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  • A invenção do povo judeu, de Shlomo Sand: uma obra demolidora do sionismo

    A invenção do povo judeu, de Shlomo Sand: uma obra demolidora do sionismo

    Existem inúmeros mitos na história, grandes falsificações que são transmitidas de geração a geração como se fossem verdades. Algumas dessas falsificações históricas têm um alcance mundial, como é o caso da natureza da população judaica que, motivada pelo sionismo, teria se deslocado para a Palestina e, numa ação de limpeza étnica, dado origem ao Estado de Israel.

    Por: José Welmowicki

    Se algum jornal ou revista europeu ou algum veículo da mídia norte-americana colocar o tema, ou se um professor universitário (pelo menos a maioria deles) de um desses países ensinar a um
    estudante qual a origem dos judeus, vai receber provavelmente a seguinte resposta:

    Os judeus são os descendentes diretos dos antigos hebreus, o povo que habitou a região da Judeia, o mesmo povo que criou a religião mosaica (de Moisés) ou Judaísmo, como é conhecida hoje. Eles foram expulsos pelo Império Romano por volta do ano 70 da era cristã (na chamada Diáspora) e, após uma longa jornada de quase 2 mil anos, retornaram à sua terra, a antiga Canaã bíblica, conhecida agora por Palestina. A partir desse retorno, fundaram o Estado de Israel.

    Essa “tese histórica” não passa de uma construção mítica pelo sionismo, mas é difundida como verdade. Tem defensores em toda a mídia e na quase totalidade dos partidos políticos dos países capitalistas, em particular dos imperialistas. Mas vem sendo colocada à prova devido aos crimes do Estado de Israel, os massacres genocidas que pratica, o racismo que alimenta e a permanente política de limpeza étnica que geram os protestos contra o apartheid e campanhas internacionais de boicote, como o BDS, que tem crescente apoio em todo o mundo.

    Para fazer frente a esses protestos e à indignação crescente contra o sionismo, os governos imperialistas defendem o Estado de Israel, alegando que são “exageros” ou más condutas de governos de um povo que foi perseguido, mas que está exercendo um direito “histórico legítimo”: o de voltar à sua terra ancestral e reconstruir seu Estado nacional. Enfim, seriam métodos equivocados em defesa de um direito, o direito do povo judeu de retornar à sua terra histórica.

    A invenção do povo judeu

    O historiador israelense Shlomo Sand fez uma pesquisa profunda sobre o tema e chegou à conclusão de que toda essa construção histórica não tem a menor base científica. E ainda mais impactante: ele apoia-se na própria historiografia judaica e na arqueologia israelense para demonstrar a falsidade dessa versão e chama, com toda a razão, esse conjunto de mitos de A Invenção do povo judeu, título de seu livro.

    Shlomo Sand é professor de História Contemporânea da Universidade Hebraica. Nasceu na Alemanha, num campo de refugiados, logo após a Segunda Guerra Mundial, em 1946. Emigrado aos dois anos de idade com seus pais para a Palestina, viveu toda sua vida posterior como israelense. Jovem ainda, teve de lutar na Guerra dos Seis dias (1967), em que Israel terminou de ocupar toda a Palestina. Desde aí, começou a questionar o caráter dessa guerra e o próprio sionismo. Daí veio sua decisão de investigar as raízes da ideologia sionista para verificar se tinha algum sentido a versão oficial sobre a justificação da colonização judaica na “Terra Prometida”.

    O livro de Shlomo Sand tem uma qualidade que dá grande valor às suas afirmações. Ao ser feito em Israel, ele pôde utilizar as descobertas arqueológicas israelenses, revelando algumas que contrariavam as versões oficiais e eram omitidas, desmistificando as fraudes com rigor científico e trazendo-as à luz da história e da arqueologia para derrubar esses mitos de forma corajosa e, ao mesmo tempo, séria e metódica. Vejamos os principais mitos que ele desconstrói.

    Os mitos

    1. O mito da Diáspora (dispersão): os judeus foram um povo que ocuparam aquela terra desde Abraão, passando por Moisés e, depois de dois exílios, da queda do Primeiro Templo pela invasão da Babilônia, e do Segundo Templo, já no Império Romano, Roma decidiu expulsar completamente esse povo da chamada Terra Santa, o que ocasionou a diáspora.

    Munido de farta documentação, Sand demonstra que não houve nada semelhante, sequer vagamente, a essa pretendida expulsão. Nem era a política dos romanos que, embora dominassem com extrema crueldade, escravizassem os povos, prendessem os rebeldes eventuais, não tinham como prática expulsar povos inteiros. Mais ainda, não há registros dos historiadores da época, dos comentaristas, sobre essa suposta expulsão, mesmo depois das revoltas dos Celotes e de Simon bar Kochba.

    Por outro lado, há registros de comunidades judaicas anteriores, que viviam nas imediações da Palestina, como por exemplo na Babilônia (império que ocupou a Mesopotâmia, onde fica o atual Iraque), e em Alexandria (atual Egito), desde antes desse período e que não fizeram nenhum esforço para “retornar a Sião”. Não existe nenhuma prova – antes de surgir o movimento sionista em fins do século XIX – de que houvesse uma comunidade judaica que, por séculos, quisesse voltar.

    O sionismo assumiu a versão herdada de historiadores como Heinrich Graetz sobre uma suposta perenidade de um sentimento judaico por uma volta à Palestina e aproveitou-se do mito para sustentar sua tese de ser um movimento de libertação nacional, como parte de uma série de movimentos libertadores para trazer de volta esse povo para o que eles proclamavam ser sua antiga terra (Zion ou Sion). Ou, como eles formularam: “voltar a Sião”.

    1. A História Judaica é uma confirmação dessa descendência dos judeus em relação a seus antepassados hebreus.

    Sand demonstra que a assim chamada História Judaica não passa de uma versão do Velho Testamento. Até o século XIX, não havia uma historiografia judaica propriamente dita. Os criadores da História Judaica são bem recentes. Heinrich Graetz, judeu alemão, Simon Dubnow, russo, e Salo W. Baron, norte-americano, já no século XX, criaram o que se convencionou chamar uma História Judaica. Essa foi a fonte da historiografia sionista posterior.

    Sand resume o conteúdo dessas obras e explica como seus autores se limitam a tomar os relatos bíblicos e dar-lhes um caráter histórico, retirando-lhes alguns aspectos mágicos, ou sobrenaturais. Quando suas assertivas se chocam com a realidade, explicam suas incoerências e contradições alegando que as descobertas históricas e arqueológicas são irrelevantes ou considerando os personagens como expressão simbólica de um fato, e continuam a aceitar os relatos bíblicos que os envolvem como simbólicos de tais fatos dados como verdade.

    Suas teses simplesmente tentam dar às versões bíblicas um rigor histórico, laico, pretensamente científico: assim, esses historiadores aceitam todo o relato bíblico sobre a ida dos hebreus ao Egito e sua fuga (o êxodo) com Moisés à frente como um fato, embora sem os milagres. Por isso, aceitam a existência de Moisés e do êxodo, mesmo sabendo que a versão de que houve um êxodo em massa dos hebreus para Canaã (nome bíblico da Palestina), naquele momento, era inviável (um povo inteiro passar 40 anos no deserto!) e sem sentido, pois a Palestina também estava ocupada pelo império dos Faraós.

    Aceitaram como um fato a existência de dois grandes reis, Davi e Salomão, e a divisão posterior em dois reinos, Judá e Israel. As descobertas não confirmam essa versão bíblica. Quando algum historiador crítico chamava sua atenção para as incongruências dos relatos e como não se coadunavam com as pesquisas existentes e as descobertas arqueológicas, eles acusavam a esses críticos de mal interpretar e até de ter uma visão antissemita.

    1. O uso da Bíblia como fonte de informações

    Sabe-se que o estudo e a prática da arqueologia sempre foram muito difundidos em Israel, a ponto de tornarem-se uma verdadeira mania entre alguns dirigentes políticos, como Ben Gurion. A arqueologia serviu, primeiramente, para afirmar os mitos do sionismo. Porém, em seguida, descobertas inconvenientes começaram a aparecer e a jogar por terra as supostas verdades: por exemplo, que existiram os dois reinos, Judá e Israel. Outra dúvida é se existiu, de fato, a fuga do Egito, o chamado êxodo, tão celebrado na religião e no cinema, com filmes famosos como Os 10 Mandamentos. Para desespero dos sionistas, as pesquisas não confirmavam essa versão bíblica. As ruínas mostraram que não havia provas da existência do Primeiro Templo 1 e destruiu a pretensa história de um povo que sempre esteve ligado à terra prometida (Sião) e cujo destino era retornar a ela. Em outras palavras, a própria arqueologia israelense, tão reverenciada, na verdade, mostrou que as alegações da Bíblia não eram uma repetição, embora com acréscimos “mágicos”, de uma história real de um povo, mas de relatos míticos que nem sequer estavam associados à existência de muitos dos personagens descritos.

    Quem escreveu o Velho Testamento?

    O mais provável é que haja uma descontinuidade bem grande e que, quando ergueram o Segundo Templo, por volta do século VI a.C., tenha havido um curto período de recomposição quando Esdras e Neemias 2, vindos da Babilônia, foram a Canaã. Embora haja discussões sobre a data exata, o mais provável é que quem escreveu o Velho Testamento tenha vivido entre os séculos VI e V a.C., e a partir dessa data, imaginou um relato do que se passou em todo aquele passado remoto, desde a origem hebraica, com Abraão, depois José, Moisés etc. Ou seja, a história judaica tal como se conhece, ao basear-se na Bíblia, não tem nenhum rigor histórico. As descobertas incômodas eram deixadas de lado pela arqueologia e pela historiografia oficial ou justificadas com argumentos insustentáveis pelos ideólogos do Estado de Israel para adaptá-las, forçadamente, ao relato bíblico dado como fonte histórica a priori.

    1. Os judeus de hoje são todos descendentes dos antigos hebreus que tiveram de se exilar após a diáspora.

    Para os historiadores oficiais da chamada História Judaica e para os sionistas, a diáspora teve como consequência o espalhamento dos judeus pelos outros continentes, distantes de sua terra pela qual nunca deixaram de sentir um desejo de retorno. Quando os historiadores sionistas falam em diáspora, partem do pressuposto de que esses judeus, supostamente expulsos no século I, teriam continuado a ser um povo, ou seja, eram a mesma etnia que mantinha, a todo custo, sua cultura e sua religião em outras terras, quando não era obrigada a converter-se, outro mito desmascarado por Sand.

    Na verdade, além de terem vários de seus fieis convertidos a outras crenças e culturas, no que é chamado pelos próprios religiosos judaicos de “assimilação”, o judaísmo também era proselitista, ou seja, seus defensores convertiam grupos e povos ao longo de sua trajetória. Há registros de comunidades e reinos inteiros convertidos ao judaísmo em várias regiões, como os reinos berberes da tribo Djeraoua [habitantes de Aurés, região no leste da Argélia, N. do T.]. A existência de um reino berbere judaico e de sua famosa rainha Kahina prova que a expansão proselitista chegou à África. No livro de Sand, há farta informação sobre esse processo de conversão de comunidades ao judaísmo.

    Na Ásia, na própria península arábica, houve um reino nabateu de fé judaica até o ano 106. Antes da ascensão do Islã, os judeus instalaram-se em cidades como Yathrib (depois rebatizada como Medina). Há inclusive a hipótese de que o monoteísmo judaico tenha influenciado o estabelecemento das bases espirituais que permitiram a ascensão do Islã, o que refreou a expansão do judaísmo. A maior prova dessa presença do judaísmo na área foi o reino de Himiar (nome de uma tribo da região) no atual Iemen, que durou do final do século IV ao século VI.

    Mas houve um reino de maior influência sobre o futuro judaísmo, que provavelmente gerou as numerosas comunidades judaicas polonesa, russa, romena etc. Esse reino foi o dos khazares, que chegou a ter uma extensão enorme, indo das estepes vizinhas do Volga e norte do Cáucaso até o mar Negro e o mar Cáspio. Em seu apogeu, chegou até Kiev, na Ucrânia, e à Crimeia, no sul, estendendo-se do alto Volga até a Geórgia atual. Sua conversão, por um rei chamado Budan, data do século VIII. O reino khazar agregou várias etnias, tais como búlgaros, alanos, eslavos, magiares. Durou até o século XI, destruído após sucessivas derrotas ante os mongóis e outros reinos ucranianos e russos.

    Desprezada pela historiografia judaica oficial, pois também desmente a ideia de que os judeus europeus do século XX eram descendentes dos hebreus da Terra Prometida, a história dos khazares dá a chave para entender a constituição étnica de boa parte dos judes europeus. Há vários documentos que atestam a importância desse reino para a formação das comunidades judaicas da Ucrânia, da Lituânia e da Polônia e para a formação dos ashkenazis 3 em geral. Mesmo o russo Simon Dubnov, um dos principais historiadores da História Judaica, reconheceu a importância desse reino e que ele era parte da “história do povo judeu”.

    O mesmo fez Abraham Polak, historiador sionista que escreveu um livro dedicado ao tema, Khazária, publicado em 1951. Mas esse reconhecimento durou até a fundação de Israel. Depois disso, houve a necessidade de “adequar a história” aos postulados sionistas. Aí reside o problema: os ashkenazim formam a maioria das comunidades judaicas no mundo hoje e foram a base para a ascensão do sionismo. Era muito incômodo reconhecer a existência de um povo de origem distinta à dos hebreus da Terra Prometida e que tivesse um papel decisivo na formação das comunidades judaicas da Europa e dos ashkenazim em especial e no próprio movimento sionista.

    Sand relata que, de 1951 até a edição de seu livro, nenhuma publicação em hebraico foi feita sobre os khazares, nem mesmo a reedição do livro de Polak. O fundamental para o establishment sionista era a necessidade de tirá-lo de cena, fazer com que esse reino de um povo convertido ao judaísmo fosse esquecido.

    Para isso, o sionismo teve a ajuda do stalinismo. Na década de 1920, houve uma série de pesquisas sobre os khazares na União Soviética, mostrando as raízes judaicas desse reino e seu papel na formação da Rússia.

    Nos anos 1930, Stalin, que controlava a pesquisa histórica e a censurava com mão de ferro, moldando-a de acordo a suas necessidades políticas, condenou essas pesquisas, pois queria negar a outras culturas que não a russa um papel de importância, e proibiu a publicação de materiais sobre esse reino e seu papel na origem da nação. Os historiadores tiveram de se autocriticar ou se silenciar.

    Em 1976, o famoso escritor Arthur Koestler, ex-comunista e sionista militante, escreveu um livro sobre os khazares, A 13ª tribo. Esperava, com isso, negar a origem racial dos judeus e deixar sem argumento os antissemitas, ao demonstrar que os judeus não pertenciam a uma raça, e eram uma fusão de várias origens étnicas. Mas os sionistas não podiam tolerar tal desmentido a seu postulado do “povo eleito que retorna à sua pátria”. O embaixador de Israel na Grã-Bretanha tachou essa publicação de “uma ação antissemita subvencionada por palestinos”. A Organização Sionista Mundial cobriu o escritor de insultos e mobilizou professores como Zvi Ankori, que alegou que a tese era “prejudicial ao Estado de Israel”.

    A versão oficial sionista era a de que a comunidade ashkenazim provinha dos hebreus através de um largo percurso: seria procedente da Alemanha que, por sua vez, viria da Itália, descendentes dos hebreus que haviam sido levados à capital do Império Romano na Idade Antiga.

    Mas, como nota Sand, é difícil aceitar essa versão: todas as informações existentes comprovam ser minúscula a comunidade judaica alemã no início da Idade Média, supostamente originada dos hebreus. Como essa pequena comunidade poderia ser a origem dos judeus da Europa Oriental?

    Os judeus da Europa na Idade Média, e até hoje, mesmo com o genocídio nazista, que atingiu fundamentalmente os ashkenazim, agrupam cerca de 75% a 80% de todos os judeus do mundo. A Europa Oriental, na chamada Terra do Iídiche 4, foi origem de uma série de movimentos culturais e artísticos, políticos e científicos, com a participação de judeus ashkenazim. O iídiche era o dialeto falado pelos judeus da Europa Oriental, mas o sionismo baniu essa língua e impôs o hebraico como língua oficial.

    Uma pesquisa mais detalhada sobre os hábitos culturais da enorme comunidade judaica da Europa Oriental indica uma proximidade muito grande com os não judeus de seus países, sejam polacos, ucranianos, lituanos, romenos ou russos. O que indica ser muito mais provável que a origem da maioria dos askenazim seja a dos khazares convertidos, obviamente em combinação com as etnias da região. Mas não há como demonstrar que a origem de toda essa comunidade
    da Europa Oriental venha dos hebreus.

    Conclusão: a ironia da história

    Como se sabe, para a ideologia sionista, a volta a Sião significava retomar uma terra que tinha uma população concreta, os palestinos. Por isso, era necessário justificar essa solução como natural, legítima. Essa foi a razão para criar o famoso slogan: “Uma terra sem povo para um povo sem terra”.

    O mais provável é que os descendentes dos antigos judeus, habitantes da então Judeia, não sejam os que hoje reivindicam essa identidade de sionistas, mas sim os palestinos. Sand analisa a história das ocupações desse território desde o Império Romano e da destruição do Segundo Templo em Jerusalém. O Império Romano ocupou a Palestina desde esse momento e, com a divisão em dois impérios, um deles, o Império do Oriente ou Império Bizantino, manteve o controle da Palestina até o século VII. Esse império cristão era extremamente opressor contra as demais religiões. Já a ocupação pelo Império Muçulmano abriria a possibilidade para os crentes de outras religiões – em especial as monoteístas – aderissem e, inclusive, tivessem regalias em relação a impostos sobre os não crentes.

    É muito plausível que uma boa parte dos “judaístas” tenha optado por aderir a essa nova religião monoteísta e mais integradora que a dos cristãos bizantinos.

