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  • Como marxistas e reformistas abordaram a questão judia e o sionismo

    Como marxistas e reformistas abordaram a questão judia e o sionismo

    Os revolucionários

    Lenin foi o autor da política para as nacionalidades presente no programa do POSDR 1 e colocada em prática pelo Partido Bolchevique ao assumir o poder após a Revolução de Outubro. Uma das consequências foi a abolição de todas as leis e restrições contra os judeus na Rússia, pois essa política propunha, como tarefa fundamental, a luta contra a opressão aos judeus utilizada pelo império czarista para dividir os trabalhadores e manter sua dominação.

    Por: José Welmowicki

    Assim como Lenin havia formulado, somente com a tomada do poder pelos bolcheviques foi possível acabar com mais de 500 leis discriminatórias contra os judeus e integrar os quadros proletários e intelectuais ao nascente Estado operário russo. Uma expressão disso é que muitos dos principais quadros bolcheviques, como Sverdlov, Trotsky, Kamenev… eram de origem judaica.

    Ao mesmo tempo, Lenin tratou da questão da organização dos proletários judeus no partido a partir da polêmica com o Bund. O Bund era a organização de operários judeus da Rússia, Polônia e Lituânia – todas pertencentes ao império czarista. Fundado em 1897, participou da formação do POSDR. Com sua base de artesãos, semiproletários, operários de pequenas manufaturas, eles defendiam a posição de se manterem como uma organização à parte dentro do Partido e como os únicos representantes dos proletários judeus dentro e fora do partido.

    Lenin, assim como Trotsky, travou uma batalha contra essa posição. Lenin também identificava e combatia as tentativas do sionismo de retirar o proletariado judeu da luta contra o império russo e conduzi-lo a um projeto de emigração para a Palestina. Tentava demonstrar aos militantes do Bund que sua equivocada concepção de organizar separadamente os proletários judeus derivava da mesma falsa ideia de que os judeus da Rússia seriam uma “nação à parte”, o que, em essência, era semelhante ao ideário sionista.

    Em vez de proclamar a guerra contra essa situação de isolamento historicamente surgida (agravada ainda mais pela desunião geral), 2 eles a elevaram a um princípio, amparando-se, para esse propósito, na sofisticação de que a autonomia é inerentemente contraditória e na ideia sionista de uma nação judaica. Somente se eles admitissem franca e resolutamente seu erro e se preparassem para avançar em direção à fusão, o Bund poderia se afastar do falso rumo que tomou. E nós estamos convencidos de que os melhores aderentes das ideias social-democratas dentro do proletariado judeu, mais cedo ou mais tarde, obrigarão o Bund a abandonar o caminho do isolamento para vir à fusão. 3

    Trotsky tinha a mesma orientação que Lenin: no congresso do POSDR de 1903, foi ele quem pessoalmente travou a batalha contra a posição do Bund, de exigir autonomia para representar o proletariado judeu dentro do partido. E sempre combateu, por um lado, o Bund e sua proposta de separar o proletariado judeu do restante, assim como combateu o sionismo como saída para o povo judeu.

    Por outro lado, desde 1903 – passando pela denúncia e luta contra os pogroms organizados pelo czar, como durante o caso do judeu Beilin, acusado de crime ritual na Rússia em 1911 – Trotsky clamava por uma luta pelos direitos básicos dos judeus e defendia que somente a luta revolucionária poderia libertar os judeus da opressão.

    Durante as guerras civis balcânicas (1913), após realizar uma análise do regime da Romênia, chegou à conclusão de que era obrigação do partido do proletariado lutar para integrar em suas fileiras – e, de um ponto de vista político, de todos os elementos “cuja existência e desenvolvimento não se enquadram no regime existente”. Na Romênia havia uma comunidade judaica importante e muito perseguida pelo Estado monárquico. Para ele, a social-democracia era a única defensora dos direitos dos judeus, pois, devido às características de sua burguesia, os partidos existentes – conservadores e liberais – nem sequer garantiriam a luta pela democracia na Romênia.

    Baseava essa análise em sua visão da Revolução Russa e do papel da burguesia russa, incapaz de assumir as tarefas democrático-burguesas.

    A III Internacional, em seus primeiros congressos, manteve a visão dos bolcheviques. Nas “Teses sobre a Questão Nacional e Colonial”, do II Congresso da Internacional Comunista (1920), cujo objetivo central era apoiar a luta pela libertação no mundo colonial e contra o imperialismo, já se fazia referência ao sionismo como um instrumento a serviço da dominação do imperialismo inglês sobre a população árabe local.

    «6° (…) Como exemplo flagrante dos enganos praticados com a classe trabalhadora nos países submetidos pelos esforços combinados do imperialismo dos Aliados e da burguesia de determinada nação, podemos citar o caso dos sionistas na Palestina, país no qual, sob o pretexto de criar um Estado judaico onde os judeus são uma minoria insignificante, o sionismo entregou a população autóctone dos trabalhadores árabes à exploração da Inglaterra. Na conjuntura internacional presente, não há para as nações dependentes e fracas outra salvação senão a Federação das Repúblicas Soviéticas.» 4

    Mais adiante, já com o stalinismo no poder na URSS e com Hitler na Alemanha, Trotsky denunciava a utilização, por parte do stalinismo, do antissemitismo contra a oposição, alertava sobre a possibilidade de um genocídio perpetrado por Hitler e clamava por combater o nazismo com todas as forças. Mas nem mesmo por isso ele mudava de posição em relação à questão do sionismo.

    «O primeiro ponto que posso afirmar sobre a questão judaica é que ela não será resolvida no âmbito do capitalismo. Tampouco será solucionada pelo sionismo. Antes, eu acreditava que os judeus se assimilaríam às culturas e aos povos nos quais viviam – como ocorria na Alemanha e nos Estados Unidos –, e por isso meu prognóstico era lógico. Mas agora isso se mostra impossível de afirmar. A história recente nos deu algumas lições a esse respeito. O destino dos judeus é hoje um problema candente, sobretudo na Alemanha, onde aqueles judeus que haviam esquecido sua origem tiveram oportunidade de relembrá-la. (…) O desenvolvimento cultural exige concentração, pois isso facilita a difusão da cultura entre as massas amplas, por meio de uma imprensa forte, de um teatro, etc. Se isso é o que os judeus desejam, o socialismo não terá o direito de negá-lo. Quero enfatizar que não afirmo que os judeus devam, necessariamente, possuir um território, porque sob o socialismo os judeus, como todos os povos, poderão residir onde quiserem com plena liberdade e segurança. Somente a revolução proletária pode resolver a questão judaica em todas as suas ramificações. Por isso, as massas trabalhadoras judaicas devem trabalhar e lutar lado a lado com os operários de todos os países para alcançar esse fim.» 5

    O stalinismo recua da posição marxista e trai a causa palestina

    Desde a tomada do controle do partido, Stalin impôs ao PCUS uma linha oposta ao leninismo e à III Internacional. Por um lado, capitulava às burguesias nacionais, como na China; por outro, na URSS começava a perseguir as nacionalidades e retomar a opressão nacional de grande escala russa. Isso se refletiu fortemente na questão judaica e na política para o sionismo.

    Na Palestina, o partido local sofreu um duplo desvio: nos anos 20 e 30, uma política semelhante à da China no período em que o Kuomintang era considerado revolucionário por Stalin e Chiang Kai-Shek, incorporado ao Comitê Executivo da III Internacional. No caso palestino, essa relação se dava com o mufti Haj Amin al-Husayni, dirigente da oligarquia local que contribuiria para levar a revolução dos anos 1936-1939 à derrota. Por outro lado, não denunciava o sionismo como um projeto de formar um Estado racista que excluiria os palestinos.

    Na segunda metade dos anos 1940, a partir dos Pactos de Yalta e Potsdam, o partido palestino apoiou a divisão da Palestina em dois Estados.

    Em 1947-1948, o stalinismo, empenhado em acordos com o “imperialismo democrático”, abandonou a visão de Lenin e da III Internacional sobre o sionismo e passou a influenciar o futuro Estado judeu a ser fundado.

    Para justificar o apoio a Israel, chegou a aceitar a versão de que o sionismo seria “progressista” e até “socialista”, em oposição aos “feudalismos” árabes. Segundo relata o dirigente palestino Ghassan Kanafani, em 1946 o jornal oficial Izvestia, da União Soviética, “ousou comparar a luta dos judeus na Palestina com a luta dos bolcheviques antes de 1917”. 6

    Trotsky defendia, desde 1903, os direitos básicos dos judeus e que somente a luta revolucionária os libertaria da opressão. Durante as guerras civis balcânicas (1913), depois de analisar o regime da Romênia, concluiu que era obrigação do partido do proletariado lutar para integrar, em suas fileiras – tanto política quanto praticamente – todos os elementos “cuja existência e desenvolvimento não se enquadram no regime vigente”. Na Romênia, havia uma comunidade judaica importante e severamente perseguida pelo Estado monárquico. Para ele, a social-democracia era a única defensora dos direitos dos judeus, pois os partidos existentes – conservadores e liberais – não garantiriam sequer a luta pela democracia naquele país.

    Esse mesmo stalinismo havia usado, de forma cínica, os preconceitos antissemitas para perseguir a oposição de esquerda dentro da URSS. Como Trotsky citou em sua entrevista de 1937 ao jornal Forward, havia muitos líderes da Oposição de origem judaica; Stalin insinuava que sua suposta “origem estrangeira”, por serem judeus, qualificava-os como inimigos da União Soviética. Após a Segunda Guerra, o stalinismo continuou a usar o preconceito antissemita para perseguir seus adversários. 7

    A política dos partidos comunistas ajudou a angariar apoio para o projeto sionista no movimento operário e entre a intelectualidade mundial. Por outro lado, colocou o partido palestino ao lado dos colonizadores, o que impossibilitou sua recuperação na comunidade palestina. Assim, os stalinistas posicionaram-se de forma conciliadora com os sionistas nas comunidades judaicas, sempre defendendo o “direito de Israel de existir como Estado judaico”. O partido havia conquistado prestígio nessas comunidades judaicas devido à luta contra o nazifascismo – com a derrota de Hitler na Rússia, a ação das tropas russas e das resistências, onde os comunistas tiveram papel decisivo na derrota final.

    A social-democracia patrocina o sionismo ‘socialista’

    A social-democracia sempre apoiou o projeto sionista, e o Partido Trabalhista – que foi o principal partido desde a fundação de Israel até os anos 70 – é e continua afiliado à Internacional Socialista (a organização internacional da social-democracia), ajudando assim a dar um viés “socialista” aos primeiros dirigentes de Israel, responsáveis pela limpeza étnica praticada desde sua fundação. Ben Gurion, dirigente dessa operação e primeiro-ministro de Israel por quinze anos, era um membro destacado da social-democracia. Nesse aspecto, a social-democracia mostrava coerência ao apoiar os empreendimentos coloniais das potências imperialistas na Ásia e na África, durante a Primeira Guerra Mundial, e posteriormente, após a Segunda Guerra, quando, entre outros casos, o governo francês reprimiu a luta da Argélia pela independência, nos anos 50.

    O trotskismo manteve a defesa da posição revolucionária para a Palestina

    Somente a IV Internacional seguiu a tradição revolucionária da III Internacional. A IV Internacional foi a única organização de esquerda efetivamente antisionista na época da Nakba, e em 1948 manteve-se firme contra a divisão.

    Abaixo a partição da Palestina! Por uma Palestina árabe, unida e independente, com plenos direitos de minoria nacional para a comunidade judaica! Abaixo a intervenção imperialista na Palestina! Fora do país todas as tropas estrangeiras, os ‘mediadores’ e ‘observadores’ das Nações Unidas! Pelo direito das massas árabes de dispor de si mesmas! Pela eleição de uma Assembleia Constituinte com sufrágio universal e secreto! Pela revolução agrária!8

    Naquele momento, o grupo trotskista palestino, RCL (Liga Comunista Revolucionária), denunciava:

    O imperialismo norte-americano conquistou um agente direto – a burguesia sionista – que, por esse fato, tornou-se completamente dependente do capital norte-americano e da política dos EUA. Daqui por diante, o imperialismo norte-americano terá uma justificativa para intervir militarmente no Oriente Médio sempre que julgar conveniente… a consequência inevitável dessa guerra será a total dependência do sionismo em relação ao imperialismo norte-americano.9

    A posição dos trotskistas estava em consonância com a posição da Terceira Internacional e já previam o que ocorreria caso o Estado de Israel se consolidasse.

    Nossa corrente, desde a FLT [Fração Leninista Trotskista] dentro do Secretariado Unificado (SU) – com o SWP dos Estados Unidos – dos anos 1969 a 1976, a TB [Tendência Bolchevique] e a FB [Fração Bolchevique dentro do SU até 1979], até chegar à LIT-CI em 1982, é a linha de continuidade com essa posição dos revolucionários, da III Internacional.

    Já em 1973, logo após a Guerra do Yom Kippur, tomou-se uma posição clara por meio de uma Revista da América dedicada ao tema: “Israel, História de uma Colonização”.

    O jornal Avanzada Socialista, do PST argentino, publicou em 1973 um artigo que sintetizava a posição explicada na Revista da América e que marcava uma modificação em um aspecto: antes, e até a Nakba, ao mesmo tempo em que a IV Internacional denunciava e se opunha à divisão, reivindicava-se o respeito à autodeterminação de todos os povos presentes na Palestina. O artigo de 1973 esclarecia um aspecto muito importante: era necessário diferenciar claramente o caráter do nacionalismo do opressor (o sionismo) do nacionalismo do oprimido (os palestinos), pois, nesse caso, o projeto sionista dependia da opressão dos palestinos. Portanto, os judeus não teriam o direito de possuir um Estado próprio, como, por exemplo, os palestinos.

    «A Autodeterminação é um direito dos oprimidos, não dos opressores»

    No Avanzada Socialista nº 79 (10/10/73) dizíamos, a respeito do conflito no Oriente Médio:

    Aos companheiros judeus, pedimos que não caiam na demagogia racista e reacionária do Estado de Israel e do imperialismo, e que apoiem a justa guerra dos árabes contra um dos Estados mais reacionários que a história já conheceu: Israel.

    Aos companheiros árabes, convidamos a apoiar os trabalhadores judeus na luta contra seus patrões e o imperialismo. Apoiamos o direito do povo judeu à autodeterminação e a ter seu próprio Estado no âmbito de uma Federação de Estados Socialistas do Oriente Médio.

    «Essa posição é, em termos aproximados, a que defendíamos no La Verdad 10 durante a “guerra dos seis dias” em 1967. A direção do nosso partido discutiu e revisou essa posição quanto ao direito dos judeus de ter um Estado próprio na Palestina. Entendemos que o mais correto é apoiar a criação, em todo o território – que hoje ocupa o Estado sionista – de um único Estado Palestino, laico, não racista e com amplos direitos democráticos para todos os seus habitantes. Estado laico significa que não estará baseado nem sustentará nenhuma religião “oficial”, nem islâmica nem cristã. Ao mesmo tempo, garantirá a cada um de seus habitantes total liberdade para praticar o culto que desejar ou para não ter religião, se assim preferirem.«

    «Esse Estado Palestino laico eliminará os privilégios, as discriminações e as perseguições raciais que hoje existem no Estado sionista, garantindo a todos os cidadãos – sejam de origem árabe, judaica ou drusa – direitos democráticos iguais: liberdade para falar em sua língua nativa e para publicar sua imprensa e livros, não haver discriminação em empregos públicos ou privados, igualdade salarial, e o direito de eleger e ser eleito para cargos públicos ou sindicais, etc.«

    «Alguns leitores poderão nos apresentar a seguinte objeção: ‘Estamos de acordo que é preciso acabar com Dayán, Golda Meir e companhia. Mas, por que defendemos a ideia de um único Estado palestino? Isso, evidentemente, garantiria a autodeterminação dos árabes, já que eles poderiam ser maioria nesse Estado Palestino. Mas isso não feriria o direito à autodeterminação dos judeus, a quem não devemos colocar na mesma categoria que Dayán e seu grupo?’
    A resposta é muito simples: os marxistas revolucionários defendem o direito à autodeterminação dos oprimidos, não dos opressores.
    «

    «O direito à autodeterminação é um problema concreto; não se resume a uma simples questão aritmética de maioria ou minoria. Defendemos o direito à autodeterminação da minoria nacionalista “católica” no Ulster contra a maioria “protestante” inglesa, porque a primeira é oprimida pela segunda. Pela mesma razão, apoiamos a maioria negra da Rodésia, da África do Sul e das colônias portuguesas, contra a minoria branca que os escraviza de maneira brutal. O que proporíamos, por exemplo, para a África do Sul? A autodeterminação dos negros… e também a dos brancos que lhes negam até mesmo a condição de seres humanos?«

    «O caso de Israel é similar ao da Rodésia, ao da África do Sul ou ao da Argélia antes da revolução. Assim como nesses casos o imperialismo “importou” uma minoria colonizadora, que despojou milhões de palestinos de suas terras e de seus direitos nacionais e humanos. Assim como na África do Sul, onde os negros são confinados como gado em “reservas indígenas”, milhões de palestinos vivem na miséria dos “acampamentos de refugiados” no Líbano, Síria e Jordânia.
    Além disso, são vítimas de massacres perpetrados pelos sionistas ou por seus cúmplices árabes – os governos reacionários do Líbano e da Jordânia. Os palestinos que ficaram em Israel são submetidos a um regime de terror nazista.
    (…)»

    «Então, quem são os opressores e quem são os oprimidos? Quem tem direito à autodeterminação? A questão é simples e concreta. O primeiro e imediato passo é restituir aos oprimidos suas terras e seus direitos nacionais e democráticos. Ao mesmo tempo, é preciso garantir a todos os judeus que desejem viver em paz e fraternidade com os árabes – e que não queiram ser carne de canhão de Dayán e do imperialismo norte-americano – a completa igualdade de direitos democráticos como cidadãos de uma Palestina laica e não racista.» 11

    A LIT manteve esse programa de 1973 e o reafirmou nos anos 2000, na revista Marxismo Vivo nº 3 de 2001 e por meio de uma série de publicações, como o Correio Internacional, frente às permanentes agressões de Israel e à resistência contra suas invasões, como no Líbano, à resistência heroica palestina por meio das Intifadas e ao novo processo que começou em 2011 em toda a região.

    No entanto, isso não ocorreu em muitas correntes que se autodenominam trotskistas. Na verdade, houve, nessas correntes, um retrocesso em relação às posições da Terceira e da Quarta Internacionais, pressionadas na prática pela adaptação da esquerda às posições sionistas.

    O Secretariado Unificado, nos anos 90, passou a aceitar a imposição dos “dois Estados” e a sugerir uma saída que depositava esperanças em uma intervenção da ONU (a mesma que respaldou a divisão e permitiu a imposição da Nakba), com tropas de paz. Seu grupo na Palestina, como mostram os artigos do dirigente Michel Warshawski, passou a defender os “dois Estados” e uma negociação “não sob o ditame israelense-americano”, mas sob os auspícios da ONU, alegando ser a única forma de pôr fim aos massacres dos palestinos e à guerra.

    Por sua vez, as correntes oriundas do tronco do dirigente britânico Ted Grant (TMI e CIO) tratavam tanto judeus quanto palestinos como nacionalidades oprimidas. Com uma posição semelhante à defendida para a Irlanda – onde se diferenciava os trabalhadores ingleses (“protestantes”) dos irlandeses (“católicos”) – passaram a defender um Israel socialista ao lado de um Estado Palestino socialista, aceitando, assim, a divisão de 1947 e abandonando, com isso, a luta pelo direito de retorno dos palestinos expulsos em 1948. As ações de Israel demonstram, a cada dia, que a solução dos dois Estados significa aceitar a continuidade do roubo de terras e do racismo.

    Ainda hoje, após uma série de ativistas de esquerda e de direitos humanos terem passado a defender um único Estado com direitos iguais para todos, esses grupos continuam a defender “dois Estados socialistas com plenos direitos para as minorias que vivem dentro deles”. 12

    Hoje, há 70 anos da fundação de Israel, o programa para a revolução continua a se apoiar nas concepções da III e da IV Internacionais. E hoje isso se materializa na bandeira: “Pelo fim do Estado racista de Israel”, “Por uma nova Intifada que tenha no centro os trabalhadores e lute por um Estado único, laico, democrático e não racista em todo o território da Palestina”.

    Não é uma tarefa fácil, mas pode ser alcançada com a luta dos trabalhadores. O caminho passa pela revolução palestina e por uma luta internacional, para a qual é fundamental a participação dos demais trabalhadores árabes, contando com a ação solidária dos trabalhadores e dos povos em todo o mundo, especialmente nos países imperialistas.


    Notas:

    1. Partido Social-Democrata Russo. ↩︎
    2. Refere-se à desunião do partido. ↩︎
    3. Citado do texto de Lenin, “A posição do Bund no partido”, da seleção de textos On the Jewish Question, organizada por Hyman Lumer, International Publishers, 1974, pp. 50-51. ↩︎
    4. Teses da III Internacional sobre a questão nacional. ↩︎
    5. Extraído da entrevista a Trotsky pelo jornal judeu Forward, 12 de janeiro de 1937. ↩︎
    6. KANAFANI, Ghassan. La revuelta de 1936-1939 en Palestina, p. 23. ↩︎
    7. No pós-guerra, e valendo-se do clima da Guerra Fria, a onda de perseguições da burocracia aos dissidentes formou o pano de fundo quando Stalin lançou uma campanha antissemita em 1948-1953, destinada a eliminar os “cosmopolitas sem raízes”. Houve um episódio em que toda a equipe médica que cuidava do próprio Stalin foi acusada e julgada como traidora. Segundo a versão oficial do regime stalinista, tratava-se de uma conspiração dos médicos judeus, sob as ordens da inteligência estadunidense, com o objetivo de assassinar os principais quadros do Partido Comunista da União Soviética, incluindo o próprio Stalin. Os partidos comunistas do Leste europeu usaram o preconceito antissemita contra dissidentes – como no caso de Slansky na Tchecoslováquia – e contra militantes das revoluções políticas, como na Polônia. ↩︎
    8. Manifesto da IV Internacional. ↩︎
    9. Extraído de “Israel, Historia de una colonización”, Revista de América, 1973. ↩︎
    10. Refere-se ao periódico anterior da corrente morenista, época em que era o órgão do PRT-La Verdad. ↩︎
    11. Avanzada Socialista nº 81, 24 de outubro a 4 de novembro de 1973. ↩︎
    12. Declaração “70 años de la fundación de Israel”, disponível no site do CWI. ↩︎
  • Palestina: Genocídio e guerra de libertação

    Palestina: Genocídio e guerra de libertação

    Quando esse artigo estava sendo escrito (novembro de 2024), completavam-se 420 dias do genocídio promovido pelo Estado nazista de Israel contra a população de Gaza resultando em 44 mil mortos e 104 mil feridos. A estes crimes podemos acrescentar 800 mortos na Cisjordânia, 3.600 no Líbano; 11.700 palestinos presos por Israel na Cisjordânia e muitos milhares mais em Gaza (não existe uma contagem conhecida).

    Por: José Welmowicki e Bernardo Cerdeira

    O genocídio atual (o genocídio histórico contra os palestinos já dura mais de 70 anos) é fruto de uma guerra que começou com o ataque do Hamas a Israel em 7 de Outubro de 2023, mas que Israel aproveitou para desencadear o massacre da população civil em Gaza e uma guerra regional atacando em 7 frentes, algumas com mais intensidade e confrontos diários (Gaza, Líbano e Cisjordânia) outras com bombardeios mais esporádicos de parte a parte (Iêmen, Iraque e Irã) e ataques à Síria por parte de Israel.

    Em artigos anteriores, a LIT havia assinalado alguns elementos centrais da situação da guerra em curso:

    Primeiro que havia “…um relativo fortalecimento de Netanyahu e Israel imediatamente após a ofensiva no Líbano, o assassinato de Nasrallah e a maior parte da liderança do Hezbollah e de Sinwar, o principal líder do Hamás”.

    Ao mesmo tempo, prevenia que: «(…) esse fortalecimento é relativo, porque a resistência palestina e do Hezbollah não foi derrotada. Embora as vitórias israelenses tenham sido o produto de sua superioridade militar, particularmente no ar e no campo da inteligência, Israel também está sofrendo perdas (mais do que afirma)».

    «Além disso, Israel não conseguiu estabilizar sua ocupação terrestre em Gaza e no sul do Líbano. A história já mostrou que as guerras de libertação nacional envolvendo milhões de pessoas podem derrotar as ocupações terrestres até mesmo pelos exércitos mais fortes, como no caso do Vietnã, Iraque, Afeganistão ou mesmo a derrota de Israel pelo Hezbollah no Líbano em 2000 e 2006.«

    Por outro lado, alertava que: “(…) as vitórias israelenses exigem uma política de contrarrevolução permanente, de expansão da Nakba no plano da “Grande Israel”. Externamente, Israel continua a perder a batalha pelos corações e mentes das classes trabalhadoras e da juventude, com uma crescente rejeição de Israel entre uma parte significativa das massas do mundo e tensões entre as massas árabes contra a capitulação dos governos da região ao genocídio sionista”.

    Apenas 15 dias depois desses acontecimentos, confirmou-se o acerto da caracterização de que o fortalecimento do governo de Netanyahu era relativo e que as vitórias de Israel com o assassinato da maior parte da liderança do Hezbollah e de Sinwar do Hamas, embora muito importantes, eram táticas e não superavam as agudas contradições de Israel. Na verdade, a realidade mostrou que essas contradições são mais profundas.

    Recuperação do Hezbollah e guerra regional

    Como em toda guerra, é preciso analisar, em primeiro lugar, a situação no campo de batalha. O ataque de Israel ao Líbano e a tentativa de invadir e ocupar o Sul deste país, marcaram um novo patamar para a guerra, que já pode ser caracterizada como uma guerra regional. Apesar do Hezbollah ter sofrido um duro golpe com o assassinato de seu secretário-geral e da maior parte da sua liderança, os dias seguintes mostraram que isso não destruiu suas capacidades militares.

    Ao contrário, o Hezbollah intensificou sua ação militar nos dois terrenos: bombardeios no norte e no centro de Israel e o confronto terrestre com as divisões de Israel que tentaram ocupar o sul do Líbano, mostrando uma alta capacidade de recuperação.

    Na guerra aérea, os drones e mísseis estão cumprindo um papel fundamental. O Canal 12 da TV israelense destacou que, desde o início de novembro de 2024, foi lançado um número recorde de drones em direção a Israel, em meio a uma guerra em várias frentes, observando que “nas últimas semanas, os lançamentos de drones tornaram-se rotina”.

    O canal relatou que, nos primeiros 13 dias deste mês, houve 40 ataques de drones, uma média de 3,3 ataques por dia, com vários drones em cada ataque totalizando “1.300 drones lançados de todas as frentes” em direção a Israel desde o final de outubro de 2024. O canal ainda observou que 61% dos drones lançados em direção a Israel em novembro tiveram origem no Líbano, com um grande número também vindo do Iêmen e do Iraque.

    O mesmo canal relatou que, desde o início da guerra, mais de 200 drones penetraram com sucesso nas defesas aéreas e atingiram alvos, confirmando que esses drones causaram grandes perdas e danos nos últimos meses. Em outubro, por exemplo, um drone do Hezbollah atingiu o campo de treinamento da Brigada Golani em Binyamina, cidade ao norte de Telaviv, matando 4 soldados e ferindo 61 integrantes da tropa.

    No dia 14/11, o Hezbollah anunciou que, pela primeira vez, lançaram um enxame de drones unidirecionais contra a base de Kirya, na cidade de Tel Aviv, que abriga a sede do Ministério da Segurança de Israel, o Estado-Maior, a Sala de Gerenciamento de Guerra e a autoridade de monitoramento e controle de guerra da Força Aérea.

    Em 16/11 o Hezbollah atacou Haifa, a terceira maior cidade de Israel, com mísseis e drones atingindo várias bases militares, entre as quais o quartel-general do comando naval Shayetet 13 em Atlit, ao sul de Haifa, a Base Naval Stella Maris, as Bases Técnica e Naval de Haifa, a Base Tirat Carmel e, pela primeira vez, a Base de Combustível Nesher. 

    A situação da frente de guerra libanesa mudou. Israel tentou ocupar o Sul do Líbano para criar uma zona de exclusão que impedisse o Hezbollah de lançar mísseis e drones contra objetivos militares e cidades do norte e centro de Israel, que provocaram o deslocamento de 100 mil refugiados internos.

    Para isso enviou 50 mil soldados e suas melhores divisões, entre elas a Brigada Golani, para tentar invadir e ocupar o Sul do Líbano. A tentativa de invasão foi confrontada por uma forte resistência do Hezbollah, gerando combates diretos. Israel foi repelido com fortes perdas e não conseguiu ocupar, limitando-se a incursões sobre alguns vilarejos. A partir daí, recuaram para Israel e até a data em que esse artigo foi escrito não conseguiram mais ocupar e somente bombardear o Líbano.

    Guerra no solo: mortos e feridos no exército de Israel

    Embora frequentemente o comando das Forças armadas de Israel oculte números de baixas como parte de uma política sistemática sob o pretexto de “censura militar”, o exército israelense reconhece a morte de 793 soldados desde o início da guerra.

    Os dados também revelam que 192 oficiais israelenses foram mortos, indicando que um em cada quatro oficiais mortos era um comandante. Entre os mortos estão 67 comandantes de pelotão, 63 comandantes de companhia, 20 vice-comandantes de companhia, 7 vice-comandantes de batalhão, 5 comandantes de batalhão e 4 comandantes de brigada. Do total de fatalidades, 48% eram recrutas, 18% serviram em “serviço permanente” e 34% eram reservistas.

    Em 14/11, o Canal 14 informou que, em 48 horas, 11 oficiais e soldados israelenses foram mortos e mais de 10 ficaram feridos em batalhas em Gaza e no Líbano. A tendência a um aumento de baixas com a nova frente do Sul do Líbano é demonstrada pela decisão das Forças Armadas de Israel de abrir 600 novas sepulturas no cemitério militar.

    Pelos dados fornecidos pela imprensa israelense e por algumas midias árabes, como o Al Mayadeen e o Al Jazeera, as baixas na frente do sul do Líbano já passaram de 98 mortos e mil feridos somente nas primeiras 4 semanas da tentativa de invasão terrestre das forças militares sionistas, atingindo fortemente seu dispositivo militar.

    Tão ou mais importante que o número de baixas fatais é o número de feridos das Forças Armadas de Israel nesse ano de guerra, porque afetam a sua capacidade operacional e o moral da tropa. O Ministério da Saúde de Israel anunciou, em 14 de novembro, que o número total de internações hospitalares desde 10 de outubro de 2023 chegou a 22.047.

    Desse total, o Departamento de Reabilitação do Ministério da Segurança de Israel revelou recentemente que recebeu para reabilitação pelo menos 12.000 soldados desde o início da guerra em outubro de 2023, incluindo aqueles diagnosticados e sofrendo de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT).

    Aproximadamente 43% dos 12.000 soldados sofrem de TEPT, enquanto 14% sofreram ferimentos moderados a graves, incluindo 23 casos de traumatismo craniano grave, 60 casos de amputação e 12 que perderam permanentemente a visão. 

    Apenas durante a semana de 7 a 14 de novembro, o ministério registrou 321 feridos. Entre estes, 21 casos foram registrados no norte de Israel (em 24 horas), e 202 feridos foram registrados desde essa última atualização.

