançar seus objetivos também deve propor a destruição do Estado… Tese 15: “também o caráter estratégico do movimento feminista, seu papel central na transformação revolucionária”. Tese 16: “As mulheres são o sujeito de sua própria libertação…”)

    Ou seja, para a LCR e o SU, existem vários movimentos – o das mulheres, o da classe operária e outros que se somam na luta anticapitalista. Para a LCR, a classe operária é apenas parte desse processo, por mais importante que seja. Contudo, de forma categórica, seu papel não é o de liderar, mas o de se aliar a qualquer outro setor. Não há referência à divisão de classes dentro do universo feminino. O movimento feminista deve ser autônomo do Estado e dos demais movimentos, inclusive do movimento operário e do partido; consequentemente, o papel do partido revolucionário não é liderar nem combater as direções pequeno-burguesas, mas apenas participar ativamente do movimento autônomo das mulheres – e ponto final.

    Como vimos no seminário, não estamos apenas relembrando polêmicas dos anos 70 e 80 do século XX. Essas posições continuam sendo defendidas hoje por organizações trotskistas, como o FSP (Freedom Socialist Party) dos EUA, o que mantém a atualidade desse debate.

    O caráter das tarefas para a libertação da mulher e o que pode ser alcançado antes da tomada do poder

    Esses dois temas também foram objeto de debate entre os marxistas no seminário.

    Ficou claro que as lutas contra a opressão não são, em si, tarefas anticapitalistas, mas tarefas democráticas. Ou seja, o capitalismo não se estrutura em torno da opressão da mulher. As reivindicações relativas à igualdade feminina são demandas democráticas que ficaram pendentes. Algumas delas foram conquistadas ao longo do século XX e continuam em aberto no século XXI, ainda que permeadas por muitas desigualdades. Referimo-nos a questões democráticas como o direito de voto, a guarda dos filhos, o direito à educação, à propriedade, ao divórcio, ao aborto, em vários países.

    Por outro lado, o seminário deixou claro que a luta contra a opressão da mulher é milenar e que a burguesia, mesmo tendo contribuído para o desenvolvimento das forças produtivas e criado as condições ao incorporar massivamente a mulher ao mercado de trabalho, foi incapaz de resolver a questão – nem mesmo nos países imperialistas. É decisivo compreender que isso tem a ver com o que propõe a Revolução Permanente: na época imperialista, a burguesia é incapaz de concluir até o fim qualquer uma das tarefas democráticas que ficaram pendentes da revolução burguesa – e isso inclui a opressão da mulher, que subjuga metade da humanidade.

    É preciso reafirmar que, ainda mais na época imperialista, a burguesia dos países periféricos é incapaz de cumprir as tarefas democráticas. Essa incapacidade, segundo Trotsky, tem dois motivos centrais: a) a relação orgânica das burguesias com o imperialismo; b) o receio de colocar as massas, especialmente a classe operária, em movimento.

    Essa incapacidade mencionada por Trotsky está relacionada à conclusão das tarefas democráticas. Contudo, a burguesia foi obrigada, em certas circunstâncias, a adotar medidas parciais para frear grandes movimentos revolucionários. Por exemplo, é do interesse de alguns setores burgueses que exista um mercado interno unificado e medidas protecionistas contra concorrentes internacionais. Houve processos de industrialização na América Latina e nacionalizações – parciais ou não – de recursos minerais. Também na América Latina, conhecida por seus golpes de estado recorrentes, em determinado momento, utilizou-se a reação democrática para desviar o avanço revolucionário.

    No que diz respeito à opressão da mulher, verifica-se uma dinâmica semelhante: a burguesia é incapaz de resolver a opressão da mulher, assim como não consegue solucionar o problema do racismo, pois o capitalismo absorve todas as opressões, utilizando as diferentes situações de privilégios e desvantagens para explorar melhor os trabalhadores e os povos. Esse processo de aproveitar as desigualdades atinge seu ápice na fase decadente do capitalismo – o imperialismo – que se vale de todas as diferenças raciais, sexuais, nacionais, para explorar ainda mais. Contudo, isso não impede que, diante da radicalização e das lutas, a burguesia e o imperialismo possam fazer concessões, em especial na esfera de reivindicações formais, como o divórcio, a igualdade perante a lei, a legalização do aborto. Como vimos, essas demandas podem ser atendidas sem que o capitalismo esteja em risco. Além disso, sempre que são feitas esse tipo de concessões legais, tenta-se incorporar e cooptar setores de mulheres com a promessa de se alcançar a igualdade legal dentro do próprio sistema capitalista. Por exemplo, o direito de voto já existe na grande maioria dos países e, então, surge a convocação para a ‘participação cidadã’ das mulheres, como caminho para superar a opressão.