    O mais incrível é que os primeiros sionistas que chegaram à Palestina no final do século XIX e início do século XX eram bem conscientes dessa possibilidade e, por isso, sonharam inclusive com a adesão dos camponeses locais, os felás, ao projeto sionista.

    Israel Belkind, que emigrou em 1882, dizia que os palestinos deviam ser descendentes dos antigos judeus e que apenas a elite havia deixado a terra na época da revolta de Bar Kochba. Portanto, os sionistas deviam buscar trazê-los para o projeto do Estado judeu.

    Borochov, fundador do Poalei Zion, origem da assim chamada esquerda sionista, afirmou em 1905:

    «A população autóctone do país de Israel [Palestina, na sua fonte original] é mais próxima dos judeus por sua composição racial que qualquer outro povo e até mais que outros povos ‘semitas’. Pode-se levantar a hipótese muito plausível de que os felás do país de Israel sejam os descendentes diretos dos vestígios da implantação judaica em Canaã, com um leve complemento de sangue árabe, porque, como se sabe, os árabes, esses orgulhosos conquistadores, misturaram-se relativamente pouco com a massa dos povos que subjugaram nos diversos países» (apud Sand, p. 334).

    Ben Gurion, discípulo de Borochov, fundador e primeiro chefe de governo de Israel, de 1948 até os anos 1960, escreveu em 1918 um livro em parceria com Ytzhak Ben Zvi, outro fundador e presidente de Israel, cujo título era Eretz Israel no passado e presente.

    Nesse livro, dedicaram um capítulo à história dos felás, afirmando que «a origem dos felás não remonta aos conquistadores árabes que dominaram Israel e a Síria no século VII de nossa era. Os conquistadores não eliminaram a população de lavradores que ali encontraram. Expulsaram apenas os soberanos bizantinos estrangeiros. Não fizeram mal algum à população local. Os árabes não se preocupavam em fazer assentamentos. Os filhos dos árabes não praticavam mais a agricultura em seus locais de residência anteriores […]. Quando conquistavam novas terras, não procuravam novos terrenos para desenvolver uma classe de camponeses-colonos que, aliás, era quase inexistente entre eles. O que lhes interessava era de ordem política, religiosa e financeira: governar, difundir o Islã e arrecadar impostos” (apud Sand, p. 336).

    Em 1967, o historiador Abraham Polak, fundador do Departamento de História da Universidade de Tel Aviv, quis estudar a “origem dos árabes autóctones” e escreveu um ensaio em que assumia
    a possibilidade de que os palestinos fossem descendentes dos antigos judeus que habitavam a região e haviam sido integrados e convertidos ao longo de séculos, ainda mais numa região de passagem como era esse território situado entre o rio Jordão e o mar, onde várias populações se misturaram a seus conquistadores, vizinhos ou súditos. Mas Polak trabalhava com a hipótese de que os judeus do passado, em sua maior parte, converteram-se à religião muçulmana, e que uma continuidade demográfica teria sido mantida da Antiguidade aos dias de hoje.

    Polak quis fazer uma pesquisa para averiguar essa hipótese, mas não conseguiu nenhum apoio na universidade, pois sua pesquisa contrariava frontalmente a tese sionista. Se fosse provado que, em grande parte, os palestinos eram os verdadeiros descendentes dos “judaístas”, dos hebreus, todo o edifício sionista cairia por terra.

    Ou seja, existe uma hipótese levantada, até mesmo pelos primeiros sionistas, de que os palestinos podem ser os descendentes dos judeus de dois mil anos atrás. E a proibição a que essa hipótese seja investigada só se explica porque, caso fosse comprovada, se confirmaria uma ironia da história: que os sionistas não somente não têm a descendência que apregoam desses habitantes, mas também que eles teriam invadido a Palestina para expulsar os verdadeiros descendentes dos hebreus.

    Convidamos nossos leitores a ler o livro de Sand, aprofundar o estudo sobre os mitos e conhecer melhor esses fatos demolidores das teses sionistas.

    Notas

    1. Segundo o Velho Testamento, após um período de luta para constituir uma nação, os hebreus derrotaram vários inimigos.Tiveram como líderes os juízes (entre eles, Sansão, Samuel) e fundaram um reino único, o qual teve três reis, Saul, David e Salomão. Davi é conhecido pela fábula da luta contra o gigante Golias. Segundo esse relato bíblico, o rei Salomão construiu um templo suntuoso, que ficou conhecido como Primeiro Templo, que teria durado até o século VI a.C., pois teria sido destruído após sucessivas invasões de egípcios, assírios e, finalmente, seria arrasado pelos babilônios. Após a derrota dos babilônios pelos persas, o imperador Ciro da Pérsia permitiu o retorno de um grupo de hebreus, liderados por Esdras, um sacerdote, e Neemias, um nobre, que foram autorizados a reconstituir uma comunidade judaica e, em seguida, construíram um templo em Jerusalém, que ficou conhecido como o Segundo Templo. ↩︎
    2. Esdras era um sacerdote judeu que vivia na Babilônia e, autorizado pelo imperador persa, levou um grupo de fiéis para instalar uma comunidade judaica em Canaã. Com a ajuda de Neemias, um nobre, construíram um templo em Jerusalém, chamado de Segundo Templo. (J. W.) ↩︎
    3. Os judeus da era moderna dividem-se, em geral, entre os ashkenazim e os sefaradim. Os primeiros eram os judeus que habitaram a Europa Oriental e deram origem a comunidades judaicas numerosas no resto do mundo, como na América do Norte e na América Latina. Sua maior concentração até a Segunda Guerra Mundial era nos países da Europa Oriental, em particular nos de maioria eslava, como Polônia, Ucrânia e também na Lituânia, Hungria e Romênia. Os Ashkenazis desenvolveram uma cultura rica, com seu próprio dialeto: o iídiche. Os sefaradis são os judeus originários da Ásia, que se estabeleceram na Espanha e tinham um dialeto e uma cultura próprias, diferentes das dos ashkenazis. ↩︎
    4. O iídiche era o dialeto falado pelos judeus da Europa Oriental, onde se desenvolveu toda uma rica cultura, com sua literatura, música, etc., com autores como Scholem Aleichem. Com o advento do sionismo, ela foi relegada a segundo plano. O sionismo negou esse patrimônio cultural, alegando que “era o idioma da diáspora”. Os sionistas recriaram o hebraico, que era um idioma usado somente em orações, e o impuseram como o idioma oficial em Israel. ↩︎

    Publicado em março de 2015, na revista Marxismo Vivo N. 5.

  • As contribuições de Engels ao marxismo

    As contribuições de Engels ao marxismo

    Um amplo leque de correntes e intelectuais centra seus ataques no legado teórico de Friedrich Engels ao marxismo. Parte dessa campanha inclui muitos que se reivindicam marxistas. Diante do nocivo mecanicismo stalinista, propõem um “retorno” às origens do pensamento de Marx, como uma espécie de “vacina” contra tudo que possa parecer determinismo, econômico ou natural. Como afirma Nahuel Moreno: “todas as correntes revisionistas modernas atacam a Engels em nome do marxismo”. 1 Devido ao imenso prestigio de Marx, o alvo escolhido foi Engels, que lhes pareceu um alvo menos difícil de atingir, apesar de ser um dos pais do próprio marxismo.

    Por José Welmowicki

    Em seus últimos anos, Engels foi um deformador da obra de Marx? Foi um determinista? Sua aplicação do materialismo dialético à natureza constitui uma extrapolação indevida de uma dialética que se aplica unicamente à sociedade? Sua visão sobre o tema preparou o terreno para a degeneração da II Internacional e para o stalinismo? Engels terminou caindo numa lógica positivista, isto é, numa visão de que o progresso da sociedade ocorre a partir de uma crescente incorporação da ciência em seu seio?

    A polêmica ao redor desses assuntos tem mais de um século; são temas recorrentes sempre que se discute a figura de Engels. Por isso, vamos aqui sistematizar os principais questionamentos que foram surgindo, ainda que não seja possível incluir todos. Entre os críticos mais conhecidos estão Lukács e vários de seus seguidores, alguns dos principais filósofos da Escola de Frankfurt (como Herbert Marcuse), Jean Paul Sartre, e correntes como os chamados “marxistas humanistas”, oriunda da Tendência Johnson-Forrest (pseudônimos de C.R.L. James e Raya Dunayevskaia, respectivamente), uma cisão do antigo SWP norte-americano na década de 1950, assim como boa parte dos intelectuais que, embora se reivindiquem marxistas, não defendem a revolução socialista, mas apenas a radicalização da democracia.

    Por outro lado, não partiremos do zero, porque já existe uma polêmica desenvolvida contra intelectuais anti-engelsistas. Rosa Luxemburgo, Lenin e Trotsky, durante toda sua vida apoiaram-se explicitamente nas elaborações de Marx e Engels, e defenderam-nas contra os revisionistas da II Internacional e contra o stalinismo no caso de Trotsky.

    Como essa polêmica não é nova, muitos autores estudaram a obra de Engels e demonstraram sua identidade com o pensamento de Marx, começando por David Riazanov. Mais recentemente, autores como Nahuel Moreno 2, John Rees 3 e o economista marxista Michael Roberts também se posicionaram nesse sentido.

    Entre estas contribuições, uma muito importante foi a do físico-químico Robert Havemann, que viveu na Alemanha Oriental, sobre a relação entre o materialismo dialético e as ciências.
    Havemann foi um cientista defensor do marxismo e também um ativista político contra o regime vigente. Ele se enfrentava no campo teórico com a concepção stalinista da burocracia da RDA e do Kremlin nas décadas de 1960 e 1970.

    O primeiro ataque: Lukács

    Uma das primeiras vozes nas fileiras marxistas a questionar Engels, argumentando contra a utilização do método dialético para analisar a natureza, foi o filósofo húngaro Georg Lukács. Seus primeiros comentários críticos aos conceitos de Engels sobre a relação entre homem e natureza aparecem no livro História e consciência de classe, publicado em 1923. No artigo “O que é o marxismo ortodoxo?”, incluído no livro, ele afirma numa nota de rodapé, em que fica mais claro o questionamento a Engels.

    «Esta limitação do método à realidade histórico-social é muito importante. Os mal-entendidos que o modo engelsiano de expor a dialética tem causado derivam essencialmente do fato de Engels – seguindo o mau exemplo de Hegel – ter estendido o método dialético ao conhecimento dos natureza; sendo assim as determinações decisivas da dialética; ação recíproca entre sujeito e objeto, unidade de teoria e prática, modificação histórica do substrato das categorias como base de sua modificação no pensamento, etc., não são encontrados no conhecimento da natureza. Infelizmente, não tenho espaço para discutir essas questões em detalhes4

    Para Lukács, Engels ignora a questão da dialética sujeito-objeto no processo histórico, segundo ele essencial ao marxismo. Essa determinação, de acordo com essa leitura, levaria a retirar do método dialético a questão da transformação prática, sua dimensão prática-revolucionária, e isso acarretaria uma volta ao materialismo contemplativo, ao estilo de Feuerbach. Ou seja, a busca de uma dialética que ligasse a história humana à história natural seria incorreta. Por isso, Lukács acusava Engels de obscurecer a dialética autenticamente revolucionária de Marx. 5

    O problema é que a realidade não pode ser separada em planos ou compartimentos intransponíveis, sujeitos a leis completamente diferentes, pois se um desses planos é considerado “real”, que nome poderia ser dado aos demais? Se existe um plano que não pertence àquilo que é real, só pode ser algo irreal, algo que não está no mundo objetivo e só tem significado enquanto obra da imaginação; portanto, a ideia criaria um outro mundo, e recaímos no idealismo. Ou seja, se a natureza forma uma totalidade, na qual está contemplada o mundo objetivo – e a humanidade faz parte dele –, não há sentido em isolar a humanidade ou isolar a natureza, vendo seu desenvolvimento em oposição ao homem e à sociedade. Por isso, é um erro ver a dialética “somente” na sociedade, não na natureza.

    Uma parte do chamado “marxismo ocidental» 6 posteriormente iria além e negaria completamente a existência de uma dialética na natureza. Isto leva diretamente ao idealismo filosófico.

    Afinal, se a natureza é alheia à dialética, se ela não tem um desenvolvimento através da história, e só quem tem uma história é a humanidade, isso significa que existem duas esferas paralelas e isoladas: a sociedade humana, que tem história, e a natureza 7. Assim, a humanidade estaria se movendo em base a leis próprias de sua esfera. E a natureza, por não possuir tais leis, seria estática e teria surgido de alguma origem/causa externa – o que era a convicção de Hegel. Lembremos que Hegel defendia que a ideia era a geradora da realidade objetiva (por isso, Lenin chama sua concepção de “idealismo objetivo”).

    As teorias científicas sobre a evolução do sistema solar e dos planetas, assim como a teoria da evolução das espécies de Darwin, dão base uma visão dialética da natureza, independente da ação humana até seu surgimento. A partir do surgimento da humanidade passa a haver uma interação em que o ser humano, diferentemente dos demais animais, atua sobre o mundo real, tal como ele é.

    A crítica de Lukács não teve grande repercussão imediata e ele se retratou depois, quando aderiu ao stalinismo. Mais tarde, em textos como Prolegômenos para uma Ontologia do ser social, publicado postumamente, voltou a fazer críticas às formulações filosóficas de Engels, embora reivindicando seu papel na elaboração e divulgação do marxismo.

    Mas o importante aqui não é seguir todo o percurso teórico de Lukács, com suas idas e vindas. O central é entender que essa crítica do jovem Lukács inaugurou uma linha de contestação às posições de Engels, assumida depois por vários intelectuais, lukacsianos ou não.

    Outros críticos

    A maioria dos “marxistas ocidentais” inspira-se nessa crítica para considerar o materialismo dialético e o materialismo histórico, além do conceito de socialismo científico, como parte de uma visão determinista, atribuída a Engels, e não a Marx (ou pelo menos não ao jovem Marx). 8

    A Escola de Frankfurt ficou conhecida no período pós-guerra, quando defendeu que houve um desvio do marxismo após os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, onde está o texto «O Trabalho Alienado», considerado por Erich Fromm como o texto central da “concepção marxista do homem”.

    Para alguns deles, após este texto, Marx e em particular Engels teriam supostamente abandonado o “humanismo” e caído numa visão cientificista. Coerente com essa revisão, alguns dos críticos da Escola de Frankfurt afirmavam que não é possível associar a luta pela liberdade humana e pela desalienação da humanidade a uma determinada classe, no caso o proletariado. Herbert Marcuse, um dos principais filósofos dessa escola, elaborou uma análise sobre o proletariado dos países avançados considerando que haveriam perdido seu caráter revolucionário pela transformação do capitalismo em ‘capitalismo dirigido’, com sua organização que incorporava a maior parte dos trabalhadores na sociedade estabelecida. 9 Eles rejeitavam o papel do proletariado como sujeito social e, nessa linha, deveria retomar-se conceitos como “essência humana” que estaria submetida a uma alienação na sociedade atual e passaram a deender como estratégia uma luta pela desalienação do ser humano em geral e centrada na libertação do indivíduo. 10

    O mesmo acabou acontecendo com o “marxismo humanista” de Raya Dunayevskaia 11, dos anos 1950-60. Após sair do SWP, focou sua estratégia nos conselhos operários, sem necessidade de um partido revolucionário, para logo depois deixar de ver a classe operária como sujeito social da revolução. O grupo foi pioneiro na procura de outros sujeitos sociais que substituíssem a classe operária, a partir dos setores oprimidos como os negros, as mulheres e outros. Esta tendência acabou deixando de se considerar um partido e permaneceu como um grupo intelectual de propaganda 12.

    Jean Paul Sartre, filósofo de grande influência no pós-guerra, atacava Engels por repetir a mesma concepção que havia criticado em Hegel: impor as leis do pensamento à matéria. Segundo Sartre, Engels estenderia arbitrariamente a razão dialética, as leis que descobriu no mundo social, à natureza e às ciências. 13 Como observa Nahuel Moreno, por meio dessa crítica Sartre pensava valorizar a escolha individual, com sua filosofia existencialista – opondo-a ao determinismo stalinista, contra quem lutava nas décadas de 1950 e 60. Tal concepção levou-o a “levantar uma muralha chinesa entre o humano e a natureza orgânica e inorgânica”. 14 Assim, Sartre também caiu numa separação completa entre homem e natureza, ignorando a elaboração marxista sobre essa relação e absolutizando a opção política individual, independente da realidade, das condições objetivas.

    O materialismo mecanicista em sua versão stalinista é uma decorrência da dialética da natureza de Engels?

    Estas críticas levantam uma questão: a afirmação de uma lógica dialética aplicada à natureza seria uma base para o materialismo vulgar e mecanicista dos stalinistas? Muitos críticos de Engels opinam que o conceito de uma dialética da natureza presta-se inevitavelmente ao materialismo vulgar e ao positivismo.

    A maioria dos antiengelsistas toma os textos filosóficos de Engels – Anti-Dhuring, Dialética da natureza e Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã – como demonstração de um suposto enrijecimento mecanicista, comparando-o negativamente com Marx, que escaparia a esse processo de vulgarização. Marx não teria conseguido impedir o companheiro de luta e de elaboração teórica de toda a vida de cair em semelhante deriva e, ao morrer em 1883, teria deixado Engels ainda mais livre para dar asas a seus supostos desvios cientificistas e mecanicistas. Em particular, a Dialética da Natureza é permanentemente denunciada como uma aplicação que se afasta completamente da concepção materialista dialética de Marx.

    No entanto, neste texto, Engels foi explícito sobre a relação dialética entre o homem e a natureza. Como fundamento dessa visão está sua recusa à tese de Hegel de que a natureza – no sistema idealista hegeliano é um atributo da Ideia que viveria uma eterna repetição – não seria suscetível a um desdobramento histórico. Engels ressalta a posição ativa do homem em relação à natureza. E antecipa como essa relação pode levá-lo a modificar e até mesmo destruir a natureza, antecipando a preocupação atual com a crise climática.