    As internações atingem pouco mais de 5% do IOF composto por aproximadamente 450 mil efetivos – 150 mil efetivos permanentes e 300 mil reservistas, ou seja, 66% dos soldados da ocupação são reservistas sendo que dezenas de milhares são de função de apoio, não de combate.

    Entre mortos e feridos durante esse ano de guerra, a Força de Defesa de Israel perdeu quase duas divisões, enfrentando uma grave escassez de soldados. Segundo o alto comando, o exército necessita urgentemente de 7.000 recrutas

    Há um nítido desgaste e descontentamento entre as fileiras do exército motivados pela duração da guerra (1 ano e 1 mês), a mais longa da existência de Israel; pelas falhas no dispositivo militar israelense e pela extensão dos combates no solo em 3 frentes (Gaza, Líbano e Cisjordânia). Essa realidade obriga os reservistas a se revezarem continuamente para cobrir as lacunas nas distintas frentes. Começou a haver um movimento de reservistas para não retornar ao front (em Israel todos são reservistas até os 50 anos). Tudo isso pressiona fortemente o próprio comando militar para que faça uma pausa na guerra.

    Avi Ashkenazi, correspondente militar do jornal israelense Maariv, destacou uma crise crescente no exército israelense que pode minar os esforços para pressionar o Hezbollah. Ele enfatizou que a escassez de combatentes da reserva enfraqueceria a capacidade do exército israelense de aplicar pressão militar sobre o Hezbollah, potencialmente dificultando quaisquer esforços para resolver a guerra.

    Ashkenazi citou uma conversa com soldados da reserva na Brigada Golani, que falaram sobre as “dificuldades econômicas e familiares” que enfrentaram após mais de um ano de combate, com alguns já tendo servido mais de 250 dias.

    Os soldados expressaram frustração com a forma como os líderes israelenses os tratam:

    Estamos enfrentando ruína financeira, os negócios estão à beira do colapso e os soldados estão sobrecarregados com dificuldades pessoais e profissionais. Nós nos alistamos por um senso de dever, mas parece que o governo demonstra pouca consideração por nossos sacrifícios ou bem-estar”.

    Por outro lado, o jornal israelense Yedioth Ahronoth relatou que os militares estão preocupados com um declínio de 15% a 25% na participação no serviço de reserva.

    A essa situação soma-se o problema dos Haredim, judeus ortodoxos dispensados por lei de servir o Exército e de trabalhar, para dedicar-se ao estudo da Torá, recebendo subvenções permanentes do Estado para isso. Todos os anos, muitos também viajam para Uman, na Ucrânia, para celebrar o Ano Novo Judaico.

    A comunidade Haredim tem um grande peso em Israel, constituindo aproximadamente 13% da população de Israel. Em uma situação grave como esta, uma parcela cada vez maior dos israelenses indigna-se contra esses privilégios dos religiosos. Em junho de 2023, a Suprema Corte de Israel decidiu que os judeus ultraortodoxos devem ser submetidos ao recrutamento como outros cidadãos israelenses, intensificando as tensões.

    Após essa decisão, o regime começou a emitir ordens de recrutamento para homens Haredim com idades entre 18 e 26 anos. Relatórios iniciais indicaram resistência significativa, com muitos indivíduos não respondendo aos comunicados de notificações. Na sexta-feira, o Ministério da Segurança de Israel anunciou planos para o alistamento gradual de 7.000 judeus ultraortodoxos nas forças armadas.

    O problema para o governo é que os partidos que representam os Haredim são fundamentais para sustentar a coalizão governamental. Por isso, Netanyahu está articulando uma lei que permita manter essa isenção.

    Yair Lapid, o líder da oposição israelense, pediu à liderança e às instituições do regime que neguem financiamento público, passaportes e privilégios de viagem aos haredim que se recusem a servir nas forças armadas.

    Em declarações à rádio do Exército de Israel, Lapid exigiu: “O recrutamento dos Haredins é uma questão de valores, e eles devem se alistar. (…) Se não o fizerem, não devem receber verbas, não devem obter passaportes e não devem ser autorizados a viajar para Uman (Ucrânia)”. Mas até agora os haredim têm recusado a se alistar.

    Genocídio e guerra de resistência

    Não há dúvida de que o genocídio perpetrado por Israel em Gaza, a resistência palestina liderada pelo Hamas e a resistência do Hezbollah, estão no centro da luta de classes mundial e tem atraído um movimento internacional de repúdio a Israel e apoio aos palestinos.

    No entanto, entre os que denunciam o genocídio praticado por Israel, existem muitos setores pacifistas, inclusive setores da esquerda, que opinam que o atual conflito que se desenvolve na Palestina é essencialmente um genocídio da população palestina e não uma guerra, porque somente um lado (o de Israel) ataca e a desproporção de forças é brutal.

    Sem dúvida, o genocídio praticado por Israel é um fato. O objetivo de Israel é aterrorizar a população civil, destruir o Hamas e o Hezbollah, avançar na limpeza étnica para se apropriar dos territórios de Gaza e da Cisjordânia e criar uma zona tampão no Sul do Líbano. E claro, a desproporção militar de forças é enorme. Isso também é um fato.

    Mas só dizer que há um genocídio é unilateral. Também há uma forte guerra de resistência, não só do Hamas, mas de toda a Resistência palestina unificada: Jihad islâmica, Al Fatah, FPLP, FDPLP, Movimento Mujahideen Palestino e vários outros grupos menores. Quais são os elementos que demonstram que há um enfrentamento militar?

    Há enfrentamentos diários, documentados em vídeos e divulgados nas redes sociais, entre as forças da Resistência e as tropas israelenses. É uma guerra de guerrilhas onde a Resistência sai dos túneis, arma emboscadas para as tropas de Israel e retorna aos túneis. Só nos primeiros quinze dias de novembro, a Resistência matou 24 soldados israelenses.

    Essa resistência militar é um elemento decisivo para que Israel não tenha conseguido derrotar, e muito menos erradicar, o Hamas e a Resistência depois de mais de um ano de uma ação militar brutal em Gaza, bombardeios constantes, destruição de 70% das residências, invasão, cerco e pressão pela fome, falta de eletricidade, água, esgotamento sanitário, etc. O simples fato de não ter conseguido eliminar a Resistência depois de mais de um ano de guerra é uma derrota para Israel

    Por outro lado, se fosse certo o que Israel apregoa, que o Hamas e a Resistência já perderam 80% ou 90% dos seus efetivos e não podem opor resistência, por que o Hamas sente-se com forças para recusar o cessar-fogo nas condições de Israel, que pretende impor a continuidade da ocupação militar? Evidentemente porque pode sustentar a guerra de guerrilhas por mais um tempo considerável.

    Se fosse certo que quase não há resistência armada, por que Israel não consegue acabar de vez com a guerra?  Há uma combinação de aspectos políticos internacionais e nacionais que abordaremos mais adiante e que impediram, até agora, o triunfo de Israel, mas, do ponto de vista militar, a resistência palestina é um elemento decisivo.

    O Hamas e a Resistência palestina encontram-se em uma posição político-militar defensiva, o que lhes permite manter a luta. Não só os combatentes se protegem nos túneis, mas defendem sua terra e seu povo de um agressor genocida e estão indissociavelmente mesclados com a população de onde recebem apoio e a adesão de novos contingentes de combatentes. Isso é típico das guerras de libertação.

    Uma vitória militar de Israel exigiria que o exército israelense invadisse e ocupasse definitivamente Gaza e simultaneamente destruísse os 700 km de túneis para caçar e eliminar os soldados da Resistência. O problema é que, além do resultado dessa ação implicar em um alto custo militar, certamente provocaria a morte dos aproximadamente 100 reféns em poder do Hamas e mais dezenas ou até centenas de milhares de baixas civis palestinas, o que exacerbaria a indignação da opinião pública internacional e a preocupação crescente de parte da opinião pública interna de Israel com o resgate dos reféns.

    A esse elemento agrega-se o problema do baixíssimo moral de uma tropa de ocupação que só está acostumada a reprimir covarde e cruelmente manifestantes desarmados, crianças e adolescentes, protegidos por intensos bombardeios. Entrar em um túnel para enfrentar combatentes altamente motivados, dispostos a morrer como mártires porque não têm outra opção é algo muito diferente e exigiria um moral que o exército israelense, que já se encontra esgotado depois de um ano de guerra, está longe de ter.

    Outro problema crescente para Netanyahu é a mobilização das famílias dos reféns, furiosas porque ele não aceita nenhuma proposta de cessar-fogo e trocas dos reféns pelos prisioneiros palestinos nos cárceres de Israel.

    Além disso, existe uma situação de guerra também na Cisjordânia. Em resposta às operações militares do exército israelense, cresce a resistência armada, principalmente no norte da região em cidades como Jenin, Tulkarm, Nablus, Tubas e nos campos de refugiados ao redor, mas que também está se estendendo a cidades do centro e do sul como Hebron, Ramallah e Belém.  É uma resistência diferente e superior às Intifadas, porque dessa vez há uma organização de vários grupos de combatentes armados com armas leves e dispositivos explosivos improvisados.

    Todas essas dificuldades de Israel nessa, repetimos, mais longa guerra de sua história, não demoveram o governo Netanyahu de seu plano sinistro: promover uma limpeza étnica no norte de Gaza para permitir uma ocupação militar permanente do Exército; construir uma faixa militarizada com fortificações no corredor de Netzarim que cruza a Faixa de Gaza de leste a oeste dividindo Gaza ao meio e ocupar também o corredor Filadélfia na fronteira do Egito. Tudo isso está em curso, mas sua implementação depende do desfecho da guerra e da luta de classes internacional e nacional.

    A mobilização internacional e a crise de Israel

    Na primeira parte desse artigo nos preocupamos em demonstrar que a ação militar de Israel está longe de ser um passeio que não encontra resistência, ao contrário. Mas agora temos que ver o que está passando em Israel.

    Segundo Carl von Clausewitz, o general prussiano que foi um dos mais importantes teóricos militares, “a guerra é a continuação da política por outros meios”. Concordando com essa frase, não podemos isolar o genocídio em Gaza e a resistência armada dos palestinos do contexto internacional e da situação interna em Israel.

    O massacre praticado por Israel desencadeou mobilizações ao redor de todo o mundo contra o genocídio, em defesa dos palestinos e por um cessar-fogo. Os protestos foram muito além dos países muçulmanos e ganharam importância principalmente nos Estados Unidos e Europa. Israel nunca esteve tão desprestigiado internacionalmente em toda sua história.

    Quando Israel reage ao ataque do Hamas e começa a guerra, o governo Netanyahu estipulou 3 objetivos: trazer de volta os reféns; acabar com as “capacidades militares e de governo” do Hamas e “garantir que Gaza não represente uma ameaça local a Israel” no futuro, ou seja, ocupando ou controlando o território. Mais recentemente, o governo passou a falar em um quarto objetivo que seria garantir o retorno seguro dos habitantes do norte de Israel que tiveram que abandonar a região por causa dos ataques do Hezbollah.

    É importante ressaltar que, ao princípio, o ataque do Hamas provocou uma reação violenta da população e que a maioria absoluta apoiou a guerra, a destruição do Hamas e da resistência palestina e inclusive o genocídio. Os partidos políticos, a burguesia e as forças armadas uniram-se em torno de um governo de unidade nacional com Netanyahu à frente.

    Netanyahu falava em acabar com o Hamas em dias ou, no máximo semanas. É evidente que, se os objetivos de guerra estivessem sendo alcançados, ou seja, se houvesse apenas o genocídio, um passeio militar e houvesse a libertação progressiva de vários reféns, produto da ofensiva militar, a população, os partidos políticos e a burguesia continuariam unidos em torno do governo.

    Mas está acontecendo exatamente o contrário: há uma profunda crise em Israel provocada pelo impasse depois de um ano de guerra e o governo Netanyahu continua questionado por todos os lados. Os assassinatos de Sinwar, de Nasrallah e do alto comando do Hesbollah fortaleceram temporariamente o governo, mas a realidade é que nem um dos objetivos traçados por Netanyahu foi alcançado.

    Os reféns não só não foram resgatados como a morte de 6 reféns provocou mobilizações massivas de centenas de milhares de manifestantes, inclusive uma greve geral, contra o governo de Netanyahu e a favor de um acordo de cessar-fogo que permita a sua libertação. Fato inédito em Israel no meio de uma guerra.

    O Hamas está longe de ser destruído e a ofensiva israelense no sul do Líbano, tentando ocupar uma zona tampão que impeça o lançamento de mísseis e drones pelo Hezbollah, depois de mais de um mês de tentativas, não conseguiu qualquer ganho territorial de importância e o bombardeio a Israel aumentou. Chegou a atingir Telavive e Haifa sem que as defesas de Israel conseguissem evitá-lo.

    Os gastos militares de uma guerra prolongada e que não alcança nenhum dos seus objetivos, a inflação e a crise econômica, somados à política do governo Netanyahu, abriram uma crise econômica e política. Há uma divisão na burguesia israelense (entre os setores burgueses e partidos dos centros econômicos do país e os partidos das colônias da Cisjordânia) e atritos entre o governo e as Forças Armadas, Mossad e Shin Bet.

    Um dos temas centrais de divergência é o acordo de cessar-fogo com o Hamas e uma troca de reféns por prisioneiros ou a continuidade da guerra. Netanyahu quer continuar a guerra e é apoiado pelos partidos dos colonos que pressionam para estender a ofensiva militar à Cisjordânia. Alguns dos seus ministros, como Itamar Ben Gvir, ministro da Segurança Interna, falam em anexar a região, que ele chama de Judeia e Samaria.

    No entanto, há um choque crescente entre o governo Netanyahu e a cúpula militar e de segurança. A demissão do ministro Gallant e as notícias saídas na imprensa sobre uma possível demissão dos chefes do Shin Beth e do Estado Maior as Forças Armadas (IDF) aprofundaram a crise em plena guerra.

    Recentemente, o Fórum Empresarial Israelense, que reúne as 200 empresas líderes do país, pronunciou-se contra a demissão do ministro da Segurança (Ministro da Defesa), Yoav Gallant pouco antes que ela acontecesse: “O Primeiro-Ministro sabe melhor do que ninguém que todos os indicadores econômicos mostram que Israel está caminhando para um abismo econômico e afundando em uma recessão profunda. A última coisa de que Israel precisa agora é da demissão de um ministro [de segurança], o que desestabilizaria o [país].”

    O imperialismo pressiona para um acordo de cessar-fogo e continua acenando com alguma forma de solução de “dois estados”, mas o governo, os partidos dos colonos e inclusive a ampla maioria dos setores da oposição estão radicalmente contra um estado palestino, mesmo que sem nenhuma autonomia. A única política de todos esses setores é manter mais de 5 milhões de palestinos sob uma ditadura e um regime de confinamento em enormes guetos. Isso só é possível com um regime de guerra permanente que, depois de um ano, mostra claramente seu esgotamento. O custo econômico da guerra já atinge US$ 68 bilhões e a continuidade da ação militar de Israel depende do fornecimento militar dos EUA e dos países europeu.

    À medida que o tempo passa e a guerra continua, a situação vai ficando mais difícil de sustentar por Israel, cuja economia e a atividade produtiva tiveram uma redução significativa, gerando, juntamente com a insegurança crescente devido à guerra, uma onda de migrações de profissionais de nível superior. O historiador Ilan Pappé afirmou que o êxodo é de aproximadamente 600 mil israelenses, inclusive de médicos judeus das cidades mais prósperas, como Tel Aviv, para a Europa Ocidental e EUA.

    Por outro lado, Israel realizou uma nova agressão militar ao Irã, com um ataque aéreo a suas bases militares. O ataque foi cuidadosamente planejado com o imperialismo norte-americano, que reforçou a defesa antiaérea israelense e definiu os objetivos limitados dos ataques, mas agora já estamos em uma guerra regional. Esta regionalização da guerra é uma política de Netanyahu, que tem a ver com o projeto da Grande Israel e com o papel de polícia do imperialismo norte-americano, embora haja diferenças táticas com o governo Biden sobre até onde a guerra deve ir.

    A conclusão desse quadro é que há uma polarização: Israel alimenta a guerra e a agressão buscando redefinir o mapa do Oriente Médio, mas com isso aumenta brutalmente as tensões e o país vive a maior crise da sua história. Não só sua imagem está questionada diante do mundo, mas a própria existência do Estado de Israel, um projeto colonialista e racista. E isso questiona e põe em risco o controle dos imperialismos estadunidense e europeu na região. A guerra na Palestina é o centro da luta de classes mundial.

    O ataque do Hamas em 7 de outubro foi um acerto e um marco na luta pela libertação da Palestina

    Se houvesse somente um genocídio e não existisse uma guerra de libertação, teríamos que chegar à conclusão que o ataque do Hamas em 7 de outubro foi uma provocação contra um inimigo poderosíssimo. Essa provocação seria corresponsável pela brutal retaliação de Israel e pelo genocídio, como também potencialmente por uma derrota histórica da causa palestina. Isso é verdade? Pensamos que a conclusão é oposta, mesmo que com todas as suas contradições.

    Antes de mais nada, é preciso ter claro que o Hamas é uma organização nacionalista burguesa com todas as limitações do seu caráter de classe. No entanto, no momento atual é a organização que as massas palestinas e principalmente sua vanguarda se apropriam para organizar sua luta pela libertação nacional.

    Do ponto de vista da luta nacional pela libertação da Palestina, o ataque do Hamas foi um acerto político e militar. Conseguiu capturar 250 reféns. Colocou a luta do povo palestino de novo na ordem do dia. Unificou as forças da Resistência. Mostrou o verdadeiro caráter fascista e genocida do Estado de Israel. Mobilizou massas do mundo inteiro em favor dos palestinos. Obrigou Israel a travar a mais longa e custosa guerra da sua história, colocou em crise o Estado sionista e questionou a sua viabilidade.

    É possível a derrota militar/política de Israel

    A resolução de uma guerra não se dá somente pelos números de baixas e a destruição do adversário. Se fosse assim, o resultado já estaria definido a favor de Israel ou do imperialismo antes da guerra começar. No caso de guerras de libertação anticoloniais, as vitórias e derrotas se medem pela capacidade do invasor ou potência de impor uma ordem estável aos colonizados e que eles deixem de lutar para que o exército colonial não tenha que manter uma guerra permanente com perdas humanas que ameacem sua coesão interna.

    No caso do Vietnam, mais de um milhão de vietnamitas perderam a vida e os EUA “apenas” cerca de 50 mil soldados além de dezenas de milhares de lesionados e portadores de transtornos mentais. No entanto, quem saiu derrotado foram os EUA. O papel dos grandes movimentos contra a guerra no interior dos EUA foi decisivo para essa derrota.

    No caso atual, um dos maiores problemas de Israel é o movimento mundial contra o extermínio dos palestinos. Em especial a perda de apoio a Israel da juventude da maior colônia judaica, a norte-americana. As organizações Jewish Voices for Peace (Vozes Judaicas pela Paz), e If Not Now (Se não agora…) agrupam mais de 700 mil seguidores em suas páginas e dezenas de milhares de ativistas.

    Israel nunca esteve tão desprestigiado internacionalmente em toda sua história. O BDS (nome da campanha internacional de boicote a investimentos e por sanções ao estado sionista, nos moldes da que foi realizada em relação ao apartheid sul-africano nas décadas de 80 e 90 do século passado) está tendo uma repercussão cada vez maior. Empresas importantes, como a INTEL, suspenderam investimentos econômicos em Israel. 4.500 escritores como Arundhati Roy, Sally Rooney e outros decidiram fazer um boicote à edição de suas obras por editoras israelenses que apoiem o genocídio.

    Na guerra atual, assim como na guerra do Vietnam, a superioridade de armamentos de Israel é avassaladora no que diz respeito à força aérea, naval, mísseis e carros blindados. E o apoio do imperialismo estadunidense permite um suprimento de armamentos quase inesgotável. Por isso, a derrota de Israel é muito difícil, mas como a derrota dos Estados Unidos, o chefe do imperialismo no mundo, demonstrou no Vietnam, isso não é impossível.

    Devido a essa luta desigual, não podemos descartar que o Hezbollah negocie um acordo de cessar-fogo por separado, abandonando a resistência palestina. No momento em que escrevemos esse artigo, o imperialismo está pressionando a direção do Hezbollah nesse sentido e, aparentemente, o governo de Israel aceitaria negociar uma proposta desse tipo. Apesar da combatividade demonstrada até agora pelo Hezbollah, não é possível confiar em uma direção nacional burguesa que tem interesses próprios como classe proprietária no Líbano e na região.

    O mesmo se aplica ao Irâ. Apesar do Irã ter evitado um confronto generalizado com Israel, sem dúvida por temor à reação do imperialismo estadunidense, é inegável que seu governo tem fornecido todo tipo de armamento ao Hezbollah, aos Huthis e anteriormente ao Hamas. Mas, não é possível ignorar que a burguesia iraniana que sustenta o regime dos aiatolás tem objetivos nacionais próprios como potência regional e pode a qualquer momento subordinar a causa palestina a seus próprios interesses, negociando ou pressionando para um acordo que obrigue os palestinos a aceitar concessões maiores ao imperialismo, sob pena de que fiquem mais isolados.

    No entanto, a proposta que está na mesa de negociação, de um cessar-fogo de 60 dias entre Israel e o Hezbollah, com o estabelecimento de uma força multinacional no Sul do Líbano, está longe de resolver a situação. Todas as contradições levantadas acima continuarão colocadas enquanto a questão palestina estiver no centro do problema. E a crise de Israel irá seguir.

    A situação não está definida, mas reafirmamos que a derrota do Estado sionista é possível e que o problema é político-militar e depende não só da sua superioridade militar, mas da resistência palestina e libanesa, da situação interna em Israel e da luta de classes internacional.

    Revolução socialista e guerra nacional de libertação

    Nós, como socialistas revolucionários, temos diferenças fundamentais com o Hamas. Como dissemos, é um partido nacionalista, islâmico, que defende a concepção de um estado capitalista. Nós, ao contrário, defendemos que a única solução definitiva para a humanidade, e inclusive para o problema da libertação nacional do jugo do imperialismo e da autodeterminação dos povos é o socialismo internacional.

     Isso não significa que ignoramos o problema da libertação nacional da Palestina.  Ao contrário. A luta por uma Palestina livre, laica, democrática e não-racista do rio ao mar é uma demanda democrática cujo significado vai além da aspiração dos 11 milhões de palestinos a retomar o território do qual foram expulsos e constituir uma nação soberana. Também se transformou no símbolo da luta dos povos árabes contra a opressão do imperialismo estadunidense e europeu cujo agente armado é o Estado de Israel.

    A luta pela libertação da Palestina só pode ser vitoriosa se houver clareza que, para conquistar esse objetivo, é preciso destruir o Estado colonialista de Israel, que se sustenta em bases racistas e de ameaças e guerras permanentes sobre os povos do Oriente Médio. Só o fim do Estado de Israel pode dar uma saída permanente para o povo palestino e para os povos da região.

    O que ameaça hoje a Resistência não é só Israel, mas, principalmente, a política de dois Estados à qual o Hamas aderiu recentemente, e que é promovida tanto pelas burguesias árabes pró-EUA e Israel (Arábia Saudita, Egito, Jordânia) quanto as que têm conflitos com Israel (Irã e o chamado Eixo de Resistência).

    Os Acordos de Oslo já mostraram que essa falsa solução não garante nem o território nem a soberania de um Estado palestino e, muito menos, o retorno dos refugiados. Só serviu para que o Estado de Israel e o imperialismo cooptassem uma parte das organizações palestinas, principalmente o Fatah, que controla a Autoridade Nacional Palestina (ANP).

    Por outro lado, a posição dos pacifistas e dos reformistas não só nega a efetividade e até a existência da luta de Resistência palestina e libanesa, mas, na prática, coloca-se contra a ação militar da resistência palestina e dos movimentos árabes.

    No entanto, a realidade, evidenciada pela história de mais de 100 anos do projeto imperialista e colonialista que culminou na ocupação sionista da Palestina, assim como pela longa luta da resistência palestina, mostrou que a luta pela libertação da Palestina só pode ser alcançada pela via militar e revolucionária.

    E hoje, o caminho que leva à libertação da Palestina e, no desenvolvimento da luta de classes revolucionária e a uma dinâmica de revolução permanente em direção à revolução socialista, passa pela resistência armada que confronta o Estado de Israel. Por isso, estamos incondicionalmente ao lado da resistência militar palestina e libanesa, independentemente das divergências e críticas que tenhamos às suas direções nacionalistas como o Hamas, Hezbollah e outras.

    Defendemos que essa resistência armada se estenda internacionalmente a outros países. As ações das organizações de outros países contra Israel são fundamentais para derrotar o estado de Israel. Um exemplo são as ações dos Huthis do Iêmen, com drones e mísseis que têm golpeado o comércio no Mar Vermelho, o que aumenta o isolamento econômico de Israel. Também houve ações de grupos presentes no Iraque e na Síria. Já houve drones que caíram em Eilat no extremo sul de Israel o que golpeia o moral do exército.

    Para isso é preciso denunciar e confrontar os governos árabes que colaboram com o imperialismo e Israel como a Arábia Saudita, a Jordânia, os Emirados, Marrocos e o Egito. Esses governos limitam-se a fazer protestos verbais contra o genocídio, mas mantêm relações comerciais com o estado genocida. A monarquia marroquina permitiu a passagem por seus portos de um navio carregado de armas e munições para Israel, sob protestos dos apoiadores da causa palestina no porto de Tânger. É a mesma posição do governo jordaniano, mas contra o sentimento do seu povo que apoia massivamente a resistência palestina. Na recente eleição para o parlamento, a Irmandade Muçulmana que defendia a ruptura dos acordos com Israel, chegou a quase 30% dos votos.

    É preciso chamar as massas desses países a exigir de seus governos a ruptura imediata de relações diplomáticas, econômicas e militares com Israel, apoio militar à resistência palestina e que permitam que os apoiadores da luta contra o sionismo possam se somar à resistência palestina e libanesa.

    Ao mesmo tempo em que é necessário essa unidade militar com a resistência palestina e libanesa, inclusive com suas direções nacionalistas, é fundamental que as novas camadas de combatentes da Resistência palestina e de outros países se atentem para a necessidade da classe trabalhadora se organizar de forma independente das direções nacionalistas e religiosas, buscando construir o seu próprio partido socialista e revolucionário que lute por transformar a guerra de libertação nacional por uma Palestina Livre do Rio ao Mar em uma Revolução Socialista em toda a região.

    Publicado em novembro de 2024 no site da LIT-QI <https://litci.org/pt/2024/11/27/palestina-genocidio-e-guerra-de-libertacao/?utm_source=copylink&utm_medium=browser>

  • Reforma ou revolução: o embate que decidiu a  vitória em outubro de 1917.

    Reforma ou revolução: o embate que decidiu a vitória em outubro de 1917.

    Na formação do movimento operário, várias teorias foram sendo superadas, como o utopismo dos primeiros socialistas, que ainda continham a visão burguesa em seu seio, pois correspondia à sua “infância”; um fenômeno que vem desde a origem do movimento operário no século XIX.

    Por: José Welmowicki

    Marx e Engels citaram essas ideias na parte final do Manifesto Comunista e, por isso, combateram-nas ideologicamente de forma permanente. Naquele momento, o utopismo e o reformismo eram associados às correntes que ainda preservavam as ideias dominantes anteriores. Em sua trajetória, estreitamente vinculada à organização dos partidos operários na Europa e à Associação Internacional dos Trabalhadores, Marx e Engels tiveram que travar duras polêmicas com os setores sindicalistas que ainda refletiam a imaturidade da classe, ao mesmo tempo em que sofriam as pressões das classes dominantes. Com a conformação da Primeira Internacional, surgiram diversas controvérsias para superar os erros desses setores.

    Como exemplo dessas polêmicas, podemos citar a defesa da Comuna de Paris em 1871 e a conclusão da necessidade de destruição do Estado burguês, ou ainda a discussão do Programa de Gotha (1875), congresso que formou o SPD alemão. Contudo, até aquele momento, a questão do reformismo ainda não havia assumido a importância e as raízes que viria a tomar mais adiante, como um tremendo obstáculo à revolução proletária – determinando derrotas profundas, como a bancarrota da Segunda Internacional e da Terceira Internacional.

    No desenvolvimento da Revolução de Outubro, o papel do reformismo foi muito grande e a revolução só pôde triunfar devido à existência do Partido Bolchevique, que se opôs e derrotou os reformistas na disputa pelo apoio da classe operária e do povo, possibilitando a vitória da revolução socialista.


    I – O reformismo tornou-se predominante e levou à bancarrota da II Internacional

    A primeira vez que um socialista de relevância participou de um governo burguês (o deputado Millerand, na França, em 1899) pôs à prova o programa e a prática dos socialistas, causando uma grave crise.

    Rosa Luxemburgo denunciava o significado dessa participação: relegar os socialistas franceses a serem os sustentadores do governo burguês do Partido Radical, incapazes até mesmo de criticar abertamente ou propor medidas mais radicais no governo em que participavam, por medo de que este renunciasse – justificando que, se o fizessem, outro governo burguês ainda mais reacionário assumiria. Esse episódio gerou repúdio na época, tanto na social-democracia quanto na II Internacional.

    Entretanto, o episódio francês expressava na prática posições já firmemente presentes na direção da social-democracia alemã e da II Internacional, cujo centro dirigente era o SPD alemão. As bases materiais para essa concepção reformista situavam-se no período de crescimento do capitalismo na segunda metade do século XIX, após a Comuna de Paris.

    Esse período possibilitou conquistas importantes ao proletariado, como aumentos salariais, redução da jornada de trabalho, melhores condições laborais e maior liberdade organizacional na Europa Ocidental. Sindicatos e partidos social-democratas cresceram e se fortaleceram, gerando uma perspectiva falsa de uma evolução gradual no capitalismo, com cada vez mais conquistas e poder político. A conquista de direitos políticos – como o do sufrágio – possibilitou que, na Alemanha das últimas décadas do século XIX, o Partido Social-Democrata conquistasse cada vez mais parlamentares. Fruto dessa conquista e da pressão direta que o parlamento e os sindicatos exerciam sobre o partido, uma camada de quadros foi se adaptando ao funcionamento legal e à rotina parlamentar, formando uma burocracia partidária, assim como se consolidava uma burocracia própria nas organizações sindicais.

    Bernstein foi o dirigente que forneceu a formulação teórica para toda a prática da social-democracia alemã de adaptação ao sistema parlamentarista, à rotina de aprimoramento sindical e à construção de uma burocracia na Alemanha. Assim, criou-se a base para a concepção reformista de que seria possível alcançar o socialismo por meio de reformas, sem a necessidade de rupturas ou da destruição do Estado burguês – ou seja, sem a revolução operária. A tese de Bernstein era que a democracia significava a “ausência de um governo de classe”, isto é, um Estado em que nenhuma classe governaria, e, portanto, prevaleceria uma “vontade popular” abstrata. A conquista dessa almejada democracia ocorreria por meio de mudanças graduais, reformas paulatinas que conduzissem a avanços rumo ao socialismo, sem rupturas nem a necessidade de tomada do poder por meio de uma revolução social. O socialismo seria uma sociedade a ser alcançada via mudanças graduais e pela democratização progressiva do Estado. Bernstein calificava como “blanquismo” qualquer tentativa de tomada do poder pela classe operária, rotulando-a de “terrorismo operário”.