    Esse é o pano de fundo do chamado empoderamento, das políticas de ‘gênero’ que dizem às mulheres que basta que se conscientizem de seus direitos, eduquem-se e proponham-se a assumir as tarefas dos homens, para conquistar a igualdade e acabar com a violência contra a mulher, entre outras reivindicações. Com esse objetivo, faz-se propaganda utilizando como exemplos mulheres que são ministras ou presidentes de países, como Merkel, Dilma ou Cristina Kirchner. Também estão presentes campanhas da ONU que abordam gênero e o progresso da mulher. Todas essas iniciativas mascaram o fato de que, para a imensa maioria das mulheres – as trabalhadoras e as donas de casa dos lares operários – a situação piora a cada dia, e esse é um sonho totalmente inalcançável sob o capitalismo. Pois o imperialismo, a cada dia, ataca mais as condições de vida dos trabalhadores, e as mulheres são as que mais sofrem com o desemprego, a fome, o colapso dos serviços públicos de saúde e educação, entre outros problemas graves.

    Diante de tudo isso, houve consenso de que a exploração capitalista divide os oprimidos e, portanto, é equivocado considerar as mulheres como um sujeito social único na luta contra a opressão. Assim, a opressão da mulher faz parte das tarefas democráticas – das demandas que ficaram pendentes da revolução democrática – e essa questão só poderá ser plenamente resolvida com a tomada do poder em cada país e, mais precisamente, com a derrota definitiva do imperialismo e a construção do socialismo mundial e do comunismo. Assim como em outras questões democráticas não solucionadas, reafirmamos que o sujeito social é o proletariado e o sujeito político é o partido revolucionário, operário e internacionalista. Do mesmo modo, defendemos que, para avançar rumo ao socialismo, é fundamental enfrentar cotidianamente a luta contra a opressão da mulher, pois a opressão divide a classe operária, sujeito social da revolução.

    Hierarquia das tarefas democráticas

    Outra questão debatida foi se todas as tarefas democráticas abandonadas pela burguesia têm a mesma hierarquia ou se, para a Revolução Permanente, existem hierarquias diferenciadas.

    Para nós, não há dúvidas: existe essa diferenciação hierárquica. Como afirmam as Teses da Revolução Permanente e o artigo de polêmica com Tony Cliff e o SWP da Inglaterra, de Florence Oppen, há três grandes tarefas democráticas históricas, resumidas da seguinte forma por Michel Löwy:

    A revolução agrária democrática: a abolição corajosa e definitiva de todos os resquícios de escravidão, feudalismo e regimes asiáticos despóticos, a eliminação de todas as formas pré-capitalistas de exploração (como a corveia – trabalho penoso –, trabalho forçado etc.) e a expropriação dos grandes latifundiários, com a distribuição da terra para os camponeses.

    A libertação nacional: a unificação da nação e sua emancipação da dominação imperialista; a criação de um mercado nacional unificado e sua proteção contra mercadorias estrangeiras mais baratas; o controle de determinados recursos naturais estratégicos.

    A democracia: para Trotsky, isso incluía não só o estabelecimento de liberdades democráticas, uma república democrática e o fim dos governos militares, mas também a criação das condições sociais e culturais que permitissem a participação popular na vida política – por exemplo, a redução da jornada de trabalho para oito horas e a ampliação da educação pública.

    Moreno acrescenta que a única dessas tarefas que é estrutural – cuja conquista ataca a estrutura da dominação na época atual – é a libertação nacional, o que decorre, em sua própria teoria do imperialismo, do fato de que a dominação colonial e semicolonial é parte estrutural da dominação econômica e política do imperialismo, da fase atual do capitalismo mundial. Acreditamos que Moreno está correto, e isso tem a ver com a fase monopolista do capitalismo, com o fato de que um número cada vez menor de potências imperialistas exerce dominação, que houve a submissão dos antigos Estados operários, que países imperialistas passam a dominar, que as invasões e guerras coloniais continuaram durante todo o século XX e se estendem pelo século XXI.

    Qual deve ser, então, a posição dos revolucionários em relação às tarefas democráticas de luta contra a opressão da mulher?