    Em um capítulo dessa obra, O Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem, ele escreve:

    «Mas não nos regozijemos demasiadamente em face dessas vitórias humanas sobre a natureza […] A cada uma dessas vitórias, ela exerce sua vingança. Cada uma delas produz, em primeiro lugar, certas consequências com que podemos contar, mas, em segundo e terceiro lugares, produz outras muito diferentes, não previstas, que quase sempre anulam essas primeiras consequências. Os homens que, na Mesopotâmia, Grécia, Ásia Menor e em outras partes destruíram os bosques para obter terras cultiváveis, não podiam imaginar que, dessa forma, estavam dando origem à atual desolação dessas terras ao despojá-las de seus bosques, isto é, dos centros de captação e acumulação de umidade. […] Somos a cada passo advertidos de que não podemos dominar a natureza como um conquistador domina um povo estrangeiro, como alguém situado fora da natureza; mas sim que lhe pertencemos, com a nossa carne, nosso sangue e nosso cérebro; que estamos no meio dela; e que todo o domínio sobre ela consiste na vantagem que levamos sobre os demais seres de poder conhecer suas leis e aplicá-las corretamente […] Na realidade, a cada dia que passa, aprendemos a entender mais corretamente as suas leis e a conhecer os efeitos imediatos e remotos resultantes de nossa intervenção no processo que a mesma leva a cabo15

    É interessante notar como, já nesse texto, Engels problematiza a relação homem-natureza, a relação dialética entre o progresso econômico e científico de determinada sociedade e as possíveis consequências sociais contraditórias:

    «Mas, se foi necessário o trabalho de milênios para que chegássemos a aprender, den-tro de certos limites, a calcular os efeitos remotos de nossos atos orientados no sen-tido da produção, isso era muito mais difícil no que diz respeito aos efeitos sociais remotos desses atos. (…) E, quando Colombo descobriu a mesma América, não podia supor que, dessa forma, daria vida nova à escravidão, já superada, desde muito, em toda a Europa, estabelecendo os fundamentos para o tráfico negreiro16

    Robert Havemann: o combate ao stalinismo na ex-Alemanha Oriental, apoiado em Engels

    Durante o domínio stalinista na antiga Alemanha Oriental, o cientista Robert Havemann escreveu o livro Dialética sem dogma. Havemann intervinha nos debates científicos quando as academias oficiais da ex-URSS e da ex-Alemanha Oriental se recusavam a aceitar as descobertas de cientistas como Linus Pauling 17, porque seriam uma “negação do materialismo dialético”. 18

    Robert Havemann viu-se obrigado a defender as descobertas científicas de Pauling e mostrar como a tentativa de vetar determinadas evidências, supostamente passíveis de um “idealismo burguês”, conduzia à negação do marxismo. Nesta defesa, Havemann colocava-se em defesa do marxismo contra o stalinismo, do materialismo dialético contra a deformação mecanicista da burocracia e, para contestar a burocracia soviética, apoiava-se em Marx e, particularmente, nos trabalhos filosóficos sobre a relação entre natureza e sociedade feitos por Engels.
    Sobre a relação entre ciência e método dialético, o cientista alemão escreve:

    «Vamos lembrar mais uma vez o que os clássicos falam sobre isso. Eles sempre enfatizaram que o problema capital das ciências naturais, como de todas as ciências para o resto, consiste em passar do pensamento mecanicista, metafísico, a um pensamento dialético cada vez mais consciente… Nenhum filósofo em todo o mundo pode dizer como a teoria das partículas elementares deve ser posta dialeticamente. Mas essa teoria não pode ser desenvolvida sem o pensamento dialético, nem o conhecimento já adquirido nelas será compreendido em toda a sua profundidade sem assimilar o pensamento dialético19

    «Essas ideias 20, não apenas admiravelmente confirmadas pela teoria científico-natural mas, além disso, aprofundados por ela, têm grande importância para toda a nossa relação com o mundo. A imagem do mundo traçada pelo materialismo mecanicista não nos deixou liberdade para uma ação real. Todo o futuro, incluindo todas as nossas ações, já estava totalmente determinado pelo passado.

    «A primeira ruptura com esse determinismo rígido e, além disso, com a reinterpretação dos conceitos de passado, presente e futuro, ocorreu motivado pelos resultados da teoria da relatividade […] o passado é tudo aquilo de que podemos ter conhecimento; futuro é tudo em que ainda podemos intervir. Nem uma coisa nem outra existem no mundo do determinismo metafísico clássico.

    «… O fato de que desafiamos a ideia mecanicista clássica de que o futuro é totalmente determinado não significa, é claro, que vamos declarar que o futuro é totalmente indeterminado. O futuro é codeterminado pelo passado, mas não é determinado de forma definitiva e absoluta. […]. O homem, com a sua atividade, não é uma mera bola com a qual jogam as casualidades fantásticas, mas justamente o inverso: o homem utiliza praticamente a casualidade dos acontecimentos para conseguir o que deseja. Se esse acaso cego não existisse, não poderíamos transformar o mundo com nossos olhos videntes. A liberdade do homem baseia-se precisamente no fato de que o futuro do mundo pode ser determinado porque ainda não está determinado21

    Como explicaremos mais adiante, o raciocínio de Havemann é bem semelhante ao de Lenin e Trotsky sobre como o materialismo dialético pode e deve ser aplicado à ciência e ao estudo da natureza: não como uma filosofia externa que se impõe à realidade, mas um auxílio para os cientistas melhor entenderem os processos complexos das ciências naturais.

    Evidentemente, há diferenças na aplicação das leis da dialética na natureza e na história, mas ambas são parte do real, do mundo objetivo.

    Engels tinha uma concepção oposta à de Marx na aplicação da dialética à natureza?

    De modo algum. Não só porque Engels trabalhou em equipe com Marx, havendo uma divisão de tarefas entre ambos em relação às suas áreas de estudo, mas porque a visão de Marx, elaborada em conjunto com Engels, permaneceu fundamentalmente a mesma quanto à interação entre homem, natureza e sociedade.

    No texto A Ideologia alemã – que, segundo Marx 22, serviu para colocar no papel a concepção materialista da história desenvolvida por ele e por Engels –, há uma série de referências a essa questão:

    «Por exemplo, a importante questão sobre a relação do homem com a natureza (ou então, como afirma Bruno na p. 110, as ‘oposições em natureza e história’, como se as duas ‘coisas’ fossem coisas separadas uma da outra, como se o homem não tivesse sempre diante de si uma natureza histórica e uma história natural), da qual surgiram todas as ‘obras de insondável grandeza’ sobre a ‘substância’ e a ‘autoconsciência’, desfaz-se em si mesma na concepção de que a célebre ‘unidade do homem com a natureza’ sempre se deu na indústria e se apresenta de modo diferente em cada época de acordo com o menor ou maior desenvolvimento da indústria; o mesmo vale no que diz respeito à ‘luta’ do homem com a natureza, até o desenvolvimento de suas forças produtivas sobre uma base correspondente. A indústria e o comércio, a produção e o intercâmbio das necessidades vitais condicionam, por seu lado, a distribuição, a estrutura das diferentes classes sociais e são, por sua vez, condicionadas por elas no modo de seu funcionamento – e é por isso que Feuerbach, em Manchester, por exemplo, vê apenas fábricas e máquinas onde cem anos atrás se viam apenas rodas de fiar e teares manuais, ou que ele descobre apenas pastagens e pântanos na Campagna di Roma, onde na época de Augusto não teria encontrado nada menos do que as vinhas e as propriedades rurais dos capitalistas romanos23

    Marx teria modificado essa posição em uma fase posterior? Vejamos o trecho de O Capital em que Marx defende uma concepção idêntica:

    «Aqui, como nas ciências da natureza, se comprova a verdade da lei descoberta por Hegel em sua Lógica, segundo a qual, ao chegar a um determinado ponto, as mudanças meramente quantitativas se convertem em variações qualitativas. E, em uma nota de rodapé, Marx desenvolve essa ideia: a teoria molecular da química moderna… baseia-se em nenhuma outra lei além dessa24

    Riazanov, o maior estudioso sobre a obra de Marx e Engels e responsável pela formação do Instituto Marx-Engels na antiga URSS, resgatou várias obras inéditas ou publicadas de forma fragmentada pelos seus executores testamentários alemães (entre eles, Bernstein). Segundo ele,

    «Entre o ponto de vista da Ideologia Alemã e o que se desenvolveu no primeiro volume de O Capital não há qualquer tipo de ‘salto’. As concepções básicas que Engels desenvolveu no Anti-Dühring na seção de Filosofia, mesmo nas partes relacionadas às ciências naturais, já tinham sido completamente formuladas em O Capital em uma série de observações, que foram tão distorcidas por Dühring. No Anti-Dühring, Engels desenvolve o método dialético que Marx e ele tinham criado e que tinham empregado desde 1846, desde o tempo da Ideologia alemã. Quando publiquei Dialética da Natureza de Engels, que eu tinha descoberto, meu prefácio enfatizou que, em comparação com o que Engels havia dito no Anti-Dühring, este não continha nenhuma ideia nova. Eu escrevi ‘nenhuma ideia nova’ intencionalmente. A tentativa insustentável de alguns companheiros de encontrar algumas diferenças entre o Anti-Dühring e Engels da década de oitenta, que tinha ‘concepções completamente opostas’, surge do entendimento pouco claro de algumas observações no Anti-Dühring e de uma leitura desatenta do prefácio de Engels para a segunda edição do Anti-Dühring25

    Colocadas as premissas do problema e da discussão, no próximo texto veremos as consequências das críticas às elaborações de Engels na elaboração teórico-programática.

    Notas

    1. MORENO, Nahuel. Lógica marxista y ciencias modernas, México: Xolotl, 1973, p. 33. ↩︎
    2. Moreno em seu texto aborda também esse tema em relação aos críticos de Engels da época, Sartre e Della Volpe. ↩︎
    3. Foi membro da direção do SWP inglês. Rompeu com outros dirigentes em 2009 e fundou o grupo Counterfire. ↩︎
    4. LUKÁCS, Georg. Historia y conciencia de clase. Buenos Aires: Ediciones R. y R., 2013, p. 91. ↩︎
    5. [5] Por outro lado, é verdade que Lukács, nesse mesmo livro História e consciência de classe, tem uma variação sobre esse tema: primeiro nega que o método dialético seja aplicável à natureza, por falta de dimensão subjetiva; e em outro trecho do mesmo livro reconhece a existência de uma dialética distinta e objetiva na natureza. ↩︎
    6. Apesar de ser um termo muito genérico, optei por utilizar o conceito de Perry Anderson, que serve para abarcar uma série de correntes que tiveram em comum essa localização teórica, apesar das diferenças entre elas. ↩︎
    7. Marx, nos Manuscritos econômico-filosóficos, escreve: “o pensamento que é alienado e abstrato e ignora o homem e a natureza reais. O caráter externo desse pensamento abstrato… a natureza como existe para esse pensamento abstrato. A natureza é externa a ele, uma privação dele mesmo, e só concebida como algo externo, como pensamento abstrato, mas pensamento abstrato alienado”. ↩︎
    8. Apoiam-se em particular nos Manuscritos econômico-filosóficos. ↩︎
    9. Mas precisamente nos países industriais avançados, já por volta da passagem do século, as contradições internas foram sendo dominadas por uma organização progressivamente eficiente, e a força negativa do proletariado foi sendo progressivamente reduzida”, Razão e revolução, Rio, Paz e Terra, 1978, p. 404. ↩︎
    10. Idem, pag. 407 ↩︎
    11. Raya Dunayevskaia foi uma militante russo-americana que trabalhou por um curto período como tradutora e secretária de Trotsky em seu exílio no México. Rompeu com o SWP junto com Schatchman e Burnham em 1940, voltou a este partido em 1947 para afinal romper definitivamente no início dos anos 1950. Considerava a ex-URSS como “capitalismo de estado”. ↩︎
    12. Alguns de seus integrantes, como o professor universitário Kevin Anderson, autor de Marx nas margens defendem essas posições nos debates sobre o marxismo na academia. ↩︎
    13. Sartre escreve: “O resultado desse belo esforço [de Engels] é paradoxal: Engels censura Hegel por impor as leis do pensamento à matéria. Mas é precisamente o que ele mesmo faz, pois obriga as ciências a verificar uma razão dialética que ele descobriu no mundo social. Somente no mundo histórico e social, como veremos, existe verdadeiramente uma razão dialética; ao transportá-lo para o mundo «natural», dando-lhe força, Engels tira sua racionalidade. Não se trata mais de uma dialética que o homem faz , fazendo-se a si mesmo, mas de uma lei contingente da qual só se pode dizer: é assim e não de outra forma”. in Marxismo y Existencialismo. Buenos Aires: Sur, p. 128, apud Moreno, Lógica marxista y ciencias modernas, p. 38. ↩︎
    14. MORENO, Nahuel. Lógica Marxista y ciencias modernas. México: Ed. Xolotl, 1981, p. 39. ↩︎
    15. Citados por Michael Roberts, Engels sobre a natureza e a humanidade, em: <litci.org/pt/michel-roberts-engels-sobre-natureza-e-humanidade/>. ↩︎
    16. Idem ↩︎
    17. Pauling foi pioneiro na aplicação da Mecânica Quântica em química e recebeu o prêmio Nobel de Química em 1954. ↩︎
    18. Houve também o famoso caso Lyssenko, cientista russo que defendeu que a genética era estranha ao materialismo dialético e conseguiu impor esse ponto de vista e banir a genética da URSS por anos. Lyssenko não se cansou de atribuir suas teses diretamente a Stalin e ao suposto mérito deste último como o “maior cientista” dos tempos atuais. ↩︎
    19. ENGELS, Friedrich. Dialética da natureza. Berlim 1952, p. 223. ↩︎
    20. Havemann refere-se à seguinte citação da Dialética da Natureza: “Os pesquisadores da natureza, ainda que se revolvam são dominados pela filosofia. A questão é se eles querem sê-lo por uma má filosofia que esteja na moda ou por uma forma de pensamento teórico que se baseia no conhecimento da história do pensamento e de suas conquistas. Os pesquisadores da natureza ainda estão permitindo uma vida vegetativa para a filosofia, ao utilizar os restos da antiga metafísica. Somente quando a dialética haja sido assimilada pelas ciências da natureza e da história e tornar supérflua a velha bugiganga filosófica – exceto para a pura teoria do pensamento – então desaparecerá absorvida pela ciência positiva”. ↩︎
    21. HAVEMANN, Robert. Dialéctica sin dogma, 10ª lección, p. 87. ↩︎
    22. No Prefácio à Contribuição à crítica da economia política: “Friedrich Engels, com quem mantive uma troca constante de ideias por correspondência desde que a publicação de seu brilhante ensaio sobre a crítica das categorias econômicas … chegou por outro caminho (compare sua A Situação da classe trabalhadora na Inglaterra) ao mesmo resultado que eu, e quando, na primavera de 1845, ele também veio morar em Bruxelas, decidimos apresentar em conjunto nossa concepção, em oposição à concepção ideológica da filosofia alemã, de fato, para prestar contas com nossa antiga consciência filosófica”. ↩︎
    23. In A Ideologia alemã, Feuerbach, História, S. Paulo, Boitempo p. 31. ↩︎
    24. Citado em: Anti-Dühring, Parte I, Dialética, Capítulo XII: “Quantidade e qualidade”. ↩︎
    25. RIAZANOV, David. 50 anos do Anti-Dühring, 1928. ↩︎

    Publicado em novembro de 2020 na revista Marxismo Vivo N. 16

  • Consequências programáticas das críticas à obra de Engels

    Consequências programáticas das críticas à obra de Engels

    Como analisamos, uma miríade de tendências questiona o legado de Engels. Alguns acusam-no de ser responsável pela deriva reformista na social-democracia do século XX; outros veem nele a justificação dos totalitarismos estalinistas e da crise que estes provocaram no seio do marxismo.

    Por José Welmowicki

    Temos um exemplo desta última visão no texto de Héctor Benoit, “Da dialética da natureza à exagerada estratégia política de Engels”, publicado no livro A obra teórica de Marx.

    Héctor Benoit foi um dos fundadores e referência teórica do grupo brasileiro Negação da Negação, que atualmente tem o nome Transição Socialista. Embora se trate de um grupo de pequena influência política, Benoit, que leciona na Universidade Estadual de Campinas, possui certa influência no “marxismo académico”, na área da filosofia.

    Segundo Benoit, dessa obra de Engels partiria a visão determinista – que se teria expresso na Introdução de 1895 a As Lutas de Classes na França, de Marx – que constituiria a base teórica não só de toda a orientação reformista e revisionista subsequente do SPD, como também do estalinismo. O materialismo dialético e o materialismo histórico seriam criações de Engels, que serviram aos desígnios do estalinismo.

    «Nesta obra, Dialética da Natureza, assim como em algumas páginas de Anti-Dühring, de fato citando muitas vezes Hegel, Engels desenvolve precisamente a teoria de que existe uma dialética objetiva presente na natureza. Essa dialética apareceria refletida nas leis gerais descobertas pelas modernas ciências naturais, nas leis do pensamento e seria reencontrada e confirmada na concepção dita “científica” da história humana (aquela desenvolvida por Marx e por ele próprio). Engels esboça assim a hipótese de que existiria uma certa legislação dialética única que governa a história da natureza, do pensamento e da história humana, estas últimas subjugadas àquela. Essa hipótese apoiava-se fundamentalmente em três fontes teóricas: a dialética hegeliana, a conceção marxista da História e as modernas ciências naturais (…) Por outro lado, onde encontraremos seguidores dessas conceções políticas do último Engels? Exatamente naqueles que também se distinguiram por adotar uma versão cientificista do marxismo: Bernstein, Kautsky e o stalinismo (…) Ambos, Bernstein e Kautsky, são declaradamente seguidores de um materialismo evolucionista e, não por acaso, foram inspiradores teóricos diretos do reformismo que desembarcou em agosto de 1914, e que se desenvolveu posteriormente provocando sucessivas derrotas da classe operária europeia, derrotas que levaram, finalmente, ao fascismo e ao nazismo.