    Rosa Luxemburgo respondeu em seu clássico Reforma ou Revolução:

    Bernstein condena os métodos de conquista do poder político, censurando-os por retomar as teorias blanquistas da violência; ele comete a infelicidade de equiparar o blanquismo a um erro profundamente prejudicial, erro que, desde que existam sociedades de classes, e a luta de classes seja o motor essencial da história, a conquista do poder político sempre foi o objetivo de todas as classes ascendentes, constituindo o ponto de partida e o ponto final de todo o período histórico.

    A Primeira Guerra expôs nitidamente o grau de adaptação da II Internacional e dos partidos social-democratas às burguesias, seus Estados e regimes. Uma vez declarada a guerra, os grandes partidos socialistas europeus decidiram apoiar suas respectivas burguesias numa guerra mundial, o que significava empurrar a classe operária de um país para lutar contra a de outro, matando-se entre si. Isso levou à bancarrota da II Internacional. Apenas uma pequena minoria de dirigentes – como Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, na Alemanha, e os bolcheviques russos – manteve uma posição de princípio, convocando a combater seus respectivos governos, a acabar com a guerra e a transformá-la em guerra civil.

    Todavia, essa catástrofe que atingiu a II Internacional deixou claro que a adaptação ao Estado burguês havia chegado a um ponto sem retorno, e agora as teorias de Bernstein passaram a ser plenamente adotadas, como ocorreu no partido alemão, em um congresso de 1921.

    Os partidos social-democratas passaram a se tornar obstáculos à revolução socialista e demonstraram, durante a onda revolucionária posterior à Primeira Guerra Mundial, seu caráter abertamente contrarrevolucionário. Ao assumirem o governo em alguns países da Europa, como na Alemanha, passaram de um discurso que propunha lutar por reformas para conter a revolução a uma defesa aberta do Estado burguês frente à revolução operária. Quando a Revolução Alemã explodiu em 1918, e a monarquia do Kaiser foi derrubada, a social-democracia assumiu o governo e defendeu o Estado burguês com os instrumentos da repressão. Ficou demonstrado na prática que o discurso das reformas pacíficas e da democracia não conduzia ao socialismo. Passou-se a reprimir os revolucionários dissidentes da Liga Espartaquista – que, posteriormente, formaria o Partido Comunista da Alemanha. Os grandes revolucionários Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht foram assassinados pela polícia do governo social-democrata de Ebert.


    III – Os mencheviques e o caráter da Revolução Russa

    Desde sua fundação, havia, no interior da social-democracia russa, uma polêmica sobre a natureza da revolução, que se aprofundou com a Revolução de 1905. Os mencheviques defendiam que, devido ao atraso da sociedade russa, aos seus resquícios feudais, ao fato de que a imensa maioria da população era camponesa e de que o regime era uma monarquia absolutista, a Revolução Russa seria de caráter democrático-burguês, tendo à sua frente a burguesia nacional, apoiada pelo proletariado e pelo campesinato em sua luta conjunta contra a monarquia czarista. Somente após um longo desenvolvimento do novo regime e das forças produtivas sob o capitalismo, a revolução socialista proletária seria proposta. Nesse período ou etapa de desenvolvimento democrático, caberia ao proletariado e à social-democracia russa assumir o papel de ala esquerda, lutando para aprofundar as reformas e preparando um novo momento em que a tomada do poder estaria em pauta. Ou seja, qualquer tentativa de revolução socialista seria precipitada, um salto sem passar pelas etapas necessárias da luta. Essa concepção equivocada enfraqueceu os mencheviques para a Revolução Russa e, especialmente quando a Revolução de Fevereiro triunfou, tornou-se um poderoso obstáculo ao seu desenvolvimento.


    IV – O papel dos mencheviques durante a Revolução Russa, de fevereiro a outubro

    A queda da monarquia em fevereiro colocou os socialistas diante da disjuntiva de apoiar ou não o governo provisório. Os mencheviques, coerentes com sua visão de que a Revolução Russa deveria inicialmente ter uma etapa democrática-burguês, apoiaram o primeiro governo provisório após a queda do czar.

    Considerando que, por si só, a Revolução de Fevereiro era essencialmente burguesa – havia chegado tarde demais e não possuía, por si, nenhum elemento de estabilidade – estando dilacerada por contradições que se manifestaram desde o início na dualidade de poderes, ela deveria se transformar, ou como uma introdução direta à revolução proletária (o que de fato ocorreu) ou lançar a Rússia, sob um regime de oligarquia burguesa, a um Estado semicolonial.

    Por conseguinte, poderia ser considerado o período subsequente à Revolução de Fevereiro, ora como de consolidação, de desenvolvimento ou de conclusão da revolução democrática, ora como uma etapa preparatória para a revolução proletária (…)” (Trotsky, Lições de Outubro).

    Os mencheviques adotaram a primeira hipótese. Sua antiga tese de que a Revolução Russa seria democrática-burguês parecia estar corroborada pela realidade: segundo sua visão, cabia à burguesia dirigir o país durante toda uma etapa histórica. Seguindo essa lógica, os mencheviques continuaram apoiando – ainda que de maneira crítica – os sucessivos governos de coalizão, desde aquele liderado pelo príncipe Lvov, com figuras destacadas da burguesia, como Miliukov, dirigente do partido cadete (liberal).

    “(…) Durante anos, os líderes mencheviques afirmaram que a revolução futura seria burguesa, que o governo de uma revolução burguesa apenas poderia realizar as aspirações da burguesia, e que a social-democracia não poderia assumir as tarefas da democracia burguesa, devendo, ‘sem deixar de impulsionar a burguesia para a esquerda’, limitar-se a um papel de oposição.” (Trotsky, op. cit.)

    Porém, a realidade forçou os mencheviques a aprofundar as consequências de sua orientação estratégica: diante da velocidade dos acontecimentos – típica de um processo revolucionário em andamento – a própria Revolução de Fevereiro acabou por levar os mencheviques a integrar o governo. Mais uma vez, os socialistas não apenas priorizavam a defesa das instituições democráticas, como chegaram a adotar a mesma posição de Millerand, na França de 1899, aceitando fazer parte do governo e comprometendo-se com a política (burguesa) do governo de coalizão. Como escreveu Trotsky: “De sua posição original, preservaram apenas a tese de que o proletariado não deveria conquistar o poder.

    Posteriormente, os mencheviques passaram a assumir diretamente o governo de coalizão e foram fundamentais para compor o governo Kerensky, mantendo a linha de manter a Rússia na Primeira Guerra Mundial, sem alterar a propriedade burguesa ou o latifúndio secular. Desempenharam um papel essencial na sustentação desse governo, pois, até então, juntamente com os social-revolucionários, constituíam a maioria na direção dos sovietes de operários, soldados e camponeses. Ao ver ministros desses dois partidos no governo – como Tserelli ou Chernov –, e contando com o apoio do soviete de Petrogrado por meio de dirigentes como Chkeidze e Dan, as massas de operários, camponeses e soldados passaram a acreditar que aquele era “seu governo”. Diante dessa realidade, tornou-se necessária uma alternativa revolucionária com estratégia clara, papel que coube aos bolcheviques.


    V – A Revolução de Outubro foi contra o governo liderado pelos reformistas

    Diferentemente do caso francês de Millerand, os reformistas enfrentavam uma revolução proletária em curso. A questão da posição dos revolucionários em relação ao governo Kerensky definiu a trajetória da Revolução Russa e a possibilidade de tomada do poder pelos sovietes em outubro.

    Essa questão não se restringe apenas aos mencheviques e aos social-revolucionários. Dentro do Partido Bolchevique, a maioria do Comitê Central, até a chegada de Lenin em abril, seguia uma orientação semelhante à dos mencheviques. Se não houvesse uma dura batalha de Lenin contra a ala hesitante de Stalin e Kamenev, a revolução poderia ter se perdido. E mesmo após abril, e com a mudança de orientação do partido para preparar a tomada do poder pelo proletariado por meio dos sovietes, houve uma resistência permanente a essa nova orientação por parte de importantes dirigentes bolcheviques.

    Quando a contrarrevolução surgiu, por meio do golpe de Kornilov em agosto, e foi derrotada pela ação dos trabalhadores e camponeses, e quando o Partido Bolchevique assumiu a liderança dessa luta vitoriosa – convocando à unidade e revitalizando os sovietes, de modo que os bolcheviques passaram a conquistar a maioria de alguns dos principais sovietes, a começar pelo de Petrogrado e logo depois pelo de Moscou – aproximou-se o momento oportuno para a insurreição operária que derrubaria o governo e instituiria o poder dos sovietes.

    Kerensky tentou utilizar a derrota de Kornilov para se reacomodar e convocou uma Conferência Democrática, de 14 a 22 de setembro, que originou um “pré-Parlamento”, marcando uma nova etapa no desenvolvimento das divergências. Abriu-se então um novo momento de hesitação. Os mencheviques ligados a Kerensky queriam obrigar os bolcheviques a se submeterem a esse novo órgão, aceitando entregar o poder crescente e o protagonismo adquirido pelos sovietes. A direção bolchevique convocou o boicote ao “pré-Parlamento” e exigiu que o poder fosse transferido aos sovietes. A ala conciliadora, liderada por Zinoviev e Kamenev, defendeu a participação em ambos os fóruns e o estreitamento dos laços com os mencheviques.

    Trotsky explicava:

    A conduta dos partidos conciliadores na Conferência Democrática foi de uma lamentável baixaria. Contudo, nossa proposta de abandonar ostensivamente a conferência – correndo o risco de ficarmos presos nela – colidia com uma resistência categórica dos elementos de direita, que ainda detinham grande influência na direção do nosso Partido. Essas coalizões, nesse caso, serviram de porta de entrada para a luta sobre a questão do boicote ao pré-Parlamento. Em 24 de setembro – isto é, após a Conferência Democrática –, Lenin escrevia: ‘Os bolcheviques devem se retirar como forma de protesto, para não cair na armadilha pela qual a Conferência tenta desviar a atenção popular das questões sérias’.” (tradução nossa)

    Contudo, apesar das hesitações dentro do próprio Partido Bolchevique, prevaleceu a orientação de Lenin, e assim se preparou a insurreição operária, vitoriosa em outubro. Isso significou uma ruptura frontal tanto com os mencheviques quanto com os social-revolucionários, que defendiam permanecer nos marcos da democracia burguesa – o que, por sua vez, ocasionou uma divisão entre os social-revolucionários, na qual uma ala de esquerda aderiu à proposta dos bolcheviques, formando a maioria dos sovietes.

    No congresso dos sovietes, em outubro, foi declarado a transferência do poder para os órgãos soviéticos, expulsando Kerensky e seu governo. Contudo, a insurreição foi planejada para coincidir com a convocação do Congresso. Essa preparação foi realizada pelo Partido Bolchevique, que já liderava os principais sovietes: os de Petrogrado e Moscou.

    A Revolução de Outubro só foi possível por meio da derrota do reformismo, derrubando o governo de colaboração de classes liderado por Kerensky. Esse destino ficou selado naquele mesmo congresso dos sovietes, quando, diante do repúdio à resolução de tomada do poder apresentada por Martov e da retirada da delegação menchevique, Trotsky dirigiu-se a eles afirmando que haviam escolhido seu destino, saindo de cena e indo para “o lixo da história”.


    VI – O reformismo após a Revolução de Outubro

    O reformismo teve um papel desastroso entre as décadas de 1920 e 1940. Sua política na Alemanha, de 1919 a 1933; na França e na Espanha, de 1931 a 1936; juntamente com o novo aparato surgido com a degeneração da URSS – ou seja, os partidos comunistas sob a direção do estalinismo – foi decisiva para infligir derrotas históricas ao proletariado mundial, para o isolamento da Revolução Russa, para o ascenso do nazismo e do fascismo, e para o deflagramento da Segunda Guerra Mundial, de 1939 a 1945.

    Com a derrota do nazifascismo e o fim da Segunda Guerra, a resistência assumia o controle dos países, mas a social-democracia e os partidos comunistas novamente traíram e desviaram a revolução socialista na França e na Itália. Uma vez estabilizada a situação, iniciou-se um período de crescimento econômico, no qual os reformistas recuperaram algum prestígio e conseguiram capitalizar um período denominado Estado de Bem-Estar, em que, devido à destruição causada pela guerra e em meio à revolução operária, a burguesia foi forçada a permitir melhorias significativas nas condições de trabalho, nos direitos sociais, etc. A social-democracia e os partidos comunistas apresentaram-se como defensores dos direitos sociais, reestruturaram-se na Europa Ocidental e integraram os governos na Alemanha, França, entre outros países.
    Frente aos processos que derrubaram regimes ditatoriais, novamente serviram como desvios para a revolução operária na Grécia – com o Pasok de Papandreu; em Portugal – com o PSP de Mário Soares após a Revolução dos Cravos; e até mesmo na Espanha pós-franquista, com Felipe González, que pactuou a transição com a monarquia dos Bourbons.

    Já na década de 1970, iniciou-se uma nova crise capitalista e, a partir daí, com a aplicação das políticas neoliberais de Thatcher e Reagan nos anos 1980, a social-democracia passou a abandonar cada vez mais as bandeiras das reformas parciais do Estado de Bem-Estar, adotando os mesmos planos neoliberais de seus adversários políticos de direita, o que resultou em uma nova grave crise nos partidos que passaram a ser chamados – com razão – de “socio-liberais”, pois não se diferenciam de seus adversários conservadores, excetuando-se apenas elementos retóricos. O mesmo fenômeno ocorreu com os antigos partidos comunistas após a restauração promovida na ex-URSS e em toda a Europa Oriental, os quais foram destruídos pelas revoluções que derrubaram seus regimes políticos no final dos anos 1980 e início dos anos 1990.

    A “Terceira Via” de Tony Blair foi uma das expressões mais claras desse processo: o abandono da defesa do Estado de bem-estar e a aproximação à política dos “planos de austeridade” e dos cortes nos direitos dos trabalhadores. Os governos trabalhista britânico, do Partido Socialista francês e do PSOE espanhol foram fundamentais para o retrocesso nas conquistas operárias, para a implementação dos planos neoliberais e para a construção do Tratado de Maastricht e da União Europeia.

    No entanto, toda essa traição resultou em uma queda violenta no prestígio do velho reformismo social-democrata e estalinista: o PASOK grego mergulhou em profunda crise, reduzindo-se a uma bancada parlamentar fraca; o PSOE saiu desgastado pela gestão da crise econômica, não atraindo mais os jovens nem os dirigentes operários; o PS francês, após governar de 1970 até 2000 e ter tido o último presidente, registrou seu pior resultado histórico devido à desastrosa gestão de Hollande; o Partido Comunista italiano desapareceu, dando origem ao PD, que é um partido burguês, fruto da fusão dos antigos comunistas com os democratas-cristãos, e já não exerce a mesma atração para os jovens e para o movimento operário.

    No Brasil, o PT, que surgiu tardiamente em relação a essas forças, teve um rápido e potente ascenso nas décadas de 1980 e 1990 e, em seguida, passou por um processo igualmente rápido de adaptação: ao assumir o governo, tornou-se também executor da política neoliberal e passou por um desgaste violento em função da implementação desses planos e da estreita colaboração com os bancos e as grandes empresas que o financiavam, o que o envolveu em um gigantesco escândalo de corrupção, ocasionando um profundo desgaste que afetou todos os seus principais quadros, inclusive Lula.


    VII – O neorreformismo

    Diante da profunda crise do velho reformismo, que se transformou no social-liberalismo, e do colapso do estalinismo nas décadas de 1990 e 2000, abriu-se um espaço resultante desse ascenso popular, a partir da reação contra a aplicação dos planos de austeridade da União Europeia. Especialmente a partir da crise de 2008, surgiram novas formações reformistas que tentaram preencher esse vácuo: o primeiro a obter um forte apoio popular foi o Syriza, na Grécia. Contudo, novamente, a lei de ferro da adaptação à democracia burguesa recaiu sobre esses novos partidos. Agora, o ritmo é ainda mais intenso, uma vez que não há espaço nem mesmo para reformas mínimas.

    O caso grego foi o mais revelador. Nesse contexto, a guinada foi completa: o Syriza se apresentou como a oposição frontal ao Pasok, sendo visto como a “esquerda radical contra a austeridade”. Após diversas greves gerais e quedas de governo, o SYRIZA venceu as eleições parlamentares, formando governo com um partido burguês de direita. Logo após assumir o governo, tornou-se o substituto do PASOK, implementando os planos de expolição da Troika e até mesmo a política repressiva da UE contra os refugiados, estabelecendo-se como sócio e aliado de Israel. Em “contrapartida a essa generosidade”, Tsipras implementou a décima quarta onda de cortes contra a classe trabalhadora grega, com novos cortes nos benefícios e mais privatizações.

    Na França, Mélenchon, candidato da “França Insubmissa”, limita-se a abordar – de forma insatisfatória – os efeitos da crise, sem atacar a propriedade das grandes empresas ou dos bancos. Seu economista-chefe vangloria-se de que seu programa é “sério e realista”. Propõe reformas moderadas e a convocação de uma assembleia constituinte para refundar uma VI República parlamentarista, sem sequer propor uma ruptura com o poder burguês. Seu projeto, na prática, não é a revolução operária, mas a “Revolução Cidadã”.

    Na realidade, todas as forças que se identificam com a “nova esquerda europeia” – os neorreformistas do Podemos, do Bloco de Esquerda português, da Die Linke na Alemanha – veem no SYRIZA sua referência. Em comum, essas forças apostam em mudanças por via eleitoral, sem romper com a legalidade burguesa. Não há sequer a perspectiva revolucionária. Elas não propõem a ruptura com a UE, mas apenas negociar para “modificar os tratados”. E, em outras partes do mundo, existem fenômenos semelhantes, como o PSOL brasileiro, que tenta ocupar o espaço deixado pelo PT, mas com um programa muito similar.

    A diferença hoje é que, em geral, esses partidos não possuem as mesmas raízes que o antigo reformismo tinha na classe operária – tanto os social-democratas quanto os ex-estalinistas –, tratando-se essencialmente de fenômenos eleitorais.


    VIII – Uma lição de Outubro: a revolução socialista exige derrotar os reformistas

    Como demonstra a Revolução de Outubro, de forma positiva, bem como a história das revoluções abortadas ou derrotadas dos séculos XX e XXI, os processos revolucionários não se transformam espontaneamente em revoluções triunfantes. É necessário haver um partido, como os bolcheviques, com um programa revolucionário claro, que compreenda a necessidade de enfrentar e derrotar não apenas a burguesia, mas também seus agentes dentro do movimento de massas. Essa é uma das mais importantes lições de Outubro: sem derrotar os inimigos da revolução presentes no seio do movimento operário, não se pode conquistar o poder.

  • A luta pela reconstrução da IV contra o «trotskismo» reformista (Parte II)

    A luta pela reconstrução da IV contra o «trotskismo» reformista (Parte II)

    O Leste Europeu provoca um salto de qualidade no SU: do revisionismo ao reformismo

    Hoje, o SU – que ainda se autodenomina “IV Internacional” – deixou de ser trotskista, embora mantenha o nome da IV. E já abandonou o programa revolucionário de tomada do poder, de luta pela ditadura do proletariado. O curso do revisionismo para o reformismo completou-se a partir dos processos do Leste, que caracterizaram como uma profunda derrota do movimento de massas e abriram uma “crise” no “projeto socialista”.

    Por: José Welmowicki

    Dessa forma, o ex-SU deu um “salto” de uma organização revisionista para o reformismo: além de eliminar explicitamente de seu programa a estratégia da ditadura do proletariado, tudo passou a se orientar pela democracia burguesa ou pela “radicalização da democracia”, abandonando inclusive a concepção da centralidade da classe operária no processo revolucionário. A perda de referência a partir do Leste refletiu-se no fato de que passaram a agir como os partidos reformistas social-democratas ou estalinistas.

    A experiência do Brasil

    O que aconteceu no Brasil ilustra bem esse processo. O SU, por meio de sua organização, a DS, esteve presente na formação do PT nos anos 1980, quando caracterizou a direção lulista como clasista ou mesmo revolucionária, acompanhando seus passos como sua ala esquerda, na verdade, uma oposição à “sua majestade”.

    Não se tratava de um entrismo para eles; era uma participação como corrente dentro de um partido estratégico. Já nos anos 1990, a DS integrou-se cada vez mais ao aparato petista. Quanto mais elegiam parlamentares e, posteriormente, prefeitos, mais se integravam, e seus quadros passavam a fazer parte do aparato partidário e do Estado burguês.

    Chegou-se a defender, de forma tática, a participação em governos burgueses de colaboração de classes, como no governo de Lula no Brasil. Quando Lula assumiu o governo federal em 2003, a DS – então seção brasileira do SU – indicou ministros como Miguel Rossetti e uma série de quadros para funções governamentais.

    A partir da prefeitura de Porto Alegre, foram os impulsionadores locais das “políticas sociais” do PT, semelhantes às que a social-democracia havia aplicado anteriormente. O resultado foi que a DS acabou se afastando do SU e um pequeno setor de quadros formou um novo grupo que permaneceu no SU e, mais tarde, foi para o PSOL, passando por novas divisões. Mais uma vez, considerando o PSOL como partido estratégico.

    Uma “mudança de época”

    Os processos do Leste significaram, para a imensa maioria da esquerda, o início – ou o aprofundamento – da bancarrota teórica, programática e política. Influenciada pelo stalinismo e por suas variantes – de modo que o fim da URSS representou, evidentemente, uma derrota histórica –, em diferentes medidas e com diferentes tons, quase toda a esquerda lamentou o “fim do socialismo real”, o epílogo do “bloco socialista”, etc.

    Dessa forma, ficaram ainda mais expostos aos efeitos da brutal campanha ideológica do imperialismo sobre a “morte do socialismo” e a “invencibilidade” do capitalismo e da democracia burguesa. O caso do ex-SU não foi diferente; ele foi, na verdade, vanguarda teórica desse processo.

    Para o ex-SU, a queda do muro de Berlim gerou nada menos que uma “mudança de época”. Daniel Bensaïd, principal teórico dessa corrente após Mandel, intitulou um documento – apresentado no XIV Congresso do SU em julho de 1995 – com esses termos. Nesse texto, Bensaïd define os impactos das mudanças ocasionadas pelo fim da URSS como uma “grande transformação mundial”, especificamente, como uma “mudança de época”. Destaca-se que ele não fala de “período” ou de “etapa”, mas sim de “época histórica”. Concretamente, para o ex-SU, havia terminado a época definida por Lenin como a de “guerras, crises e revoluções”, iniciada com a Primeira Guerra Mundial e a Revolução de Outubro – que o marxismo entende como uma época revolucionária, a época imperialista – dando lugar a outra diferente:

    Não estamos mais no período político de 1968, ainda não saímos da onda longa depressiva e estamos no final de uma época, iniciada com a Primeira Guerra Mundial e com a Revolução Russa.” 1

    Essa “nova época” não só põe tudo em questão, como, para Bensaïd, representa um retrocesso do movimento operário de quase um século, ao identificar o “ponto de partida” dos marxistas numa coordenada anterior a 1914:

    «[…] o laboratório que se abre tem uma amplitude comparável à do início do século, onde se forjou a cultura teórica e política do movimento operário: análise do debate sobre o imperialismo, sobre a questão nacional; debate estratégico acerca da reforma e da revolução, batalha sobre as formas de organização política, social, parlamentar.«

    Essa “nova época” seria essencialmente defensiva, pois, segundo Bensaïd, inaugurou-se com uma derrota profunda do movimento operário: o “desmantelamento da União Soviética sem resultar em uma revolução política”. Dessa forma, delinearam-se os contornos para toda uma época: “o enfraquecimento social dos trabalhadores” e a “crise do projeto socialista”.

    Bensaïd atribuía tais relações de forças desfavoráveis não a fatores objetivos, mas a elementos subjetivos, como o retrocesso ideológico do movimento operário decorrente dos “efeitos profundos da crise do ‘socialismo realmente existente’”.

    Alertamos para o critério metodológico de Bensaïd: ele não defende a abertura de um longo período de desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo, que possibilitaria reformas duradouras e a elevação do padrão de vida das massas. Nada disso. Bensaïd afirma que se inicia uma nova época – que ele considera reacionária – a partir do “retrocesso na consciência” e da “crise do movimento operário”, ou seja, a partir de elementos subjetivos.
    Bensaïd declara:

    As mudanças nas relações políticas globais, depois da queda do Muro de Berlim, do desmantelamento da União Soviética e da Guerra do Golfo, deram o último golpe, causando uma crise aberta – não apenas conjuntural – nas formas de anti-imperialismo radical da fase anterior […] Neste momento, a tendência dominante internacionalmente é o enfraquecimento do movimento social (começando pelo sindical) […] A esquerda revolucionária está hoje mais pulverizada e enfraquecida do que há cinco anos […] Para a reconstrução de um projeto revolucionário e de uma Internacional, partimos de condições deterioradas.

    Em nenhum momento ele ressalta, não somente a importância, mas o próprio fato da destruição do aparato contrarrevolucionário stalinista mundial pelas massas soviéticas. Esse fato colossal sequer aparece na análise de Bensaïd. E o mais importante, ele não responsabiliza a velha burocracia stalinista pela restauração do capitalismo na ex-URSS, mas sim uma “derrota” ou “retrocesso” político-ideológico do movimento operário. O ex-SU respondeu, assim, à grande questão de quem, quando e como o capitalismo foi restaurado, em uníssono com as viúvas do stalinismo: culpando os “limites” das massas trabalhadoras e não a burocracia termidoriana e totalitária do Kremlin.

    A tendência histórica do ex-SU à adaptação e capitulação aos grandes aparatos e à “opinião geral” da esquerda, num momento decisivo da história, levou-o a um novo seguidismo: juntaram-se ao triste coro de lamentos dos nostálgicos do stalinismo.

    O programa da “nova época”

    Tudo isso serve para justificar uma grande mudança na estrutura programática. Para Bensaïd e para o SU, hoje a revolução socialista não está à vista no horizonte.

    A “nova época” exige, nas palavras de Bensaïd, uma “redefinição programática”, a “construção de um novo programa”. Isso, por si só, não é um problema. Qualquer mudança importante na realidade requer uma atualização programática. O problema do ex-SU foram as premissas teóricas a partir das quais se iniciou a elaboração desse “novo” programa, e o método que se empregou para construí-lo.

    Bensaïd e o ex-SU partiram do fato de que a queda da URSS significou um “eclipse da razão estratégica”. Tudo estava “em questão” e eles teriam carta branca para abandonar de vez qualquer legado trotskista. Assim, abandonaram o método trotskista de elaborar o programa a partir das necessidades objetivas da classe trabalhadora, para absolutizar o elemento subjetivo – a consciência das massas – subordinando, dessa forma, o programa à “correlação de forças” que expressaria esse “atraso” da consciência das massas.

    Consistente com a caracterização de que a época de crises e revoluções, iniciada em 1914, havia chegado ao fim, e a nova época estava marcada pelo retrocesso, o problema do poder foi relegado a um futuro incerto, pois as massas não o encarariam como “imediato”.

    Nesse contexto, a conclusão que se tirou foi de “adaptar” o programa a essa nova época sem possibilidades revolucionárias. Bensaïd chegou a propor, em seu texto, as “novas” coordenadas programáticas pós-Leste. Na Europa – o centro histórico do SU – o objetivo estratégico tornou-se a luta por “uma Europa social e solidária”, “uma Europa pacífica e solidária”, em oposição à “Europa financeira e antidemocrática”. Algo muito semelhante às formulações atuais de boa parte da esquerda europeia.

    Depois de descrever o fim da URSS, as “novas instituições” da “globalização”, o problema da “reestruturação produtiva”, etc., na nova ordem unipolar, Bensaïd propôs uma visão e um programa completamente reformista, nos moldes do conceito liberal de “cidadania universal” e da utópica “democratização” e “humanização” do capitalismo – ideias que logo foram divulgadas amplamente em espaços como os Fóruns Sociais Mundiais e diversas ONGs.

    Outra forma de cooperação e crescimento pode ser concebida: organismos reguladores internacionais substituindo o Banco Mundial, FMI, OMC e o G-7; organismos para a promoção do comércio internacional entre países de produtividades similares; transferência planejada de riquezas dos países que as acumularam durante séculos em detrimento dos países pobres; novos mecanismos de regulação dos intercâmbios que permitam projetos de desenvolvimento diferenciados; desconexão parcial e controlada do mercado mundial e uma política de preços justa; uma política migratória negociada neste contexto.” (Citações extraídas do texto “Uma mudança de época”.)

    Como parte da ideia de um mundo “regulado” e “negociado” na tentativa de “reformular os primeiros contornos de uma proposta que responda ao conjunto da ordem estabelecida”, Bensaïd continua enunciando os pontos centrais do que ele chama de “programa de transição”. Contudo, o leitor demora a perceber que o conteúdo de tal programa não passa de um programa mínimo social-democrata, baseado no conceito de “cidadania” e de direitos civis (dentro do Estado burguês), com a ausência marcante de qualquer medida anticapitalista. Por isso, quando fala em programa, refere-se ao que é hoje seu programa de transição… um programa de reformas!

    Esse quadro pode ser utilizado para tudo, exceto para estabelecer um programa para um partido revolucionário e uma internacional que se identifique com a IV Internacional de Leon Trotsky.

    O que é hoje o SU?

    Apesar de utilizar o nome “IV Internacional”, a organização internacional e os partidos do SU funcionam de maneira oposta ao programa e aos estatutos da IV, fundada em 1938, pois se configuram como uma federação frouxa de partidos e movimentos reformistas e centristas. Apesar de terem perdido força nas últimas décadas, em consequência de seu giro político – como se reflete em seu último congresso, em 2018, com uma queda significativa no número de militantes – hoje eles servem como ponto de encontro para grupos, dirigentes ou intelectuais de esquerda que se afastaram das posições revolucionárias e evoluíram para a direita após a queda do stalinismo, em decorrência dos processos do Leste europeu. Mas suas elaborações possuem alcance internacional e hoje servem para justificar, teoricamente, a capitulação da imensa maioria da esquerda à democracia burguesa e ao reformismo. Como é típico das organizações reformistas, as referências políticas do SU atual são seus parlamentares ou dirigentes de partidos como o Bloco de Esquerda e o Podemos.

    O SU foi uma das principais correntes ideológicas impulsionadoras dos partidos “amplos” e “anticapitalistas”, que na realidade apresentam um programa reformista, principalmente na Europa (como o Bloco de Esquerda em Portugal, o Podemos no Estado espanhol, entre outros).

    Sua organização mais importante, a Liga Comunista Revolucionária (LCR) francesa, foi dissolvida para fundar o Novo Partido Anticapitalista (NPA) em 2009, com um programa reformista, abandonando explicitamente a luta pela ditadura do proletariado.

    Também possuem partidos e movimentos na Ásia, como o LPP paquistanês, que evoluiu do trotskismo para um partido amplo reformista no modelo europeu. Em seu grupo italiano, a Sinistra Crítica (Esquerda Crítica), historicamente comandada por Livio Maitán – que teve papel importante no SU e praticou a linha do entrismo sem diferenciação na Refundação Comunista –, chegou a ter parlamentares, inclusive um senador, e acompanhou o fracasso e a decadência da Refundação, devido ao seu apoio ao governo burguês de Romano Prodi. Hoje, após uma queda significativa de sua militância, o Sinistra Crítica dividiu-se em dois, e o SU na Itália ficou reduzido a um punhado de militantes sem intervenção real no movimento.