    Sem dúvida, devemos encará-las como fundamentais, pois, como afirma Lenin, se os revolucionários não se apresentarem como aqueles que mais lutam por cada uma das reivindicações, não conquistarão a confiança nem conseguirão atrair as massas oprimidas para o campo da revolução. Pois, ao impulsionar a luta contra a opressão das mulheres, abrem-se as portas para mobilizar amplos contingentes de mulheres trabalhadoras e atraí-las para o campo do proletariado. Além disso, como o machismo e a opressão dividem a classe operária, é imprescindível a sua união para a conquista do triunfo revolucionário. Por isso, temos que convocar, de maneira ampla, o proletariado para assumir as bandeiras dos oprimidos – das mulheres, dos negros, dos indígenas, dos imigrantes e dos LGBT.

    Isso é parte fundamental da luta para que a classe operária torne-se a líder de todos os setores oprimidos. Queremos que ela seja o dirigente dos camponeses pobres, dos setores populares urbanos e das minorias perseguidas.

    No que diz respeito à opressão da mulher, assumir esse combate de forma profunda implica travar uma batalha permanente contra as direções e organizações que propagam a influência burguesa, um combate com orientação de classe, para conquistar a adesão das mulheres trabalhadoras e trazê-las para o lado da classe operária. Atualmente, quando a burguesia adota retoricamente essas bandeiras e até tenta capitalizar algumas medidas conquistadas no campo democrático, essa luta se torna ainda mais importante para enfrentar ideologias como o empoderamento, as teorias de gênero e a colaboração de classes. É necessária uma luta implacável contra essas concepções feministas, a fim de conquistar a adesão das mulheres trabalhadoras e exploradas para se unirem à classe operária.

    Determinar que as tarefas contra a opressão da mulher são de caráter democrático (e, portanto, policlássicas, como alerta Clara Zetkin, já que nelas intervêm diferentes classes que sofrem essa opressão) não diminui a importância dessa luta; pelo contrário, essa precisão a fortalece, pois nos assegura que só podemos avançar na resolução dessa questão se a enquadrarmos na perspectiva da luta do proletariado pela destruição do capitalismo e do imperialismo, pelo poder da classe operária, no caminho do socialismo e do comunismo – a única forma de libertar a humanidade de toda exploração e opressão.

  • Sobre a organização dos oprimidos

    Sobre a organização dos oprimidos

    No artigo A teoria da revolução permanente, as tarefas democráticas e a luta dos oprimidos, referimo-nos à polêmica com o SWP dos anos 1970 e com outras correntes do trotskismo que reivindicavam a organização autônoma das mulheres e de outros setores oprimidos, ultrapassando a fronteira de classe. Esse tema não foi polêmico no seminário, pois houve acordo unânime em rejeitar esse tipo de organizações de aliança de classes.

    Por Alicia Sagra e José Welmowicki

    Surgiu, entretanto, outra polêmica a respeito de se é correto ou não o chamado às mulheres trabalhadoras e a outros setores oprimidos dos trabalhadores para se organizarem de forma autônoma (em tudo o que se refere à luta contra a opressão). Ou seja, que existam, em nível da organização de classe, por exemplo nas centrais sindicais, organizações por opressões, não circunstanciais, mas permanentes.

    O que chamou a atenção no seminário foi que tanto os que se opunham a esse tipo de organização quanto os que a defendiam, apoiavam-se nos mesmos materiais programáticos para fundamentar suas posições: a Tese sobre a propaganda entre as mulheres, votada pelo terceiro congresso da III Internacional em 1921, e a Tese XXIX de Atualização do Programa de Transição de Nahuel Moreno, de 1980. Evidentemente, estamos diante de um problema de diferentes interpretações dos mesmos documentos.

    Por esse motivo, precisamos aprofundar o estudo desses documentos, analisando essas definições programáticas não apenas do ponto de vista teórico-ideológico, mas também histórico: qual foi a orientação que, historicamente, nossos mestres deram à organização dos oprimidos? E por que o fizeram?

    O primeiro passo é precisar o que esses documentos dizem, contrastando o texto escrito com a prática concreta daqueles que os redigiram. E, embora devamos aplicar o mesmo método para os dois documentos citados, é inegável que o documento central é o material da III Internacional, visto que todos reconhecemos que essas teses são a principal ferramenta programática para o trabalho com as mulheres.