    «Paralelamente, encontramos a doutrina engelsiana, sobretudo nos manuais do marxismo stalinista. Os quais repetem, de fato, os grandes esquemas de Engels relativamente à dialética da natureza, às leis lógicas gerais que se presumiriam válidas no domínio da natureza e da História, e que assim fundariam, de um lado, o materialismo dialético (uma espécie de epistemologia marxista que conteria as leis da teoria do conhecimento marxista) e, de outro lado, o materialismo histórico (uma sociologia dinâmica e antropológica que conteria as leis do desenvolvimento humano). Estaríamos, assim, com o materialismo dialético e com o materialismo histórico, em contraposição ao “sistema de mundo marxista”, um sistema naturalista-positivista que permitiria prever, com um rigor científico inegável, o curso da natureza e da História.» 1

    Em primeiro lugar, Benoit reproduz uma versão vulgarizada da compreensão de Engels sobre a dialética da natureza, “uma certa legislação dialética única que governa a história da natureza, o pensamento e a história humana, estas últimas imersas nessa mesma legislação”, e repete as acusações infundadas de que Engels simplesmente aplica essas leis gerais à natureza e à história como se fossem um todo idêntico, numa visão mecânica e evolucionista.

    Em segundo lugar, procura as raízes do reformismo da II Internacional apenas nas ideias e não nas contradições concretas que atravessaram a social-democracia face à ascensão do imperialismo e, mais adiante, as bases do stalinismo. Considera que todo o desenvolvimento do reformismo e do stalinismo já estava implícito na tese do último período de Engels, sucedendo-se numa evolução linear: do último Engels a Bernstein, depois a Kautsky, depois… ao stalinismo. Eis a explicação, segundo essa versão, da bancarrota da II Internacional e do papel contrarrevolucionário do estalinismo. Por essa versão, o “pecado original” estaria em Engels, pelo menos desde o Anti-Dühring (1877-1878) e a Dialética da Natureza (póstumo).

    O artigo de Benoit associa os últimos anos de Engels diretamente ao revisionismo e ao reformismo, aceitando a falsificação de Bernstein, que considera a Introdução de 1895 de Engels em As Lutas de Classes na França, de Marx, como o seu Testamento. Um artigo de Francesco Ricci 2 já demonstrou que a versão popularizada é uma edição deturpada do texto original de Engels. O artigo de Marcos Margarido neste dossiê mostra que outro artigo 3 utilizado por Benoit não resiste a uma análise séria. Como mostra Lenin em O Estado e a Revolução 4, entre 1878 e 1895 Engels escreveu várias obras nas quais reafirma as conceções marxistas do Estado e da necessidade de uma revolução violenta, extraídas das lições da Comuna de Paris de 1871.

    Em 1879 (isto é, depois da publicação do Anti-Dühring), Marx e Engels escrevem uma circular ao partido alemão 5, atacando impiedosamente um grupo sediado em Zurique, do qual fazia parte Bernstein, como pequenos-burgueses que pretendiam retornar ao socialismo verdadeiro 6 e contagiar o SPD com ideias reformistas 7, repudiando-os energicamente. Alguns dos textos desse período são clássicos, como A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, de 1884, do qual Lenin extraiu boa parte das citações para escrever O Estado e a Revolução, para demonstrar que o Estado é constituído essencialmente pelo aparato represivo militar, cujo objetivo é impor o poder burguês e explorar as classes dominadas, e que é necessário quebrar a máquina do Estado burguês, mesmo nas suas formas republicanas.

    Em 1891, Engels, por ocasião do 20º aniversário da Comuna, publica um prefácio ao texto de Marx, A Guerra Civil na França 8, de 1871, e reflete sobre o “filisteu social-democrata” que expressava “horror” à “ditadura do proletariado”. Em 1894, escreve uma carta a Paul Lafargue, combatendo a intervenção reformista de Jean Jaurès no parlamento francês. Lenin referiu-se a todos esses textos nas suas anotações para escrever O Estado e a Revolução, publicados nas suas obras completas, no tomo 33, como Cadernos sobre Marxismo e o Estado. Mas, para justificar o argumento da “exagerada fase de Engels”, era necessário ignorar esses textos, incluídos trechos do próprio Anti-Dühring, citados por Lenin.

    Além disso, a incoerência é de tal magnitude que não se percebe uma contradição evidente no seu raciocínio: como é que os dirigentes marxistas revolucionários mais importantes do século XX, como Rosa Luxemburgo, Lenin e Trotsky, continuaram a reivindicar toda a obra de Engels? Lenin e Trotsky reivindicavam, explicitamente, a elaboração filosófica dos textos de Engels, que Benoit ataca como mecanicistas e base para o reformismo. Todos eles foram categóricos em defender, até ao fim das suas vidas, Marx e Engels como os seus mestres. Ou será que os três não conseguiram perceber o grau de revisionismo presente em Engels nessa fase? Mesmo nessa visão de sucessão linear e esquemática, que vai de Engels a Bernstein e a Kautsky, Benoit está equivocado, pois vê Kautsky como um revisionista desde o início do seu papel como teórico no SPD. Contudo, a realidade é dialética. Kautsky foi reivindicado tanto por Lenin como por Trotsky até a Primeira Guerra Mundial, quando se produziu a grande traição que marcou a bancarrota da Segunda Internacional.

    Portanto, essa tese de uma sucessão evolutiva de teorias carece de base na realidade no que diz respeito à evolução da própria social-democracia e ignora todo o complexo processo de luta de classes e da sua adaptação contraditória à democracia burguesa, que, segundo Lenin 9, foi produto do surgimento de uma base social – a aristocracia operária – que sustentou a revisão social-democrata. Ignora um duro processo de luta política interna, sob a pressão da burguesia imperialista e dos Estados burgueses sobre os partidos social-democratas e a burocracia sindical, que levou a Segunda Internacional à degeneração.

    Da mesma forma, o surgimento da burocracia soviética e de Stálin ocorreu devido ao processo objetivo de isolamento da revolução russa num país atrasado e à criação de uma base social na própria burocracia do Estado operário soviético. Para controlar o poder, a burocracia entablou uma feroz luta contrarrevolucionária, renunciando ao programa e à teoria marxistas, à herança teórica de Marx e Engels.

    Stálin rejeitou explicitamente princípios como o internacionalismo que Marx e Engels expressaram claramente tanto no Manifesto Comunista como na Primeira e Segunda Internacionais, de que o socialismo se realizaria numa escala mundial – uma ideia oposta à do socialismo num só país, típica do stalinismo. Para Marx e Engels, o desenvolvimento internacional do capitalismo determina o caráter internacional da revolução operária. Isto demonstra como o stalinismo se opõe a Marx e Engels e o retrocesso que a teoria do “socialismo num só país” significou.

    Stálin teve de liquidar fisicamente a ala revolucionária que lutava por manter as bases programáticas e teóricas de Marx e Engels: a Oposição de Esquerda na URSS e o seu principal dirigente, Trotsky.

    Entre aqueles que consideravam os textos de Engels como os precursores do stalinismo, existe outra vertente: aquela que critica a proposta de se chegar ao socialismo apenas através da tomada do poder pela classe operária e da destruição do Estado burguês. Segundo estes, seria uma visão reducionista, por ser de classe, que levaria necessariamente a uma visão destrutiva e autoritária, expressa na defesa da ditadura do proletariado.

    Para este tipo de posição, Engels cometia o pecado de não ver o papel da política, das mediações no terreno do Estado – variantes de medidas de corte “democrático radical”. Essa corrente de pensamento teve grande divulgação e alcançou uma série de setores que se reivindicavam marxistas, até mesmo uma corrente que surgiu do trotskismo, a maioria do Secretariado Unificado da IV Internacional, cujo maior dirigente e teórico foi Ernest Mandel. Já nos anos 70-80, este refletia a pressão do eurocomunismo para abandonar a defesa da ditadura do proletariado. Posteriormente, com a restauração do capitalismo no Leste europeu, teóricos como Daniel Bensaïd e Michael Lowy levaram a uma dinâmica na direção do reformismo. No Brasil, Juarez Guimarães, dirigente e teórico da DS, uma tendência do PT, no seu livro Democracia e Marxismo 10, acusa Engels de ver apenas como saída socialista a ditadura do proletariado, numa perspetiva clasista (para ele, equivocada). Herdeiro dessa interpretação, Guimarães passou a defender uma “revolução democrática” e a combater a “ditadura do proletariado”. 11

    É verdade que Guimarães identifica a origem dos problemas em Marx, onde já haveria “tensões constitutivas”. Ou seja, haveria contradições entre o determinismo presente em obras como O Capital e o Prólogo à Contribuição para a Crítica da Economia Política e uma visão “praxiológica da história”, presente em obras anteriores, como O 18 Brumário de Luís Bonaparte 12. Engels seria responsável pela “primeira onda determinista”, que acabaria por preparar o terreno para o determinismo de Kautsky e do “DIAMAT” 13 de Stálin.

    De forma muito superficial, com citações fora de contexto e interpretadas de modo unilateral, Guimarães afirma que, a partir do Anti-Dühring, Engels teria uma visão em que “o marxismo seria, então, compreendido de forma dual: materialismo histórico (a ciência da sociedade e da natureza) e materialismo dialético (o estudo das leis do conhecimento). O Capital seria a expressão máxima do primeiro e a sistematização contida na obra filosófica de Engels, a referência fundamental para a edificação do segundo. O edifício dogmático do marxismo estava de pé, subordinando ou restringindo o mundo polimórfico e variante da política às rígidas certezas das ciências, paradoxalmente ancorando toda essa construção num método exterior e dotado do paradigma das ciências naturais da época.

    De forma semelhante a Benoit, Guimarães coloca-se contra o materialismo dialético e histórico e acusa Engels de ser o responsável pela construção do “edifício dogmático” do marxismo, que seria depois assumido pelo estalinismo. Guimarães cita as cartas de Engels a Joseph Bloch e C. Schmidt de 1890, comentando que o seu conteúdo mal “revela as inconsistências lógicas contidas no sistema formulado por Engels14, embora, justamente, nessas cartas Engels alertasse contra a distorção de suas ideias por alguns seguidores, a ponto de tornar “absurda” a conceção marxista.

    Na verdade, o que Guimarães questiona é que a política tenha de se basear numa conceção materialista da história, elaborando a sua proposta a partir da definição das bases econômicas e sociais concretas da sociedade, numa perspetiva de classe. Para ele, isso seria “subordinar ou restringir o mundo polimórfico e variante da política”, embora Engels alertasse justamente contra alguns seguidores que tentassem extrair das suas elaborações e das de Marx conclusões materialistas vulgares e deterministas, baseadas exclusivamente na estrutura econômica da sociedade – algo que Engels refuta com firmeza, afirmando que é necessário compreender a relação entre a economia e as formas políticas, jurídicas e culturais, não de forma mecânica, mas reconhecendo a existência de uma ação recíproca entre os factores superestruturais, culturais ou ideológicos da sociedade e a economia, deixando claro que esses seguidores não compreenderam que a determinação econômica prevalece, em última análise, não como uma relação direta e mecânica. 15

    Podemos deduzir que, para Guimarães, no mundo polimórfico da política, as propostas devem ser completamente autônomas da base social e económica, abandonando a visão marxista contida em A Ideologia Alemã.

    Rosa Luxemburgo recorre a Engels na luta contra os reformistas da Segunda Internacional

    Vejamos como os revolucionários que lideraram o combate teórico e político contra a degeneração reformista da II Internacional e, posteriormente, contra a contrarrevolução stalinista, apelaram aos ensinamentos deixados por Engels.

    Comecemos por dizer algo sobre Rosa Luxemburgo. Rosa foi a vanguarda do combate ao revisionismo de Eduard Bernstein já em 1899, no seu clássico texto Reforma e Revolução. Rosa nunca aceitou a tentativa de Bernstein de pintar Engels como se este tivesse se transformado num reformista no final da sua vida. Coerente com essa posição, no seu famoso texto escrito na prisão, no qual denuncia a traição da social-democracia na Primeira Guerra – A Crise da Social-Democracia, conhecido como o Panfleto Junius –, ela apoia-se nas elaborações de Engels para contestar a posição do Partido Social-Democrata e da maioria da II Internacional:

    “… que leva a converter-se num sistema de dogmas – que também exercem a sua influência nas lutas históricas e, em muitos casos, determinam a sua forma como fator predominante. Trata-se de um jogo recíproco de ações e reações entre todos esses fatores, no qual, através de uma infinita multitude de acasos (isto é, de coisas e acontecimentos cuja conexão interna é tão remota ou tão difícil de demonstrar que podemos considerá-la inexistente ou subestimá-la), acaba por impor-se, como necessidade, o movimento econômico. Se não fosse assim, a aplicação da teoria a qualquer época histórica seria mais fácil do que resolver uma simples equação do primeiro grau. Nós mesmos fazemos a nossa história, mas isso ocorre, em primeiro lugar, de acordo com premissas e condições muito concretas. Entre elas, são as premissas e condições económicas que decidem, em última instância.Os homens não fazem a história arbitrariamente, mas, apesar disso, fazem-na eles mesmos. A ação do proletariado depende do grau de maturidade do desenvolvimento social. Mas o desenvolvimento social não é independente do proletariado. Este é, na mesma medida, a sua força motriz e a sua causa, bem como o seu produto e a sua consequência. A própria ação do proletariado integra a história, contribuindo para a defini-la (…). É por isso que Friedrich Engels invoca a vitória definitiva do proletariado como um salto da humanidade do reino animal para o reino da liberdade. Esse salto também está ligado às leis de bronze da história, aos mil elos de um desenvolvimento anterior, doloroso e demasiado lento. Mas nunca poderia ser realizado se, do conjunto dos pré-requisitos materiais acumulados pelo desenvolvimento, não surgisse a centelha da vontade consciente das grandes massas populares.» 16

    Teria Lenin superado Engels e seu “mecanicismo”?

    Existe outra lenda também transmitida por vários autores, segundo a qual Lenin teria seguido Engels no terreno filosófico, referindo-se aos chamados Cadernos Filosóficos de 1915. Entre eles, Raya Dunayevskaya, fundadora do marxismo humanista 17 – que fez a primeira tradução para o inglês dos Cadernos Filosóficos de 1915.

    No entanto, vejamos a verdadeira história. Na homenagem a Engels, quando este falece em 1895, Lenin declarou:

    A filosofia de Hegel tratava do desenvolvimento do espírito e das ideias; era idealista. Do desenvolvimento do espírito, a filosofia de Hegel deduzia o desenvolvimento da natureza, do homem e das relações entre os homens no seio da sociedade. Retomando a ideia hegeliana de um processo perpétuo de desenvolvimento… Marx e Engels rejeitaram a concepção idealista pré-concebida; analisando a vida real, constataram que não é o desenvolvimento do espírito que explica o fenômeno da natureza, mas, ao contrário, é necessário explicar o espírito a partir da natureza, da matéria… Ao contrário de Hegel e dos hegelianos, Marx e Engels eram materialistas. Partindo de uma concepção materialista do mundo e da humanidade, verificaram que, tal como todos os fenômenos da natureza têm causas materiais, igualmente o desenvolvimento da sociedade humana é condicionado pelo desenvolvimento das forças materiais, as forças produtivas.» 18

    Em 1913, Lenin escreveu As Três Fontes e as Três Partes Constitutivas do Marxismo e, em 1914, para uma enciclopédia, escreveu Karl Marx, um Breve Esboço Biográfico Seguido de uma Exposição do Marxismo, mantendo a mesma compreensão do texto de 1895.

    Os Cadernos Filosóficos são a edição de um caderno de anotações de Lenin sobre as suas leituras dos clássicos de Hegel durante a Primeira Guerra Mundial, decisivos para o avanço da elaboração do principal dirigente do Partido Bolchevique relativamente ao caráter da Revolução Russa, ao imperialismo e para compreender as raízes da bancarrota da Segunda Internacional e do seu revisionismo. Esse estudo, portanto, foi decisivo para que Lenin progredisse na sua elaboração.

    Mas, vários intelectuais utilizam-nos como suposta demonstração de que Lenin seguiu, de forma acrítica, Engels até 1914, mas que, ao ler Hegel, percebeu os erros de Engels e passou a negá-los e superá-los. Como eram cadernos de anotações das suas leituras, constituíam-se em observações pontuais para a sua autocompreensão e uso posterior. Ainda assim, não é difícil perceber que é falsa a interpretação de que Lenin questiona Engels em uma forma semelhante à desses intelectuais. Em relação ao tema da dialética da natureza e a elaboração de Engels, Lenin fez os seguintes comentários, a partir da leitura de Hegel:

    «‘Na natureza’, os conceitos têm ‘carne e osso’ – isso é excelente! Mas isso é exatamente materialismo. Os conceitos humanos são a alma da natureza – isso é apenas uma maneira mística de dizer que, nos conceitos humanos, a natureza reflete-se de modo peculiar (isso NB 19: de modo peculiar e dialético!!), NB De onde vem essa coincidência? 20 De Deus (eu, ideia, pensamento, etc., etc.) ou da natureza? Engels tem razão em seu modo de colocar a questão21

    Como se elucida na edição da Boitempo editora, Lenin apoia-se no texto de Engels, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã para mostrar que a dialética se aplica à natureza, mas de modo peculiar, ou particular, assim como faz Engels em seu texto.