    Na França, o SU inclui tanto o NPA (a maior parte dos militantes, com alguns setores fora do SU) quanto a Esquerda Anticapitalista, corrente que rompeu com o NPA em 2011-2012 para aderir à Frente de Esquerda, de Jean-Luc Mélenchon.

    Mas não fizeram nenhum balanço crítico da sucessiva decadência dos partidos mais importantes que chegaram a ter, pois para eles a culpa desses fracassos é atribuída à “crise do projeto socialista”, ou ao “retrocesso da consciência das massas”.

    Pior ainda, avançam cada vez mais no sentido da dissolução e da adaptação à democracia burguesa. Foram avançando mais ainda nessa dinâmica e hoje aceitam programas ainda mais amenos do que os iniciais do giro para os partidos amplos. Seu último congresso confirmou a orientação dos anos anteriores. O ex-SU, armado com suas elaborações pós-Leste, transformou-se num entusiástico impulsionador dos partidos neorreformistas, aceitando seus programas, que não defendem o socialismo – nem sequer nos dias de festa – e não só defendem a democracia burguesa, como são diretamente pró-imperialistas. É o caso do Podemos (onde também dissolveram seu partido Esquerda Anticapitalista); do Bloco de Esquerda português, que integravam com uma força muito importante e também acabaram se dissolvendo; ou do SYRIZA na Grécia, no qual continuaram defendendo a participação da DEA mesmo depois que o SYRIZA assumiu o governo, submetendo-se totalmente à União Europeia, apesar de sua ala grega, OKDE-Spartacus, estar ligada ao Antarsya e ser contrária a essa política. E, algum tempo depois, obrigados pela traição de Tsipras ao apoiar a saída da DEA do SYRIZA, não fizeram um balanço sério e continuaram aplicando a mesma política desastrosa em Portugal e no Estado espanhol.
    Os militantes do SU sequer propõem mais o conceito “anticapitalista” para a conformação desses partidos. Basta ser “antiausteridade”.

    Em Portugal, os quadros do SU formam a espinha dorsal da direção do Bloco de Esquerda. O Bloco apoiou o Partido Socialista (PSP) – o velho partido social-democrata português, que se desgastou profundamente quando seu ex-primeiro-ministro Sócrates foi processado e preso – para que pudesse formar um governo, defendendo, assim, o governo burguês do PSP de Antônio Costa, com o argumento de que este adotaria medidas mínimas “antiausteridade” contra a “direita”. Mas esse governo, chamado de “geringonça”, só pode se manter porque se baseia no apoio do Bloco e do Partido Comunista português, e tampouco é “antiausteridade”. Não pode ser antiausteridade se se submete à União Europeia e aos seus ditames. Recentemente, o próprio Bloco, em resolução da direção nacional de 22/04/18, simplesmente pediu que fossem cumpridos certos compromissos – “compromissos para valer. O acordo entre o partido socialista e os partidos de sua esquerda assentou um compromisso. O Bloco de Esquerda e o PCP negociaram sucessivos orçamentos dentro do quadro de restrições impostas pelo governo, sob imposição de Bruxelas, mesmo não concordando com elas”. Em seguida, faz queixas e reclamações sobre medidas, como a ausência de concursos, etc. Ou seja, a política do Bloco é sustentar o governo do Partido Socialista português, que, segundo eles, não rompeu com a austeridade por não ter rompido os ditames da União Europeia.

    O Podemos passou de se declarar “antissistema” e de “não se aliar com as castas” para buscar uma aliança com o PSOE, o velho partido social-democrata, e continua sendo a aposta do Esquerda Anticapitalista, o grupo do SU no Estado espanhol. Os integrantes do Esquerda Anticapitalista não só se dissolveram, como incorporaram o programa e o discurso da direção do Podemos, como Iglesias.

    O caso da França demonstra os resultados dessa estratégia, pois é o país onde o antigo SU possuía seu partido mais importante, a LCR. Depois que o SU implementou a política para que a LCR suavizasse seu programa e se dissolvesse no NPA, ocorreu uma profunda crise, ao ser superado eleitoralmente pelos reformistas da Frente de Esquerda (FDG) de Mélenchon, o que levou ao surgimento de uma ruptura à direita no NPA – a corrente Esquerda Anticapitalista, que aderiu ao FDG. Assim, reduziu-se de forma drástica a força que a LCR chegou a ter no início dos anos 2000, quando contava com cerca de 2.000 a 3.000 militantes e alcançava aproximadamente 5% dos votos em termos eleitorais.

    Contudo, também aparece resistência. Hoje, há uma crise no NPA, com uma disputa entre quadros de várias tendências de esquerda que se opõem ao giro para a direita e aos setores que seguem a direção do SU. Os setores de esquerda chegaram a ter maioria na direção a partir de 2015, com um projeto que contrariava a direção majoritária do SU. Esta fez grandes esforços para construir uma plataforma comum entre os setores que respondiam à maioria. Para conseguir unir esses setores, a maioria sequer defendeu sua política no congresso, aceitando que, na França, o NPA disputasse as eleições com um candidato operário, P. Poutou, e não apoiasse Mélenchon, que está ligado ao Podemos e ao Bloco de Esquerda. Dessa forma, na França, o SU tolerou uma política diferente de sua orientação geral de apoio aos neorreformistas. Mas, ainda assim, não se conseguiu formar uma maioria no último congresso do NPA em 2018, e a crise persiste.

    Após oito anos sem congresso, em 2018 realizou-se o congresso do SU e, mais uma vez, foi votada a política dos partidos amplos e a orientação de construir o Podemos, o Bloco de Esquerda etc. Houve uma plataforma de oposição, com posições enfrentadas à maioria, mas com um voto bastante reduzido.

    O SU, hoje, já não cumpre um papel nem tem qualquer possibilidade de participar da luta pela IV Internacional, pela internacional revolucionária. Aqueles que ainda participam dessa federação e têm outra perspectiva – se ainda desejam lutar pela IV Internacional – veem, cada vez mais, a necessidade de buscar alternativas. O caminho passa pela reconstrução da IV a partir das bases programáticas fundacionais, com todas as atualizações necessárias e com a mesma concepção de partido e de Internacional que esteve na base de sua fundação. Essa é a proposta da LIT.


    Notas:

    1. Todas as citações de Bensaïd correspondem ao seu documento apresentado no congresso de 1995. ↩︎

    Leia a primeira parte desta série.

  • A luta pela reconstrução da IV e o papel do revisionismo trotskista (parte I)

    A luta pela reconstrução da IV e o papel do revisionismo trotskista (parte I)

    Uma corrente revisionista assumiu a direção e foi o maior obstáculo para a construção da IV

    A IV Internacional, algum tempo depois de fundada, teve de enfrentar pressões violentas contra seu programa e sua existência. Mesmo em vida de Trotsky, a luta contra os “antidefensistas” polarizou o caminho da Internacional. Mal havia sido fundada e já se iniciava uma luta contra o revisionismo, que ameaçava a existência da IV. Mas, terminada a polêmica interna no SWP com a vitória da posição marxista, os problemas não cessaram. Logo após o fim da Segunda Guerra, surgiram posições com consequências desastrosas para o desenvolvimento da IV, que levaram à sua dispersão e que, ainda hoje, atuam contra ela.

    Por: José Welmowicki


    Os novos processos do pós-segunda guerra e a IV Internacional

    O pós-guerra se abriu com vitórias espetaculares do movimento de massas mundial: por um lado, a derrota completa do nazifascismo e, por outro, um ascenso operário e popular – que só não chegou à expropriação da burguesia em países centrais, como França e Itália, devido às traições de Stalin, que impôs que os partidos comunistas pactuassem com suas burguesias e entregassem o poder. Tais traições impediram a tomada do poder que teria mudado o mundo.

    O imperialismo manteve o controle da Europa Ocidental graças aos pactos de Yalta e Potsdam, firmados entre Stalin, Roosevelt e Churchill, mas novos Estados operários burocráticos surgiram na Europa Oriental, e, em 1949, na China e na Coreia, apesar da política traidora dos partidos comunistas. A dissolução da III Internacional fora decretada por Stalin em 1943, deixando o movimento operário sem uma referência internacional.

    O assassinato de Trotsky, em 1940, descabeçou a recém-fundada IV Internacional, poucos instantes antes de se abrir uma situação revolucionária que deixava para trás os 20 anos de derrotas desde 1924, quando o ascenso do nazismo e do stalinismo impunham um retrocesso geral. Não havia nenhum dirigente que se aproximasse sequer da experiência de seu fundador. Ao contrário do que previa Trotsky, a IV não se popularizou. A jovem direção da IV, depois de adotar uma postura sectária ao não reconhecer a nova realidade dos Estados, fez uma virada para não só reconhecer esse fenômeno, mas também para estabelecer uma política completamente contraditória com a própria razão de ser da IV: enfrentar os aparelhos burocráticos, como está expresso na introdução do Programa de Transição.

    Nesse período, a vitória sobre o nazifascismo levou a um fortalecimento do stalinismo. Devido ao papel decisivo das massas soviéticas na resistência ao nazismo e do Exército Vermelho na derrota de Hitler, o prestígio dos partidos comunistas cresceu enormemente, mesmo que o stalinismo o utilizasse para trair a revolução operária na França, na Itália e na Grécia.


    O surgimento do pablismo

    O nome “pablismo” deriva do dirigente principal dessa corrente, o grego Michel Pablo. Essa direção da IV, fraca e sem experiência na luta de classes, foi incapaz de responder à nova situação e, pior, cedeu à imensa pressão do pós-guerra. Abandonou, assim, a base fundacional da IV: combater o stalinismo e avançar na construção da direção revolucionária, tanto nacional quanto internacional. Em 1951, durante o período da Guerra Fria, todos os comentaristas internacionais afirmavam que um confronto armado entre os Estados Unidos e a URSS era inevitável. Pablo e Mandel, impressionados com as análises da imprensa burguesa, chegaram a uma conclusão funesta para a Internacional: para eles, a Terceira Guerra Mundial era inevitável. Sustentavam que, diante do ataque imperialista, os partidos comunistas, em seu afã de defender a URSS, adotariam métodos violentos para enfrentar os EUA, o que os levaria a lutar pelo poder em diversas partes do mundo; o mesmo ocorreria com os movimentos nacionalistas burgueses nos países dependentes.

    Com base nesse panorama, Pablo e Mandel propuseram o “entrismo sui generis” nos partidos comunistas e nos partidos nacionalistas burgueses, e acompanhá-los sem críticas mesmo depois da tomada do poder. Eles enxergavam um processo revolucionário irreversível, liderado pelas direções burocráticas e pequeno-burguesas do movimento de massas, e não se propunham a construir novas direções que derrotassem as tradicionais – algo que é a verdadeira razão de ser da IV Internacional. Tal posição abandonava a definição da burocracia stalinista como contrarrevolucionária e, consequentemente, abdicava da luta contra ela. Essa revisão foi um completo revisionismo de um dos pontos essenciais do programa trotskista, que parte do princípio de que a humanidade se encontra em crise em razão da crise de direção do movimento de massas. Ou seja, o principal obstáculo para o avanço da humanidade rumo ao socialismo é que as massas estão sob a direção de organizações contrárias à revolução, como o stalinismo, a social-democracia e o nacionalismo burguês.

    Essas definições tiveram consequências graves para a IV Internacional durante a revolta em Berlim Oriental e na revolução boliviana.

    Com essa caracterização, Pablo opôs-se a exigir a retirada dos tanques russos que confrontaram o levante dos trabalhadores de Berlim em 1953 – ou seja, apoiou, de fato, a burocracia soviética.

    Contudo, a consequência mais trágica dessa política foi a traição à revolução boliviana. Em 1952, na Bolívia, ocorreu uma típica revolução operária. Trabalhadores organizaram milícias, derrotaram militarmente a polícia e o exército, e surgiu a COB (Central Operária Boliviana) como um organismo de poder dual. As minas foram nacionalizadas e irrompeu a revolução camponesa, que invadiu os latifúndios e ocupou as terras. Até 1954, a principal força armada da Bolívia era formada pelas milícias operárias dirigidas pela COB.

    Desde a década de 1940, a organização trotskista boliviana (POR) vinha conquistando enorme influência no movimento operário, contando com importantes dirigentes do setor minerador, fabril e camponês. Seu principal dirigente, Guillermo Lora, foi o articulador das Teses de Pulacayo – uma adaptação do Programa de Transição à realidade boliviana, adotada pela Federação dos Mineiros. Lora foi eleito senador por uma frente dirigida pela Federação dos Mineiros, nas eleições de 1946. Na revolução de 1952, o POR codirigiu as milícias e foi cofundador da COB, detendo considerável peso de massas na Bolívia.

    Infelizmente, o POR, seguindo a orientação do Secretariado Internacional da IV Internacional, liderado por Pablo, não insistiu na política de que a COB tomasse o poder. Ao contrário, apoiou criticamente o governo burguês do MNR (movimento nacionalista burguês). Sem a orientação revolucionária, o movimento de massas foi gradualmente desarmado e desmobilizado, e a revolução foi desmontada em poucos anos. Como consequência dessa traição, o trotskismo boliviano deteriorou-se, entrando em um processo de sucessivas divisões.

    Junto a essa política, a direção internacional, conduzida por Pablo, adotou um método nefasto: interveio no partido francês, destituindo sua direção – que não estava de acordo com sua política – e tentou formar uma fração secreta no SWP norte-americano.

    Repudiando a linha do “entrismo sui generis” e os métodos burocráticos e desleais de Pablo, a maioria dos trotskistas franceses (liderados por Lambert) e ingleses (liderados por Healy), do SWP (EUA) e dos trotskistas sul-americanos (com exceção do POR boliviano e do grupo de Posadas na Argentina), romperam com o Secretariado Internacional (SI) dirigido por Pablo e criaram, em 1953, o Comitê Internacional (CI).

    Seguem-se anos de dispersão, pois, embora uma minoria tenha permanecido com Pablo e Mandel, a maioria não se organizou de forma centralizada para dar resposta – especialmente o SWP, que não assumiu como tarefa central reorganizar e reconstruir a IV. Dessa forma, a crise persistiu desde 1953, e, por isso, foi proposta a tarefa de reconstrução da IV Internacional.


    A revolução cubana impulsiona a reunificação: nasce o SU

    Em 1959, um novo processo revolucionário sacudiu o mundo. A insurreição armada liderada pelo Movimento 26 de Julho derrubou a ditadura de Batista em Cuba; iniciou-se um processo que, apesar de sua direção pequeno-burguesa, culminaria na expropriação da burguesia. O reconhecimento e apoio à revolução cubana foram a base para a reunificação da IV Internacional em 1963. Assim, nasceu o SU (Secretariado Unificado da Quarta Internacional), liderado por Mandel e pelo SWP – enquanto Pablo havia se desligado da IV e se tornado assessor do governo burguês de Ben Bella, na Argélia. No SU, integraram-se todas as forças trotskistas que viam em Cuba um novo Estado operário. Ficaram de fora os grupos ingleses e franceses que não reconheceram esse significado da revolução cubana. Esse foi um ponto de avanço para reagrupar os grupos dispersos que se reivindicavam trotskistas. Contudo, essa unificação já nasceu com graves problemas, evidenciados pelo fato de não se aceitarem quaisquer balanços das divisões nem dos graves erros do período anterior do SI de Pablo e Mandel.

    Isso foi ainda mais grave pelo fato de que essa reunificação teve uma direção com Mandel à frente. Mais tarde, verificou-se que essa direção, em vez de revisar e superar as posições anteriores, representava uma continuidade da metodologia de adesão às direções burocráticas do movimento de massas. Não se fez um balanço dos graves erros do período anterior e manteve-se a mesma linha impressionista, capitulando a qualquer fenômeno “progressista” que aparecesse e impactasse a “vanguarda”. Isso começou a se manifestar logo com relação à direção cubana. Mais uma vez, confundia-se o movimento de massas com sua direção, vista como revolucionária.

    Foi, então, a vez de capitular diante da direção castrista e dos movimentos guerrilheiros – novamente com resultados desastrosos para o trotskismo, que alimentou ilusões e, posteriormente, perdeu preciosos militantes para o aventurismo guerrilheiro. Mas a lógica era a mesma: diante de uma direção prestigiosa como a cubana, o SU aderiu à linha foquista, propondo a criação de “focos” guerrilheiros em toda a América Latina junto aos guevaristas, e, se necessário, de forma isolada. Isso levou seus grupos a se envolverem em aventuras desvinculadas do movimento operário e de massas – como o PRT-ERP argentino e o POR (C) da Bolívia – entre os quais muitos se afastaram do trotskismo ou se integraram ao aparato castrista.

    A adaptação às direções do movimento de massas na revolução portuguesa e em relação ao eurocomunismo

    Uma revolução derrubou o império português em 1974. Como resultado da profunda crise nas Forças Armadas, obrigadas a manter a guerra nas colônias africanas, o 25 de abril foi deflagrado por um levante de oficiais do exército, cansados da interminável guerra colonial e da ditadura que os obrigava a lutar em uma guerra sem futuro. Dessa forma, emergiram setores rebeldes da oficialidade – inclusive de alta patente – que formaram o MFA e organizaram um levante que expulsou do poder o ditador Caetano. Contudo, a queda da ditadura gerou um profundo processo revolucionário operário e popular, que propiciou formas de poder dual, semelhante ao processo da revolução russa. As sucessivas ondas de lutas levaram a governos burgueses com crescente influência do MFA e do Partido Comunista, com um discurso radical. Nesse processo, o ativismo e as tendências maoísta e ultraesquerdista apoiavam o Movimento das Forças Armadas – uma organização pequeno-burguesa pró-imperialista, mas que se autodenominava de esquerda. Na realidade, o MFA era o pilar que sustentava o Estado burguês contra a revolução. A LCI, organização que seguia a linha de Mandel, assumiu as posições dos maoístas e ultra-esquerdistas, apoiando até mesmo o MFA que governava ou cogovernava o império português. Mais uma vez, capitulavam à direção do movimento de massas.

    Mais tarde, o seguidismo do SU assumiu outra faceta, acompanhando o chamado eurocomunismo. Surgido nos partidos comunistas da Europa Ocidental – especialmente o italiano e o espanhol –, na década de 1970, o eurocomunismo representava, nesses partidos, sua crescente integração às instituições da democracia burguesa, seja a nível parlamentar ou na administração municipal. Assim, passaram a depender, inclusive economicamente, da burguesia de seus países, enfraquecendo sua dependência tradicional em relação à URSS. Isso era positivo apenas no sentido de aprofundar a crise do stalinismo como aparato mundial. Na prática, transformavam esses partidos comunistas “de servos do Kremlin em servos de sua burguesia imperialista” (declaração da Fração Bolchevique, de 1979). Por essa razão, eles não podiam originar nenhuma tendência progressista, muito menos revolucionária. Contudo, Mandel atribuía a eles um caráter progressista – ou quase progressista.

    No processo de adaptação à democracia burguesa, o eurocomunismo repudiou a expressão “ditadura do proletariado”. Exaltava a “democracia como valor universal” e, na prática, defendia a democracia burguesa, a democracia imperialista, com argumentos semelhantes aos de Kautsky contra os bolcheviques, entre 1918 e 1920.

    Mandel saiu em defesa da expressão “ditadura do proletariado” em um texto intitulado Democracia socialista e ditadura do proletariado, posteriormente aprovado pelo congresso do SU, no qual, ao alegar defendê-la, cedeu totalmente às pressões dos eurocomunistas. Acabava por apresentar um modelo de ditadura do proletariado que era, na verdade, uma capitulação ao eurocomunismo e à social-democracia. Mais uma vez, adaptava-se ao fenômeno político da hora. Contra esse texto, Moreno escreveu Ditadura revolucionária do proletariado.

    Cabe destacar que, naquele momento, o SU começava a mudar o enfoque de sua capitulação. Como se veria mais tarde de forma plena e aberta, as pressões mais intensas passaram a vir da democracia burguesa europeia.

    Nicarágua: o salto adaptativo que dividiu o SU

    No final da década de 1970, um processo revolucionário se abriu na Nicarágua e na América Central. Na Nicarágua, em 1979, o conflito estendeu-se pelo interior do país e pelas cidades, e a ditadura de Somoza não resistiu à guerrilha sandinista; as Forças Armadas foram dizimadas e o FSLN entrou em Manágua e tomou o poder. Contudo, apesar de terem o poder em mãos, os sandinistas formaram um governo de “unidade nacional” com a burguesia opositora – integrando nomes como Violeta Chamorro, Alfonso Robelo, entre outros. A corrente morenista, então organizada como Fração Bolchevique (FB) no SU, organizou a Brigada Simón Bolívar para atuar na Nicarágua – oficialmente reconhecida pelo PST colombiano, tendo alcançado mais de mil inscritos. Essa brigada dirigiu-se à Nicarágua e participou da luta armada, e, após a derrota da ditadura, estabeleceu-se na capital para defender a formação de sindicatos independentes. A FB criticava a participação da burguesia no governo. O SU apoiou esse governo, defendendo-o como “governo operário e camponês”. Aí se configurou o fato crucial: a FSLN deteve e expulsou os integrantes da Brigada Simón Bolívar, entregando-os à polícia panamenha, que os torturou. O SU enviou uma delegação à Nicarágua que apoiou a decisão do governo e não defendeu os integrantes da brigada. Mais uma vez, o apoio vergonhoso foi direcionado às direções pequeno-burguesas, qualificando-as como revolucionárias – desta vez, com dois agravantes: em termos de princípios – pois se recusaram a construir uma organização trotskista no país e em Cuba e El Salvador, alegando que já existia uma direção revolucionária – e, moralmente, por se negarem a defender os revolucionários perseguidos e apoiarem sua expulsão. Foi a esse ponto que chegou o apoio vergonhoso à FSLN.

    Além dessa falta de moral e princípios, tais atitudes entravam em contradição com a própria tese sobre “democracia socialista e ditadura do proletariado”. Em menos de um ano, os defensores renegaram suas teses sobre “democracia socialista” e apoiaram a decisão da FSLN de expulsar os revolucionários brigadistas simplesmente por quererem adotar uma política distinta na revolução nicaraguense. Nesse momento, a FB decidiu romper com o SU.

    Havia um traço permanente em toda essa trajetória de capitulação, que as Teses de Fundação da LIT definiram claramente: no curso dessa longa marcha, cada grande acontecimento da luta de classes – sobretudo cada grande triunfo revolucionário de dimensão mundial – provocava, em determinado setor do nosso movimento, uma tendência de adaptação à direção burocrática ou nacionalista desse triunfo.

    A luta pela construção de uma direção revolucionária internacional implica também a luta pela destruição de todas as direções burocráticas ou nacionalistas que competem entre si para dirigir as massas. O processo de edificação de uma direção revolucionária significa, ao mesmo tempo, uma “guerra implacável” (como diz com razão o Programa de Transição) contra qualquer corrente burocrática e/ou pequeno-burguesa do movimento de massas.

    O apoio a Gorbatchov

    Entre as adaptações não mais de processos revolucionários, mas sim de processos reacionários – como a restauração na União Soviética –, destacou-se a posição de Mandel e do SU sobre a perestroika e a glasnost de Gorbatchov. Partindo do pressuposto de que a burocracia jamais poderia restaurar o capitalismo, o SU embarcou em apoio à ala restauracionista, declarando-a progressista por ser democratizante. Mais uma vez, apoiavam setores reacionários em nome de supostamente serem uma ala progressista. Dessa vez, isso conduziu a uma adaptação à nova direção do Kremlin, que liderou a restauração no Leste europeu utilizando a chamada “reação democrática”, atraindo a velha esquerda de origem stalinista, que se reconverteu em escala mundial.

    A partir daí, após a queda do muro de Berlim, a adaptação do SU intensificou-se cada vez mais, passando de se relacionar com direções de processos revolucionários para seguir o que acontecia na esquerda em geral; o foco passou a ser a adaptação aos fenômenos eleitorais.

    Leia a segunta parte dessa série.

  • O surgimento e o papel do reformismo stalinista e social-democrata

    O surgimento e o papel do reformismo stalinista e social-democrata

    A III Internacional, com a força da vitória da Revolução Russa, rapidamente adquiriu influência de massas em uma disputa frontal com a social-democracia. Sua estratégia era a revolução mundial, a luta pela destruição do Estado burguês e pelo poder operário como transição para o socialismo.

    Por: José Welmowicki

    No entanto, o isolamento da Revolução Russa, a destruição causada pela guerra civil contra o poder operário devido às invasões dos mais de 20 exércitos mantidos pelas potências imperialistas em um país atrasado e com um grande peso do campo, gerou um processo de burocratização do Estado e do partido comunista, levando a uma contrarrevolução política. Encabeçada pela fração dirigida por Stalin, esta assumiu o controle do poder e do partido e imprimiu uma orientação oposta à de Lenin.

    Em primeiro lugar, mudou a política de Lenin e a visão marxista de que, para triunfar, o socialismo precisava ser mundial. Também acabou com a democracia no Estado e no partido. Esses princípios foram substituídos pela defesa do “socialismo em um só país”, pela burocratização do aparato estatal, pela perseguição aos opositores no partido e no Estado e pela opressão das nacionalidades e de todos os setores oprimidos. Coroando esses retrocessos, surgiu a nova doutrina, o stalinismo, que assumiu como política, para os países coloniais e semicoloniais, a aliança estratégica com as burguesias nacionais ou seus setores supostamente progressistas.

    O stalinismo passou a defender os governos de colaboração de classes, as chamados frentes populares com a burguesia, como na França e na Espanha da década de 1930.
    Como afirmava Trotsky no Programa de Transição, em 1938:

    A Internacional Comunista alinhou-se no caminho da social-democracia na época do capitalismo em decomposição, quando não há mais lugar para reformas sociais sistemáticas nem para a elevação do nível de vida das massas, quando a burguesia retoma sempre com a mão direita o dobro do que deu com a esquerda, quando cada reivindicação séria do proletariado, e até mesmo cada reivindicação progressista da pequena burguesia leva, inevitavelmente, além dos limites da propriedade capitalista e do Estado burguês.

    A partir daí, o stalinismo assumiu as posições essenciais do reformismo e passou a defender a via das reformas e a confiança na democracia burguesa, abandonando de vez a independência de classe.


    Colaboração com a burguesia. O pós-Segunda Guerra e o Estado de bem-estar social

    Na Segunda Guerra Mundial ocorreu uma das maiores batalhas e uma das maiores vitórias dos trabalhadores e dos povos do mundo: a derrota do nazifascismo. Isso, apesar de todas as traições, dos acordos da Inglaterra e da França com o nazismo, dos pactos de Stalin com Hitler em 1938 – o papel das massas na URSS, como em Stalingrado, foi decisivo nessa luta e nessa vitória, apesar da sua direção. Por essa razão, os partidos comunistas saíram prestigiados pela resistência e pela vitória final contra os nazistas.

    Isso possibilitou aos partidos comunistas uma situação privilegiada. Frente à colaboração das burguesias locais com Hitler e Mussolini, após a invasão da URSS pelos alemães em 1941, os comunistas desempenharam papel destacado na guerrilha iugoslava, nas resistências francesa e italiana, na resistência grega, na China e no Vietnã.

    Ao final da Segunda Guerra Mundial, abriu-se uma situação revolucionária em toda a Europa. A resistência assumia o controle de países decisivos. Estava-se cogitando a possibilidade de tomar o poder em países-chave. Uma revolução operária e popular abriu-se na França, na Itália e na Grécia. Os trabalhadores armados e vitoriosos haviam destruído o ocupante nazista e o Estado burguês.

    Sob as ordens de Stalin, ele apostou totalmente nos pactos de Yalta e Potsdam e na coexistência com o imperialismo, inclusive dissolvendo a III Internacional em 1943, a pedido de Winston Churchill. Essa traição histórica à revolução e ao legado de Lenin permitiu, por exemplo, o massacre da resistência grega por parte do exército inglês, e os partidos comunistas entregaram o poder à burguesia na França e na Itália.

    Diante de uma situação explosiva na Europa, o imperialismo foi forçado a fazer uma série de concessões aos trabalhadores e permitir que a social-democracia e os partidos comunistas justificassem seu apoio aos novos governos de “unidade nacional pela paz”. O imperialismo estadunidense organizou o Plano Marshall para financiar a reconstrução capitalista da Europa Ocidental, arrasada pela guerra.

    Uma série de medidas de proteção social, antes rejeitadas pelas burguesias imperialistas, acabou sendo implementada, como a legalização de diversos direitos trabalhistas e a criação ou ampliação da seguridade social. Esse foi o chamado welfare state (Estado de bem-estar social), que, ao trazer melhorias no nível de vida, passou a ser apresentado como “prova” da possibilidade de uma reforma gradual do capitalismo – um modelo que poderia ser mantido e expandido.

    Nesse processo, os reformistas conseguiram retomar seu prestígio ao capitalizarem o período em que, devido à destruição causada pela guerra e ao medo de uma revolução operária, a burguesia viu-se obrigada a permitir uma melhora importante nas condições de trabalho e nos direitos sociais. A social-democracia e os partidos comunistas apresentaram-se como defensores dos direitos sociais, reestruturaram-se na Europa Ocidental e passaram, com frequência, a integrar os governos da Alemanha, da Inglaterra, da França, entre outros países. Isso ocorreu nos anos 1950 e perdurou até o final da década de 1960, com fortes partidos reformistas – fossem eles socialistas ou comunistas – em toda a Europa Ocidental.

    À medida que avançavam os anos 1940 e começavam os anos 1950, a pressão do imperialismo anglo-americano na chamada Guerra Fria gerou um discurso mais duro por parte da burocracia stalinista. No entanto, o stalinismo nunca rompeu seu compromisso com a ordem mundial definida em Yalta e Potsdam. Ele passou a adotar uma postura de colaboração aberta e de “coexistência pacífica” com o imperialismo. A partir dessa doutrina, os discursos passaram a defender o diálogo e a conciliação, com os partidos comunistas contribuindo para a manutenção da dominação imperialista no mundo e do Estado burguês.

    A partir do final dos anos 1950, os partidos comunistas passaram a ser campeões no apoio a governos burgueses supostamente progressistas em todos os continentes. Na Itália, por exemplo, defenderam o “compromisso histórico” entre o Partido Comunista – o maior partido comunista do Ocidente – e a Democracia Cristã, o maior partido burguês do país.

    América Latina: fracasso do reformismo e do nacionalismo burguês no mundo semicolonial

    Na América Latina, entre os anos 1950 e 1970, as presenças do reformismo e do nacionalismo burguês seguiram o caminho de chegar ao poder para tentar desviar os processos revolucionários: desde a Bolívia, em 1952, até a Argentina, com Perón. Nesses processos, em nome da aliança com a burguesia, os partidos comunistas apoiaram os chamados governos progressistas, como o de João Goulart, no Brasil (1962–1963), e a Unidade Popular de Allende, no Chile (1970–1973). Em nome dessas alianças, passaram a defender a legalidade e o Estado, e invocaram a confiança nas forças armadas – consideradas patrióticas –, desarmando, assim, a resistência aos golpes, tanto no Brasil quanto no Chile.

    Neoliberalismo. A crise na social-democracia e no stalinismo

    A social-democracia, que se havia fortalecido na reconstrução do pós-guerra e por sua identificação com o Estado de bem-estar social, começou a sofrer um forte desgaste no final dos anos 1960. Nesse momento, iniciaram-se os ataques a esses direitos sociais – ataques que vieram tanto da direita quanto dos próprios social-democratas, quando estes estavam no governo.