    Como não somos religiosos que seguem uma bíblia, o segundo passo – uma vez precisado o que se diz – é determinar se essas definições estão corretas na atualidade. Se foram na época, mas, devido às mudanças mundiais, já não o são, ou se sempre estiveram equivocadas.

    Devemos seguir esses passos com muita precisão, pois essa discussão não é para ganhar uma polêmica nem por um interesse puramente intelectual. Nosso propósito comum está relacionado com a necessidade de enfrentar a reelaboração programática com o objetivo de atualizar nosso programa histórico.

    Vamos, então, começar com o documento mais recente.

    Tese XXIX de Atualização do Programa de Transição

    Na referida tese, Nahuel Moreno explica:

    «(…) nós estamos a favor da unidade de ação anti-imperialista; da unidade de ação das mulheres pela legalização do aborto, do divórcio ou pelo direito ao voto; da unidade de ação com qualquer partido político para reivindicar espaços iguais na rádio e na televisão; de uma manifestação, com quem for, para solicitar esses direitos democráticos contra o governo bonapartista e totalitário e mesmo democrático burguês. Mas não confundimos a unidade de ação com a formação de uma frente. Somos contrários a fazer frentes com os partidos burgueses ou pequeno-burgueses para defender a democracia, mesmo quando concordamos com eles na defesa de determinados pontos democráticos. Com o nome de ‘frente’ estruturam-se organizações que são frentes-populistas (embora, em determinados casos, possam desempenhar um papel relativamente progressista, como os movimentos nacionalistas), por envolverem distintas classes — sobretudo a burguesia e a pequena burguesia — e por terem objetivos que não são os da independência política da classe operária. (…) Quando essa frente (que jamais devemos promover, pois a consideramos uma variante da frente popular) se estabelece, e nela a classe operária intervém ,ou um setor importante dela, podemos intervir, já que ela existe objetivamente, mas para desmantelá-la, para denunciá-la de dentro e para independentizar, tanto política quanto organizacionalmente, a classe operária que nela está. Isso significa que podemos intervir em um movimento nacionalista, mas com um claro sentido de denúncia da colaboração de classes e propondo a independência da classe operária (…) Essa explicação de que nós não estamos a favor de uma frente única anti-imperialista, nem antifeudal, nem feminista antimachista, democrática antiditatorial, mas sim a favor de ações anti-imperialistas, feministas, democráticas e antilatifúndio, é muito importante, pois houve uma tendência de camuflar a política frente-populista com esses nomes.»

    Ao apresentar este texto, obtivemos dois tipos de resposta:

    1 – Que a negativa de constituir esses frentes, conforme apresentado, refere-se somente à unidade com a burguesia (como seria o caso do SWP nos anos 70) e, portanto, não se aplica quando se trata de organizar separadamente as mulheres trabalhadoras.

    2 – Que aí se esboça uma proposta propagandista e sectária, que tem a ver com o fato de que Moreno não está à altura de Lenin no tema da luta contra a opressão da mulher.

    Não concordamos com o primeiro ponto, pois, para nós, a posição de Moreno ao rejeitar essas frentes baseia-se em dois aspectos: 1 – «por envolver diversas classes — sobretudo a burguesia e a pequena burguesia» e 2 – «por terem objetivos que não são os da independência política da classe operária«.

    Quanto ao segundo argumento, não vemos por que seria propagandista e sectário rejeitar a organização separada das mulheres e demais oprimidos e, ao mesmo tempo, lutar vigorosamente para que se organizem junto com seus irmãos de classe, batalhando nos organismos de frente única operária pela maior participação das mulheres, inclusive em seus quadros de direção. Acreditamos que essa última forma torna a luta contra o machismo mais eficaz, que é muito forte nos sindicatos, sobretudo onde a burocracia está no comando, mas não somente neles. Além disso, entendemos que essa orientação, utilizando todos os mecanismos aconselhados pela III Internacional (comissões de mulheres, jornais específicos, encontros de mulheres trabalhadoras), é a melhor para lutar para que o conjunto da classe assuma o combate contra a opressão da mulher. Em contrapartida, não nos parece que organizar as mulheres separadamente seja a melhor forma de enfrentar o machismo nos sindicatos. Isso seria o mesmo que dizer que a melhor forma de enfrentar a burocracia é se organizar separadamente nos sindicatos vermelhos.