    «O conceito (o conhecimento) revela no ser (nos aparecimentos imediatos) a essência, a lei da causa, da identidade, da diferença, etc. – é esse realmente o curso geral de todo conhecer (toda a ciência) humano em geral. Esse é o curso tanto da ciência da natureza como da economia política ‘e da história’. A dialética de Hegel é, nessa medida, a generalização da história do pensamento. Parece uma tarefa extraordinariamente grata seguir isso mais concretamente, mais detalhadamente, na história das ciências singulares. Na lógica, a história do pensamento deve, no geral, coincidir com as leis do pensamento.» 22

    Mais uma vez Lenin afirma ter a mesma posição de Engels (e Marx), que a dialética se aplica tanto nas ciências naturais quanto na história. Mais adiante, ele volta a ressaltar que a ciência natural mostra as mesmas leis da dialética, aplicadas à natureza:

    «… a ciência da natureza contudo mostra-nos (e aqui, mais uma vez, é preciso mostrar isso em qualquer exemplo simplicíssimo) a natureza objetiva em suas próprias qualidades, a transformação do singular no universal, do contingente no necessário, transições, fluíres, e a conexão mútua dos opostos…» 23

    A afirmação de que Lenin “supera o determinismo de Engels” é baseada em apenas uma citação:

    A exatidão deste aspeto do conteúdo da dialética deve ser comprovada através da história da ciência. Habitualmente (por exemplo, em Plekhanov) dá-se atenção insuficiente a este aspecto da dialética: a identidade dos opostos é tomada como somatória de exemplos (‘por exemplo, o grão’; ‘por exemplo, o comunismo primitivo’). Isto também acontece em Engels. Mas isto ‘a fim de popularizar’ e não como lei do conhecimento (e lei do mundo objetivo).” 24

    A única coisa que Lenin afirma, ao criticar o materialismo de Plekhanov – para quem a identidade dos opostos é tomada como soma de exemplos e transformada em lei do conhecimento – é que Engels, sem cair nesse tipo de interpretação mecânica, apresenta alguns problemas em textos de divulgação.

    Enfim, na quase totalidade dos casos, Lenin cita Engels para reivindicar a sua elaboração filosófica nos livros Anti-Dühring e Ludwing Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã, e como base de apoio para as suas críticas a Hegel.

    Anos mais tarde, em 1922, Lenin faz uma conferência na Academia de Ciências da URSS, publicada sob o título O Materialismo Militante, onde refere, com toda a clareza, a necessidade de aplicar o materialismo dialético às ciências naturais, de forma semelhante a Engels:

    E, para não abordar tal fenómeno de forma inconsciente, devemos compreender que, sem uma sólida fundamentação filosófica, não há ciência da natureza nem materialismo que possa suportar a luta contra o investidura das ideias burguesas e o reestabelecimento da conceção burguesa do mundo […] Os cientistas modernos encontrarão (se souberem procurar e se nós aprendermos a ajudá-los) na interpretação materialista da dialética de Hegel uma série de respostas às questões filosóficas suscitadas pela revolução nas ciências naturais e que fazem ‘patinar’ para a reação dos admiradores intelectuais da moda burguesa”. 25

    Como se pode constatar, Lenin, no seu processo de elaboração acerca da dialética materialista, fez importantes progressos, mantendo, contudo, um ponto de vista idêntico ao de Engels sobre a relação entre a natureza, o homem e a sociedade e sobre a aplicação da dialética na natureza e, portanto, nas ciências naturais.

    Trotsky e Engels

    O grande dirigente da Revolução Russa e fundador da IV Internacional defendeu o materialismo dialético durante toda a sua trajetória, e a aplicação da dialética à ciência, tal como fizeram Engels e Lenin. Na luta contra a burocracia stalinista, escreveu o texto As Tendências Filosóficas do Burocratismo, de dezembro de 1928, no qual afirma:

    Que, desde logo, é a principal função social da burocracia e a fonte da sua preeminência; deixam, inevitavelmente, uma marca bem definida em todo o seu modo de pensar. Não é por acaso que palavras como ‘burocrático’ e ‘formalismo’ se aplicam não só a um sistema de administração ou gestão, mas também a um modo definido do pensamento humano… Essas características podem também ser encontradas na filosofia (…) O materialismo não rejeita os fatores, assim como a dialética não rejeita a lógica. O materialismo utiliza os fatores como um sistema de classificação dos fenômenos que surgiram historicamente – qualquer que seja o modo em que a sua essência espiritual possa ser ‘delimitada’ – a partir das forças produtivas subjacentes e das relações sociais e, a partir das bases naturais, históricas, isto é, materiais, da natureza” (…) “Não há dúvida de que uma aplicação consciente do materialismo dialético às ciências naturais, com uma compreensão científica da influência da sociedade de classes sobre os objetivos, os métodos, as metas da investigação científica, enriqueceria as ciências naturais e as reestruturaria em muitos aspectos, revelando novos laços e conexões, e dando às ciências naturais um lugar de renovada importância na nossa compreensão do mundo (…).» 26

    Pouco antes de ser assassinado, em 1939, Trotsky volta sobre o assunto no livro Em Defesa do Marxismo:

    Chamamos ‘materialista’ a nossa dialética porque está baseada não no céu nem no nosso ‘livre arbítrio’, mas na realidade objetiva, na natureza. A consciência surge da inconsciência, a psicologia da fisiologia, o mundo orgânico do inorgânico, o sistema solar das nebulosas. Em todos os elos desta cadeia, as mudanças quantitativas transformam-se em saltos qualitativos. O nosso pensamento, incluído o pensamento dialético, não é senão uma forma de expressão deste mundo mutável. Neste sistema não há lugar para Deus, nem para o destino, nem para a alma imortal, nem para normas, leis ou morais eternas. O pensamento dialético que surgiu da natureza dialética do mundo possui, consequentemente, um carácter totalmente materialista. O darwinismo, que explica a evolução das espécies através de ‘saltos qualitativos’, foi o maior triunfo da dialética no campo das ciências naturais. Outro grande triunfo foi a descoberta da tabela de pesos atômicos dos elementos químicos e dos processos de transformação de um elemento noutro.” 27

    Por que reivindicar Engels contra os ataques infundados é decisivo hoje para desenvolver o marxismo?

    Não estamos perante uma discussão abstrata. As correntes que questionaram Engels em nome de um marxismo “crítico”, “autêntico”, “humanista” cresceram em virtude da crise do estalinismo e foram ganhando peso, especialmente no chamado “marxismo acadêmico”.

    Muitos, em nome de um marxismo “não determinista”, afastaram-se da conceção materialista da história, negando que esta possa ter qualquer desenvolvimento dialético. Acabaram, assim, por golpear os pilares do marxismo. Como demonstraram Havemann e Trotsky, o stalinismo é uma distorção total de Marx e Engels, e não a “extensão” das posições de Engels, que seria uma suposta primeira onda determinista ou uma versão cientificista do marxismo.

    Por outro lado, rejeitar a ideia clássica mecanicista de que o futuro está plenamente determinado não pode levar à conclusão de que o futuro esteja totalmente indeterminado. Como diz Havemann, “o futuro está codeterminado pelo passado, mas não está determinado de forma definitiva e absoluta”, ou, nas palavras de Marx, em O 18 Brumário de Luís Bonaparte:

    Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias da sua escolha, mas sim sob aquelas com que se deparam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.” 28

    No surgimento do stalinismo, tanto os adversários declarados do marxismo como o próprio Stálin divulgaram a ideia de que a sua “doutrina” era a verdadeira continuidade de Lenin. Os stalinistas opunham Trotsky a Lenin, falsificando a história e apresentando-se como os continuadores de Lenin, atacando o trotskismo. Em que pontos atacavam o Trotsky? Justamente nos princípios do internacionalismo, na visão de que o socialismo só era possível se a revolução socialista se alastrasse pelos países desenvolvidos e se desenvolvesse a nível mundial – pontos com os quais Trotsky concordava profundamente com Lenin desde 1917 em diante.

    Os antiengelsistas pretendem, em nome da busca por um Marx autêntico, atacar as bases do próprio marxismo. Em oposição ao determinismo estalinista, querem reconstruir um tipo de teoria do “indeterminismo”, em que tudo é fortuito, nada tem história, nada é fruto das leis do desenvolvimento; a consequência é a negação do materialismo histórico. Para Guimarães, essa concepção não se aplica nem ao passado nem ao presente.

    A rejeição do materialismo histórico pelos antiengelistas abre, por um lado, terreno para a defesa do acaso absoluto na história, onde o que predomina é a nossa consciência. Por conseguinte, procuram convencer-nos da virtude da democracia, da igualdade e da justiça, para que, dessa forma, a humanidade chegue organicamente ao socialismo. Nesse caso, o socialismo seria essencialmente fruto da afirmação de um ideal, uma proposta ética, de cunho moral, e não uma proposta científica baseada na realidade, num análise rigorosa e verificável das tendências do desenvolvimento da nossa sociedade. Isso nada tem a ver com as posições de Marx e Engels, com o socialismo científico. Estaríamos, assim, de volta – por mais que esses setores não o mencionem – ao socialismo utópico, à defesa do “homem novo”, da essência humana, etc. No pleno século XXI, isso se materializa na proposta de uma democracia radical como substituta do socialismo.

    Contra os socialistas utópicos do século XIX, Engels apontou a necessidade de se fundamentar no desenvolvimento real da sociedade e no domínio crescente do homem sobre a natureza e, simultaneamente, na contradição antagônica entre o caráter social da produção e a sua apropriação individual pelos capitalistas.

    Para Benoit, os problemas encontram a sua origem no capitalismo. As teses de Benoit conduzem a um reducionismo que limita o marxismo ao estudo da sociedade capitalista. Considera o materialismo histórico, assim como o materialismo dialético, como um “sistema naturalista-positivista que permitiria prever o curso da natureza e da história”, o qual, portanto, deveria ser abandonado como herança nefasta do estalinismo apoiado no “exagerado Engels”.

    Benoit deixa o proletariado sem qualquer ferramenta teórica, pois nega a possibilidade de existir uma teoria que permita ter uma perspetiva histórica. Qual seria então a orientação para a estratégia da revolução?

    Como escreveu Trotsky, essa conceção materialista da história foi o que permitiu elaborar o Manifesto Comunista em 1847, que foi aplicado de forma magistral em O 18 Brumário e noutras obras de Marx e Engels. Toda a elaboração subsequente, incluindo as de Lenin e Trotsky, a Teoria da Revolução Permanente, as Teses da III Internacional e o programa da IV Internacional, apoia-se numa análise materialista da história da sociedade capitalista, numa análise marxista da sociedade, da economia e da luta de classes. Como se pode continuar a desenvolver o programa revolucionário sem uma concepção materialista da história? Basear-se apenas na crítica da economia política? Essa posição, aparentemente de esquerda, acaba por desarmar a classe operária para ter um programa e responder às tarefas políticas concretas.

    Trotsky, na sua elaboração da teoria da revolução permanente, explicava que esta se baseava na aplicação consistente do materialismo histórico à realidade concreta e contra o materialismo vulgar. Imaginar que a ditadura do proletariado depende, de algum modo, automaticamente do desenvolvimento técnico e dos recursos de um país é um pré-conceito do materialismo “econômico” simplificado ao absurdo. Esse ponto de vista nada tem em comum com o marxismo. 29

    O primeiro programa operário escrito por Marx e Engels, o Manifesto Comunista, foi baseado no materialismo histórico. Nas suas páginas estão concentrados os descobrimentos efetuados um pouco antes pelos fundadores do marxismo e transformados numa orientação de ação para todos os militantes revolucionários, que continua válido até hoje.

    Trotsky, no seu texto “A 90 anos do Manifesto Comunista”, afirma:

    1. «A conceção materialista da história, formulada por Marx pouco tempo antes da aparição do texto e aplicada nele com perfeita mestria, resistiu completamente à prova dos acontecimentos e aos golpes da crítica hostil. Constitui, atualmente, um dos instrumentos mais preciosos do pensamento humano. Todas as outras interpretações do processo histórico perderam todo o significado científico. Podemos afirmar com segurança que, hoje em dia, é impossível ser não só um militante revolucionário, mas mesmo um observador politicamente instruído, sem assimilar a conceção materialista da História.
    2. A história de todas as sociedades até aos nossos dias não é senão a história das lutas de classes”. O primeiro capítulo do Manifesto começa com essa frase. Essa tese, que constitui a conclusão mais importante da conceção materialista da História, em pouco tempo transformou-se num elemento da luta de classes. A teoria que trocava o ‘bem-estar comum’, a ‘unidade nacional’ e as ‘verdades eternas da moral’ pela luta entre interesses materiais – considerados como a força motriz da História – sofreu ataques particularmente ferozes por parte de hipócritas reaccionários, doutrinários liberais e democratas idealistas. Posteriormente, agregaram-se a esses os ataques, agora por parte do próprio movimento operário, dos chamados revisionistas, isto é, dos partidários da revisão do marxismo a favor da colaboração e da conciliação de classes. Finalmente, na nossa época, os desprezíveis epígonos da Internacional Comunista (os stalinistas) seguiram o mesmo caminho: a política das chamadas “frentes populares” decorre inteiramente da negação das leis da luta de classes. Entretanto, vivemos na época do imperialismo que, levando todas as contradições sociais ao extremo, demonstra o triunfo teórico do Manifesto do Partido Comunista.» 30

    Essas palavras de Trotsky alertam-nos contra aqueles que pretendem separar a teoria do programa, desprezando a contribuição de Engels para o marxismo e abandonando a concepção materialista da história. Essa postura só pode abrir espaço para um idealismo tardio, que acaba por propor uma saída interior ao capitalismo, ou para um desarmamento teórico na elaboração do programa revolucionário.

    Notas

    1. A Obra teórica de Marx. São Paulo: Xamã, 2000, pp. 91-104. ↩︎
    2. O “testamento” falsificado de Engels: uma lenda dos oportunistas, na revista Marxismo Vivo
      – Nova Época n.° 11, 2018. ↩︎
    3. MARGARIDO, Marcos. “Teria Engels se transformado Engels em um reformista…?”, neste dossiê. ↩︎
    4. “Como conciliar na mesma doutrina essa apologia da revolução violenta, insistentemente repetida por Engels, aos social-democratas alemães de 1878 a 1895, isto é, até a sua morte, com a teoria do ‘definhamento’ do Estado?”, in O Estado e a Revolução, parte I, item 4. ‘Definhamento’ do Estado e a Revolução Violenta. ↩︎
    5. Carta-circular de Marx e Engels a August Bebel, Wilhelm Liebknecht, Wilhelm Bracke e outros
      (1879), M&E Collected Works, V. 45. Londres: Lawrence & Wishart, 2010, p. 394. ↩︎
    6. Refere-se a uma corrente “socialista” da Alemanha que é duramente criticada no Manifesto
      Comunista. ↩︎
    7. Na circular, Marx e Engels reproduzem e condenam o seguinte trecho do texto dos três socialistas sediados na Suíça: “Precisamente agora, sob a pressão da lei antissocialista, o Partido mostra que não deseja seguir o caminho da revolução sangrenta, violenta, mas que está decidido… a trilhar o caminho da legalidade, isto é, da reforma”. ↩︎
    8. “Segundo a concepção filosófica, o Estado é a ‘realização da ideia’, isto é, traduzido na linguagem filosófica, o reino de Deus na Terra, o campo onde se fazem ou devem se fazer realidade a verdade e a justiça eternas. (…). E as pessoas acreditam ter dado um passo enormemente audaz ao libertar se da fé na monarquia hereditária e jurar pela República democrática. Na realidade, o Estado não é mais que uma máquina para a opressão de uma classe por outra, tanto na República democrática quanto sob a monarquia; e no melhor dos casos, um mal que o proletariado herda depois que triunfa na sua luta pela dominação de classe. O proletariado vitorioso, tal como fez a Comuna, não poderá menos que amputar imediatamente os piores aspectos deste mal, até que uma geração futura, educada em condições sociais novas e livres, possa se desfazer de todo esse velho lixo do Estado. Ultimamente as palavras “ditadura do proletariado” têm voltado a colocar em terror o filisteu social-democrata. Pois bem, cavalheiros, querem saber o que atualmente representa essa ditadura? Olhem a Comuna de Paris: eis aí a ditadura do proletariado!” (original em espanhol, tradução nossa, destaques meus). ↩︎
    9. Vide, entre outros, A Falência da II Internacional (1915). ↩︎
    10. GUIMARÃES J. Democracia e Marxismo, São Paulo: Xamã, 1999. ↩︎
    11. Em seu texto “Marx e a Revolução democrática”, publicado em Democracia Socialista nº 1,
      dezembro de 2013. ↩︎
    12. Segundo Juarez Guimarães, essa posição de Marx teria primado no período 1845-1857. ↩︎
    13. Sigla com que se notabilizou o chamado materialismo dialético do período stalinista. ↩︎
    14. GUIMARÃES J. Democracia e Marxismo. São Paulo: Xamã, 1999, p. 83. ↩︎
    15. Na carta de Engels a Bloch, Londres 21/22 de setembro de 1890: “Segundo a concepção
      materialista da história, o fator que, em última instância determina a história é a produção e a reprodução da vida real. Nem Marx, nem eu afirmamos uma vez sequer, algo mais do que isso. Se alguém o modifica, afirmando que o fato econômico é o único fato determinante, converte aquela tese numa frase vazia, abstrata e absurda. A situação econômica é a base, mas os diferentes fatores da superestrutura que se levanta sobre ela – as formas políticas da luta de classes e seus resultados, as constituições que, uma vez vencida uma batalha, a classe triunfante redige, etc., as formas jurídicas e, inclusive os reflexos de todas essas lutas no cérebro dos que nela participam, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as ideias religiosas e o desenvolvimento ulterior que as leva a converter-se num sistema de dogmas – também exercem sua influência nas lutas históricas e, em muitos casos, determinam sua forma como fator predominante. Trata-se de um jogo recíproco de ações e reações entre todos esses fatores, no qual, através de toda uma infinita multidão de acasos (isto é, de coisas e acontecimentos cuja conexão interna é tão remota ou tão difícil de demonstrar que podemos considerá-la inexistente ou subestimá-la), acaba sempre por impor-se, como necessidade, o movimento econômico. Se não fosse assim, a aplicação da teoria a uma
      época histórica qualquer seria mais fácil do que resolver uma simples equação de primeiro grau. Nós mesmos fazemos nossa história, mas isso se dá, em primeiro lugar, de acordo com premissas e condições muito concretas. Entre elas, são as premissas e condições econômicas as que decidem em última instância.
      ↩︎
    16. LUXEMBURGO, Rosa. Panfleto Junius, A crise da social-democracia (1915). ↩︎
    17. Ela manteve um intenso intercâmbio de ideias com Marcuse e Erich Fromm. No livro Filosofia
      e revolução
      , prefaciado por Fromm, ela afirmaria: “Em contraste com a perspectiva multilinear, graças à qual Marx se absteve de traçar um programa para as gerações futuras, a interpretação unilinear conduziu Engels pelo caminho do positivismo e o mecanicismo”. Filosofía y revolución, México, cap.9, p. 329. ↩︎
    18. LENIN, V. I. Friedrich Engels, 1895. ↩︎
    19. Nota Bene – termo latino que significa ‘preste atenção’. ↩︎
    20. LENIN, V. I. Cadernos filosóficos. São Paulo: Boitempo Ed. (2010), p. 291. ↩︎
    21. Idem, p. 292. Nessa citação há uma Nota da edição da Boitempo: ver “Engels, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã”, cit. p. 390. ↩︎
    22. Idem, p. 326. (Os negritos e destaques são de Lenin). ↩︎
    23. Idem, p. 335. ↩︎
    24. Idem, p. 331 (negritas de Lenin). ↩︎
    25. “El significado del materialismo militante”, 1922 em Obras Completas, Tomo 45, Ed. Progreso (original em espanhol, tradução nossa). ↩︎
    26. “Las tendencias filosóficas del burocratismo”, in Escritos filosóficos. Buenos Aires: CEIP, 2011,
      p. 157 y pp. 159-160 (original em espanhol, tradução nossa). ↩︎
    27. TROTSKY, León. En defensa del marxismo. (original em espanhol, tradução nossa). ↩︎
    28. MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: ed. Escriba, 1968, p. 15. ↩︎
    29. TROTSKY, Leon. Resultados e Perspectivas (1906). ↩︎
    30. TROTSKY, Leon. “A 90 anos do Manifesto Comunista”, 1937. ↩︎

  • A Teoria da Revolução Permanente e a luta dos oprimidos

    A Teoria da Revolução Permanente e a luta dos oprimidos

    Introdução

    Em nosso seminário sobre a opressão da mulher, em dezembro de 2014, ocorreu uma rica discussão e algumas controvérsias acerca da teoria da Revolução Permanente e de sua articulação com as lutas dos oprimidos. Nestes artigos, procuramos resumir a nossa intervenção no seminário.