    Na França, na Alemanha e na Espanha do pós-Franco, a partir dos anos 1970 e durante os anos 1980, esse desgaste se aprofundou com a implementação do chamado “neoliberalismo”. Essa política econômica consistia em reduzir os direitos conquistados em nome de um “Estado menor” e da “liberdade de iniciativa”. Iniciado por Margaret Thatcher (Reino Unido) e Ronald Reagan (Estados Unidos) e experimentado na ditadura chilena de Augusto Pinochet, o neoliberalismo acabou sendo adotado também por governos social-democratas – Mitterrand, na França (1981–1988); Felipe González, na Espanha (anos 1980); os laboristas, na Inglaterra; e os social-democratas, na Alemanha. Desse processo surgiu a terceira via, defendida pelo laborista Tony Blair, primeiro-ministro britânico (1997–2007).

    Surgiu, então, o fenômeno do eurocomunismo, tendo como carro-chefe o Partido Comunista italiano. Levando até o fim a política de aceitar o Estado burguês em nome da democracia, formulou-se a doutrina da “democracia como valor universal”. Para esses, a evolução da democracia conduziria ao socialismo sem a necessidade de revoluções sociais – ou seja, adotaram um programa similar ao que a social-democracia havia defendido no passado.

    Outras vertentes do stalinismo, como o maoísmo e o castrismo, apesar da estratégia guerrilheira que, num primeiro momento, atraiu a simpatia de milhares de militantes, acabaram por se tornar a expressão das burocracias que governam a China e Cuba. Em pouco tempo, passaram a apoiar as mesmas burguesias progressistas e colocaram-se contra a tomada do poder pelos trabalhadores em uma série de revoluções. Fidel Castro demonstrou isso ao apoiar a aliança de Allende com a burguesia no Chile e também ao dizer, aos sandinistas, durante a Revolução de 1979, que não se deveria expropriar a burguesia, mas sim aliar-se a ela. “A Nicarágua não deveria ser uma nova Cuba”, afirmou.

    Tanto a burocracia chinesa quanto a cubana foram a linha de frente na restauração do capitalismo em seus países. Hoje, o Partido Comunista cubano representa a nova burguesia que restaurou o capitalismo na Ilha. Por sua vez, o Partido Comunista chinês transformou-se em um partido que governa, de maneira totalitária, o Estado capitalista chinês.

    Após a restauração do capitalismo na ex-URSS, partidos eurocomunistas como o Partido Comunista italiano completaram um processo de reconversão em partidos burgueses.

    A social-democracia e o que restou dos antigos partidos stalinistas, como os de Portugal ou da França, transformaram-se em partidos do “establishment”, cujo programa é a defesa do Estado burguês. Dessa forma, tornaram-se instrumentos auxiliares para que a burguesia implementasse sua guerra social e destruísse o Estado de bem-estar social.

    Artigo publicado em www.pstu.org.br

  • A moral revolucionária e a batalha pela reconstrução da IV Internacional

    A moral revolucionária e a batalha pela reconstrução da IV Internacional

    O problema moral torna-se a cada dia mais candente em todos os âmbitos da vida, mas principalmente na militância de esquerda. A moral das organizações revolucionárias está sob permanente pressão da moral burguesa, sobretudo em uma época de decadência como a que vivemos. Recuperar e manter a moral revolucionária é uma necessidade de vida ou morte para a luta por superar a crise de direção revolucionária mundial e parte essencial na batalha pela reconstrução da IV Internacional. Nesse sentido, a LIT apresenta em seu próximo Congresso essa discussão tão fundamental, da qual publicamos aqui os pontos essenciais.

    Por: José Welmowicki

    «A Quarta Internacional despreza os magos, charlatões e professores da moral. Numa sociedade baseada na exploração, a moral suprema é a da revolução socialista. Bons são os métodos que elevam a consciência de classe dos operários, a confiança em suas forças e seu espírito de sacrifício na luta. Inadmissíveis são os métodos que inspiram o medo e a docilidade dos oprimidos contra os opressores, que afogam o espírito de rebeldia e de protesto ou que substituem a vontade das massas pela dos chefes, a persuasão pela coação e a análise da realidade pela demagogia e pela falsificação. Eis aqui por que a social-democracia, que tem prostituído o marxismo tanto quanto o stalinismo, antíteses do bolchevismo, são os inimigos mortais da revolução proletária e da moral da mesma.» (Leon Trotsky, Programa de Transição)

    INTRODUÇÃO

    A importância da questão moral

    Provavelmente, muitos companheiros se surpreenderão por termos colocado na pauta do nosso Congresso Mundial a discussão de um documento sobre a questão moral. Nossos congressos sempre discutem documentos políticos, balanços e projetos de atividades. E sempre há um ponto onde a Comissão de Controle Internacional (CCI) apresenta um informe dos problemas morais concretos do último período e as possíveis apelações sobre os processos decididos por ela. Mas a discussão teórica e política do tema moral não costuma ser parte da pauta dos nossos congressos.

    O que nos levou a introduzir um ponto sobre este tema no próximo congresso? Em primeiro lugar, é claro que existem sintomas cada vez mais evidentes da decomposição moral não só na sociedade capitalista, mas também nas organizações operárias. Mas isso, mesmo que seja um tema importante, não nos levaria necessariamente a colocá-lo na pauta do Congresso. Entretanto, no último período detectamos várias evidências de que esta decomposição moral vem afetando nossa Internacional. Apesar da nossa tradição em tratar com muita seriedade os problemas morais, constatamos a existência de graves problemas neste terreno também na LIT: casos de quadros que se apoderaram do patrimônio da organização; agressões morais e até físicas a companheiras e, inclusive, o caso de um dirigente que se recusou a comparecer perante à CCI para responder a uma grave denúncia de violência contra sua ex-companheira, chegando a fazer com que uma seção da LIT, o MST boliviano, rompesse com a Internacional.

    Este não é um problema interno. Reflete um processo mais geral: a decadência da sociedade capitalista. Vemos que este tipo de problema tem uma expressão generalizada na esquerda, inclusive a que se reivindica revolucionária.

    Vemos uma realidade lamentável nas organizações de esquerda, praticamente em todos os países, com brigas, inclusive físicas, para controlar entidades em função de seus aparatos, corrupção, fraudes e todo tipo de manobras desleais e ações destrutivas.

    Vemos que essas discussões na esquerda raramente são esclarecidas e aparecem como lutas surdas que, de repente, explodem em rupturas ou lutas fracionais com acusações morais etc. Ou são varridas para “baixo do tapete”, em especial se envolvem dirigentes.

    Acreditamos que nossa preocupação pode causar dúvidas em muitas organizações, inclusive aquelas com as quais temos acordos políticos importantes. Mas queremos abrir francamente a discussão, reconhecendo nossos problemas e chamando para uma reflexão. Poderíamos evitar abrir estas discussões publicamente e optar por discuti-las somente entre nós. Porém queremos que aqueles que têm relação conosco nos conheçam em todos os aspectos, com nossos problemas reais e que, se temos um mérito, é o de não ocultá-los, de identificá-los e buscar combatê-los de forma aberta.

    Sabemos que a moral das organizações revolucionárias está sob permanente pressão da moral burguesa, ainda mais numa época de decadência na qual vivemos.

    Temos orgulho da nossa trajetória e, também neste terreno, reivindicamos os ensinamentos de Trotsky. Sendo assim, se não abrirmos com clareza e firmeza este tipo de discussão e não enfrentarmos os problemas, se baixarmos a guarda e não batalharmos por uma moral comunista em nossas organizações, provavelmente as pressões crescerão ainda mais e poderão destruir nossas organizações revolucionárias.

    Por isso, acreditamos que, para cada um de nossos militantes e para todas as forças que se aproximam na batalha pela reconstrução da IV Internacional, esta discussão é fundamental.

    Sem ela, não haverá uma construção sólida de um partido revolucionário nacional nem da Internacional que tanto aspiramos.

    Alguns problemas morais que afetaram a LIT no último período

    Nosso último congresso reafirmou, por unanimidade, a expulsão de um ex-dirigente de uma seção por se apoderar de dinheiro que um simpatizante havia doado ao partido. Pouco depois do congresso de 2005, a CCI teve de investigar uma gravíssima acusação contra um ex-membro do CEI e da SI, que incluía agressões contra sua companheira. Este companheiro tinha sido enviado para militar na seção boliviana e, nesse momento, era seu principal dirigente. Ele negou-se a responder à CCI e teve o apoio de toda a direção da seção, inclusive do membro da CEI daquele país, que se colocou incondicionalmente em defesa desse dirigente e da sua negação em se submeter à CCI.

    A ampla maioria da LIT reagiu de forma principista em todos esses casos. É importante sinalizar que somos uma organização revolucionária que pode se orgulhar de ter tido uma posição principista em defesa da moral revolucionária quando a maioria das organizações de esquerda, inclusive as que se reivindicam trotskistas ou revolucionárias, sucumbiram às pressões oportunistas também neste terreno. Entretanto, temos de reconhecer que não havíamos identificado o fenômeno de conjunto e nem lhe demos a devida importância. Da mesma forma, não hierarquizamos a necessidade de enfrentá-lo.

    Por que a moral revolucionária é decisiva na construção do partido revolucionário e da IV?

    Inclusive constatando esta realidade, é preciso entender por que devíamos hierarquizar esta discussão neste congresso da LIT. Muitas vezes, encontramos entre os companheiros mais jovens a ideia de que os comunistas não têm uma moral, que este é só um discurso da classe dominante. Definamos então que é moral e o que queremos dizer com “moral revolucionária”.

    O que é moral?

    A moral é uma necessidade para qualquer agrupamento humano, como explicava Nahuel Moreno. 1 Toda estrutura social tem necessidade de normas para sua sobrevivência e sua defesa. Por sua vez, a moral é fruto do desenvolvimento social. Ao contrário do que dizem os ideólogos da burguesia, não existe uma moral universal e eterna, já que ela muda de acordo com as distintas formações sociais, suas relações de produção e as respectivas formas ideológicas e normas morais ao longo da história da humanidade. Isso é o que explica as diferenças entre a moral dominante em sociedades como as escravistas, as feudais ou as capitalistas. Explica, também, por que toda classe dominante necessita impor sua moral aos explorados para garantir seu domínio sobre a sociedade.

    Esta questão leva à discussão sobre a existência ou não de normas universais aceitas desde sempre pelo ser humano. Como se perguntava Trotsky em A moral deles e a nossa:

    Não existem regras elementares de moral, desenvolvidas pela humanidade em sua totalidade, e necessárias para a vida de todo o coletivo?«

    E respondia:

    Existem, sem dúvida, mas a virtude de sua ação é extremamente limitada e instável. As normas ‘universalmente válidas’ são tanto menos atuantes quanto mais agudo é o caráter que toma a luta de classes. Sua validade está ligada à situação da luta de classes. Em tempos de ‘paz’, o homem ‘normal’ observa o mandamento ‘não matarás’; mesmo assim mata em condições excepcionais de legítima defesa. Em tempos de guerra, seja guerra entre estados, seja civil, o Estado muda as normas ‘universalmente válidas’ de ‘não matarás’ para seu contrário.2

    Ou seja, as normas morais «universalmente válidas» são carregadas de um conteúdo de classe. Isso é o mesmo que dizer que são antagônicas. Nas palavras de Trotsky: «A norma moral torna-se mais categórica quanto menos ‘universal’ é”.

    A burguesia tem um interesse vital em impor sua moral às classes exploradas. Como todas as classes dominantes anteriores, utiliza a moral como instrumento de conservação da sociedade e a impõe para demonstrar que é «eterna». Necessita impor sua moral à classe explorada, mas existe uma incoerência entre o que prega e sua prática.

    Aí entra em cena a questão da «dupla moral», que se expressa na hipocrisia típica das igrejas. A burguesia utiliza uma dupla moral que fala de «igualdade» e «bem comum», mas estimula o individualismo e o egoísmo. Reivindica que todos sejam cidadãos exemplares em suas vidas privadas e preocupados com o bem comum enquanto explora e vive da miséria de milhões. Fala-se de uma norma… mas não é para eles. É o famoso «faça o que eu digo, não faça o que eu faço

    Toda a classe explorada, sobretudo a classe operária, que é o sujeito social da revolução socialista, necessita de um programa e de uma organização e também de uma moral oposta pelo vértice à moral burguesa dos exploradores. Respondendo às acusações dos burgueses e dos kautskistas de que os bolcheviques não têm moral, Lênin reafirmava: «quando nos falam de moral, dizemos: para um comunista, toda moral reside nesta disciplina solidária e unida e nesta luta consciente das massas contra os exploradores. Não acreditamos numa moral eterna, denunciamos a mentira de todos os contos sobre moral. A moral serve para que a sociedade humana se eleve à maior altura, para que se desembarace da exploração«

    A moral proletária

    A classe operária necessita de uma moral própria para lutar por seus interesses de classe. Os trabalhadores foram aprendendo com sua experiência nas greves e nos primeiros sindicatos que, sem um forte espírito coletivo, sem uma moral de classe, seria impossível enfrentar a burguesia com sua força econômica e seu aparato repressor. No começo do movimento operário na Europa, foi construída uma moral típica da classe proletária: a noção da solidariedade de classe no âmbito de uma fábrica, de um país e à escala internacional. Ela está extremamente ligada à experiência histórica e concreta da classe operária: sem unidade, é impossível derrotar a burguesia, seja nas lutas cotidianas, seja nas lutas decisivas de um país. Quanto mais se desenvolvem as lutas, mais é necessário ter solidariedade com os irmãos de classe, saber impor a disciplina através de piquetes e investir contra os que querem romper essa unidade e solidariedade, como os fura-greves. Assim, noções básicas da moral da classe são deduzidas: acatar a disciplina dos trabalhadores de sua empresa, cercar de ajuda os companheiros atacados pela patronal, isolar e, se for o caso, reprimir os fura-greves etc.

    A burguesia é consciente da importância desta unidade e disciplina operárias. Sabe que é uma ínfima minoria e sabe que a classe mais perigosa para sua dominação é a classe operária. Por isso, a todo o momento, trata de dividir esta classe, de cooptar indivíduos e setores dela, de opor o individualismo e o egoísmo burguês à moral da classe operária em luta, de corromper dirigentes e estimular a traição. Apoia-se na competição entre os trabalhadores para fomentar a divisão e também para impedir a constituição da moral proletária. Trata de manter a classe operária acreditando num Deus e na possibilidade de ascensão individual como saída para sua situação. Por isso, quando a classe operária entra em combate como classe, começa a romper, na prática, com a moral burguesa.

    Para resumir, a moral proletária é a moral da classe operária em luta contra a burguesia. Sua base é a solidariedade e a unidade frente à classe inimiga, da qual se deduz uma série de normas, como:

    • Cada trabalhador protege e apoia o companheiro de sua classe contra as perseguições da burguesia.
    • Nunca se entrega nem se permite que um companheiro seja prejudicado.
    • Mesmo que existam divergências, atua como classe unida diante do Inimigo. Se um indivíduo da classe viola isto, deve-se impedir e, se é necessário, reprimi-lo com a disciplina do coletivo.
    • Nas relações entre companheiros, e também entre as organizações operárias, deve haver lealdade, honestidade, fraternidade e franqueza.
    • Não se utilizam meios violentos para dirimir diferenças entre membros da classe ou de suas organizações.

    A moral partidária

    Também existe uma moral específica do partido revolucionário, chamada de «moral partidária» por Moreno. O que significa isso? O partido, um instrumento que luta para derrubar a burguesia e construir a ditadura do proletariado, precisa ainda mais de uma disciplina de ferro e uma moral superior à simples moral proletária, mesmo que parta dela.

    A confiança entre todos é seu cimento essencial, é a «confraria dos perseguidos», dos que querem destruir o capitalismo e, por isso, são perseguidos e podem pagar o preço com a própria vida. Portanto, é necessária uma moral superior para manter a força deste tipo de organização, para resistir às prisões, torturas etc. A solidariedade neste campo é muito mais profunda: o companheiro é mais importante que minha própria vida. No partido, o coletivo é tudo. É o oposto à ideia típica do capitalismo: o individualismo e o egoísmo.

    Ao mesmo tempo, se a moral operária exige que um membro da classe acate a decisão da maioria na luta contra a patronal, que cumpra a greve e que os fura-greves sejam freados e castigados, a moral partidária é muito mais exigente, pois é a moral dos que lutam conscientemente para destruir o imperialismo, para fazer a revolução. Ela começa pelos ensinamentos básicos da mesma moral operária, mas não basta cumprir a decisão da greve. Deve-se ser o melhor ativista, deve-se pensar no conjunto, organizar a vanguarda para que garanta a greve etc.

    Para fortalecer a confiança e afiançar a moral partidária, queremos e fazemos com que cada um cresça, desenvolva-se. O partido revolucionário necessita de uma forte moral porque tem que golpear como um só homem os aparatos do Estado burguês. Tem que ser conspirativo diante do Estado e da burocracia. Isso exige uma total confiança entre os camaradas que militam no partido.

    A moral revolucionária é importante para a construção da IV?

    Muitos companheiros opinam que o problema da moral é importante, mas não é decisivo. Que, em última análise, as questões são políticas. Portanto, o fundamental é a discussão política ou programática e os problemas morais são secundários. Por isso, numa aproximação entre organizações, uma vez que existam acordos programáticos e políticos, não se deve reivindicar este tipo de questões como decisivas. Muitas vezes não se entende por que lhes damos tanta importância. Como mostra a história da IV, essa visão é equivocada, porque os problemas metodológicos e morais são decisivos na hora de definir os rumos e adotar medidas organizativas.

    Na década de 30, a Oposição de Esquerda internacional e a IV tiveram que enfrentar os processos de Moscou, a monstruosa perseguição política e moral contra toda a geração de revolucionários bolcheviques e opositores ao stalinismo. Trotsky não teve nenhuma dúvida: era necessário reivindicar como central a resposta às calúnias e aos amálgamas que buscavam a destruição de toda uma camada de revolucionários. Sua campanha contra a «escola stalinista de falsificações» foi um divisor de águas. Se Trotsky não a houvesse enfrentado à altura, com a política do Tribunal Moral, teria sido ainda mais difícil resistir à ofensiva stalinista de associar o trotskismo ao imperialismo e ao nazismo. Deixou-nos toda uma concepção e uma metodologia que serviram para enfrentar o stalinismo e a todas as correntes que tomaram um rumo semelhante.

    Até 1979, a corrente que deu origem à LIT – a Fração Bolchevique (FB) – era parte do Secretariado Unificado (SU) da IV, encabeçado por Mandel, Barnes e outros dirigentes. Havia diferenças profundas entre as posições da FB e as da maioria do SU. Havia polêmicas em todos os terrenos: sobre a ditadura do proletariado, sobre o guerrilheirismo, sobre o caráter dos partidos, sobre se devia ou não construir partidos trotskistas na Nicarágua, na América Central e em Cuba. Uma delas era sobre o caráter da direção e do governo sandinistas, com suas necessárias consequências políticas e programáticas: devia-se apoiá-los politicamente ou não? Mas a ruptura com o SU só ocorreu em 1979 e o elemento decisivo esteve no terreno dos princípios da moral proletária. A FB rompeu quando as direções do SU e do SWP se recusaram a lutar pela liberdade dos membros da Brigada Simon Bolívar presos pelo regime sandinista. Ou seja, violaram o princípio moral proletário básico de apoio e solidariedade frente à repressão de um governo burguês, neste caso o sandinista.

    Moreno teve uma avaliação semelhante quando fez o balanço da ruptura com Pierre Lambert: enfatizou que, apesar das diferenças abismais sobre o caráter do governo Mitterrand e a política frente a ele, e que ele considerava ser a posição da OCI francesa uma grave capitulação a um governo de frente popular imperialista, foram os métodos stalinistas das calúnias e da expulsão de opositores, para não permitir a discussão no interior da OCI e da IV-CI, que impuseram a ruptura. A campanha da LIT, em 1982, ao redor do tribunal moral em defesa da honra revolucionária de Napurí, atacada por Lambert, foi inspirada na luta de Trotsky e da IV contra o stalinismo nos anos 1930, novamente tendo como divisor de águas a questão dos métodos e da moral.

    O retrocesso moral no movimento operário e suas consequências na esquerda

    Os aparatos impuseram um retrocesso moral ao movimento operário

    A social-democracia foi a primeira organização de massas baseada nos princípios inscritos nos textos do Manifesto Comunista e da I Internacional. Seu crescimento e a extensão de sua influência em toda a Europa era um fato nos finais do século XIX. Junto a esse desenvolvimento da organização política, o movimento sindical da classe trabalhadora cresceu e chegou a ter uma poderosa influência nos países da Europa Ocidental.

    Quando o capitalismo entrou em sua fase imperialista, a burguesia percebeu que necessitava de instrumentos dentro da classe operária que evitassem que esta derrubasse o Estado e o sistema. Surgiram os aparatos contrarrevolucionários do movimento operário para frear e aprisionar o movimento operário numa camisa de força. As burocracias sindicais e políticas, apoiadas na aristocracia operária, passaram a ser os agentes da burguesia no interior das organizações de classe do proletariado.

    Ocorreu uma degeneração da social-democracia na fase imperialista, como expressão da aristocracia operária e da burocracia, que a levou a abandonar completamente não só o programa, mas também a concepção da moral proletária. Em 1914, a defesa da guerra imperialista, da «pátria sagrada», da invasão aos países coloniais e o ataque impiedoso ao novo Estado operário soviético, a partir de 1917, dava-se em nome de «princípios morais eternos» por cima das classes, de «respeito à democracia», de «respeito às leis do Estado» burguês, da «paz» etc., ou seja, a velha moral burguesa que antes denunciavam. Enquanto faziam juramentos à «moral eterna», apoiavam a repressão aos revolucionários e foram mandantes dos assassinatos de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht.

    A III Internacional surgiu contra a falência da II Internacional. Inspirada pela Revolução Russa, que tomaria a bandeira da revolução socialista mundial, retomaria a noção de que é moral tudo o que sirva para unir e dar confiança à causa proletária.

    O aparato contrarrevolucionário mais poderoso foi o stalinismo, expressão da burocracia que controlou o Estado operário russo depois de 1923. Foi agente de uma contrarrevolução não só no regime soviético e no programa, mas também no campo moral. As gerações atuais não têm ideia do que significou a ação do stalinismo. Ele trouxe para dentro do movimento operário a mentira, a falsificação sistemática dos fatos, a perseguição aos lutadores, a volta do patriotismo chauvinista, a divisão da classe a serviço da burguesia. A persuasão foi substituída pela coação. A análise honesta da realidade pela demagogia e pela falsificação. As calúnias e os amálgamas foram introduzidos como método generalizado no movimento operário do mundo inteiro.

    O que significou o amálgama em sua utilização pelo stalinismo? Mesclar conscientemente acusações políticas e morais para manchar a honra do adversário político. Rompia-se com uma tradição moral proletária de quase um século: no caso de acusações à conduta ou à honra pessoal de um militante, estas não deviam ser misturadas com as discussões políticas contra esse militante. Stalin transformou em prática sistemática a metodologia de desqualificar o oponente, em primeiro lugar, com acusações contra seu caráter: «que tinha sido corrompido ou traído a causa», «que estava a serviço do imperialismo» e, por isso, estaria defendendo tais posições.

    Stalin acusava seus adversários de «agentes sabotadores a serviço do imperialismo» e, sem dar-lhes nenhum direito à defesa sobre essa acusação concreta, passava a associar suas posições políticas divergentes ao suposto fato de serem «sabotadores do Estado operário». Portanto, argumentava o stalinismo, suas opiniões seriam simplesmente uma expressão da sua traição com o objetivo de levar a URSS ao desastre. Qualquer posição desses adversários, fosse sobre a revolução chinesa, sobre a política econômica ou outra, não seria considerada como uma divergência legítima a ser debatida, mas sim como consequência direta de sua suposta traição. Stalin fez isso com toda uma geração dos melhores quadros revolucionários da classe operária russa e mundial.

    Para eliminar esses «traidores» valia qualquer método, inclusive um acordo espúrio ou secreto com o inimigo de classe. Entregar um adversário ou deixar que fosse demitido pela patronal passava a ser «parte do jogo». A tortura e o assassinato dos que ousassem contrapor-se à «linha» da burocracia dirigente ficavam assim justificados. Mas não bastava o assassinato físico; era necessário também o «assassinato moral», taxando-os de «contrarrevolucionários», em base a confissões arrancadas por meio de torturas de todo tipo.

    Até o surgimento do stalinismo, esse tipo de calúnia contra os dirigentes era desprezado no movimento operário. Houve um exemplo famoso durante a revolução russa, quando Lênin voltou ao país num trem autorizado pelo governo da Alemanha. Os chacais da burguesia, do governo e do imperialismo acusaram-no de «agente a serviço da Alemanha». Não foi necessária nenhuma campanha para que Martov, líder menchevique e adversário político de Lênin, saísse em defesa de sua honra revolucionária.

    A burocracia stalinista mudou completamente essa situação. A URSS era a referência do movimento operário internacional e a Internacional Comunista era poderosa. A moral proletária sofreu um duro golpe pela ação contrarrevolucionária do stalinismo. Seus crimes entregaram a bandeira para que o imperialismo fizesse uma campanha de desprestígio moral do «socialismo», que se reflete até hoje na consciência da classe operária mundial.

    Esse retrocesso teve repercussões profundas no interior dos partidos e dos sindicatos. As consequências políticas foram nefastas: semeou o ceticismo, a confusão e a desconfiança entre os trabalhadores. Pois, como entender que dirigentes revolucionários de toda uma vida, lutadores de primeira linha fossem, de repente, apontados como frios traidores a serviço do inimigo de classe? Para defender seus privilégios, a burocracia precisava criar justificativas hipócritas. Nas palavras de Trotsky:

    «Quanto mais brutal for a transição da revolução à reação, mais a reação depende das tradições da revolução, ou seja, mais teme as massas e tanto mais se vê forçada a recorrer à mentira e à falsificação3

    A degeneração do movimento operário na etapa do «vale-tudo»

    Hoje, vivemos um novo período de degeneração pela decadência cada vez maior do capitalismo, que já despreza todo tipo de critério moral, inclusive aqueles que defendia em sua fase de ascenso. A decadência do capitalismo em sua fase senil provocou tamanho saque e destruição da natureza que chega ao ponto de justificar qualquer ataque aos mínimos direitos individuais para garantir seus lucros. O resultado é uma decadência moral do imperialismo no terreno das relações humanas que chegou a limites antes inimagináveis.

    Essa decadência penetra no seio dos explorados e oprimidos. E o individualismo mais exacerbado em que vale prejudicar desde o colega até um familiar para conseguir um emprego ou uma vaga na universidade. É o vale-tudo da sobrevivência num mundo decadente, onde não aparece uma saída clara para as massas. A moral decadente expressa-se em «cada um com seus valores, cada um defende seus interesses a qualquer preço«

    Essa situação teve seu reflexo no interior do movimento operário e da esquerda, devido ao que chamamos de «vendaval oportunista», no marco da restauração do capitalismo nos ex-Estados operários, e com o capitalismo apresentando-se como «triunfante». Como a restauração se deu pela via da democracia burguesa, proclamou-se «o fim da história». A esquerda, inclusive aquela que se reivindicava revolucionária, foi afetada profundamente e atraída para o jogo da democracia burguesa, considerada como «valor universal»

    Antigos dirigentes da esquerda entraram nos governos e assumiram cargos nas administrações federais, estaduais ou municipais. Ao mesmo tempo, entraram numa dinâmica de corrupção, semelhante ou pior do que a dos administradores habituais da burguesia. Vide o caso do PT brasileiro, cujos dirigentes, em grande parte oriundos da esquerda revolucionária ou da guerrilha, participaram em sucessivas fraudes, roubos, mentiras e manobras de todo tipo. Ou os ex-guerrilheiros tupamaros, que participam do atual governo do Uruguai. Era um fato que, independentemente de suas concepções errôneas, eles eram combatentes contra o imperialismo e arriscavam a vida por uma causa. Agora, ao assumir o mesmo papel que antes criticavam na social-democracia e nos PCs, incorporaram os padrões morais da burguesia decadente, uma moral putrefata.

    O Parlamento e as facilidades que ele oferece a seus membros são fatores de corrupção. A esquerda, que antes raramente tinha deputados, passou a conquistar postos e ter acesso a seus benefícios, inclusive a esquerda revolucionária. Numa sociedade decadente e com uma esquerda que perdia a referência na revolução, inclusive em setores que têm sua origem no trotskismo, o efeito foi devastador.

    Outra fonte de corrupção são os sindicatos onde, como previa Trotsky, a dependência em relação ao Estado é cada vez maior. A colaboração com as burguesias e os governos, principalmente onde existem frentes populares, pressiona terrivelmente esses dirigentes e afeta inclusive os que vêm da esquerda revolucionária nesse marco de retrocesso. A burocratização e a luta pelos respectivos aparatos e privilégios acabaram por corromper uma ampla camada de antigos ativistas, como está ocorrendo na CUT brasileira, e é um fator de pressão enorme sobre as organizações que se reivindicam revolucionárias. A pressão patronal para entregar os direitos trabalhistas em acordos feitos pelas costas da base do sindicato foi se estendendo. As fraudes nas eleições sindicais são frequentes, assim como a venda de mandatos sindicais para a burguesia, traindo a confiança dos trabalhadores.

    Não estamos falando da burocracia tradicional, mas de organizações e dirigentes com trajetória na esquerda que acabam sucumbindo a essas pressões, no marco da decadência moral, do vale-tudo a que nos referimos. E como houve essa decadência, muitas vezes parece natural para a própria base dos sindicatos que os dirigentes ganhem um «extra», ou seja, «presentes» da patronal ou do governo. Afinal de contas, «é preciso levar alguma vantagem como sindicalista» nos dizem muitos trabalhadores.

    Os efeitos da marginalidade do trotskismo e da pressão do stalinismo no terreno moral

    A luta contra Stalin e seus métodos de calúnia e perseguições marcou a formação da Oposição de Esquerda e a própria fundação da IV Internacional. Entretanto, apesar de toda a batalha de Trotsky, o movimento trotskista arrastou problemas estruturais que marcaram a Oposição de Esquerda e a própria fundação da IV.

    Fundada na contracorrente e em pleno auge do stalinismo, a IV esteve condenada à marginalidade por um longo período. Foi duplamente pressionada: pelo imperialismo decadente e pelo stalinismo. Isso fez com que o movimento trotskista sofresse os efeitos da situação também no terreno moral e metodológico. Depois da morte de Trotsky, esse isolamento manifestou-se com mais força sobre uma direção pequeno-burguesa e frágil. Paralelamente ao revisionismo que capitulava à burocracia stalinista no terreno político, Pablo e a direção da IV dessa época usaram métodos típicos do stalinismo em 1951-53 para abortar a discussão. Em 1952, a direção pablista quis impor à seção francesa, o Partido Comunista Internacionalista (PCI), a política de «entrismo sui generis” nas organizações stalinistas. Para isso, afastou 16 membros da direção do PCI e depois substituiu essa direção, expulsou os opositores e tomou de assalto as sedes da seção, tudo para beneficiar seus seguidores e esmagar a maioria da seção que discordava da política do SI pablista. A explosão da IV e sua dispersão foram fruto direto dessa ação.