    No que diz respeito a Moreno, não acreditamos que ele tenha subestimado a luta contra as opressões. É verdade que, no que tange ao problema da mulher, nossa corrente incorporou essa política somente a partir de 1973, a partir da influência positiva do SWP dos EUA. Mas, a partir desse momento, passou a ser um tema importante que marcou, particularmente, a formação de nossos quadros femininos, cujo número e peso foram uma característica distintiva do nosso partido. Obviamente, Moreno não esteve, em nenhum aspecto, à altura de Lenin, mas, a partir de 1973, independentemente dos erros e correções, consideramos que a orientação que tivemos em relação ao trabalho com as mulheres esteve no marco das resoluções da III Internacional. E quando, no final dos anos 70, Moreno viu-se obrigado a enfrentar seus mestres do SWP, desenvolveu a polêmica com Mary Alice Waters apoiando-se nas elaborações leninistas.

    De qualquer forma, consideramos que o documento programático mais completo são as Teses do terceiro congresso da III Internacional, inquestionavelmente reivindicadas por todos os participantes do seminário, por isso é nelas que devemos concentrar nossa análise.

    O que essas Teses propõem

    As teses foram elaboradas e apresentadas por Clara Zetkin, que em seu texto Meus lembretes de Lenin descreve suas conversas prévias com o dirigente bolchevique sobre o tema.

    Há um conceito que permeia toda a tese: Só no comunismo se alcançará a libertação da mulher, e ao comunismo só se chegará pela luta conjunta de operárias e operários.

    Nela, propõe-se a obrigação de todos os partidos da Internacional de realizar um trabalho sobre o proletariado feminino, tomando consciência da importância da «participação ativa das mulheres em todos os setores da luta do proletariado (inclusive em sua defesa militar), da construção de novas bases sociais, da organização da produção e da existência em conformidade com os princípios comunistas«.

    Chama a atenção a importância dada a esse trabalho, preocupando-se inclusive com como desenvolvê-lo nos países do Oriente. Detalha a necessidade de recorrer a organismos especiais (comissões, seções, etc.), indica que deve ser dada especial importância ao trabalho nas fábricas e nos sindicatos, e que as frentes comunistas dos sindicatos e de outras organizações operárias devem ter organizadores e agitadores dedicados especialmente ao trabalho com as mulheres trabalhadoras. Propõe que sejam realizadas reuniões com as trabalhadoras nos ateliês, bem como em seus bairros. Ou seja, é extremamente detalhista. Mas em nenhum momento convoca as trabalhadoras a organizarem-se separadamente. Ao contrário, define-se de forma enérgica contra isso:

    «Ao mesmo tempo em que se pronuncia veementemente contra qualquer tipo de organização separada de mulheres no seio do partido, dos sindicatos ou de outras associações operárias, o 3º Congresso da Internacional Comunista reconhece a necessidade, para o Partido Comunista, de empregar métodos específicos de trabalho entre as mulheres e estima a utilidade de formar, em todos os partidos comunistas, organismos especiais encarregados desse trabalho.»

    Esses organismos especiais a que se faz referência não têm nada a ver com organizá-las de forma separada, como demonstra a afirmação categórica com que se inicia o parágrafo. Mas, para que não reste nenhuma dúvida sobre isso, na Resolução concernente às formas e aos métodos do trabalho comunista entre as mulheres, apresentada por Alexandra Kollontai, votada no mesmo congresso, estabelece-se:

    «Para que se cumpra esse objetivo, todos os partidos aderentes à III Internacional devem formar, em todos os seus órgãos e instituições, desde os mais baixos até os mais elevados, seções femininas presididas por uma integrante da direção do Partido, cujo objetivo será o trabalho de agitação, de organização e de instrução entre as massas operárias femininas (…) Essas organizações femininas não formam organizações separadas; são apenas órgãos de trabalho (…)»

    Pode-se dizer que essa tese se refere ao partido, o que não está em discussão. É verdade que essa tese e a mais geral (Tese sobre a propaganda entre as mulheres) referem-se centralmente ao partido, a como conquistar mulheres trabalhadoras para o partido, a como se forma um movimento comunista de mulheres (isto é, do partido). Por esse motivo, sempre nos pareceu equivocado o argumento de que o chamado para construir organismos especiais (comissões, seções, etc.) significava que a orientação de organizar separadamente as mulheres trabalhadoras, isto é, construir organismos permanentes de unidade de ação a partir das opressões, estava no marco da III Internacional.