    Por José Welmowicki e Alicia Sagra

    A Revolução Permanente é fundamental para a intervenção dos revolucionários em todas as áreas, pois é a teoria da revolução socialista internacional que combina diferentes tarefas, etapas e tipos de revoluções. Além disso, é a teoria que articula as relações entre as tarefas e os sujeitos no processo da revolução socialista mundial. Por isso, sem a compreensão do conceito de revolução permanente, torna-se impossível elaborar uma estratégia correta para a revolução e para a organização da classe operária e dos setores oprimidos.

    A origem da teoria

    Originada com a revolução de 1905, esta teoria trouxe uma nova interpretação da dinâmica da revolução em países atrasados, embora em 1905 ela tenha sido formulada apenas para a Rússia. Até então, associava-se a possibilidade de uma revolução socialista aos países com maior desenvolvimento capitalista. Consequentemente, em toda a II Internacional acreditava-se que os países maduros para a revolução socialista eram Inglaterra, França e Alemanha.

    Leon Trotsky, apoiando-se nas elaborações de Parvus e em textos de Marx sobre a revolução alemã de 1848, ao fazer o balanço da revolução de 1905, elaborou o que se tornaria uma nova visão na social-democracia, acerca da dinâmica de classes e do caráter da próxima revolução russa.

    Qual é a contribuição de Trotsky com a Teoria da Revolução Permanente?

    Tanto na primeira formulação de 1905 quanto na segunda, desenvolvida em 1929, ele estabeleceu uma relação entre as tarefas propostas e a dinâmica das classes. A burguesia já não é capaz de levar adiante, até o fim, as tarefas da revolução democrática burguesa; esta só se completará se for assumida pela classe operária, que deverá impor a ditadura do proletariado. “A dominação política do proletariado é incompatível com a situação de dominação econômica pela burguesia”, dizia Trotsky em 1905: resultados e perspectivas. Por isso, uma vez conquistado o poder político, ele passará a atacar a propriedade capitalista, a enfrentar a exploração, ou seja, combinará as tarefas democráticas com as socialistas. Em outras palavras, a dinâmica de classe conduzirá à revolução socialista. Esses dois aspectos – o proletariado como sujeito social da revolução e a combinação das tarefas – são as grandes contribuições de Trotsky, e não estavam presentes em Lenin antes de abril de 1917.

    Portanto, o novo na teoria da revolução permanente não é que a classe operária deva assumir as tarefas da revolução democrática, visto que a burguesia não o fará. Apesar de essa definição ser o ponto de partida da sua elaboração, conforme o próprio Trotsky esclarece em sua obra A Revolução Permanente, ele compartilhava com Lenin a convicção de que a burguesia fosse incapaz de completar sua própria revolução. E, nesse aspecto, ambos divergiam dos mencheviques, que defendiam que a revolução fosse conduzida pela burguesia.

    Entretanto, embora coincidirem no fato de que a burguesia não cumpriria sua tarefa, Lenin não definia qual classe a substituiria. Ele falava de operários e camponeses, mas sem definir qual seria o sujeito social da revolução. Junto a isso, mantinha a visão tradicional dos marxistas de sua época, de que a revolução proposta era democrática burguesa, a qual seria completada pela ditadura democrática dos operários e camponeses.

    Diferentemente de Lenin, Trotsky defendia que era impossível que os camponeses se organizassem de forma independente em um partido próprio, por isso via a classe operária, por seu papel social decisivo, como a única classe que poderia levar adiante a revolução democrática, mesmo com seu número reduzido na Rússia. E, a partir do sujeito social da revolução, concluía que, uma vez no poder, não seria possível limitar-se às tarefas da revolução burguesa. Assim, a revolução democrática burguesa se transformaria em socialista.

    Já na versão de 1929, Trotsky incorpora à teoria da revolução permanente aquilo que representava outra grande diferença em relação a Lenin em 1905: o partido centralizado como sujeito político da revolução. Dessa forma, no item 2 das Teses de 1929, ele postula que somente o proletariado, como seu líder, aliado aos camponeses e dirigido por um partido revolucionário, pode concluir de forma efetiva as tarefas democráticas e instaurar a ditadura do proletariado, que assumirá, ademais, as tarefas socialistas.

    Queremos reafirmar, então, que para Trotsky, o caráter da revolução é permanente, não porque as tarefas democráticas, por si só, aprofundadas, conduzam à revolução socialista, mas porque há uma relação direta com o sujeito social que pode efetivamente levar adiante essa revolução. E esse sujeito social é o proletariado, que, uma vez no poder, começará a executar as tarefas socialistas.

    O pós-guerra trouxe novos fatos, revoluções que expropriaram a burguesia sem que o sujeito social proletário e o partido revolucionário estivessem presentes. Isso não estava previsto por Trotsky, mas são suas elaborações – em especial a “Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado” e a hipótese teórica apresentada no Programa de Transição – que nos permitem interpretar tais acontecimentos. Foi a combinação de uma situação objetiva insustentável (guerra, derrotas, crise financeira…) com a pressão revolucionária das massas que obrigou direções da pequena burguesia, inclusive stalinistas, a ultrapassarem seu programa e expropriarem a burguesia. Essas revoluções questionam alguns aspectos das Teses da Revolução Permanente, mas não a teoria em si. Nenhuma dessas revoluções foi liderada pela burguesia; pelo contrário, foi necessário tomar o poder e expropriá-la para cumprir as tarefas principais da revolução democrática burguesa – a independência nacional e o problema da terra. Como observou Moreno:

    «A teoria da revolução permanente é muito mais abrangente do que as Teses escritas por Trotsky no final dos anos vinte; é a teoria da revolução socialista internacional que combina diferentes tarefas, etapas e tipos de revoluções na marcha rumo à revolução mundial. A realidade acabou sendo mais trotskista e permanente do que o próprio Trotsky e os trotskistas previram. Produziu combinações inesperadas: apesar das falhas do sujeito (ou seja, de que o proletariado em algumas revoluções não foi o protagonista principal) e do fator subjetivo (a crise de direção revolucionária, a fragilidade do trotskismo), a revolução socialista mundial obteve triunfos importantes, chegou à expropriação, em muitos países, dos exploradores nacionais e estrangeiros, embora a direção do movimento de massas tenha permanecido nas mãos de aparatos e direções oportunistas e contrarrevolucionárias. Se não reconhecermos esses fatos, abriremos margem para interpretações revisionistas que se baseiem neles para negar o caráter de classes e político da teoria da revolução permanente.» (Tese 39 da Atualização do Programa de Transição)

    Por outro lado, manteve-se o fio condutor da Teoria e das Teses: sem a classe operária e o partido, mais cedo ou mais tarde a revolução se paralisa e retrocede. Pode-se chegar até à expropriação da burguesia, mas, no fim, ela congela e retrocede. Se isso já era evidente em 1980, hoje a restauração do capitalismo na China, Cuba, Vietnã e em todo o Leste europeu está aí como a prova máxima. A ausência do proletariado na liderança e do partido revolucionário ocasionou que cada uma dessas vitórias, em vez de avançar rumo à liquidação do imperialismo em todo o planeta, fosse utilizada pelos aparatos burocráticos para frear, e até mesmo reverter, as conquistas.

    Por isso, como afirma Moreno, a teoria da revolução permanente permanece viva e correta em sua essência, mantendo seu caráter de classes e internacionalista: tal como Trotsky postulou, somente a classe operária e o partido na liderança podem conduzir a revolução socialista mundial até derrotar o imperialismo e estabelecer o socialismo em escala global.

    O pós-guerra e os efeitos sobre o trotskismo

    Esses acontecimentos do período pós-guerra levaram a muitas revisões no interior do trotskismo. Órfãos de direção pelo assassinato de Trotsky, os jovens e inexperientes quadros que estavam à frente da IV Internacional sucumbiram ao impressionismo, sob a pressão da esquerda de corte stalinista, fortalecida pelo triunfo contra o nazismo e pelo surgimento dos novos estados operários burocráticos. Foi o momento em que Mao, Ho Chi Minh e, pouco depois, Fidel Castro, emergiram como referências.

    O que dizia o Secretariado Internacional da IV, sob a direção de Pablo?

    A posição era de que aquelas direções não eram contrarrevolucionárias, mas sim direções centristas que, como produto da pressão das massas, poderiam se tornar revolucionárias. Essa mudança de 180º nas posições da IV levou a uma profunda crise. Essa visão – que identificou o que se chamou de “pablismo” – foi combatida pela corrente de Moreno e pelo SWP dos EUA durante 1952-1953.

    Mais tarde, o Secretariado Unificado (SU), formado em 1963 sob a direção de Mandel, continuou a revisão, atribuindo a direções pequeno-burguesas, como o Partido Comunista chinês de Mao, e ao castrismo, um papel revolucionário, dando origem à tendência guerrilheira que foi enfrentada tanto por Moreno quanto pelo SWP.

    Contudo, as posições foram se alterando. A evolução subsequente do SU unificou o mandelismo com o SWP, abandonando o critério leninista para caracterizar as direções por seu programa e caráter de classe. Para eles, uma direção da pequena burguesia ou stalinista pode se transformar em revolucionária. Confundiram o que era produto da combinação entre a radicalização das massas e uma situação extrema de crise catastrófica – guerras, etc. – que as impulsionava adiante, com um suposto caráter revolucionário dessas direções. Em especial, aplicaram esse critério para definir o castrismo, do qual opinavam que, por não derivar do stalinismo, podia ser considerado uma direção revolucionária por estar à frente de uma revolução que expropriou a burguesia. Fidel Castro chegou a ser identificado por Novack como um dirigente igual ou superior a Lenin.

    Por outro lado, outro setor do trotskismo, como Healy, da Inglaterra, e Lambert, da França, tomando as Teses da Permanente como uma espécie de “bíblia”, não reconheceram essas revoluções como socialistas por terem expropriado as burguesias, tampouco reconheceram como tais os estados operários formados a partir delas.

    O SWP revê a teoria da revolução permanente em relação aos oprimidos

    Na década de 1960-1970, nos EUA, houve um grande ascenso do movimento das mulheres, liderado por diferentes correntes feministas, e um avanço do movimento negro em prol dos direitos civis, contra a discriminação racial, em um contexto no qual não havia grandes lutas operárias. Frente a essa realidade, o SWP realizou uma revisão teórica muito profunda. Trabalhamos bastante com o material de Mary Alice Waters, mas a base teórica é de Novack.

    George Novack, em seu livro Democracia e Revolução (1971), introduz conceitos que, na verdade, constituem uma revisão global da teoria da Revolução Permanente.

    Em primeiro lugar, ele afirma que a defesa da democracia contra seus inimigos levaria, por si só, à luta pelo socialismo, e que a estratégia revolucionária consiste em defender e expandir a democracia. No referido texto teórico-histórico, ele explica:

    Hoje em dia, as classes médias urbanas e rurais declinaram em importância econômica e social; os pequenos proprietários já não terão, por muito tempo, força independente suficiente para resistir a ataques frontais contra a democracia. Há apenas uma força social com poder suficiente para defender a democracia contra o ‘perigo claro e presente’ da reação capitalista. É a classe operária, que representa a esmagadora maioria da população. Os operários brancos, os afro-americanos e os povos do Terceiro Mundo, a juventude radical, as mulheres que se rebelam contra seu status de ‘segundo sexo’ e os intelectuais e profissionais dissidentes formam uma falange de forças que devem ser unidas em um único front para defender a democracia.” (Como defender e expandir a democracia?, Capítulo 12)

    Partindo da afirmação de Trotsky de que há uma tendência crescente ao fascismo e/ou à bonapartização da democracia burguesa, Novack apresenta um posicionamento programático geral (algo que Trotsky não fez): a estratégia da revolução permanente, em democracias como a dos EUA, é lutar para defender a democracia de ataques em todas as suas dimensões; a luta pelas liberdades democráticas, contra a opressão da mulher, contra o racismo e pelos direitos da juventude, devem ser o centro – e a chave é radicalizá-las até alcançar a ditadura do proletariado. O caminho para o socialismo passa, portanto, pela defesa e ampliação da democracia burguesa. Essa luta encaminharia diretamente para a conquista do poder.

    Esse conceito foi posteriormente aplicado pela direção do SWP em sua resolução sobre a luta das mulheres.

    Em consonância com essa perspectiva, atribui a capacidade de dirigir a revolução a todos os setores que sofrem opressão, discriminação – a todos os oprimidos, que devem se unir em um único front para defender a democracia.

    «Os marxistas abordam o problema de uma forma fundamentalmente distinta. Consideram a democracia burguesa não como um fim em si, mas como uma etapa na evolução da soberania popular, cujas conquistas progressistas precisam ser preservadas. Contudo, essas conquistas estão constantemente ameaçadas pela crescente dominação reacionária dos ricos, durante o declínio do capitalismo. Só podem ser mantidas e expandidas através da ação e organização independente das massas operárias e de todos os oprimidos contra os monopolistas e os militaristas, que devem ser direcionadas, em última análise, para despojar os primeiros do poder.» (Novack, op.cit.)

    Dessa perspectiva, defende-se que o sujeito social não é exclusivamente a classe operária, mas uma soma dos sujeitos dos movimentos de massas democráticos – sem distinção de classes – que englobam o movimento negro, das mulheres, da juventude e, inclusive, a própria classe operária.

    Por esse motivo, rejeita-se o critério de classe da Teoria da Revolução Permanente, conforme proposto por Moreno na Tese 39 da Atualização do Programa de Transição:

    … a direção do SWP está engajada em outro ataque à teoria trotskista da revolução permanente. Para esta nova teoria do SWP, o proletariado ou o trotskismo não são essenciais para o contínuo desenvolvimento da revolução permanente. Eles são, na melhor das hipóteses, um ingrediente a mais. A nova teoria da revolução permanente defendida pela atual direção do SWP é a teoria dos movimentos unitários progressistas dos oprimidos, e não do proletariado e do trotskismo. Todo movimento de oprimidos – se for unitário e englobar o conjunto destes, ainda que sejam de classes diferentes – é, por si só, cada vez mais permanente e conduz inevitavelmente – sem diferenciações de classe ou políticas – à revolução socialista nacional e internacional. Essa concepção é expressa, particularmente, em relação aos movimentos negro e da mulher. Todas as mulheres são oprimidas, assim como todos os negros; se se conseguir mobilizar um movimento que una esses setores oprimidos, essa mobilização não cessará e os conduzirá, através de diferentes etapas, à realização de uma revolução socialista.

    … Para o SWP, o socialismo é uma combinação de diferentes movimentos multitudinários – sem distinção de classes – de importância semelhante: o movimento negro, o feminino, o operário, o juvenil, o dos idosos, que quase que pacificamente conduzem ao triunfo do socialismo. Se todas as mulheres marcharem juntas, isso representa 50% do país; se o mesmo ocorrer com os jovens (70% em alguns países latino-americanos, além dos operários, negros e camponeses), a combinação desses movimentos fará com que a burguesia seja encurralada – em um pequeno espaço – pois serão os adultos burgueses, homens brancos, os que se oporão à revolução permanente. É a teoria de Bernstein combinada com a revolução permanente: o movimento é tudo e a classe e os partidos nada. Essa teoria rapidamente se transforma em um humanismo anticlassista, que reivindica a práxis como categoria fundamental, em oposição à luta de classes como motor da história. Nós – em confronto com o SWP – devemos, mais do que nunca, reafirmar o caráter de classes e trotskista da revolução permanente. Nenhum setor burguês ou reformista nos acompanhará no processo da revolução permanente. Em algumas conjunturas excepcionais, quando a ação não representar uma ameaça à burguesia e à propriedade privada, poderão marchar juntos jovens burgueses e operários, mulheres burguesas e operárias, negros oportunistas e revolucionários; mas essa marcha conjunta será excepcional e não permanente. Nós continuamos a defender, de forma intransigente, a essência – tanto da teoria quanto das próprias Teses – da revolução permanente: somente o proletariado liderado por um partido trotskista pode conduzir de maneira consistente, até o fim, a revolução socialista internacional e, por conseguinte, a revolução permanente. Apenas o trotskismo pode impulsionar a mobilização permanente da classe operária e de seus aliados, principalmente os operários.