    O outro tipo de pressão que sofreu teve a ver diretamente com a marginalidade e a dispersão depois da crise de 1951-53. As seitas de origem trotskista mantiveram várias dessas características nefastas inseridas pelo stalinismo no movimento operário.

    Uma expressão disso ocorreu em grande parte do fenômeno que Moreno denominou «nacional-trotskismo»: organizações que, mesmo que se proclamem trotskistas e a favor da IV Internacional, reivindicam-na como um programa para o futuro, geralmente para quando esse partido nacional tiver forças suficientes para proclamar essa nova Internacional. Na prática, estas organizações buscam só relações com outras organizações e não constroem uma organização internacional superior à qual se subordinem.

    Esse é o caso da LO da França, de Lambert e, anteriormente, Gerry Healy na Grã Bretanha e o SWP dos EUA. Quando constroem algum tipo de tendência ou corrente internacional, essas são apenas apêndices da organização fundadora que condicionam todas as decisões políticas neste terreno aos interesses imediatos da “organização-mãe”.

    Moreno alertava sobre um aspecto deste tipo de organização que, muitas vezes, acarreta graves problemas metodológicos e morais: para elas, a questão mais sagrada é a “defesa da organização”, na realidade, a defesa de seus dirigentes “contra os ataques externos e internos”. Gerry Healy usava a expressão “defesa da segurança da organização”, ou seja, se surge alguma luta política contra a direção, é lícito para estes dirigentes acusar moralmente, caluniar, mentir para sua base, distorcer as discussões políticas com amalgamas, expulsar qualquer quadro que mostre divergências com a direção “ameaçada”. A experiência comprovou que esse tipo de organização muitas vezes se degenera rapidamente no terreno dos métodos e da moral.

    No caso de Healy e de Lambert, ao lado dos métodos burocráticos, desenvolveram um método de destruição pessoal dos quadros e dirigentes que os questionavam. Métodos tipicamente stalinistas, cobrindo-os de calúnias e ataques morais. Não vacilaram frente a nada para defender sua seita nacional e seu papel individual nela. Healy passou décadas acusando caluniosamente a Joseph Hansen, dirigente do SWP dos EUA, de agente da GPU ou da CIA e de haver sido supostamente cúmplice do assassinato de Trotsky. Depois, foi denunciado por dirigentes do WRP por utilizar seu papel de dirigente intocável do partido para assediar e estuprar militantes que eram empregadas do aparato central. Esta degeneração levou à explosão do WRP e ao virtual desaparecimento da corrente healista.

    Esta metodologia era independente de uma tendência política determinada. Healy era sectário nos anos 50 e 60 e se negava a reconhecer os novos Estados operários deformados na China e no Leste europeu. Nos anos 70 e 80, capitulava completamente aos dirigentes burgueses nacionalistas, como Kadafi da Líbia e aos líderes do partido Baath do Iraque.

    Lambert expressou a mesma lógica de Healy. De uma posição similarmente sectária nos anos 60 com respeito aos novos Estados operários deformados passou à adaptação aos aparatos sindicais como a central Force Ouvrière e à capitulação à social democracia, que se mostrou com clareza na posição com relação ao governo Miterrand. Frente à discussão aberta no interior da QI-CI 4 em relação a essa posição, Lambert reagiu com acusações, amalgamas e expulsões na OCI francesa e com acusações públicas ao dirigente histórico peruano Ricardo Napuri, nesse momento senador. Para justificar sua expulsão, acusou-o de não entregar sua cota ao partido, ou seja, de ficar com o patrimônio da organização. Este método seria repetido mais tarde com o próprio Stefan Just, dirigente histórico do lambertismo na França: quando simplesmente tentou defender um militante expulso por ter diferenças políticas, acabou sendo separado da organização francesa por Lambert. O resultado de toda essa degeneração foi a decadência total da corrente lambertista, reduzida apenas a um aparato na França e alguns pequenos apêndices em outros países, com vínculos com aparatos locais, como O Trabalho, até hoje defensor do PT e da CUT no Brasil.

    Vemos que hoje, em várias organizações deste tipo, utilizam-se esses mesmos métodos. Para o PO argentino, qualquer coisa vale para “defender a organização”: em 2001, agrediram os militantes trotskistas do PSTU e da FOS numa marcha contra a ALCA, em Buenos Aires, por ameaçar seu “espaço” em seu “território nacional”.

    Para eles, é lícito utilizar calúnias e falsificações como método permanente. Num artigo de L. Magri no jornal Prensa Obrera 979, o PO acusou Moreno, entre outras barbaridades, de ter apoiado a ditadura de Batista contra Fidel Castro, de apoiar o golpe da direita em 1955 contra Perón, de capitular à burocracia peronista, de apoiar a saída institucional de Lanusse e Perón em 1972 e de vacilar diante da ditadura de Videla.

    É claro que, em cada um destes casos, como lhe respondeu a FOS, eles tinham todo o direito de discordar e polemizar com as posições que a corrente morenista tomou nestes distintos momentos. Mas, em vez de fazer isso, falsificam a realidade a tal ponto que afirmam que Moreno apoiou a Revolução Libertadora (o golpe militar de 1955 contra Perón) ou que o PST argentino capitulou à ditadura de Videla, o que são puras calúnias. Na realidade, a corrente de Moreno esteve à frente da resistência antes e depois do golpe de 1955 e, em 1976, perdeu mais de 100 militantes frente à repressão por resistir ao golpe de Videla e à ditadura de 1976-82.

    Para Jorge Altamira, 5 é lícito falsificar a história e inventar calúnias para desqualificar os adversários políticos. Tudo isso sem sequer dar um exemplo ou um fato comprovado que pudesse justificar tão graves acusações. Eles fazem uma “interpretação” muito semelhante às que o stalinismo costuma fazer, utilizando amalgamas e mentiras para tentar destruir o adversário.

    O método que Lambert aplicou na cisão da CI-CI repetiu-se com o PO e a cisão do Progetto Comunista da Itália. O PO havia formado, em 2004, um organismo internacional com algumas organizações, a Coordenadoria pela Refundação da IV (CRCI). Nela, a única organização nacional fora da Argentina com certa implantação na realidade de seu país era o Progetto Comunista. Entre fins de 2005 e inícios de 2006, um debate que começou pela concepção leninista e sobre o caráter do partido que deviam construir dividiu a organização e sua direção pela metade. Esta discussão foi impedida pela ala de Grisolia e Ferrando, que passa a atacar a outra ala e dividir o partido. O outro setor formou o PC-ROL (hoje PdAC). Mais adiante, incorporou-se a discussão sobre a permanência na Refundação Comunista (PRC), depois que essa tomou a decisão de apoiar e participar do governo burguês de Prodi. O PC-ROL foi separado de todas as instâncias da organização internacional e fez uma contraproposta de realizar uma discussão interna serena e ampla dentro da CRCI. Ao mesmo tempo em que não respondeu a esta proposta do PC-ROL, a direção do PO somou-se à ala Grisolia e escreveu um artigo público contra os outros camaradas, lançando todo tipo de insultos, calúnias e ataques morais, e os separou da tendência internacional sem direito à defesa em nenhum organismo. 

    A refração no trotskismo na fase neoliberal foi mais profunda e generalizada

    Se a pressão do stalinismo e a marginalidade geraram a capitulação ao stalinismo e também características sectárias e aparatistas e uma profunda deformação que levou as organizações trotskistas à degeneração no terreno moral, o processo mais recente teve um efeito mais generalizado e destruidor das organizações que antes se reivindicavam da IV.

    Desde o final dos anos 80, a pressão mais importante sobre o movimento trotskista tem a ver com a decadência moral do imperialismo e com o «vendaval oportunista». A conversão de organizações e partidos ao regime burguês, em nome da «radicalização da democracia», levou a uma degeneração impressionante no terreno metodológico e moral.

    A Democracia Socialista (DS) do Brasil, antes vinculada ao SU, assumiu o ministério da Reforma Agrária no governo Lula, um dos mais pró-imperialistas da América Latina, e é responsável pela implementação da política pró-latifúndio de Lula. Hoje, a DS governa o estado do Pará, onde a repressão aos camponeses é terrível: é o Estado brasileiro que lidera o número de assassinatos de trabalhadores rurais na luta pela terra. A governadora do estado, Ana Júlia, ao assumir o governo, criou um destacamento especial da polícia (a Rotam), denunciada pela Anistia Internacional como uma das mais violentas do Brasil na repressão aos «distúrbios sociais». As ocupações urbanas e as greves dos funcionários públicos, motoristas e operários da construção civil são brutalmente reprimidas. No Dia de Luta promovido pela Conlutas, em maio de 2007, o Pará foi o lugar do Brasil onde a repressão foi mais violenta. Recentemente, um ato dessa governadora levou a DS a se comprometer em um terreno onde sempre tentou aparecer como vanguarda: a defesa dos direitos da mulher. Uma adolescente de 15 anos foi detida pela polícia do Pará e presa numa cela junto a 20 homens para ser estuprada pelos presos como castigo por um suposto roubo. A governadora justificou-se dizendo que «infelizmente, casos de mulheres presas em celas com homens realmente existem» (nesse momento, havia pelo menos mais quatro casos de mulheres nas mesmas condições). Assim, para garantir sua boa relação como administradora do Estado burguês, Ana Júlia, da DS, converteu-se em cúmplice do abuso e da tortura de mulheres nas prisões pelo aparato policial.

    Como expressão dessa decadência, a DS foi arrastada, junto com a direção do PT, à crise do «mensalão» 6 de 2005. A degeneração dessa corrente acelerou-se depois de sua adesão à «democratização do Estado» burguês e é cada dia maior. Ou seja, um fato extremamente positivo, a queda do stalinismo, acabou por trazer todo tipo de pressões a organizações que nunca haviam tido a possibilidade de ocupar espaços nas instituições burguesas. Nesse espaço aberto, inclusive para algumas organizações antes marginais que conseguiram ganhar lugar na institucionalidade burguesa, passaram a sofrer as mesmas pressões e a girar à direita, vivendo um processo de degeneração no terreno metodológico e moral.

    Uma espécie de «moral do aparato» tomou conta das organizações que ocuparam alguns desses espaços. O caso da Argentina, no início do século XXI, é ilustrativo. O movimento de Luiz Zamora, o MST e o PO conquistaram cargos no Parlamento. Correntes que têm sua origem no trotskismo e na LIT, como o MST (MES no Brasil), passaram a construir organizações que giram ao redor dos mandatos parlamentares e fazem de tudo para manter sua presença nessas instituições burguesas que, por sua vez, garantem-lhes sua manutenção financeira.

    Os métodos e a moral dessas correntes parlamentares não têm nada a ver com a moral revolucionária. Seus militantes são educados para girar toda sua atividade em função das eleições e da manutenção dos cargos nas câmaras e prefeituras. A sustentação financeira já não é garantida pela militância, mas pelas várias formas de extrair fundos do Estado (gabinetes, mandatos, planos de trabalho etc.).

    Outro fato surpreendente dos últimos anos é a existência de organizações que se reivindicam de esquerda, e até revolucionárias, que são financiadas, e de fato corrompidas, pelas ONGs ou pela social-democracia, em especial no Leste europeu e em países semicoloniais muito pobres.

    As organizações que aceitam a total dependência financeira dos distintos aparatos do Estado burguês de fato estão sendo corrompidas e podem perder todo critério moral proletário. Um exemplo disso é que fazem acordos e depois não os respeitam, como o MST argentino que, durante sua última ruptura, fez um acordo sobre a legalidade e a divisão de fundos com o setor dissidente, atual Izquierda Socialista. O MST não cumpriu o acordo e apelou para a Justiça burguesa para quebrá-lo.

    Tudo vale para conseguir votos e cargos: alianças policlassistas, levar filiados pagos para as convenções dos partidos, baseados nos mesmos métodos dos partidos burgueses ou reformistas (como fez o MES brasileiro na última convenção do PSOL). Se por acaso vão às lutas operárias e populares, não é para impulsionar a organização e fazer a militância avançar. Só intervêm na luta de classes para construir o prestígio de seus líderes, parlamentares e figuras públicas ou manter algum aparato que permita alcançar melhores resultados. As fraudes nas eleições sindicais são consideradas válidas para fortalecer o peso dessas correntes. Tudo gira em torno dos mandatos e da manutenção dos aparatos que os sustentam.

    Mesmo que as pressões venham dessa adaptação ao Estado burguês, não queremos dizer que haja necessariamente uma degeneração moral em todas as organizações de esquerda que assumem cargos no parlamento ou mesmo naquelas que passam a girar em torno das eleições burguesas. Não se trata de uma consequência inexorável da participação no parlamento, mas de uma combinação entre uma pressão objetiva real e um desarme no terreno moral que permite que essas organizações sejam tragadas pelo vendaval oportunista. Assim como Trotsky dizia que nem toda a social-democracia era moralmente degenerada, este é um terreno específico que se deve analisar caso a caso. Só constatamos que essa barreira de classe moral, infelizmente, tem sido transposta por um número cada vez maior de organizações de origem trotskista. Trata-se, exatamente, de enfatizar a importância de entender esse processo para contrapor-lhe uma moral revolucionária.

    O efeito na LIT: crises e destruição também no terreno moral

    Uma trajetória moral que reivindicamos

    A corrente fundada por Moreno, que deu origem à LIT, tinha uma trajetória de décadas de provas de moral partidária, educada nas lutas contra as ditaduras, como as da Argentina de 1955-1958, 1969-1973 e 1976-1982, ou a luta dos camponeses peruanos na década de 1960, ferozmente reprimida, que levou à prisão de Hugo Blanco e outros companheiros internacionalistas. Essa trajetória de anos formou uma sólida moral nos quadros, que explica a força dos militantes do PST argentino que caíram presos e foram submetidos a torturas e assassinatos, mas não entregaram seus companheiros.

    Por outro lado, nossa corrente sempre atuou com a metodologia de Trotsky com relação às acusações morais sem provas ou aos amálgamas stalinistas. Repudiamos as calúnias de Healy ou dos «espartaquistas» contra Joe Hansen desde o primeiro instante, tanto quando tínhamos acordo com o SWP dos EUA, quanto quando não o tínhamos

    Além do caso Napuri, já relatado, tivemos outros em que nosso comportamento foi semelhante. Como no caso Bacherer, que é importante citar, pois este dirigente não era da nossa corrente, mas do nosso adversário político na Bolívia (o POR-Lora). Numa polêmica aberta entre ele e a direção lorista, Bacherer enfrentou o mesmo tipo de métodos canalhas de acusações morais para justificar sua expulsão do POR. A LIT estimulou a conformação de um Tribunal Moral que julgasse as acusações contra ele. Nossa seção boliviana assumiu a organização da campanha, com o grupo de Bacherer (nesse momento vinculado ao PO argentino). O camarada Zé Maria do PSTU foi enviado para participar desse Tribunal em La Paz.

    Aprendemos com a forma como Moreno respondeu, em toda sua trajetória, às diferenças de fundo dentro da nossa organização. Para citar um exemplo: a ruptura com Vasco Bengochea quando aderiu ao castro-guevarismo, no início da década de 1960. Neste caso, as diferenças eram tão grandes que foi necessária a separação em organizações diferentes, mas Moreno sempre teve uma atitude muito respeitosa, da mesma forma que Bengochea. O mesmo aconteceu na relação com Kemel George, membro do CEI da LIT, e sua corrente, quando assumiu uma posição guerrilherista e rompeu com o PST colombiano e com a LIT, em 1987.

    Também temos uma tradição de como enfrentar a violação dos princípios por parte dos militantes, sobretudo se são dirigentes ou quadros com tarefas públicas. A então corrente brasileira da LIT, a Convergência Socialista (CS), elegeu dois vereadores em 1982, quando estava dentro do PT. Um deles, de Campinas, comunicou à direção, pouco depois de ser eleito, que o salário de vereador seria dele e não do partido. O CC manteve-se firme na defesa de que todo o ingresso proveniente do parlamento era do partido e não abandonou esse princípio. Como ele não aceitou, foi afastado da organização. Outro caso se deu com o primeiro prefeito eleito pela CS, ainda no PT, em 1988, na cidade de Timóteo. Esse prefeito reprimiu uma greve de funcionários e foi imediatamente afastado e expulso de nossa organização.

    Essa reação de defesa dos princípios ajuda a entender por que a CS conseguiu atravessar o período de atuação no PT e sair com a maior parte de sua estrutura de quadros intacta, ao contrário, nesse aspecto, de outras organizações trotskistas que, na mesma época, praticaram o entrismo no PT e depois se degeneraram completamente. Essas organizações não entendiam como podíamos atuar assim, afastando ou expulsando parlamentares e prefeitos eleitos, com todo o peso que tinham, em particular com os votos que haviam acumulado.

    Acreditamos que essa trajetória moral revolucionária, que formou gerações de quadros da nossa corrente, explica por que, apesar dos graves problemas ocorridos no final da década de 80, a LIT tem tido reservas suficientes para reagir a esses desvios e reconstruir nossa Internacional e continua tendo uma postura moral diferenciada da ampla maioria das demais correntes de esquerda. Inclusive daquelas que provêm do trotskismo, mas entraram num processo de degeneração profunda nesse terreno.

    O efeito da crise da LIT no terreno moral

    A crise da LIT, como concluímos no documento de Balanço de 2005, chegou a torná-la irreconhecível. Estava destruída ao ponto de termos de lutar por sua reconstrução. Abriu-se um retrocesso metodológico e moral com relação a toda a trajetória da corrente, chegando à utilização de mentiras e calúnias, de violência entre camaradas na luta pelos bens e patrimônios do partido que, em nenhuma hipótese, tinham justificativa no grau das diferenças surgidas na luta fracional.

    Como já escrevemos no Balanço do último congresso, a situação política dos anos 90, com a restauração do capitalismo via reação democrática e o abandono do marxismo revolucionário pela ampla maioria das correntes de esquerda, que denominamos “vendaval oportunista”, criaram as bases objetivas para a crise da LIT. Neste marco, em que era inevitável que a LIT passasse por uma forte crise, a morte de Moreno foi decisiva para que, em vez de enfrentar essa crise e superá-la, acontecesse uma verdadeira destruição de nossa internacional. Como dizemos no balanço: “se Moreno não tivesse morrido, dificilmente a crise da LIT teria culminado com sua destruição”.

    Temos de agregar que, se há um campo em que a ausência de Moreno se fez sentir especialmente, foi no terreno metodológico e moral. O retrocesso e a destruição aí se manifestaram de forma generalizada. Houve graves problemas morais no MAS argentino e na LIT, refletindo a profundidade dos desvios que envolviam a revisão do programa, da concepção do partido e uma adaptação profunda à democracia burguesa.

    O espírito do vale-tudo penetrou, a partir de sua direção no interior da Internacional. Valia tudo para derrotar o inimigo interno, manobras, mentiras etc. Lutas duras pelos aparatos do partido, pelos mandatos dos parlamentares, patrimônios e sedes tornaram parte comum da vida interna. O desprezo pelas finanças dos “adversários” fez com que, dependendo de quem dirigia determinada seção, se considerasse válido dilapidar de forma irresponsável seu patrimônio. 

    A crise afetou o regime e debilitou a moral do conjunto da LIT. A moral partidária depende da confiança na organização bolchevique, de que cada companheiro coloque, em primeiro lugar, a defesa do camarada. Está apoiada na confiança em que sua causa, a luta pela revolução socialista, os une frente ao capitalismo imperialista. Com a explosão da crise, no marco da ofensiva ideológica e política do imperialismo, depois da queda dos ex-Estados operários, que afetou o conjunto da esquerda, a convicção na revolução e a identificação programática ficaram debilitadas. Cada uma das frações deixava de ver-se não como parte de um coletivo superior, a LIT, mas sim como uma fração com objetivos próprios e imediatos. Isto foi válido para o conjunto das frações em que a LIT se dividiu. A maioria do PST espanhol formou uma fração com uma organização, SR da Itália, que não pertencia à LIT e atuava na Internacional e fora dela como uma fração pública para dissolvê-la, ou seja, destruí-la, pois “seu projeto tinha fracassado”. Cada setor separado ficava mais vulnerável às tremendas pressões vindas da sociedade e da moral decadente que predominavam nela. 

    Finalmente, se a revolução estava postergada para um futuro distante o fundamental era, como afirmavam algumas das frações, o “estudo e o rearme teórico”. Ou, como afirmavam outras alas, a meta fundamental era ganhar peso no parlamento, confundindo isso com “ter influência de massas”. O objetivo imediato de cada setor ganhava um peso estratégico. O decisivo era ter um deputado ou o fundamental era estudar, buscar um “novo caminho”, revisando o marxismo, montar uma revista para avançar no “rearme teórico-político”. E o partido e a Internacional eram um obstáculo.

    Em muitos países, passaram a existir duas ou até três seções da LIT, ou das distintas frações e correntes em que ela se dividiu. Em muitos casos, a lógica foi a disputa do espaço, buscar destruir a outra organização como se fosse inimiga, baseada em qualquer tipo de justificativa. Usou-se o método que a LIT sempre repudiou e combateu, por exemplo, na luta contra o lambertismo, como as acusações sem provas a militantes de outra fração, ou membros das organizações surgidas na ruptura, para destruí-los.

    Reconstrução e sequelas 

    Apesar de todo esse retrocesso, a LIT tinha reservas, a tradição baseada na trajetória da corrente morenista, e houve uma resistência a este tipo de métodos e ao retrocesso no campo moral. Esta resistência foi ampliada até dar forma, a partir de 1994, a uma luta pelo resgate e reconstrução da LIT, também no terreno metodológico e moral. 

    Depois de várias rupturas e uma dura luta interna, a maioria da Internacional passou a reverter este processo de destruição, a partir do V Congresso, em 1997. Em nossa opinião, a maior prova da existência dessa tradição e dessas reservas morais é que se conseguiu impedir a dissolução e avançar rumo à reconstrução. Esta decisão do congresso de 1997, manter a LIT no marco dos princípios políticos e organizativos do programa da IV Internacional e assumir a batalha por sua reconstrução, foi a chave para todo o processo que veio depois e para poder retomar, também, a metodologia e a reconstrução da confiança entre os quadros, e a moral partidária na nossa Internacional.

    Mas isso não significa ignorar as graves sequelas que ficaram do período da crise e destruição. Este quadro de retrocesso, de perda de confiança não se refletiu somente nos dirigentes e nas frações, mas na camada mais ampla de quadros que havia dedicado sua vida à reconstrução do partido e da Internacional. Por isso, depois do congresso de 1997, em que se vota por pequena margem manter a LIT baseada no seu programa e concepção de Internacional centralizada democraticamente, a batalha pela sobrevivência é vitoriosa, mas as perdas são enormes e as sequelas na coluna de quadros são profundas. Uns 80% dos antigos quadros já não militavam mais nela. 

    Por outro lado, num rápido resumo da evolução posterior da ampla maioria das organizações que romperam com a LIT, podemos dizer que foram degenerando cada vez mais, foram abandonando conscientemente a metodologia e a moral partidária típica do morenismo, voltando a se dividir sucessivas vezes ou, simplesmente, deixando de existir como correntes.

    Nestes processos de rupturas e divisões, muitas vezes apareceram os problemas morais em forma ainda mais agravada pelo isolamento e pela perda da perspectiva revolucionária e internacionalista. As ocupações dos locais voltaram a acontecer, a utilização por um grupo de uma possessão legal circunstancial de um bem do partido para tirar esses bens da organização, em seu benefício, ou, inclusive, a usurpação da legalidade burguesa, em detrimento da maioria. 

    Outra violação básica que se estendeu de forma preocupante foi o não-cumprimento de acordos assinados. Houve casos em que acordos assinados entre duas organizações de trajetórias comuns para uma repartição de bens ou de entradas foram simplesmente descumpridos sem maiores explicações. As manobras de todo tipo para apropriar-se individualmente dos bens do partido, como a legalidade ou sobre a divisão do patrimônio, foram frequentes nestes processos. A posse do nome, do jornal ou do site e até arquivos de um militante ou grupo de militantes que rompiam com seu partido e os tinham em seu nome, reivindicava-se o direito a explorar os direitos de propriedade e inclusive contestar sua ex-organização na justiça burguesa.

    Ouvimos, recentemente, de várias organizações ou grupos, expressões como: “que podemos fazer, vivemos na lei da selva!” ou “que essas purezas morais são coisas do passado”.

    É a expressão do que chamamos “vale-tudo” dentro das organizações que se dizem revolucionárias. Os que hoje são vítimas das manobras, amanhã fazem o mesmo com os outros e, nesse processo, aprofunda-se a perda de referência moral e a degeneração do conjunto.

    Tivemos uma trajetória oposta a estes setores porque não aceitamos a moral do vale-tudo. Buscamos retomar as tradições e a trajetória da IV de Trotsky e de nossa corrente e polemizar com os defensores do vale-tudo. Reconhecemos nossas fragilidades e percebemos as tremendas pressões que a decadência do imperialismo exerce. Mas alertamos nossos quadros de que temos de enfrentar cada uma delas se queremos reconstruir a IV e os partidos revolucionários em cada país. 

    Um exemplo de que se mantinham os critérios morais bolcheviques e que a decisão de 1997 da continuidade da LIT tinha uma expressão direta no terreno moral se expressou através de um episódio pouco conhecido. Aconteceu pouco depois desse congresso, no qual o MAS argentino propôs dissolver a LIT como Internacional centralizada. Ao ser derrotado, esse partido decidiu não acatar a votação e rompeu com a LIT. Nesse momento, uma quantidade importante de dinheiro do MAS estava sob a guarda de um militante que, nessa ruptura, ficou com a LIT e desligou-se do MAS. A direção dessa organização, que acabava de romper com a LIT, procurou a direção da Internacional e solicitou que esse dinheiro fosse entregue. A LIT, cuja situação financeira era difícil, imediatamente garantiu que todo o dinheiro chegasse às mãos da organização argentina, já que não era mais da LIT. A razão era muito simples: esse dinheiro era fruto do esforço da militância do MAS e a esse partido e a sua direção lhes cabia dispor desses recursos para o projeto que decidissem. Esta era a metodologia tradicional da nossa corrente e não fizemos mais do que resgatá-la, mas a ampla maioria das correntes que romperam com a LIT não podem apresentar exemplos como este.

    Por outro lado, no último período, já não nos vemos tão solitários nessa luta. Como contraponto a esta degeneração cada vez maior das organizações de origem trotskista, inclusive as que foram parte da LIT, tivemos a satisfação de encontrar setores que, vindos do morenismo, reagiram a ela. Como o CITO, que hoje já se unificou com a LIT, ou como a Esquerda dos Trabalhadores (IT) da Argentina, que participou da UIT e da ruptura da mesma com o MST, e que já avançou na reaproximação coma LIT, estabelecendo um comitê de enlace com o FOS da Argentina.

    Também temos, desde março de 2007, um processo de discussão e reaproximação com a UIT a partir de sua ruptura com o MST. Na nossa agenda de discussão, foram pautadas, de comum acordo, para verificar a possibilidade de convergir, os temas programáticos, de concepção de partido e também de questões de método e de moral. Nossa perspectiva, se houver acordo nos temas essenciais, é confluir numa sólida organização internacional.

    Queremos examinar este processo e tirar as lições junto a todas essas organizações e ao ativismo revolucionário. Acreditamos que, seja para os que vêm do trotskismo e do morenismo, seja para os que vêm de outras tradições, são discussões essenciais para construir uma internacional revolucionária.

    Desde o congresso de 1997, começou um processo de reconstrução da LIT, que envolveu o programa, a concepção de partido e o internacionalismo, que também vem avançando no terreno da moral partidária. Hoje podemos dizer que tivemos avanços em todos estes campos e isso explica a situação atual da LIT e a possibilidade de que venha a cumprir um papel importante na reconstrução da IV Internacional. 

    Neste marco de recuperação e reconstrução da nossa moral partidária, tivemos um erro de avaliação sobre a situação objetiva e suas conseqüências sobre a esquerda revolucionária, o trotskismo e nossa Internacional. Atuamos como se a situação fosse a “de sempre” e não vimos que as pressões de conjunto, a ofensiva neoliberal, desde os anos 90, e a degeneração da esquerda no terreno moral exigiam uma vigilância ainda maior e uma luta mais permanente pela moral revolucionária e contras essas pressões. Atuamos “caso a caso”, sem dar a dimensão devida ao problema no seu conjunto.

    Tivemos, inclusive, um importante atraso, pois só começamos a identificar mais recentemente, desde o congresso de 2005, a gravidade desse retrocesso e dos problemas neste campo na Internacional, ocasionados pelo período de destruição da LIT. Era lógico que se a LIT, no marco do vendaval oportunista que se abateu sobre a esquerda, sofreu uma destruição nos terrenos teórico, programático e organizativo, isto deveria afetar também o terreno moral. Casos como o da seção boliviana nos fizeram refletir mais de conjunto que é necessário dar a devida importância à educação e a uma consciência e atuação permanentes neste terreno, a partir de agora.

    Os últimos tempos na LIT e a necessidade de retomar nossos critérios e combater essas pressões. Como enfrentar esses problemas?

    Somos conscientes de que a situação de decadência da sociedade é cada vez maior, que nossos militantes atuam nesse meio. Sabemos que os novos companheiros do partido trazem a educação moral típica do mundo de hoje e seus preconceitos. Mas o partido revolucionário necessita atuar com clareza sobre essa realidade. Para isso, precisa reconhecer o problema em sua dimensão e estar disposto a enfrentá-lo, sabendo que seremos uma minoria e estaremos na contracorrente das tendências mais profundas da sociedade na qual atuamos e da ampla maioria da esquerda atual. O partido revolucionário não vive numa redoma de vidro e sempre estará exposto às pressões, ainda mais hoje com a decadência moral do capitalismo. A questão é alertar sobre essas pressões e estar disposto a contrabalançar, a educar e a fazer o sacrifício que for necessário para manter os princípios e afastar os que cederem a esse tipo de degeneração.

    Identificar os problemas abertamente e com clareza

    Problemas graves surgem constantemente em nossas fileiras. Um dos mais constantes é a opressão da mulher no partido e no trabalho, incluindo agressões às mulheres na família. Esse tema afeta, em primeiro lugar, a própria moral proletária, pois oprimir a mulher significa oprimir 50% da classe trabalhadora e dividir a necessária unidade proletária diante da burguesia. Significa ser cúmplice da opressão que a sociedade capitalista reproduz a cada dia. Enfim, a ideologia machista é incompatível com a moral revolucionária. Da mesma forma, se penso que meu companheiro de trabalho é inferior porque é negro, não posso lutar efetivamente contra o racismo.

    Se o militante pensa que sua companheira, sua colega de trabalho ou uma companheira do partido são inferiores e que é legítimo aproveitar-se da opressão, está sendo cúmplice da opressão que a sociedade capitalista reproduz em todos os níveis. Seria o mesmo que dizer «sou revolucionário, mas odeio os árabes, ou penso que os negros são inferiores…». Assim como nenhuma classe pode ser vanguarda dos explorados se aceitar a opressão de outros povos ou raças, nenhum partido revolucionário pode apoiar ou tolerar a opressão de uma parte fundamental da classe, as mulheres.

    Esse é um dos terrenos em que a ideologia burguesa causa mais danos à moral revolucionária, pois a opressão da mulher é secular, e boa parte dos problemas aparece no âmbito «privado», na família que, por sua vez, reflete uma discriminação profundamente arraigada na sociedade capitalista. Isto exige uma ampla educação para toda a militância e um combate permanente a todas as atitudes machistas dos militantes e nenhuma tolerância para com a discriminação, o assédio e as agressões à mulher dentro do partido ou na sociedade. Não pode haver nenhuma dúvida com relação a isso: o partido que aceita a opressão machista está condenado a degenerar-se moralmente.