    Porém, embora a Tese da Terceira esteja centrada no partido, ela não ignora os sindicatos. Faz duas definições nesse sentido: 1 – «No período atual, os sindicatos profissionais e de produção devem constituir, para os partidos comunistas, o campo fundamental do trabalho entre as mulheres (…)» 2 – A que já mencionamos: (O congresso da Terceira) «pronuncia-se veementemente contra qualquer tipo de organização separada de mulheres no seio do partido, dos sindicatos ou de outras associações operárias, (…)».

    Esta Tese insiste tanto na importância de manter a unidade entre as operárias e os operários que aconselha que, nas comissões de mulheres, na medida do possível, também participem homens e, de forma semelhante, no nível da formação, estabelece:

    «Para desenvolver o espírito de camaradagem entre operárias e operários, é preferível não criar cursos e escolas especiais para as mulheres comunistas. Em cada escola do partido deve haver, obrigatoriamente, um curso sobre os métodos de trabalho com as mulheres.«

    E tudo isso, o que se propõe para o partido e para o sindicato, está intimamente ligado à definição que Lenin faz em suas conversas com Clara Zetkin: «De nossa concepção ideológica derivam-se as medidas organizativas«. E qual é essa concepção ideológica em relação ao problema da mulher? Que somente o comunismo libertará as mulheres e que só se chegará ao comunismo pela luta unificada de operárias e operários, isto é, o conceito que, como dissemos, permeia toda a tese. Por isso, a proposta organizacional é elaborada em torno da questão de classe e não da opressão. Por isso, Lenin conclui sua frase dizendo: «Nada de organização especial da mulher comunista!«

    Pode-se dizer que aqui Lenin refere-se à mulher comunista e não à trabalhadora. Mas, se não é essa a sua orientação, por que em toda a sua história nem Clara Zetkin, nem Lenin, nem a Terceira jamais convocaram as mulheres trabalhadoras para se organizarem separadamente? E não se pode dizer que não o fizeram por subestimar a luta contra a opressão. Sua política foi propagandista por não fazer esse chamado? A Tese da Terceira preocupa-se em não ficar apenas na propaganda, mas não orienta a criação de organizações de mulheres com esse objetivo, e sim indica:

    «Para serem órgãos de ação e não somente de propaganda oral, as seções femininas devem apoiar-se nos núcleos comunistas das empresas e oficinas e designar, em cada núcleo comunista, um organizador especial do trabalho entre as mulheres da empresa ou oficina

    E, para finalizar, essa orientação de Clara Zetkin, Lenin e da Terceira, ainda é correta na atualidade ou é necessário modificá-la diante de mudanças ocorridas até hoje?

    Se analisarmos o grau de machismo nos sindicatos e no partido na época de Lenin, não podemos dizer que tenha sido menor do que na atualidade. Visto o baixo número de mulheres dirigentes sindicais e políticas naquela época e os entraves, inclusive legais, que em muitos países impediam a participação das mulheres, não há dúvida: o machismo era muito mais acentuado, e a situação da mulher, bem pior. Não por acaso, a tese da Terceira propõe:

    «Admitir as mulheres como membros com os mesmos deveres e direitos que o restante dos membros do partido e de todas as organizações proletárias (sindicatos, cooperativas, conselhos de fábrica, etc.)

    Portanto, não vemos nada que justifique mudar a orientação organizacional da Terceira Internacional. O machismo divide a classe e obstrui a entrada das mulheres trabalhadoras no partido. Essa é uma das razões centrais pelas quais devemos enfrentá-lo de forma sistemática e permanente. Mas não podemos fazê-lo aprofundando essa divisão ao criar organizações permanentes separadas para as mulheres e para o restante dos oprimidos. Não podemos aplicar aqui o critério de «dividir agora para unir depois», que, em determinadas circunstâncias, aplica-se para as nações oprimidas. Ao fazê-lo, cairíamos em uma orientação sexista. A organização separada das mulheres trabalhadoras enfraquece a classe e fragiliza a luta contra a opressão, pois faz com que os demais se desvinculem do problema com o argumento: «são coisas de mulheres, que se encarreguem as companheiras». Ou seja, o oposto do aconselhado pela Terceira Internacional.

  • Leon Trotsky e a questão negra

    Leon Trotsky e a questão negra

    Como já dissemos, não conhecemos nenhum caso em que a III Internacional, na época de Lenin, tenha convocado a organização das operárias de forma separada ou que tenha impulsionado a organização dos oprimidos a partir da opressão.