    A posição do SWP e suas propostas para a libertação da mulher

    Relacionada a essa revisão teórica, surge também a revisão do conceito de opressão e a proposta do movimento unificado das mulheres, articulada por Mary Alice Waters. Em A Revolução Socialista e a Luta pela Libertação da Mulher, Waters afirma:

    A opressão da mulher é indispensável para a manutenção da sociedade de classes. Portanto, a luta de massas das mulheres contra essa opressão é uma forma de combater a dominação capitalista. As mulheres são um componente importante e um poderoso aliado potencial da classe operária na luta contra o capitalismo… Sem a mobilização de massas das mulheres, a classe operária não pode realizar suas tarefas históricas.

    Dessa forma, o apoio à construção de um movimento feminista autônomo passa a fazer parte da estratégia do partido revolucionário da classe operária.

    Waters parte de uma definição equivocada: que a opressão da mulher é indispensável para a manutenção da sociedade capitalista – tema que será abordado mais adiante. Por outro lado, ela encara o conjunto das mulheres como aliadas da classe operária, defendendo que as lutas pelas tarefas democráticas, por si sós, conduzem à tomada do poder. E se as mulheres, em conjunto, sem distinção de classe, são consideradas o sujeito social de uma importante luta democrática, é estratégica a formação de um movimento feminista unificado – o que remete à proposta da Irmandade de Mulheres, defendida pelas feministas radicais.

    Essa visão contrasta com a da dirigente revolucionária Clara Zetkin, que impulsionou as ações e as resoluções acerca da mulher na II e, posteriormente, na III Internacional. Em A Contribuição da mulher operária é indispensável para a vitória do socialismo, Zetkin afirmava:

    O objetivo final da luta da mulher não é competir livremente com o homem, mas conquistar o poder político pelo proletariado. A mulher operária luta lado a lado com o homem de sua classe contra a sociedade capitalista. Isso não significa que ela não deva apoiar também as reivindicações do movimento feminino burguês. Mas a conquista dessas reivindicações representa apenas um instrumento, um meio para um fim – para entrar na luta com as mesmas armas ao lado do proletariado. … A mulher operária posiciona-se ao lado do proletariado, enquanto a burguesa fica do lado da burguesia.

    Não devemos nos deixar enganar pelas tendências socialistas presentes no movimento feminino burguês: essas se manifestarão enquanto as mulheres burguesas se sentirem oprimidas, mas não além disso.

    Nos anos 80, o SU incorporou e passou a defender essa visão elaborada pelo SWP, aprofundando-a e acolhendo as posições das feministas radicais. Em 1989, a então seção do SU, a LCR espanhola, desenvolveu as teses intituladas “A Rebelião das Mulheres”. Para elas, a revolução é a soma de lutas democráticas que são, por si só, anticapitalistas se forem levadas de forma radical e independente da classe e de sua direção – seja ecológica, feminista, etc.

    Elas defendem que a opressão “da mulher é exercida de forma individualizada pelos ‘homens’ em conjunto”, e a esse conjunto de relações denomina-se patriarcado, alinhando-se com a posição das feministas radicais, conforme analisado no seminário e no artigo de Florence Oppen desta revista.

    O sujeito social da libertação das mulheres seria “as mulheres”, isto é, todas, sem distinção de classe: “O movimento feminista surge como expressão do despertar da consciência de muitas mulheres e se configura como o sujeito determinante na luta por sua libertação” (p. 3), considerando-as parte do conjunto dos setores que se unirão até o final na luta pelo socialismo, dos quais estaria incluída a classe operária. (Tese 14: … Além disso, existem outros movimentos de libertação, e particularmente a classe operária, que para alcançar seus objetivos também deve propor a destruição do Estado… Tese 15: “também o caráter estratégico do movimento feminista, seu papel central na transformação revolucionária”. Tese 16: “As mulheres são o sujeito de sua própria libertação…”)

    Ou seja, para a LCR e o SU, existem vários movimentos – o das mulheres, o da classe operária e outros que se somam na luta anticapitalista. Para a LCR, a classe operária é apenas parte desse processo, por mais importante que seja. Contudo, de forma categórica, seu papel não é o de liderar, mas o de se aliar a qualquer outro setor. Não há referência à divisão de classes dentro do universo feminino. O movimento feminista deve ser autônomo do Estado e dos demais movimentos, inclusive do movimento operário e do partido; consequentemente, o papel do partido revolucionário não é liderar nem combater as direções pequeno-burguesas, mas apenas participar ativamente do movimento autônomo das mulheres – e ponto final.

    Como vimos no seminário, não estamos apenas relembrando polêmicas dos anos 70 e 80 do século XX. Essas posições continuam sendo defendidas hoje por organizações trotskistas, como o FSP (Freedom Socialist Party) dos EUA, o que mantém a atualidade desse debate.

    O caráter das tarefas para a libertação da mulher e o que pode ser alcançado antes da tomada do poder

    Esses dois temas também foram objeto de debate entre os marxistas no seminário.

    Ficou claro que as lutas contra a opressão não são, em si, tarefas anticapitalistas, mas tarefas democráticas. Ou seja, o capitalismo não se estrutura em torno da opressão da mulher. As reivindicações relativas à igualdade feminina são demandas democráticas que ficaram pendentes. Algumas delas foram conquistadas ao longo do século XX e continuam em aberto no século XXI, ainda que permeadas por muitas desigualdades. Referimo-nos a questões democráticas como o direito de voto, a guarda dos filhos, o direito à educação, à propriedade, ao divórcio, ao aborto, em vários países.

    Por outro lado, o seminário deixou claro que a luta contra a opressão da mulher é milenar e que a burguesia, mesmo tendo contribuído para o desenvolvimento das forças produtivas e criado as condições ao incorporar massivamente a mulher ao mercado de trabalho, foi incapaz de resolver a questão – nem mesmo nos países imperialistas. É decisivo compreender que isso tem a ver com o que propõe a Revolução Permanente: na época imperialista, a burguesia é incapaz de concluir até o fim qualquer uma das tarefas democráticas que ficaram pendentes da revolução burguesa – e isso inclui a opressão da mulher, que subjuga metade da humanidade.

    É preciso reafirmar que, ainda mais na época imperialista, a burguesia dos países periféricos é incapaz de cumprir as tarefas democráticas. Essa incapacidade, segundo Trotsky, tem dois motivos centrais: a) a relação orgânica das burguesias com o imperialismo; b) o receio de colocar as massas, especialmente a classe operária, em movimento.

    Essa incapacidade mencionada por Trotsky está relacionada à conclusão das tarefas democráticas. Contudo, a burguesia foi obrigada, em certas circunstâncias, a adotar medidas parciais para frear grandes movimentos revolucionários. Por exemplo, é do interesse de alguns setores burgueses que exista um mercado interno unificado e medidas protecionistas contra concorrentes internacionais. Houve processos de industrialização na América Latina e nacionalizações – parciais ou não – de recursos minerais. Também na América Latina, conhecida por seus golpes de estado recorrentes, em determinado momento, utilizou-se a reação democrática para desviar o avanço revolucionário.

    No que diz respeito à opressão da mulher, verifica-se uma dinâmica semelhante: a burguesia é incapaz de resolver a opressão da mulher, assim como não consegue solucionar o problema do racismo, pois o capitalismo absorve todas as opressões, utilizando as diferentes situações de privilégios e desvantagens para explorar melhor os trabalhadores e os povos. Esse processo de aproveitar as desigualdades atinge seu ápice na fase decadente do capitalismo – o imperialismo – que se vale de todas as diferenças raciais, sexuais, nacionais, para explorar ainda mais. Contudo, isso não impede que, diante da radicalização e das lutas, a burguesia e o imperialismo possam fazer concessões, em especial na esfera de reivindicações formais, como o divórcio, a igualdade perante a lei, a legalização do aborto. Como vimos, essas demandas podem ser atendidas sem que o capitalismo esteja em risco. Além disso, sempre que são feitas esse tipo de concessões legais, tenta-se incorporar e cooptar setores de mulheres com a promessa de se alcançar a igualdade legal dentro do próprio sistema capitalista. Por exemplo, o direito de voto já existe na grande maioria dos países e, então, surge a convocação para a ‘participação cidadã’ das mulheres, como caminho para superar a opressão.

    Esse é o pano de fundo do chamado empoderamento, das políticas de ‘gênero’ que dizem às mulheres que basta que se conscientizem de seus direitos, eduquem-se e proponham-se a assumir as tarefas dos homens, para conquistar a igualdade e acabar com a violência contra a mulher, entre outras reivindicações. Com esse objetivo, faz-se propaganda utilizando como exemplos mulheres que são ministras ou presidentes de países, como Merkel, Dilma ou Cristina Kirchner. Também estão presentes campanhas da ONU que abordam gênero e o progresso da mulher. Todas essas iniciativas mascaram o fato de que, para a imensa maioria das mulheres – as trabalhadoras e as donas de casa dos lares operários – a situação piora a cada dia, e esse é um sonho totalmente inalcançável sob o capitalismo. Pois o imperialismo, a cada dia, ataca mais as condições de vida dos trabalhadores, e as mulheres são as que mais sofrem com o desemprego, a fome, o colapso dos serviços públicos de saúde e educação, entre outros problemas graves.

    Diante de tudo isso, houve consenso de que a exploração capitalista divide os oprimidos e, portanto, é equivocado considerar as mulheres como um sujeito social único na luta contra a opressão. Assim, a opressão da mulher faz parte das tarefas democráticas – das demandas que ficaram pendentes da revolução democrática – e essa questão só poderá ser plenamente resolvida com a tomada do poder em cada país e, mais precisamente, com a derrota definitiva do imperialismo e a construção do socialismo mundial e do comunismo. Assim como em outras questões democráticas não solucionadas, reafirmamos que o sujeito social é o proletariado e o sujeito político é o partido revolucionário, operário e internacionalista. Do mesmo modo, defendemos que, para avançar rumo ao socialismo, é fundamental enfrentar cotidianamente a luta contra a opressão da mulher, pois a opressão divide a classe operária, sujeito social da revolução.

    Hierarquia das tarefas democráticas

    Outra questão debatida foi se todas as tarefas democráticas abandonadas pela burguesia têm a mesma hierarquia ou se, para a Revolução Permanente, existem hierarquias diferenciadas.

    Para nós, não há dúvidas: existe essa diferenciação hierárquica. Como afirmam as Teses da Revolução Permanente e o artigo de polêmica com Tony Cliff e o SWP da Inglaterra, de Florence Oppen, há três grandes tarefas democráticas históricas, resumidas da seguinte forma por Michel Löwy:

    A revolução agrária democrática: a abolição corajosa e definitiva de todos os resquícios de escravidão, feudalismo e regimes asiáticos despóticos, a eliminação de todas as formas pré-capitalistas de exploração (como a corveia – trabalho penoso –, trabalho forçado etc.) e a expropriação dos grandes latifundiários, com a distribuição da terra para os camponeses.

    A libertação nacional: a unificação da nação e sua emancipação da dominação imperialista; a criação de um mercado nacional unificado e sua proteção contra mercadorias estrangeiras mais baratas; o controle de determinados recursos naturais estratégicos.

    A democracia: para Trotsky, isso incluía não só o estabelecimento de liberdades democráticas, uma república democrática e o fim dos governos militares, mas também a criação das condições sociais e culturais que permitissem a participação popular na vida política – por exemplo, a redução da jornada de trabalho para oito horas e a ampliação da educação pública.

    Moreno acrescenta que a única dessas tarefas que é estrutural – cuja conquista ataca a estrutura da dominação na época atual – é a libertação nacional, o que decorre, em sua própria teoria do imperialismo, do fato de que a dominação colonial e semicolonial é parte estrutural da dominação econômica e política do imperialismo, da fase atual do capitalismo mundial. Acreditamos que Moreno está correto, e isso tem a ver com a fase monopolista do capitalismo, com o fato de que um número cada vez menor de potências imperialistas exerce dominação, que houve a submissão dos antigos Estados operários, que países imperialistas passam a dominar, que as invasões e guerras coloniais continuaram durante todo o século XX e se estendem pelo século XXI.

    Qual deve ser, então, a posição dos revolucionários em relação às tarefas democráticas de luta contra a opressão da mulher?

    Sem dúvida, devemos encará-las como fundamentais, pois, como afirma Lenin, se os revolucionários não se apresentarem como aqueles que mais lutam por cada uma das reivindicações, não conquistarão a confiança nem conseguirão atrair as massas oprimidas para o campo da revolução. Pois, ao impulsionar a luta contra a opressão das mulheres, abrem-se as portas para mobilizar amplos contingentes de mulheres trabalhadoras e atraí-las para o campo do proletariado. Além disso, como o machismo e a opressão dividem a classe operária, é imprescindível a sua união para a conquista do triunfo revolucionário. Por isso, temos que convocar, de maneira ampla, o proletariado para assumir as bandeiras dos oprimidos – das mulheres, dos negros, dos indígenas, dos imigrantes e dos LGBT.

    Isso é parte fundamental da luta para que a classe operária torne-se a líder de todos os setores oprimidos. Queremos que ela seja o dirigente dos camponeses pobres, dos setores populares urbanos e das minorias perseguidas.

    No que diz respeito à opressão da mulher, assumir esse combate de forma profunda implica travar uma batalha permanente contra as direções e organizações que propagam a influência burguesa, um combate com orientação de classe, para conquistar a adesão das mulheres trabalhadoras e trazê-las para o lado da classe operária. Atualmente, quando a burguesia adota retoricamente essas bandeiras e até tenta capitalizar algumas medidas conquistadas no campo democrático, essa luta se torna ainda mais importante para enfrentar ideologias como o empoderamento, as teorias de gênero e a colaboração de classes. É necessária uma luta implacável contra essas concepções feministas, a fim de conquistar a adesão das mulheres trabalhadoras e exploradas para se unirem à classe operária.

    Determinar que as tarefas contra a opressão da mulher são de caráter democrático (e, portanto, policlássicas, como alerta Clara Zetkin, já que nelas intervêm diferentes classes que sofrem essa opressão) não diminui a importância dessa luta; pelo contrário, essa precisão a fortalece, pois nos assegura que só podemos avançar na resolução dessa questão se a enquadrarmos na perspectiva da luta do proletariado pela destruição do capitalismo e do imperialismo, pelo poder da classe operária, no caminho do socialismo e do comunismo – a única forma de libertar a humanidade de toda exploração e opressão.

  • Sobre a organização dos oprimidos

    Sobre a organização dos oprimidos

    No artigo A teoria da revolução permanente, as tarefas democráticas e a luta dos oprimidos, referimo-nos à polêmica com o SWP dos anos 1970 e com outras correntes do trotskismo que reivindicavam a organização autônoma das mulheres e de outros setores oprimidos, ultrapassando a fronteira de classe. Esse tema não foi polêmico no seminário, pois houve acordo unânime em rejeitar esse tipo de organizações de aliança de classes.

    Por Alicia Sagra e José Welmowicki

    Surgiu, entretanto, outra polêmica a respeito de se é correto ou não o chamado às mulheres trabalhadoras e a outros setores oprimidos dos trabalhadores para se organizarem de forma autônoma (em tudo o que se refere à luta contra a opressão). Ou seja, que existam, em nível da organização de classe, por exemplo nas centrais sindicais, organizações por opressões, não circunstanciais, mas permanentes.

    O que chamou a atenção no seminário foi que tanto os que se opunham a esse tipo de organização quanto os que a defendiam, apoiavam-se nos mesmos materiais programáticos para fundamentar suas posições: a Tese sobre a propaganda entre as mulheres, votada pelo terceiro congresso da III Internacional em 1921, e a Tese XXIX de Atualização do Programa de Transição de Nahuel Moreno, de 1980. Evidentemente, estamos diante de um problema de diferentes interpretações dos mesmos documentos.

    Por esse motivo, precisamos aprofundar o estudo desses documentos, analisando essas definições programáticas não apenas do ponto de vista teórico-ideológico, mas também histórico: qual foi a orientação que, historicamente, nossos mestres deram à organização dos oprimidos? E por que o fizeram?

    O primeiro passo é precisar o que esses documentos dizem, contrastando o texto escrito com a prática concreta daqueles que os redigiram. E, embora devamos aplicar o mesmo método para os dois documentos citados, é inegável que o documento central é o material da III Internacional, visto que todos reconhecemos que essas teses são a principal ferramenta programática para o trabalho com as mulheres.

    Como não somos religiosos que seguem uma bíblia, o segundo passo – uma vez precisado o que se diz – é determinar se essas definições estão corretas na atualidade. Se foram na época, mas, devido às mudanças mundiais, já não o são, ou se sempre estiveram equivocadas.

    Devemos seguir esses passos com muita precisão, pois essa discussão não é para ganhar uma polêmica nem por um interesse puramente intelectual. Nosso propósito comum está relacionado com a necessidade de enfrentar a reelaboração programática com o objetivo de atualizar nosso programa histórico.

    Vamos, então, começar com o documento mais recente.