    A direção da LIT e dos partidos não podem ceder nesse tipo de questões

    Em primeiro lugar, deve-se fazer um longo trabalho de educação em nossas fileiras. No entanto, no caso de qualquer violação dos princípios morais, não se pode ceder. É importante recordar a trajetória que vem desde a origem da nossa corrente. O mérito da direção foi apoiar-se na nossa tradição para enfrentar estes novos casos. Em todos os casos comprovados, os envolvidos foram sancionados e, nos mais graves, expulsos do partido. 

    Quer dizer, foi necessária uma rigidez de princípios para defender a moral partidária. Qualquer outra posição que cedesse às pressões do aparato parlamentar ou sindical teria sido fatal para a moral revolucionária. Além de alertar sobre essas pressões e estar dispostos a educar, é necessário fazer o sacrifício necessário para manter os princípios e afastar os que cederam a este tipo de degeneração.

    Para os dirigentes, a exigência de moral revolucionária é muito superior

    Se a defesa da moral partidária e o combate e esse tipo de violações é uma necessidade permanente, ela redobra-se quando se trata dos dirigentes. Em geral, vemos nas correntes de esquerda, inclusive nas que se reivindicam revolucionárias, o comportamento oposto: quando se trata de dirigentes, dizem que é preciso ir com cuidado e tentam buscar saídas que não os afastem das tarefas de direção, independente do grau de violação moral que tenham cometido. Em geral, utiliza-se o argumento de que «quando se toma uma medida contra os dirigentes, quem é punido é o partido», que esse dirigente é «imprescindível» para o partido por sua capacidade etc. O raciocínio deve ser o oposto: o que mais afetaria o partido seria ter como membro da direção alguém que cometeu graves faltas morais.

    A «proteção especial» ao dirigente é típica do stalinismo, que estabeleceu a ideia de que os chefes são intocáveis e devem ter um tratamento diferenciado. Nossa lógica deve ser a oposta: quanto mais responsabilidade tiver um dirigente, mais forte deve ser a exigência. Se o partido encobre uma falta moral, alegando que o envolvido é um dirigente, está semeando a formação de uma burocracia e preparando sua própria destruição como partido revolucionário. Ao contrário, o dirigente tem que ser um exemplo vivo de moral revolucionária que inspire todo militante, e a vanguarda do movimento de massas possa ver nele uma referência nesse terreno frente à degeneração moral do restante das correntes de esquerda. Com o companheiro novo no partido, pelo contrário, devemos ter toda a paciência, ser fundamentalmente educativos e pedagógicos, tentando fazer com que entenda a moral revolucionária. Nossa atitude é completamente diferente no caso de surgirem problemas morais envolvendo dirigentes dos partidos e da LIT.

    Como atuar nos casos em que os dirigentes estão envolvidos em problemas morais graves? Nossa opinião é que aí está uma das grandes provas para qualquer Internacional. No caso recente da Bolívia, a direção do MST não teve dúvida em sancionar um quadro sob uma acusação moral. Mas quando se viu diante da possibilidade de seu principal dirigente ser sancionada pela CCI, preferiram romper com a LIT.

    Durante a discussão do caso, houve manifestações de que deveríamos buscar uma negociação, evitar por qualquer meio a ruptura da seção, mais ainda por se tratar de um país onde a revolução estava num ponto avançado na América Latina.

    Tendo total acordo com a caracterização sobre a Bolívia, acreditamos que foi um acerto importantíssimo não ceder a nenhum tipo de pressão da direção do MST nesse sentido, nem às propostas de “negociação” que nos fizessem deixar de lado os princípios sob a justificativa de manter a seção na LIT. Nossa posição foi exigir que o companheiro se apresentasse à CCI com todos os direitos de defesa como qualquer militante, mas sem condições nem privilégios. Mais ainda por ser um dirigente da seção e ex-membro do CEI e do SI. Buscamos garantir, de todas as formas, os recursos necessários para que a CCI operasse e seus membros pudessem receber a denunciante, viajar e entrevistar-se com o denunciado, os familiares envolvidos e outras possíveis testemunhas. Enfrentamos o boicote do MST e tentamos convencê-los até o final sobre a necessidade de que se submetessem à CCI. Mas, inclusive quando ameaçaram romper com a LIT, não aceitamos nenhum tipo de exceção em função da importância desse dirigente para o MST, como queria sua direção.

    Acreditamos que foi uma decisão corretíssima e que nos dá uma perspectiva de futuro como uma Internacional. Qualquer retrocesso neste terreno levaria a abrir um caminho de crises e dissoluções, porque significaria ceder no terreno da moral revolucionária e ser cúmplices da degeneração moral da seção e, consequentemente, da LIT. Como ser duro com qualquer militante, se se pactua com um dirigente com a justificativa de não perder a seção? Quem cede ou negocia neste terreno destrói o partido na sua base moral, na confiança na solidariedade destes camaradas e, neste caso, na defesa da mulher e no combate à sua opressão. Quem cede numa questão pode ceder em qualquer outra questão de princípios.

    Que tipo de moral queremos construir?

    Para nós, esta não é uma discussão menor. A resposta passa por uma educação sobre a moral revolucionária. Sem uma compreensão marxista, é muito difícil resistir às pressões dos aparatos e da moral burguesa decadente. Devemos incorporar à nossa tarefa de construção a reeducação da militância sobre a moral revolucionária. Temos que recordar que, como qualquer agrupamento humano, é necessário que cada militante tenha clareza sobre a necessidade da moral revolucionária e seus fundamentos.

    Não vamos apresentar um decálogo sobre o que se deve fazer ou não no terreno moral. Mas se a direção da LIT e cada direção nacional encararem essa questão com a devida importância, podem fazer avançar muito a concepção da moral revolucionária da militância, tomando cada caso importante, seja positivo, seja negativo, para tirar as conclusões para o conjunto. Podemos aproveitar cada uma delas para educar a enfrentar os problemas desse tipo no partido e no movimento operário. Uma das consequências disso pode ser não só interna, mas um avanço na relação com a classe operária. Tivemos exemplos de como essa prática pode fortalecer. Vamos citar, neste texto, uma experiência que conhecemos.

    O caso G. na Espanha – Em primeiro lugar, independentemente do fato de ser dirigente da seção espanhola na época, foi tratado com todo rigor frente à grave acusação. Uma vez comprovada a acusação, foi sancionado e expulso do partido, o que depois foi confirmado e reafirmado pelo congresso mundial da LIT. Por decisão do congresso, foi comunicada a situação deste ex-dirigente às organizações da esquerda com as quais temos relações. 

    Com todo o orgulho que devemos ter para manter nossa trajetória e nossos critérios, precisamos socializar essas e outras experiências que tenhamos e que muitas vezes aproveitamos para educar a militância e construir um perfil frente à vanguarda. Devemos começar a fazer conscientemente este tipo de discussões e a divulgação de exemplos a partir de agora em cada um de nossos partidos e em toda a LIT. 

    Mais ainda, acreditamos que nossa intervenção para fora, no movimento operário, deve assumir a recuperação das tradições da moral proletária. Nossos partidos devem ser exemplos vivos e lutar por esse tipo de regime e de moral nas organizações do movimento de massas, lutando contra as burocracias, os stalinistas e os revisionistas do trotskismo nesse terreno. Não se pode lutar consequentemente contra o imperialismo e seus Estados, contra as burocracias, como o PT e os PCs, sem dar esse combate aberto baseado numa compreensão superior desses problemas e princípios.

    Existe todo um terreno em que podemos e devemos dar esse combate: na denúncia da degeneração moral do capitalismo imperialista decadente, dos governos e das direções burocráticas e na afirmação da moral proletária. Se, por um lado, a década de 1990 e a ofensiva ideológica reacionária criaram um telão de fundo que favoreceu a degeneração e a perda de referências da classe no campo moral, a situação revolucionária e a queda do stalinismo abrem um espaço para uma ofensiva nesse terreno.

    A queda do stalinismo abriu um espaço amplo, sob a condição de estarmos à altura em todos os aspectos. Se formos a vanguarda na afirmação desses princípios, se formos um exemplo vivo, vamos atrair o melhor do ativismo, vamos encontrar companheiros que, mesmo que não tenham acordo total com nosso programa, nos admiram por nossa metodologia e nossa força moral, em contraposição ao vale-tudo que impera e à degeneração dos reformistas, dos burgueses e stalinistas.

    O papel da moral na reconstrução da IV

    No nosso último Congresso alertamos para o fato de que não basta ter um programa e uma política revolucionária. É necessária uma concepção e uma estrutura bolcheviques para construir um partido revolucionário. Queremos alertar que também é necessária uma moral partidária bolchevique para que esse partido e a Internacional sejam sólidos. Há uma relação estreita entre ambas.

    É um erro achar que um partido revolucionário é construído somente com política. Se a LIT e seus partidos não forem capazes de demonstrar que têm uma moral revolucionária, que não retrocedem para enfrentar seus problemas, inclusive quando são graves e quando afetam seus dirigentes, não terão futuro. Isso deve ter consequências de fundo na vida cotidiana de nossas organizações, na educação de toda uma nova geração de militantes e no combate às pressões e aos desvios que todo partido sofre por estar inserido na sociedade.

    Que tipo de militante a IV necessita?

    Partimos da visão de Moreno de que nossa moral é uma moral para travar uma luta implacável para derrotar um inimigo não menos implacável: os exploradores e o imperialismo. Por isso, a obrigação moral número um de cada militante, o dever moral mais sagrado, subordinando a isso a própria vida, é fortalecer o partido e o desenvolvimento da organização.

    No partido ocorre uma relação distinta entre o indivíduo e o coletivo: não há nada superior como indivíduo que o camarada do partido. Nossa moral baseia-se em que a vida do companheiro é mais importante que a nossa. Nosso dever de militante para com o partido exige fazer tudo o que possa ajudar a desenvolver cada camarada, cada militante, seja no sentido físico, intelectual ou moral, porque isso fortalece o partido e o nosso objetivo final: a destruição do capitalismo e a construção do socialismo e do comunismo.

    Isso vai exigir sacrifício de cada um de nós (mudar de trabalho, transferir-se de cidade ou país, adiar planos profissionais ou conseguir bens), mas se for necessário para fortalecer e apoiar o desenvolvimento do partido, para lutar por uma vida melhor para todos, então se justifica plenamente. Como dizia Nadeska Krupskaia em A Personalidade de Lênin:

    Com o exemplo de sua vida, Lênin mostrou como se devia proceder. Não podia nem sabia viver de outra maneira. Não era um asceta, gostava de patinar, andar de bicicleta, escalar montanhas, caçar; amava a música, amava a vida em sua beleza múltipla, amava os camaradas, os homens. Todos sabem de sua simplicidade, de seu riso alegre e contagioso. No entanto, subordinou tudo isso à luta por uma vida luminosa, cultivada, cômoda, plena e alegre para todos. Sua maior alegria eram sempre os êxitos nessa luta. Sua personalidade se fundia, sem nenhum esforço, com sua atividade social… «.

    Por que a lealdade, a camaradagem e a franqueza entre camaradas são tão importantes?

    A lealdade entre os revolucionários é uma das características mais importantes na construção de uma moral comunista. A franqueza é a base da confiança. Sem construir a confiança não há como sustentar o centralismo democrático e isso exige um esforço permanente. Sobretudo em um momento em que a LIT passa por reunificações, fusões, incorporações de novas organizações e de toda uma nova geração de militantes jovens, é necessário fortalecer essa moral partidária. E também criar os anticorpos contra todo tipo de intrigas ou calúnias que envenenam o ambiente e destroem a confiança entre todos. Se um companheiro tem uma crítica dura, deve poder fazê-la sem medo nos organismos do partido. As intrigas, mentiras ou calúnias debilitam a moral partidária porque minam a confiança necessária.

    A camaradagem, a preocupação e solidariedade permanentes entre os militantes devem ser cultivadas em nossos partidos e na LIT. A preocupação com os problemas que afetam a vida de cada camarada deve ser parte de nossa vida e isso fortalece a moral partidária: os companheiros sentem-se fortalecidos quando percebem que o partido e seus camaradas se preocupam sinceramente com os demais, e quando têm problemas, o ajudam a encontrar uma saída.

    O papel da Comissão de Moral

    A luta de Trotsky contra as calúnias e amálgamas de Stalin deixou ensinamentos preciosos de como abordar os problemas morais que ocorrem no movimento operário e no partido revolucionário. A tradição do movimento operário internacional, desde o século XIX, é que, em caso de denúncia que envolva aspectos morais, são criadas instâncias próprias do movimento operário, cuja composição se baseia em personalidades com capacidade de juízo e conduta inquestionável, para garantir que sua investigação não seja contaminada por eventuais divergências políticas.

    Trotsky retomou essa tradição para enfrentar a gigantesca onda de ataques morais, amálgamas e calúnias impulsionadas pelo stalinismo contra as organizações trotskistas, contra a figura de Trotsky, os velhos bolcheviques e toda a vanguarda revolucionária. Trotsky pediu a formação de um Tribunal Moral, que se concretizou na Comissão Dewey, onde ele se apresentou para responder às acusações de Stalin diante de uma instância que permitisse dar uma sentença indiscutível sobre as calúnias.

    A IV Internacional também extraiu lições dessa luta contra o stalinismo no terreno moral. O stalinismo utilizava sua maioria nos organismos de direção para que esses julgassem acusações morais contra dirigentes que tinham posições críticas, e esses organismos tomavam para si a «tarefa» de castigá-los. Assim se valiam de uma maioria política para desmoralizar dirigentes opositores naquilo que é mais precioso para um revolucionário: uma moral intocável.

    A partir daí, a tradição da IV Internacional é formar Comissões de Controle ou de Moral especiais para zelar pela moral partidária. Estas comissões são eleitas pelos congressos e só respondem ao próximo congresso, ou seja, são independentes do Comitê Central ou da direção, e têm plenos poderes para tomar resoluções sobre as questões que afetam a moral, que devem ser acatadas por todos os militantes e organismos, inclusive pela direção.

    Na LIT, por estatuto, temos uma Comissão de Controle Internacional (CCI) eleita no congresso com o critério de separar completamente esse tipo de questões e garantir-lhes um tratamento objetivo, cujas decisões têm de ser acatadas por todas as instâncias de direção. Os estatutos da LIT preveem que “o Congresso Mundial elege uma Comissão de Controle Internacional de três membros, (…) gozando de uma ampla reputação de objetividade. Esta comissão, eleita por no mínimo ¾ dos delegados tem a função irrevogável e inapelável de examinar os casos referentes a ações incompatíveis com a moral proletária e revolucionária e decidir sob sua consciência. A Comissão de Controle Internacional só responde diante o Congresso Mundial e todas as demais instâncias nacionais e internacionais estão obrigadas a colaborar com o tema que examina e considera pertinente. As acusações que a Comissão de Controle Internacional examina são assumidas por pedido do CEI, do SI ou por iniciativa própria.” 

    É muito importante para a manutenção da moral revolucionária da LIT a existência de organismos próprios de extrema objetividade e respeitados pelo conjunto da militância da internacional. Esta comissão zela para separar os problemas morais dos problemas políticos e impedir que a justiça burguesa, inimiga de classe, acabe por resolver este tipo de problemas.

    Estes organismos devem também existir nas seções para tomar estas questões. Só um organismo deste tipo pode resolver casos que envolvam violações da moral em litígio ou com versões conflitivas entre militantes. Por exemplo, no caso do MST boliviano, a organização era seção oficial da LIT e não possuía Comissão de Controle. De acordo com uma compreensão mais clara da importância da moral, uma das decisões deste congresso é que cada seção da LIT deve possuir sua própria Comissão de Controle com as características indicadas por esse critério geral do nosso estatuto. Devemos formar essas comissões garantindo que sejam formadas por quadros de trajetória inquestionável e com experiência e discernimento para enfrentar questões que têm a ver com a defesa da moral partidária.

    Para garantir a prioridade, dada a importância das tarefas da CCI e das CCs de cada seção, é fundamental, além da educação proletária no campo moral, o fortalecimento e o apoio de toda a LIT, começando por sua direção e as das seções, ao funcionamento das Comissões de Controle.

    Acreditamos que, levando em conta o processo pelo qual passamos, as dificuldades, a juventude a inexperiência de algumas de nossas seções nesse terreno, é necessário que a Comissão de Controle Internacional tenha uma comunicação com as comissões de controle nacionais para que possam trocar e construir critérios de procedimento e decisões que se apoiem na experiência da IV e da nossa corrente e que sejam comuns a toda a LIT-CI.

    O papel da LIT e da direção dos partidos na questão moral

    Aqui cabe esclarecer uma confusão gerada por não dar a devida importância à questão no último período. Por um erro da direção da LIT, que não tinha tirado todas as conclusões do problema da destruição também no campo moral, ficou a ideia de que os problemas de moral só interessam à Comissão de Controle e que a última tarefa da direção é comunicá-los à CCI. É verdade que quem investiga e resolve estes casos são as CCI ou as Comissões de Moral das seções. Mas existem tarefas da direção internacional neste terreno: uma é que a direção não só encaminha os casos concretos à CCI, como diz o Estatuto, mas também garante todas as medidas, zela para que a CCI tenha todos os meios para resolvê-los, e deve acompanhar os problemas que se apresentarem nessa marcha para identificá-los e ver se estão resolvidos. O mesmo deve ser aplicado a cada seção nacional em relação à direção nacional com a respectiva Comissão de Controle.

    A outra grande tarefa, na qual estivemos débeis no último período é a necessidade de educar teórica e programaticamente a militância na moral revolucionária. O mesmo deve acontecer em todas as seções da LIT. Como parte desta tarefa, e para começar a divulgar nossas posições nesse terreno, devemos divulgar este material e armar nossa militância para que possa fazer esta discussão nos organismo do movimento e junto a toda a vanguarda.

    Notas

    1. N. Moreno, Moral bolche ou espontaneísta?, Caderno de Formação, 1987. ↩︎
    2. Trotsky analisa como parecia haver certas regras elementares de moral na época do capitalismo ascendente e de melhoria relativa das condições de vida da classe operária e certa ‘paz social’. E como a irrupção da guerra mundial fez as instituições da democracia explodirem e, junto com isto, «as frágeis regras elementares da moral». A mentira, a calúnia, a venalidade, a corrupção, a violência, o assassinato tomaram proporções inéditas. Os espíritos simples, confundidos, acharam que tais inconvenientes eram o resultado momentâneo da guerra. Na realidade, eram e continuam sendo manifestações da decadência do imperialismo. ↩︎
    3. L. Trotsky, Moral e revolução. ↩︎
    4. Quarta Internacional – Comitê Internacional, organização conjunta formada em 1980 pela corrente morenista e a lambertista. ↩︎
    5. Máximo dirigente do PO argentino. ↩︎
    6. Nome do sistema de corrupção que envolveu a cúpula do governo, do PT e todos os parlamentares importantes e alas do partido. A DS estava vinculada através do PT do Rio Grande do Sul. ↩︎
  • Antissionismo não é antissemitismo

    Antissionismo não é antissemitismo

    Uma confusão sempre à espreita, que ganhou espaço nos últimos dias, é a de que o antissionismo seria uma forma de antissemitismo. Nada mais falso. Entendemos que existem três tipos de confusão em relação a isso: a primeira é deliberada e, portanto, criminosa, como faz o racista Estado de Israel e suas organizações; a segunda deve-se à desonestidade ou ao oportunismo, e costuma estar ligada à primeira; e a terceira é, por incompreensão ou desconhecimento, fruto de ideologias que muitas vezes permeiam os meios de comunicação de massa e estão na boca de políticos e outras personalidades. O propósito deste artigo é explicar a grande diferença entre antissionismo e antissemitismo.

    Por: José Welmowicki e Soraya Misleh

    O antissemitismo esteve presente nos discursos do apresentador Bruno Aiub (Monark), durante a edição do Flow Podcast de 7 de fevereiro, e do deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP) no mesmo programa, o que é absolutamente condenável. Nosso veemente repúdio à ideia absurda que propagaram de que o nazismo não deveria ser tratado como crime e que, como afirmou Aiub, “está bem ser antijudeu”. Não há nada de aceitável em defender o racismo, a discriminação e a opressão. Portanto, não há nada de aceitável em ser antissemita. Isso significa naturalizar o ódio contra determinadas etnias ou raças.

    O nazismo, com seu abominável histórico de atrocidades cometidas durante o Holocausto contra os judeus (6 milhões de mortos) – e também contra ciganos, comunistas, anarquistas, pessoas LGBT e deficientes físicos, todos os que não fizessem parte da “raça ariana” – durante o século XX, foi um crime contra a humanidade. Defender a legalização de um partido nazista é inaceitável. Infelizmente, Aiub e Kataguiri não são os únicos. O vereador da cidade de São Paulo, o capanga Fernando Holiday (Novo), que disse anteriormente que o racismo contra negros no Brasil não existe, é outro que, do alto de sua inconmensurável idiotice, defendeu a “despenalização do nazismo”, sob a lógica distorcida da “liberdade de expressão”.

    O direito democrático à liberdade de expressão não significa o direito de incitar o racismo sob nenhuma forma. Ele não pode ser usado como muleta para propagar livremente crimes contra a humanidade e discursos de ódio. As consequências – e isso não é novidade – são amplamente conhecidas.

    Ao mesmo tempo, tentando justificar o injustificável, Kim Kataguiri afirmou, em vídeo em suas redes sociais, que não poderia ser antissemita porque “não há ninguém mais pró-Israel no Parlamento do que eu”, para depois remediar dizendo que considera “até divertido que pessoas anti-Israel agora me chamem de antissemita, de nazista”.

    Essa ideologia não tem justificativa alguma. Ela responde à confusão deliberada criada pelo Estado racista de Israel, que equipara coisas que nada têm a ver entre si – uma chantagem que também merece repúdio veemente – para silenciar os críticos do projeto colonial sionista. E isso não é de hoje.

    Mas, o que é o antissemitismo e qual é a sua origem?

    O racismo contra os judeus, o antissemitismo, surgiu na Idade Média, na Europa. Reis, nobres e sacerdotes exploravam os servos em seus feudos na Europa medieval; na sociedade feudal, as transações e atividades comerciais e financeiras, como a usura, eram consideradas pecaminosas e proibidas para os cristãos. Assim, um não cristão tinha de fazê-las. De fato, exercendo essas atividades a serviço da nobreza e do clero – que eram da classe dominante – os judeus passaram a cumprir o papel de comerciantes, artesãos, ourives etc., além de agiotas, uma atividade vetada aos cristãos. Fez-se isso sob o controle dos reis, do clero e dos nobres e, quando surgiam catástrofes como fome e pestes, em cada período desse sistema feudal, as classes dominantes viam a necessidade de um bode expiatório.

    Pelo seu papel na sociedade, como mercadores e como emprestadores de dinheiro cobrando juros, os judeus eram um alvo fácil. Daí surgiram as lendas divulgadas pela Igreja cristã, como o mito de que “os judeus mataram Cristo”, usadas pelos nobres para culpar os judeus pelos infortúnios da população.

    A Revolução Francesa, com seus três lemas – liberdade, igualdade e fraternidade – defendeu a ideia de que os seres humanos seriam iguais perante a lei. Mas, como sabemos hoje, a nova sociedade capitalista foi incapaz de garantir verdadeira igualdade às mulheres e perseguiu etnias e raças. Foi a Revolução Russa de 1917 que trouxe a libertação dos povos de todo o antigo Império Russo, o fim da discriminação contra todas as etnias, inclusive os judeus.

    Em sua fase imperialista, o capitalismo intensificou a exploração e as guerras de colonização dos povos; e a perseguição racial tomou uma forma ainda mais assassina. Foi nesse contexto imperialista que surgiram o fascismo e o nazismo – ideologias que justificavam o genocídio e a eliminação de raças como o único caminho para o povo alemão. O antissemitismo foi transformado em uma política industrial de genocídio, de eliminação dos judeus.

    O surgimento do sionismo

    O sionismo, que surgiu no final do século XIX com Theodor Herzl, argumentava que o problema da discriminação contra os judeus só se resolveria se estes tivessem um Estado exclusivo. O sionismo admitia, assim, um pressuposto que os racistas antissemitas vinham pregando: era impossível a convivência sem discriminação entre diferentes raças e etnias, entre judeus e não judeus, pois sua própria constituição racial o impediria. Herzl e a Organização Sionista Mundial (OSM) buscaram, então, os líderes das potências imperialistas e ministros do Império czarista russo para negociar apoio a esse projeto, entre outros argumentos, lembrando-lhes que poderiam se livrar dos judeus de seus territórios. Durante a Primeira Guerra Mundial (1914–1918), através de Chaim Weizmann, líder sionista, a OSM obteve uma declaração do governo imperial britânico – a Declaração Balfour de 1917 – comprometendo-se a permitir a instalação de um Lar Nacional Judeu no território da Palestina. Ou seja, foi um compromisso da autoridade colonial britânica de permitir que a Palestina, então colonizada por eles, fosse utilizada pelos sionistas para instalar novos colonos judeus. Mas isso só seria possível expulsando a população palestina que já existia.

    O líder sionista “revisionista” Jabotinsky – de cujas ideias foram formadas as organizações de extrema-direita Irgun e o Likud, de Begin e Netanyahu, este último primeiro-ministro de Israel por mais de uma década – levaria essa visão às suas últimas consequências, pregando um “muro de ferro” entre os judeus e os árabes habitantes da Palestina, sem qualquer “mistura de sangue” entre eles; ou seja, Israel deveria ser um Estado abertamente racista, exclusivamente dos judeus. Esse foi o projeto implementado que deu origem ao Estado de Israel, às custas da expulsão da população palestina. Como revela o historiador israelense Avi Shlaim em seu livro O muro de ferro – Israel e o mundo árabe (Editora Fissus, 2004), esse também foi o pressuposto não declarado do chamado sionismo laborista – e seu dirigente, David Ben-Gurion – que, de fato, realizou a limpeza étnica em 1948.

    O que é o antissionismo?

    O antissionismo é a oposição ao projeto político colonial sionista e a todas as suas ramificações. É estar contra a limpeza étnica, o racismo, o apartheid – que a própria organização israelense Bet’Selem, bem como as internacionais Anistia Internacional e Human Rights Watch, reconhecem –, e crimes contra a humanidade. A causa palestina, que sintetiza as lutas contra a opressão e a exploração em qualquer parte do mundo, é a causa pela libertação nacional do jugo do colonizador. Que coisa tem isso de racista? Nada. Ao contrário, ser antissionista é lutar contra tal situação.

    O resultado do projeto colonial sionista, fundado no final do século XIX, foi a Nakba, uma catástrofe com a formação do Estado racista de Israel em 15 de maio de 1948 por meio de uma limpeza étnica planejada – como hoje reconhecem até novos historiadores israelenses, como Ilan Pappé. Foram 800.000 os palestinos expulsos violentamente de suas terras e cerca de 500 vilarejos foram destruídos na “conquista da terra e do trabalho”, conforme pregava o movimento sionista.

    Como aponta o historiador palestino Nur Masalha em seu livro Expulsão dos palestinos: o conceito de ‘transferência’ no pensamento político sionista – 1882–1948 (Editora Sundermann, 2021), nos diários dos líderes sionistas já se via que, para seu propósito – criar um Estado judeu etnicamente homogêneo – seria necessária a “transferência populacional” dos palestinos nativos não judeus, que era majoritária, para fora de suas terras, enquanto os judeus europeus migrariam para a Palestina. E isso é o que aconteceu. Israel foi formado em 78% da Palestina histórica, sobre os escombros dos vilarejos palestinos e sobre os corpos de seus habitantes nativos. Sobre as lágrimas de milhares de pessoas que, da noite para o dia, tornaram-se refugiadas.

    Em 1967, Israel ocupou o restante dessas terras (Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental). Mais 350.000 refugiados. Hoje, existem 5 milhões em campos de exilados nos países árabes aguardando o retorno. Ainda há milhares na diáspora, e 1,9 milhão oriundos dos remanescentes da Palestina ocupada em 1948 (hoje chamada Israel) são tratados como cidadãos de segunda ou terceira classe, submetidos a cerca de 60 leis racistas. Nessa região, Israel sequer fornece aos palestinos o mínimo de serviços básicos em centenas de vilarejos beduínos, onde a especulação imobiliária avança às custas da demolição de casas. E os palestinos não possuem permissão de residência permanente. Por exemplo, a aldeia de Al Araqib já foi demolida mais de 190 vezes, e os palestinos, em um ato de resistência, continuam a reconstruí-la.

    Gaza é uma verdadeira prisão a céu aberto, onde 2 milhões de palestinos enfrentam uma dramática crise humanitária sob um bloqueio sionista desumano há 14 anos – com 96% da água potável contaminada e somente quatro horas de fornecimento elétrico por dia –, além de frequentes bombardeios. E, na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, a colonização avança em ritmo acelerado, na qual a limpeza étnica é parte instrumental. Há cerca de 3 milhões de palestinos sem nenhum direito humano fundamental assegurado, com inúmeras restrições de mobilidade: necessidade de diferentes documentos, proibição de circulação livre (existem estradas exclusivas para os colonos sionistas, por exemplo), centenas de postos de controle e um muro de apartheid com aproximadamente 700 km de extensão, que continua sendo ampliado, isolando famílias e anexando mais terras férteis.

    Israel não fornece aos palestinos nem mesmo o mínimo de água recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

    Boicote ao apartheid vs. hipocrisia

    Mas a Nakba continua: como agora denuncia também a Anistia Internacional, o regime é de apartheid, “um cruel sistema de dominação e opressão que Israel impõe ao povo palestino, seja ele residente em Israel ou nos territórios ocupados, ou mesmo refugiados deslocados a outros países”. É um crime contra a humanidade, no qual os palestinos vêm sendo tratados, há décadas, segundo a Anistia Internacional, como “uma raça inferior”. A Bet’Selem descreve o apartheid como “um regime de supremacia judaica” em toda a Palestina histórica: “Toda a área controlada por Israel, entre o rio Jordão e o mar Mediterrâneo, é governada por um regime único que trabalha para avançar e perpetuar a supremacia de um grupo sobre o outro. Por meio da engenharia geográfica, demográfica e física do espaço, o regime permite que os judeus vivam em uma área contígua, com plenos direitos – incluindo a autodeterminação – enquanto os palestinos vivem em unidades separadas e com menos direitos. Isso caracteriza um regime de apartheid, embora Israel seja comumente visto como uma democracia com ocupação temporária.

    Nessa situação, descrita em detalhe nos relatórios da Anistia Internacional, da Human Rights Watch e da Bet’Selem, os palestinos existem porque resistem heroicamente. E hoje a principal campanha de solidariedade é o BDS (boicote, desinvestimento e sanções) – baseada no modelo da campanha internacional que ajudou a pôr fim ao apartheid na África do Sul durante as décadas de 1970 e 1980 – que trata das demandas fundamentais do povo palestino: fim da ocupação, igualdade de direitos civis e retorno dos refugiados às suas terras. Os sionistas, inclusive aqueles que afirmam ser de “esquerda” (o que é uma contradição, já que defendem um projeto colonial utilizando uma retórica branda, um discurso contra as opressões), voltaram-se contra o BDS. Também rejeitam os relatórios que demonstram que os palestinos estão submetidos a um regime de apartheid. Tais organizações chamam de antissemitas todas as pessoas que se levantam contra esse Estado racista.