    Por Alicia Sagra e José Welmowicki

    Mas o Freedom Socialist Party utiliza um exemplo para afirmar que a orientação de convocar organizações autônomas de mulheres, negros, LGBTI, etc., está inserida na tradição do trotsquismo. Trata-se da proposta de Trotsky para impulsionar a construção de uma organização negra nos EUA.

    O direito à autodeterminação

    O problema negro foi algo ao qual Trotsky deu muita atenção. Assim foi na África do Sul, onde propôs a “república negra”. Na mesma época, dedicou-se a estudar o tema nos EUA, onde acompanhava a construção do SWP.

    Chegou à conclusão de que os negros norte-americanos eram uma nação oprimida e que, portanto, o que se propunha era o direito à autodeterminação. Essa definição foi polêmica no SWP, e resultou de várias discussões na década de 1930. No início da década, em uma dessas discussões, Trotsky argumentava:

    «Sobre essa questão, um critério abstrato não é decisivo: o que é mais decisivo é a consciência histórica, seus sentimentos, suas determinações… A tomada de consciência ainda não ocorreu entre os negros, e estes ainda não se unem aos trabalhadores brancos. 99,9% dos trabalhadores norte-americanos são racistas, são os carrascos dos negros, assim como dos chineses… É necessário fazer os negros compreenderem que o estado americano não é o estado deles e que não precisam se tornar os guardiões desse estado. Os operários norte-americanos que dizem: ‘Se os negros querem viver separados, nós os defenderemos contra nossa polícia norte-americana, são os verdadeiros revolucionários. Tenho confiança neles. O argumento de que a palavra de ordem de autodeterminação se afasta do ponto de vista de classe representa uma adaptação à ideologia dos trabalhadores brancos.» 1

    Àqueles a quem se apontava que os negros não reivindicavam esse direito, ele respondia:

    «Se os negros não estão exigindo agora o direito à autodeterminação, é, supostamente, pela mesma razão que os operários brancos ainda não estão propondo a defesa da ditadura do proletariado. Os negros ainda não internalizaram que podem ousar tomar uma porção dos grandes e poderosos Estados Unidos para si.» 2

    A organização negra

    Em abril de 1939, como parte das discussões com a direção do SWP sobre a questão negra, Trotsky explica a importância do tema do ponto de vista de onde e com quem o partido deveria ser construído:

    «As antigas organizações, começando pela AFL, são organizações da aristocracia operária. Nosso partido faz parte do mesmo meio, não da base das massas exploradas, das quais os negros são a camada mais explorada. Que, até o presente, nosso partido não tenha se concentrado no problema negro é um sintoma inquietante. Se a aristocracia operária é a base do oportunismo, uma das fontes de adaptação à sociedade capitalista, então os mais oprimidos e discriminados representam o meio mais dinâmico da classe operária.» 3

    «Devemos dizer aos negros conscientes que o desenvolvimento histórico os chama para se tornarem a vanguarda da classe operária. O que freia as camadas superiores? São os privilégios, o conforto é o que os impede de se tornarem revolucionários. Isso não existe para os negros. O que pode transformar uma certa camada, torná-los mais capazes de ações corajosas e espírito de sacrifício? Isso se concentra nos negros. Se nós, no SWP, não conseguirmos encontrar o caminho para essa camada, então não seremos dignos. A revolução permanente e tudo o mais não passam de mentiras.» 4

    Nessa discussão, como parte de sua insistência para que se abordasse o problema negro e na busca desse caminho, Trotsky, que continuava defendendo o direito à autodeterminação, apoia, além disso, a proposta de CLR James, que defende a construção de uma organização negra. Trotsky afirma que a proposta é inovadora e sem precedentes, e que se trata de uma “tática especial para uma situação especial”.

    Qual era essa situação especial?

    As condições de vida dos negros nos EUA, sobretudo nos estados do Sul: a cultura comum que os une, a segregação no transporte, nas escolas, nos empregos, em muitos sindicatos e na própria classe operária, visto que se considerava que 99% dos trabalhadores brancos eram racistas. Trotsky explica a proposta da seguinte forma:

    «(…) [Os negros] Foram reduzidos à escravidão pelos brancos, foram libertados pelos brancos (a suposta libertação). Foram conduzidos e enganados pelos brancos e não tinham sua própria independência política. Eles precisavam, enquanto negros, de uma atividade preparatória para a política. Em teoria, parece-me absolutamente claro que é preciso criar uma organização especial para responder a uma situação especial (…) Nosso movimento conhece muitas formas de organização, como o partido, o sindicato, a organização educativa, a cooperativa; mas esta é um novo tipo de organização que não coincide com as formas tradicionais. Devemos considerar a questão de todos os pontos de vista para decidir se é ou não acertado e qual deveria ser a forma da nossa participação nessa organização (…) É para despertar as massas negras. Isso não exclui a captação. Creio que o sucesso é muito possível, embora eu não tenha certeza. Mas deve ficar claro que nossos camaradas nessa organização devem ingressar como um grupo.» 5

    Meses depois, em julho de 1939, o II Congresso do SWP votou duas resoluções apresentadas por CLR James, uma propondo o direito de autodeterminação para o povo negro e outra propondo a formação de uma organização negra.

    Qual é o significado dessa orientação proposta por Trotsky?

    Como já dissemos, o Freedom Socialist Party (FSP) dos EUA argumenta que o chamado a essa organização negra é uma prova de que Trotsky orientava a organização dos oprimidos como tal. Não nos parece que seja assim. Ele não propôs, por exemplo, uma organização dos trabalhadores imigrantes chineses — os quais ele mesmo afirma terem sido muito maltratados nos EUA. Tampouco convocou uma organização de mulheres, apesar de não desvalorizar a opressão que estas sofriam.

    Temos a impressão de que o chamado a essa “organização negra” foi, como ele manifestou, uma “tática especial para uma situação especial”, que estava intimamente ligada à sua visão dos negros como uma nacionalidade oprimida e à política central de “autodeterminação” que ele vinha defendendo. Seguindo esse raciocínio, parece-nos que essa organização, que ele não consegue definir bem o que é, mas que afirma ser diferente de tudo o que já existiu, tem mais a ver com a organização do povo negro como nação, isto é, a organização de uma nação que não tinha um território próprio.

    Essa organização nunca se concretizou e não há nada escrito sobre o tema, além daquela conversa com o SWP. Portanto, é difícil precisar mais.

    O que nos parece evidente é que Trotsky teve um grande acerto em sua insistência para que se abordasse o problema negro, e que essa insistência foi muito importante para a inserção do SWP nas lutas contra a opressão racial durante a Segunda Guerra e durante as grandes mobilizações pelos direitos civis na década de 60. Em relação às mobilizações dos anos 30, Cannon, em seu trabalho A Revolução Russa e o movimento negro norte-americano, relata que foi dessa revolução que surgiu o incentivo para que os revolucionários abordassem o problema negro. Que os trotskistas o abordaram, ainda que fossem muito pequenos, mas que o Partido Comunista, que se lançou de forma intensa (apesar de sua condução stalinista), realizou um grande trabalho a favor do movimento negro e obteve excelentes resultados em sua construção.

    Apesar de se tratar de uma espécie de balanço, Cannon não faz nenhuma referência ao chamado à organização negra. Mas se refere ao direito à autodeterminação:

    «A palavra de ordem de “autodeterminação” encontrou pouca ou nenhuma aceitação na comunidade negra. Após o colapso do movimento separatista dirigido por Garvey, 6 sua tendência foi principalmente para a integração racial com igualdade de direitos.» 7

    Seria tema de outro artigo analisar a política aconselhada por Trotsky para o movimento negro dos EUA. O que nos parece, de fato, é que não é correto tomar um aspecto isolado dessa política (o chamado a uma organização negra), que ele define como uma “tática especial para uma situação especial”, como se essa fosse sua orientação geral para os setores oprimidos.

    Notas

    1. – Trotsky, L., «On Black Nationalism and Self-determination», 28 de fevereiro de 1939, reeditado em: Leon Trotsky on Black Nationalism and Self-determination. Pathfinder Press, 1971. ↩︎
    2. Idem ↩︎
    3. Trotsky, L, Plans for the Negro organization, em On Black Nationalism: documents on the Negro struggle ↩︎
    4. Idem. ↩︎
    5. Trotsky, L, A Negro organization, em On Black Nationalism: documents on the Negro struggle ↩︎
    6. Garvey, Marcus Mosiah (1887-1940). Líder negro jamaicano. Figura emblemática do movimento negro. Nos EUA, propunha a saída de todos os negros do país para formar uma república própria na África, visto que a integração era impossível. ↩︎
    7. Cannon, James Patrick. A Revolução Russa e o movimento negro norte-americano, 1959. ↩︎

    Publicado em julho de 2015 na revista Marxismo Vivo n. 6