    No programa Flow Podcast, o sionista André Lajst, diretor executivo da organização Stand With Us no Brasil, um dia após os repugnantes discursos de Bruno Aiub e Kim Kataguiri, afirmou que o antissemitismo – “neste caso, a judeofobia, o ódio aos judeus, visto que existem outros povos semitas” – vinha se transformando ao longo da história. Segundo ele, nesse processo de mutação, esse ódio se converteria em “ódio aos judeus por causa de seu Estado-nação, isto é, o ódio exacerbado e desproporcional que as pessoas têm pelo Estado de Israel, que também seria uma espécie de antissemitismo. Não falo de crítica ao Estado, refiro-me à ilegitimidade de um país, de um lar nacional judeu ou ao combate ao movimento nacional judaico”. Assim, recorre a uma manobra para associar de forma distorcida antissionismo e antissemitismo.

    Trata-se de uma manobra clara: Lajst equipara defender o fim do Estado de apartheid de Israel a defender o fim dos judeus, ou seja, seu extermínio. O que haveria com a África do Sul ou com a Rodésia, governadas pela minoria branca segregacionista? Defender o fim do apartheid e defender o fim dos sul-africanos brancos seriam a mesma coisa? Não é isso o que a história demonstra. Não é o que afirmam os palestinos no caso de Israel. Como relatava um refugiado palestino expulso de sua terra em 1948, quando criança, “judeus, muçulmanos e cristãos brincavam juntos, sem rótulos”. Essa convivência jamais existiu na Palestina histórica – ela foi criada e continua sendo alimentada pelo sionismo.

    Contrariando a intervenção de Lajst no Flow Podcast, chama a atenção que organizações sionistas tenham declarado que o podcast deveria ser boicotado, exigindo e chegando à suspensão de patrocínios. “Ideologias que visam a eliminação do outro devem ser proibidas. Racismo e perseguições de qualquer identidade não configuram liberdade de expressão”, afirmou o coletivo sionista Judeus pela Democracia em seu Twitter.

    A ideia é correta. A apologia ao nazismo deve ser repudiada com todas as forças, por todos os meios. No entanto, causa indignação a hipocrisia, pois o BDS não pode atuar – é criminalizado e desqualificado. Não se pode denunciar o apartheid. Para eles, as vidas dos palestinos não importam, embora digam o contrário.

    O Estado de Israel, a materialização da ideia central do sionismo, baseia-se na eliminação do outro, através da limpeza étnica, massacres e na contínua desumanização. Ilan Pappé, em seu livro A limpeza étnica da Palestina (Editora Sundermann, 2016), não deixa dúvidas: “para muitos sionistas, a Palestina nem sequer era um lugar ‘ocupado’ quando começaram a se mudar para lá em 1882, mas sim uma terra ‘vazia’: os palestinos nativos que viviam ali eram, na maior parte, invisíveis ou, ao contrário, uma dificuldade natural que deveria ser conquistada e eliminada”.

    Os sionistas de esquerda, em defesa da existência de Israel, frequentemente se posicionam contra a ocupação – que, na prática, equivale a apartheid –, embora a ocupação implique segregação e discriminação. Eles defendem a já extinta e enterrada solução de dois Estados, como já reconhecem há anos intelectuais do porte de Ilan Pappé e até o ex-relator especial da ONU sobre os direitos humanos na Palestina ocupada, Richard Falk. Se essa suposta solução não fosse injusta desde o início – ao oferecer migalhas ao povo palestino e não contemplar sua totalidade, com a metade refugiada ou na diáspora –, ela seria completamente inviável devido à expansão colonial sionista. Hoje já existe um Estado único sobre o território palestino: Israel, um Estado de apartheid.

    Não há paz sem justiça. E a justiça só chegará com a derrota desse projeto colonial e, por consequência, com o fim do Estado de apartheid de Israel – na construção de uma Palestina livre, do rio ao mar, com o retorno de milhões de palestinos às suas terras. Ser antissionista e dizer essa verdade é ser coerente com a luta contra a opressão e a exploração em todo o mundo, incluindo o repúdio veemente ao antissemitismo e à apologia do nazismo.

    Consulte os relatórios (em inglês):
    Anistia Internacional – https://www.amnesty.org/en/documents/mde15/5141/2022/en/
    Human Rights Watch – https://www.hrw.org/sites/default/files/media_2021/04/israel_palestine0421_web_0.pdf
    Bet’Selem – https://www.btselem.org/sites/default/files/publications/202101_this_is_apartheid_eng.pdf

  • As mentiras do sionismo preparam a “solução final” de Israel em Gaza.

    As mentiras do sionismo preparam a “solução final” de Israel em Gaza.

    O dia 7 de outubro ficará na história da luta pela libertação nacional na Palestina e no Oriente Médio. Foi o dia em que a resistência palestina conseguiu infligir uma derrota ao exército de ocupação e romper, por um período, o cerco ao qual os palestinos são submetidos diariamente por Israel há 16 anos. Uma incursão preparada e coordenada conseguiu romper a barreira que cerca Gaza em vários pontos – barreira essa que impede a saída de qualquer palestino.

    Por: José Welmowicki

    As câmeras e os dispositivos de vigilância não funcionaram porque os combatentes os inutilizaram. Até aquele dia, a fama acumulada por Israel em várias guerras contra seus vizinhos árabes e a guerra permanente contra os palestinos conferia-lhe um prestígio macabro, a ponto de sua tecnologia de vigilância, seus veículos blindados de repressão à população terem sido exportados para muitos países.

    Foi um fiasco para o exército israelense. Em geral, os especialistas da área apontam, de forma central, uma falha do aparato de inteligência, como o Mossad. Em nossa opinião, esse não foi o único fracasso. A reação dos soldados da brigada que vigia Gaza foi facilmente derrotada pelos militantes do Hamas. Segundo as informações divulgadas, muitos oficiais e até coronéis e generais foram encarcerados. A reação do restante do exército foi tardia e lenta. Dois fatores podem estar por trás dessa derrota: 1) toda ocupação colonial leva a um desgaste das tropas envolvidas e gera uma crescente incapacidade de combater – como ocorreu com as tropas francesas na Indochina e na Argélia, e com as norte-americanas no Vietnã, cuja atividade cotidiana resume-se a reprimir, de forma perversa e covarde, uma população desarmada; 2) quando os oprimidos se rebelam e se enfrentam a essas tropas, estas perdem a confiança em suas forças e se assustam com a reação dos rebeldes oprimidos. No caso dos soldados sionistas em Gaza, os vídeos gravados mostram exatamente esse tipo de reação das tropas da guarnição encarregada da repressão.

    Mas o que nos dizem – e o que aparece de forma avassaladora nos meios de comunicação – é que tudo se tratou de um ataque terrorista do Hamas contra a população civil de Israel. Não há outra causa senão a “ferocidade assassina” desta organização.

    E, como aconteceu na guerra do Iraque e em muitas outras no Oriente Médio, foram disseminadas uma série de notícias falsas. A falsa história da suposta decapitação de bebês foi divulgada pelo presidente dos EUA, Biden, que chegou a mentir dizendo ter visto essas fotos, quando se tratava apenas de uma invenção de um blogueiro ultradireitista israelense, sem qualquer comprovação. Isso foi desmentido, mas sem grande destaque. Vídeos divulgados como evidência de “ataques a civis” mostravam, na verdade, um ataque a uma base militar israelense na qual soldados surpreendidos tentaram se esconder de uma coluna do Hamas, que acabou invadindo-a e, posteriormente, aqueles mesmos soldados foram encontrados mortos. Em outras palavras, tratava-se de uma batalha militar. E as invasões de vilarejos e bairros nas cidades israelenses vizinhas a Gaza são apresentadas como ataques premeditados contra civis, quando, em uma guerra assimétrica como a travada entre o Estado de Israel e a Faixa de Gaza – cercada e sistematicamente bombardeada – os vilarejos e cidades próximas a Gaza fazem parte do dispositivo militar do ocupante, ou seja, de Israel, e, portanto, devem ser enfrentados quando este realiza uma incursão militar em resposta ao cerco, constituindo objetivos militares. Ao menos é assim que Israel tratou, durante décadas, tanto a própria Gaza quanto a Cisjordânia, que é fonte de toda violência. Contudo, esses mesmos meios de comunicação não dizem uma palavra de condenação quando colonos e o exército sionista invadem vilarejos, destroem as casas da população palestina e matam seus habitantes.

    O surpreendente é que, para os meios de comunicação, bem como para os governos e partidos dos EUA e da UE, os bombardeios massivos sobre Gaza – que matam um número impressionante de civis – são vistos apenas como “uma retaliação” por parte de Israel! Portanto, segundo esses narradores, estão justificados. Em outras palavras, seguem o mesmo roteiro do ministro da Defesa israelense, que classificou os habitantes de Gaza como “animais humanos”. O máximo que fazem alguns é sugerir “contenção” aos genocidas.

    Os meios de comunicação não mostram nada do sofrimento das crianças palestinas, nem antes nem depois dos ataques. Não dão importância a fatos como o dos nove funcionários da ONU em Gaza, que foram assassinados pelo exército israelense ao tentarem socorrer os feridos. Mas Israel declara que todos os seus alvos são militantes terroristas que “se escondem nas casas dos palestinos” e, portanto, qualquer alvo residencial ou mesmo instalações médicas e escolas em Gaza integram seus objetivos de guerra.

    Assistimos, em tempo real, através dos meios de comunicação mundiais e das redes sociais, a cenas idênticas à Nakba de 1948. O governo israelense, não satisfeito com o deslocamento forçado de mais de um milhão de pessoas em poucas horas, declara que devem sair do território imediatamente para não serem alcançados por seus bombardeios. Chegou até a ordenar o bombardeio de um comboio de palestinos que tentava sair do Norte para chegar ao Sul da Faixa. E o que dizem os meios? Faz parte da “contraofensiva” de Israel, que, em princípio, estaria justificada, não exibindo fotografias nem imagens das atrocidades e dos assassinatos de civis palestinos em Gaza.

    Há outra omissão vergonhosa: televisão e jornais estão inundados de declarações de entidades judaicas sionistas e vinculadas a Israel, todas defendendo os ataques do Estado racista de Israel. Afirmam até que um Estado que nasceu de uma limpeza étnica, que mantém uma ocupação por décadas e que trata os palestinos como cidadãos de segunda classe ou prisioneiros em suas próprias cidades, é a única democracia no Oriente Médio!

    Mas não dão espaço à voz dos movimentos judaicos que se opõem à linha genocida de Israel. Alguns deles se manifestam com firmeza, como o Jewish Voices for Peace (Vozes Judaicas pela Paz) dos Estados Unidos, que conta com mais de 440 mil membros e simpatizantes. Movimentos como esse já vinham fazendo campanha contra o apartheid israelense e o racismo colonial. E, neste momento, mantiveram sua postura frente ao processo em Gaza. A seguir, reproduzimos um trecho do comunicado do Jewish Voices for Peace (JVP) de 7/10/2023:

    “O governo israelense pode ter acabado de declarar guerra, mas sua guerra contra os palestinos começou há mais de 75 anos. O apartheid e a ocupação israelenses – e a cumplicidade dos Estados Unidos nessa opressão – são a fonte de toda essa violência. A realidade é montada conforme o relógio é acionado.

    «Durante o ano passado, o governo mais racista, fundamentalista e de extrema direita da história de Israel intensificou impiedosamente sua ocupação militar sobre os palestinos em nome da supremacia judaica, com expulsões violentas e demolições de casas, assassinatos em massa, ataques militares a campos de refugiados, cercos implacáveis e humilhações diárias. Nas últimas semanas, as forças israelenses atacaram repetidamente os lugares muçulmanos mais sagrados em Jerusalém. Durante 16 anos, o governo israelense sufocou os palestinos em Gaza sob um bloqueio militar draconiano – aéreo, marítimo e terrestre –, encarcerando e matando de fome dois milhões de pessoas e negando-lhes assistência médica. O governo israelense rotineiramente massacra palestinos em Gaza; crianças de dez anos que vivem em Gaza já estão traumatizadas por sete grandes campanhas de bombardeios em suas curtas vidas.

    Nos Estados Unidos, pesquisas recentes mostram que mais de 50% da juventude judaica do país não se sente identificada com Israel – dado que assusta os líderes sionistas locais e a Organização Sionista Mundial. Existem outros movimentos que reúnem esses setores com movimentos progressistas e comunidades de origem árabe ou muçulmana nos EUA, como demonstra a carta escrita pelo Comitê de Solidariedade com a Palestina de Graduados de Harvard, na qual os estudantes “responsabilizam integralmente o regime israelense por toda a violência em curso”, carta essa que foi assinada por 33 grupos estudantis. O fato de ter sido Harvard, a universidade de elite do país, surpreendeu sua cúpula. A reitoria posicionou-se, diferenciando-se da carta, assim como vários ex-alunos – hoje executivos de grandes empresas ou ministros no governo norte-americano – também se manifestaram contrários. Ainda na Universidade de Nova York (NYU), os estudantes manifestaram-se com uma declaração contra o genocídio de Israel.

    Os meios também não dão cobertura às protestos dos judeus ultrarreligiosos que vivem em Jerusalém, no bairro Mea Shearim, que são antissionistas e colocaram uma bandeira palestina em seu templo para demonstrar repúdio ao massacre. Por isso, foram duramente reprimidos, espancados pela polícia israelense, e seu templo foi invadido para retirar a bandeira palestina. 1

    Somente existe uma verdade e um ponto de vista válido para os meios e para o establishment imperialista: o do governo genocida de Netanyahu e seu defensor incondicional – o imperialismo norte-americano, através do governo de Biden.

    Qual é a situação dos palestinos na Cisjordânia?

    Na Cisjordânia existem três áreas: uma destinada aos palestinos e outras para colonos judeus, que atualmente somam 750 mil. Estes têm total liberdade para entrar e sair tanto na Cisjordânia quanto em Israel. Jerusalém Oriental, que segundo a própria partição de 1948 deveria pertencer ao Estado palestino que se formaria, foi anexada em 1967 à Jerusalém judaica sob controle sionista. Para os palestinos, circular de uma área para outra só é possível através de inúmeros checkpoints (postos de controle), onde frequentemente passam horas submetendo-se a revistas humilhantes pelas tropas israelenses. Os colonos exibem comportamentos abertamente racistas e agressivos em relação aos palestinos, e são protegidos pelo exército. O mesmo ocorre com os palestinos que vivem na cidade de Jerusalém.

    Um dos argumentos falaciosos defendidos por apoiadores de Israel nos meios de comunicação é que se trata de uma “guerra contra o Hamas”, e não contra todos os palestinos. Portanto, a questão estaria restrita a Gaza. Essa é outra mentira. A guerra contra os palestinos foca hoje em Gaza, mas, ao mesmo tempo, impõe à Cisjordânia um cerco semelhante e assassinatos de civis. Esse processo já vinha ocorrendo há muito tempo, mas agora se multiplicou de forma macabra desde o dia 7 de outubro. Segundo informações de agências de notícias, da Meia Lua Vermelha (Cruz Vermelha dos muçulmanos) e de organizações de direitos humanos, de 7 a 14 de outubro, 55 palestinos foram assassinados e 1.100 feridos na Cisjordânia por ataques de colonos sionistas, com a cumplicidade ou participação das Forças Armadas israelenses. Todos eram civis – famílias que se deslocavam de uma cidade para outra, trabalhadores ou pequenos comerciantes que tentavam abrir seus negócios. Até um cortejo fúnebre foi atacado a tiros, matando, no mínimo, quatro palestinos. Em nenhum desses ataques havia militantes do Hamas. Todos tinham em comum o fato de serem árabes palestinos. Essa é mais uma demonstração de que a política é de guerra e expulsão de todos os palestinos.

    O Estado racista de Israel nasceu em 1948 com a Nakba – a limpeza étnica que expulsou 750 mil árabes de suas terras. Mas, por não ter conseguido se livrar completamente dos palestinos, continuou suas ações durante esses 75 anos. A partir de 1967, com a ocupação de Gaza e da Cisjordânia, manteve seus habitantes submetidos a um regime militar, que os tratava como prisioneiros e se beneficiava de seu trabalho escravo, sem lhes conceder qualquer direito. Ao mesmo tempo, colonizava novas terras, expropriando os palestinos – seja em Jerusalém Oriental ou na Cisjordânia – com colonos judeus.

    Devido à resistência permanente, às duas Intifadas (1987–1992 e 2000) e à persistente resistência, sua estratégia mudou. Agora, diante da resistência armada, essa estratégia tornou-se explícita: a limpeza étnica de todo o território da Palestina. Para eles, ou os palestinos abandonam a Palestina ou morrem. Por isso, vê-se os colonos da Cisjordânia gritando: “Morte aos árabes” e agindo de acordo com suas palavras – ou seja, executando pogroms, tal como fizeram os antissemitas contra os judeus na Europa oriental, como em Huwara e Turmus Ayya, na Cisjordânia.

    Netanyahu apresentou um “novo mapa” da região na sessão da ONU realizada no passado mês de setembro. Nele, não existe mais a Palestina, nem mesmo territórios ocupados. Existe apenas Israel, que ocupa todo o território entre o Mar Mediterrâneo e o rio Jordão.

    Uma analogia com a resistência judaica contra os nazistas: o Levante do Gueto de Varsóvia

    Após a invasão nazista à Polônia em 1939, o ocupante alemão decidiu concentrar os judeus de todo o país em uma pequena região da capital, que passou a ser conhecida como Gueto de Varsóvia. 2 Os nazistas fizeram isso para controlá-los como se estivessem presos – havia muros e cercas ao redor do gueto, e somente aqueles que possuíam uma determinada carteira poderiam sair, com o intuito de utilizar seu trabalho de forma semelhante à escravidão. A comunidade judaica na Polônia era a maior dentre os países ocupados por Hitler.

    Essa política nazista para com os judeus poloneses concentrados em Varsóvia durou até que decidiram buscar a “solução final” em 1942: construir campos de concentração com câmaras de gás para exterminar todos os judeus. A partir daí, capturaram os que ainda sobreviveram no gueto e enviaram-nos para a morte. Dos primeiros 380 mil residentes no início do gueto, cerca de 300 mil foram enviados para a morte entre 1942 e 1943.

    Quando perceberam que esse seria o destino de todos, os judeus sobreviventes decidiram resistir armados, apesar de estarem em enorme inferioridade militar e logística. Formaram uma organização de resistência unida, a ZOB, e organizaram um levante em abril de 1943 que conseguiu enfrentar os soldados alemães por mais de 30 dias, causando baixas importantes às tropas nazistas. Eles sabiam que havia uma decisão iminente de levá-los e matá-los nas câmaras de gás dos campos de extermínio nazistas. Optaram, então, por resistir e morrer lutando. Os nazistas chamavam os combatentes judeus de “terroristas”.

    Como afirma Haidar Eid, professor da Universidade de Al Aqsa em Gaza, em seu artigo Gaza 2023: Nosso momento semelhante ao Levante do Gueto de Varsóvia 3, uma clareza sobre o destino que Israel impôs aos palestinos de Gaza – e também da Cisjordânia – levou-os a adotar o mesmo tipo de decisão: “Em Gaza e em Jenin, recusamo-nos a marchar para as câmaras da morte de Israel. Em Gaza e em Jenin – de fato, em toda a Palestina histórica – deixamos absolutamente claro que resistiremos ao regime dos colonos, ao regime colonial e de apartheid entre o rio Jordão e o Mar Mediterrâneo”. 4

    É nesse contexto que se deve compreender a luta armada desencadeada pelos residentes palestinos.

    Do lento genocídio ao extermínio

    O que está ocorrendo hoje, diante da resistência armada palestina e do fracasso da tentativa sionista de escravizar o povo palestino e obrigá-lo a viver para sempre em condições infra-humanas, é a decisão de Netanyahu de arrasar Gaza, transformando o genocídio lento dos últimos 30 anos em genocídio direto por meio de bombardeios contra todos os habitantes e cortando definitivamente o fornecimento de água e energia.

    O governo israelense fez um apelo cítrico a todos aqueles que queiram sobreviver para que abandonem a Faixa imediatamente, enquanto Israel bombardeia a passagem entre Gaza e o Egito, o único ponto de saída que permanece aberto. Como denunciaram os médicos da Cruz Vermelha, os funcionários da missão da ONU em Gaza, e a própria Organização Mundial da Saúde, vinculada à ONU, trata-se de uma ordem impossível de cumprir para uma população de mais de um milhão de pessoas, equivalendo a uma condenação à morte de doentes e feridos hospitalizados. Em outras palavras, sob o pretexto de “realizar retaliações” contra os ataques do Hamas, Israel condena à morte toda a população residente, justificando a destruição dos “terroristas”. De forma semelhante ao que Hitler fez contra os judeus a partir da “solução final” de 1942, que, diante da revolta, decidiu acabar com o Gueto de Varsóvia destruindo-o.

    Com o apoio de governos ocidentais, da esmagadora maioria dos meios de comunicação e da cumplicidade de governos que se declaram “amigos dos palestinos”, como Lula no Brasil, Israel argumenta que tem “direito à autodefesa” para declarar a guerra e executar um massacre de todo um povo em Gaza e na Cisjordânia. O representante israelense na ONU irritou-se quando alguns embaixadores sugeriram que ele tentasse salvar os civis palestinos em Gaza. Ele reafirmou que não era o momento de se preocupar com os “danos colaterais”, mas sim de eliminar o Hamas, mesmo que isso significasse demolir e destruir completamente a cidade. Ou seja, não lhes importam os mais de 2,2 milhões de habitantes, entre os quais, obviamente, inclui-se uma grande maioria de civis – dos quais mais da metade são mulheres e crianças. E esse governo tem o cinismo de se fazer de vítima e chamar o Hamas de terrorista. Outra característica copiada do regime nazista: a propaganda mentirosa de Goebbels, cuja frase definidora era: “uma mentira repetida inúmeras vezes se torna verdade.”

    O governo conta entre seus ministros defensores de matar ou expulsar os árabes de todo o território palestino. Como Itamar Ben Gvir, que já foi processado como terrorista inclusive pelos tribunais israelenses, mas foi liberado e hoje é ministro da Segurança Nacional. Ele declarou publicamente que é preciso matar todos os árabes, de maneira tão explícita que até os liberais israelenses o classificam de “fascista”. Ou seu ministro da Defesa, Yoav Gallant, que declarou abertamente que manterá um cerco total sobre Gaza e cortará todos os suprimentos de água, combustível e energia, pois assim destruirá o Hamas – e, obviamente, matará dezenas, senão centenas de milhares de civis, especialmente crianças. Isso constitui um crime de guerra perante o Tribunal Penal Internacional (TPI). A Anistia Internacional e a Human Rights Watch já classificaram o regime israelense como apartheid.

    Netanyahu é um sucessor político de Vladimir Jabotinsky e Menachem Begin, que foram dirigentes da ala abertamente fascista do sionismo e mantinham seu próprio grupo terrorista, chamado Irgun Zvai Leumi, que atacava os árabes tratando-os como um povo inferior. Esse grupo foi responsável pelo massacre de Deir Yassin, no qual assassinaram todos os palestinos que puderam, a fim de criar um pânico que levasse os árabes a se retirarem da Palestina, como parte da Nakba. 5

    Portanto, é de um cinismo abjeto que Netanyahu, que hoje representa o nazi-fascismo sionista, afirme estar vingando o assassinato em massa de judeus por parte do nazismo, enquanto pratica a mesma metodologia que Hitler. A diferença em relação ao nazismo original é que, desta vez, o alvo são os palestinos. Não surpreende o cinismo de Netanyahu, mas o maior cinismo provém do coro formado pelos dois partidos norte-americanos – Democrata e Republicano –, pelo governo de Macron na França, por Scholz na Alemanha, e por Sunak na Inglaterra, que se posicionam publicamente ao lado desse genocida, projetando a bandeira israelense em seus edifícios simbólicos, como a Torre Eiffel em Paris ou o Portão de Brandemburgo em Berlim. Assim como a União Europeia, alinham-se apoiando “o direito de Israel à autodefesa”. Ou seja, os fascistas sionistas querem licença total para liquidar o povo palestino – e estão conseguindo.

    Solidariedade com a resistência palestina

    O repúdio à ação genocida de Israel e a essa campanha para demonizar os palestinos, qualificando o Hamas de “terrorista” e classificando todos aqueles que apoiam a resistência como terroristas ou simpatizantes de terroristas, está gerando indignação e importantes manifestações.

    Houve muitas manifestações em diversos países, sendo as maiores no Oriente Médio – como na Jordânia, Iêmen, Iraque e Egito. Na Jordânia, cantaram “somos Hamas, se o Hamas é terrorista, somos terroristas”. Também ocorreram mobilizações nos Estados Unidos, Inglaterra, França, em outros países asiáticos como a Coreia do Sul, e na Austrália e Indonésia. Apesar do apoio incondicional a Israel por parte de governos como o de Macron na França e Sunak na Grã-Bretanha, a resistência do movimento não se abateu e, mesmo reprimida, saiu às ruas contra o genocídio do povo palestino.

    Em Paris, a polícia utilizou gás lacrimogêneo e canhões de água para dispersar uma manifestação em apoio aos palestinos, depois que o governo francês proibiu qualquer protesto deste tipo. Apesar da proibição, milhares de manifestantes se reuniram em Paris, Lille, Bordeaux e outras cidades na quinta-feira, 12 de outubro.

    Na Inglaterra, a polícia britânica advertiu que qualquer pessoa que demonstrasse apoio ao Hamas – organização considerada “terrorista” pelo governo britânico –, ou que se desviasse da rota, poderia ser presa. Mesmo assim, milhares de pessoas saíram às ruas em Londres, Manchester, Liverpool, Bristol, Cambridge, Norwich, Coventry, Edimburgo (Escócia) e Swansea.

    Na Alemanha, Scholz disse aos deputados do Bundestag (Parlamento alemão) que a segurança de Israel era uma política do Estado alemão. E proibiu manifestações pró-Palestina.

    Agora, com a continuação da guerra genocida de Israel contra Gaza, abre-se um espaço para intervir com coragem nos organismos do movimento sindical democrático, propondo que se pronunciem contra o genocídio sionista em Gaza e convocando manifestações de apoio em todo o mundo. Apoiamo-nos no BDS, um amplo movimento de boicote a qualquer investimento e intercâmbio artístico e esportivo com Israel, até que termine o regime do apartheid – seguindo o exemplo do boicote internacional contra a África do Sul durante as décadas de 1970 e 1980.

    E clamamos pelo apoio à resistência palestina, que é a forma direta de enfrentar o Estado racista de Israel e seu regime de apartheid. Como se demonstrou em mais de 20 anos dos acordos de Oslo, o caminho do “diálogo”, da “paz” e da não violência não resultou em nada concreto, exceto em desarmar a luta palestina e criar autoridades que não têm qualquer poder, exceto o de obedecer às ordens do colonizador – como sempre ocorreu com a PA [Autoridade Palestina] de Mahmoud Abbas.

    Qualquer alternativa que busque um caminho intermediário, do tipo “dois Estados”, somente paralisa o movimento. Chegou a se tornar completamente impossível, em virtude da colonização sionista em toda a Cisjordânia.

    A saída é o fim do Estado racista de Israel e o surgimento de uma Palestina laica, democrática e não racista – uma Palestina livre, do rio ao mar –, como parte da luta socialista em todo o Oriente Médio.

    Nossas diferenças com o Hamas

    Apoiamos a resistência palestina porque é a forma direta e legítima de enfrentar e derrotar o apartheid sionista. E o Hamas esteve à frente daquele ato de resistência que abriu um caminho para o povo palestino. Nossas diferenças não se referem a se é justo empreender ações armadas contra o regime genocida sionista, como fizeram todas as revoluções coloniais contra seus opressores.

    Mas consideramos que a proposta que o Hamas apresenta como saída – a de um Estado Islâmico – é equivocada e excludente, afastando os setores palestinos seculares, democráticos e socialistas de seu projeto. O Hamas também adota uma política repressiva em relação à luta das mulheres e da comunidade LGBTQI+, como se observa no Irã. Portanto, sua gestão em Gaza, fundamentada nessas premissas, teve um efeito negativo para a necessária unidade e democratização do movimento palestino.

    Mas é fundamental apoiar a resistência palestina neste combate entre Davi e Golias – que hoje é liderado pelo Hamas. E não caímos nas armadilhas do imperialismo nem daqueles setores que se declaram democráticos e de uma parte da esquerda, que, por essas questões, retiram seu apoio à resistência palestina, cedendo à pressão do imperialismo e do sionismo ao aceitarem o argumento de que os palestinos são retrógrados enquanto Israel é avançado, justificando isso, por exemplo, com leis como a do casamento LGBTQI+. Nenhuma dessas medidas pode nos fazer esquecer que, hoje, Israel tem o objetivo de exterminar todo o povo palestino e que devemos estar ao lado da resistência palestina contra essa tentativa genocida.[5]

    Notas

    1. “A polícia israelense queria retirar as bandeiras palestinas do bairro judeu. Os judeus não permitiram e se enfrentaram com a polícia. A polícia israelense invadiu o bairro de Mea Shearim, onde vivem os judeus em Jerusalém, e tentou retirar as bandeiras palestinas. Os judeus não permitiram essa ação, se opuseram à polícia sionista, e a polícia agrediu brutalmente os judeus”. Publicado por Torah Judaism (Judaísmo da Torá), 11/10/2023. ↩︎
    2. Essa “prisão nazista a céu aberto” foi chamada de “gueto” em referência aos bairros onde, na Idade Média, os antigos reinos europeus obrigavam os judeus a se concentrar, a fim de controlá-los melhor e submetê-los a massacres (os pogroms) sempre que desejassem. ↩︎
    3. Publicado por Al Jazeera, 10/10/2023. ↩︎
    4. Jenin é uma cidade da Cisjordânia que abriga um campo de refugiados, notório por sua forte resistência aos massacres sionistas. ↩︎
    5. O Irgun chegou inclusive a explodir o Hotel King David em 1946, matando ingleses, árabes e até judeus durante o Mandato Britânico (para amedrontar os britânicos, visto que o Irgun era contra reservar qualquer parte da Palestina para os árabes). ↩︎
  • Perspectiva Marxista

    Este site pretende reunir os escritos que produzi durante mais de 50 anos de militância política revolucionária. São artigos, ensaios, livros, vídeos e lives sobre assuntos diversos, políticos e teóricos: cidadania e classe, materialismo histórico, reforma e revolução, crítica ao sionismo e ao Estado de Israel, autodeterminação nacional, moral revolucionária, opressões, história do movimento operário e outros.

    Muitos temas são abordados de um ponto de vista teórico, mas essa produção sempre esteve estreitamente ligada e a serviço da militância política revolucionária da LIT e do PSTU do Brasil. Por isso, a maioria são escritos publicados na revista Marxismo Vivo, da qual fui um dos editores durante 23 anos, no site da LIT, no Centro de Formação Riazanov, no site e no canal do PSTU.

    Como são escritos e debates de diferentes épocas, resolvi agrupá-los por temas, identificando quando foram escritos, para facilitar a compreensão e a conexão entre os conceitos e conclusões de cada um deles.

    Espero que esses trabalhos sejam úteis aos novos militantes e ativistas, principalmente os mais jovens, que se aproximam das ideias socialistas, do marxismo e do trotskismo, e que os ajudem a intervir na luta de classes.

    José Welmowicki (Zezoca)