    Tese XXIX de Atualização do Programa de Transição

    Na referida tese, Nahuel Moreno explica:

    «(…) nós estamos a favor da unidade de ação anti-imperialista; da unidade de ação das mulheres pela legalização do aborto, do divórcio ou pelo direito ao voto; da unidade de ação com qualquer partido político para reivindicar espaços iguais na rádio e na televisão; de uma manifestação, com quem for, para solicitar esses direitos democráticos contra o governo bonapartista e totalitário e mesmo democrático burguês. Mas não confundimos a unidade de ação com a formação de uma frente. Somos contrários a fazer frentes com os partidos burgueses ou pequeno-burgueses para defender a democracia, mesmo quando concordamos com eles na defesa de determinados pontos democráticos. Com o nome de ‘frente’ estruturam-se organizações que são frentes-populistas (embora, em determinados casos, possam desempenhar um papel relativamente progressista, como os movimentos nacionalistas), por envolverem distintas classes — sobretudo a burguesia e a pequena burguesia — e por terem objetivos que não são os da independência política da classe operária. (…) Quando essa frente (que jamais devemos promover, pois a consideramos uma variante da frente popular) se estabelece, e nela a classe operária intervém ,ou um setor importante dela, podemos intervir, já que ela existe objetivamente, mas para desmantelá-la, para denunciá-la de dentro e para independentizar, tanto política quanto organizacionalmente, a classe operária que nela está. Isso significa que podemos intervir em um movimento nacionalista, mas com um claro sentido de denúncia da colaboração de classes e propondo a independência da classe operária (…) Essa explicação de que nós não estamos a favor de uma frente única anti-imperialista, nem antifeudal, nem feminista antimachista, democrática antiditatorial, mas sim a favor de ações anti-imperialistas, feministas, democráticas e antilatifúndio, é muito importante, pois houve uma tendência de camuflar a política frente-populista com esses nomes.»

    Ao apresentar este texto, obtivemos dois tipos de resposta:

    1 – Que a negativa de constituir esses frentes, conforme apresentado, refere-se somente à unidade com a burguesia (como seria o caso do SWP nos anos 70) e, portanto, não se aplica quando se trata de organizar separadamente as mulheres trabalhadoras.

    2 – Que aí se esboça uma proposta propagandista e sectária, que tem a ver com o fato de que Moreno não está à altura de Lenin no tema da luta contra a opressão da mulher.

    Não concordamos com o primeiro ponto, pois, para nós, a posição de Moreno ao rejeitar essas frentes baseia-se em dois aspectos: 1 – «por envolver diversas classes — sobretudo a burguesia e a pequena burguesia» e 2 – «por terem objetivos que não são os da independência política da classe operária«.

    Quanto ao segundo argumento, não vemos por que seria propagandista e sectário rejeitar a organização separada das mulheres e demais oprimidos e, ao mesmo tempo, lutar vigorosamente para que se organizem junto com seus irmãos de classe, batalhando nos organismos de frente única operária pela maior participação das mulheres, inclusive em seus quadros de direção. Acreditamos que essa última forma torna a luta contra o machismo mais eficaz, que é muito forte nos sindicatos, sobretudo onde a burocracia está no comando, mas não somente neles. Além disso, entendemos que essa orientação, utilizando todos os mecanismos aconselhados pela III Internacional (comissões de mulheres, jornais específicos, encontros de mulheres trabalhadoras), é a melhor para lutar para que o conjunto da classe assuma o combate contra a opressão da mulher. Em contrapartida, não nos parece que organizar as mulheres separadamente seja a melhor forma de enfrentar o machismo nos sindicatos. Isso seria o mesmo que dizer que a melhor forma de enfrentar a burocracia é se organizar separadamente nos sindicatos vermelhos.

    No que diz respeito a Moreno, não acreditamos que ele tenha subestimado a luta contra as opressões. É verdade que, no que tange ao problema da mulher, nossa corrente incorporou essa política somente a partir de 1973, a partir da influência positiva do SWP dos EUA. Mas, a partir desse momento, passou a ser um tema importante que marcou, particularmente, a formação de nossos quadros femininos, cujo número e peso foram uma característica distintiva do nosso partido. Obviamente, Moreno não esteve, em nenhum aspecto, à altura de Lenin, mas, a partir de 1973, independentemente dos erros e correções, consideramos que a orientação que tivemos em relação ao trabalho com as mulheres esteve no marco das resoluções da III Internacional. E quando, no final dos anos 70, Moreno viu-se obrigado a enfrentar seus mestres do SWP, desenvolveu a polêmica com Mary Alice Waters apoiando-se nas elaborações leninistas.

    De qualquer forma, consideramos que o documento programático mais completo são as Teses do terceiro congresso da III Internacional, inquestionavelmente reivindicadas por todos os participantes do seminário, por isso é nelas que devemos concentrar nossa análise.

    O que essas Teses propõem

    As teses foram elaboradas e apresentadas por Clara Zetkin, que em seu texto Meus lembretes de Lenin descreve suas conversas prévias com o dirigente bolchevique sobre o tema.

    Há um conceito que permeia toda a tese: Só no comunismo se alcançará a libertação da mulher, e ao comunismo só se chegará pela luta conjunta de operárias e operários.

    Nela, propõe-se a obrigação de todos os partidos da Internacional de realizar um trabalho sobre o proletariado feminino, tomando consciência da importância da «participação ativa das mulheres em todos os setores da luta do proletariado (inclusive em sua defesa militar), da construção de novas bases sociais, da organização da produção e da existência em conformidade com os princípios comunistas«.

    Chama a atenção a importância dada a esse trabalho, preocupando-se inclusive com como desenvolvê-lo nos países do Oriente. Detalha a necessidade de recorrer a organismos especiais (comissões, seções, etc.), indica que deve ser dada especial importância ao trabalho nas fábricas e nos sindicatos, e que as frentes comunistas dos sindicatos e de outras organizações operárias devem ter organizadores e agitadores dedicados especialmente ao trabalho com as mulheres trabalhadoras. Propõe que sejam realizadas reuniões com as trabalhadoras nos ateliês, bem como em seus bairros. Ou seja, é extremamente detalhista. Mas em nenhum momento convoca as trabalhadoras a organizarem-se separadamente. Ao contrário, define-se de forma enérgica contra isso:

    «Ao mesmo tempo em que se pronuncia veementemente contra qualquer tipo de organização separada de mulheres no seio do partido, dos sindicatos ou de outras associações operárias, o 3º Congresso da Internacional Comunista reconhece a necessidade, para o Partido Comunista, de empregar métodos específicos de trabalho entre as mulheres e estima a utilidade de formar, em todos os partidos comunistas, organismos especiais encarregados desse trabalho.»

    Esses organismos especiais a que se faz referência não têm nada a ver com organizá-las de forma separada, como demonstra a afirmação categórica com que se inicia o parágrafo. Mas, para que não reste nenhuma dúvida sobre isso, na Resolução concernente às formas e aos métodos do trabalho comunista entre as mulheres, apresentada por Alexandra Kollontai, votada no mesmo congresso, estabelece-se:

    «Para que se cumpra esse objetivo, todos os partidos aderentes à III Internacional devem formar, em todos os seus órgãos e instituições, desde os mais baixos até os mais elevados, seções femininas presididas por uma integrante da direção do Partido, cujo objetivo será o trabalho de agitação, de organização e de instrução entre as massas operárias femininas (…) Essas organizações femininas não formam organizações separadas; são apenas órgãos de trabalho (…)»

    Pode-se dizer que essa tese se refere ao partido, o que não está em discussão. É verdade que essa tese e a mais geral (Tese sobre a propaganda entre as mulheres) referem-se centralmente ao partido, a como conquistar mulheres trabalhadoras para o partido, a como se forma um movimento comunista de mulheres (isto é, do partido). Por esse motivo, sempre nos pareceu equivocado o argumento de que o chamado para construir organismos especiais (comissões, seções, etc.) significava que a orientação de organizar separadamente as mulheres trabalhadoras, isto é, construir organismos permanentes de unidade de ação a partir das opressões, estava no marco da III Internacional.

    Porém, embora a Tese da Terceira esteja centrada no partido, ela não ignora os sindicatos. Faz duas definições nesse sentido: 1 – «No período atual, os sindicatos profissionais e de produção devem constituir, para os partidos comunistas, o campo fundamental do trabalho entre as mulheres (…)» 2 – A que já mencionamos: (O congresso da Terceira) «pronuncia-se veementemente contra qualquer tipo de organização separada de mulheres no seio do partido, dos sindicatos ou de outras associações operárias, (…)».

    Esta Tese insiste tanto na importância de manter a unidade entre as operárias e os operários que aconselha que, nas comissões de mulheres, na medida do possível, também participem homens e, de forma semelhante, no nível da formação, estabelece:

    «Para desenvolver o espírito de camaradagem entre operárias e operários, é preferível não criar cursos e escolas especiais para as mulheres comunistas. Em cada escola do partido deve haver, obrigatoriamente, um curso sobre os métodos de trabalho com as mulheres.«

    E tudo isso, o que se propõe para o partido e para o sindicato, está intimamente ligado à definição que Lenin faz em suas conversas com Clara Zetkin: «De nossa concepção ideológica derivam-se as medidas organizativas«. E qual é essa concepção ideológica em relação ao problema da mulher? Que somente o comunismo libertará as mulheres e que só se chegará ao comunismo pela luta unificada de operárias e operários, isto é, o conceito que, como dissemos, permeia toda a tese. Por isso, a proposta organizacional é elaborada em torno da questão de classe e não da opressão. Por isso, Lenin conclui sua frase dizendo: «Nada de organização especial da mulher comunista!«

    Pode-se dizer que aqui Lenin refere-se à mulher comunista e não à trabalhadora. Mas, se não é essa a sua orientação, por que em toda a sua história nem Clara Zetkin, nem Lenin, nem a Terceira jamais convocaram as mulheres trabalhadoras para se organizarem separadamente? E não se pode dizer que não o fizeram por subestimar a luta contra a opressão. Sua política foi propagandista por não fazer esse chamado? A Tese da Terceira preocupa-se em não ficar apenas na propaganda, mas não orienta a criação de organizações de mulheres com esse objetivo, e sim indica:

    «Para serem órgãos de ação e não somente de propaganda oral, as seções femininas devem apoiar-se nos núcleos comunistas das empresas e oficinas e designar, em cada núcleo comunista, um organizador especial do trabalho entre as mulheres da empresa ou oficina

    E, para finalizar, essa orientação de Clara Zetkin, Lenin e da Terceira, ainda é correta na atualidade ou é necessário modificá-la diante de mudanças ocorridas até hoje?

    Se analisarmos o grau de machismo nos sindicatos e no partido na época de Lenin, não podemos dizer que tenha sido menor do que na atualidade. Visto o baixo número de mulheres dirigentes sindicais e políticas naquela época e os entraves, inclusive legais, que em muitos países impediam a participação das mulheres, não há dúvida: o machismo era muito mais acentuado, e a situação da mulher, bem pior. Não por acaso, a tese da Terceira propõe:

    «Admitir as mulheres como membros com os mesmos deveres e direitos que o restante dos membros do partido e de todas as organizações proletárias (sindicatos, cooperativas, conselhos de fábrica, etc.)

    Portanto, não vemos nada que justifique mudar a orientação organizacional da Terceira Internacional. O machismo divide a classe e obstrui a entrada das mulheres trabalhadoras no partido. Essa é uma das razões centrais pelas quais devemos enfrentá-lo de forma sistemática e permanente. Mas não podemos fazê-lo aprofundando essa divisão ao criar organizações permanentes separadas para as mulheres e para o restante dos oprimidos. Não podemos aplicar aqui o critério de «dividir agora para unir depois», que, em determinadas circunstâncias, aplica-se para as nações oprimidas. Ao fazê-lo, cairíamos em uma orientação sexista. A organização separada das mulheres trabalhadoras enfraquece a classe e fragiliza a luta contra a opressão, pois faz com que os demais se desvinculem do problema com o argumento: «são coisas de mulheres, que se encarreguem as companheiras». Ou seja, o oposto do aconselhado pela Terceira Internacional.

  • O discurso da cidadania e a independência de classe

    O discurso da cidadania e a independência de classe

    O discurso da cidadania assumiu um gran­de alcance nos últimos vinte anos. Vem sendo empregado, com diversas conotações e para os mais diversos fins, por um amplo espectro de forças e correntes politicas. Surge como bandei­ra nos discursos de alguns dos setores mais reacionários da burguesia, de facções ditas «pro­gressistas» da classe média, sindicatos e corren­tes da classe trabalhadora e até mesmo partidos e movimentos que se reivindicam de esquerda.

    Por José Welmowicki

    Na Europa, é uma estratégia que caracteri­za o discurso de toda a esquerda, principalmen­te a social-democracia. E o discurso da maioria dos atuais governos europeus. No último con­gresso da Internacional Socialista, seu presiden­te então eleito, o português António Guterres ressaltou «a importância da iniciativa dos cidadãos no marco de uma sociedade solidária», e disse que o programa aprovado no congresso «responde sem complexos de forma a valorizar a cidadania». Segundo o presidente da Internacio­nal Socialista, o novo programa ideológico da organização «converte a pessoa no centro das preocupações de nossos países e governos». 1 

    Na Espanha, o discurso da cidadania assumiu uma tal Importância que inspirou inclusive o nome da recente chapa para as eleições europeias da Esquerda Unida: «Europa dos Cidadãos».

    Os movimentos ditos alternativos, como os verdes alemães, e aquele liderado pelo ex-líder estudantil Daniel Cohn-Bendit na França, usam e abusam da expressão: »A Europa se tornaria o espaço coletivo no qual os cidadãos partilha­riam os mesmos riscos«. «É neste sentido que falamos da ‘sociedade de risco’, que é uma forma de compromisso cidadão que apela à consciência crítica de cada um de nós para evi­tar ver a razão de mercado dominar todo modo de vida«.2

    Até mesmo em agrupamentos considerados de extrema-esquerda, como o Bloco de Esquer­da, em Portugal, a noção de cidadania impreg­na os discursos. O programa eleitoral do Bloco foi elaborado com base na interpretação da so­ciedade como composta de cidadãos e não de classes sociais3. Importantes dirigentes de cor­rentes que reivindicam o marxismo revolucionário, como Catherine Samary e Jaime Pastor, ligados ao Secretariado Unificado da IV Inter­nacional, propõem uma «estratégia socialista re­novada», baseada na colaboracão de movimen­tos de cidadãos de distintas origens (ecologis­tas, desempregados, feministas, etc.) que confor­mem redes europeias e internacionais 4.

    Na America Latina, a estratégia da cidada­nia também influencia diretamente a política de sindicatos, movimentos sociais e distintas cor­rentes politicas de esquerda, entre elas, o PT brasileiro, o EZLN de Chiapas e a FMLN de El Salvador.

    Mas o que é cidadania, segundo esse discurso politico? Seria a conquista dos di­reitos civis e sociais mínimos por parte dos cidadãos. Ao mesmo tempo, a concepção da ci­dadania implica que os cidadãos, além de di­reitos, têm deveres. A cidadania exige um com­promisso dos cidadãos com as leis vigentes, como a contrapartida da inclusão desses direitos na ordem legal. Exige, em nome da defesa da extensão desses direitos aos excluídos, uma defesa da ordem na qual se quer garantir a inclusão desses cidadãos.

    A sociedade teria de se comprometer em garantir a cidadania para a maioria dos seus habitantes e caberia aos movimentos sociais a luta para que ela fosse plena. As sociedades que mais se aproximariam do paradigma da cidadania plena seriam os países capitalistas avançados e alguns teóri­cos, como o alemão Jiiergen Habermas, propõem como meta estratégica a extensão do estado social a toda a União Europeia para que este sirva de exemplo ao mundo inteiro 5

    Mas, como chegar ao estágio de cidadania plena? Pela colaboração, negociação e diálogo entre os distintos setores sociais, e a promoção de políticas públicas tendentes a reduzir a desigualdade social. A palavra mágica é a parceria. Nos países dependentes, caberia aos movimentos sociais lu­tar pela conquista de seus direitos de cidadão, tomando como referência a democracia e a cidadania dita plena dos países capitalistas centrais. Para entender o alcance dessa teoria-programa, devemos entender a gênese e a evolução histórica da noção de cidadania.

    A origem do conceito político de cidadania 

    Na Grécia antiga, a cidadania tinha o significado de pertinência a polis. Aristóteles explica a formulação de cidadão presente na Constituição de Atenas, que formaliza a definição para a sociedade grega da época: o direi­to ou prerrogativa de participar das práticas deliberativas ou judiciárias da comunidade a que pertence. Ao mesmo tempo, nem todos tinham esse direito. A outorga da cidadania dependia de um exame seletivo, já que havia uma separação clara entre cidadãos e não-cidadãos (escravos e/ou estran­geiros): 

    «O estado atual do regime apresenta a seguinte conformação: participam da cidadania os  nascidos de pai e mae cidadãos, sendo inscritos entre os démotas 6 aos dezoito anos. Quando da inscrição, os démotas votam sob juramento a seu respeito: primeiro, se eles aparentam ter a idade legal (caso não aparentem, retornam à condição de meninos); segundo, se é homem, livre e de nascimento conforme as leis e, caso o rejeitem por não se tratar de homem livre, ele pode apelar para o tribunal, ao passo que os démotas encarregam da acusação cinco de seus membros; se for considerado que a inscrição é indevida, o Estado vende-o, mas se ele ganhar, os démotas ficam obrigados a inscrevê-lo.» 7

    Em alguns momentos na história de Atenas houve maior ou menor ampliação da condição de cidadania, por exemplo, estendendo-a a determinado número de estrangeiros. Eventualmente, alguns ex-escravos podiam obter a cidadania, mas, em geral, tanto os estrangeiros quanto os escravos não eram considerados cidadãos. Assim, a famosa «democracia» grega exis­tia de fato, mas apenas para uma parte da população. 

    A cidadania foi uma grande conquista para os gregos livres, mas às custas de uma enorme população escrava que lhes dava condição estrutural de subsistência. Mais ainda, nas repúblicas gregas em geral, a condição de cidadania era, praticamente, derivada da condição econômico-social de não-escravo. Havia diferenças sociais entre os ho­mens livres considerados cidadãos, muitas vezes tão grandes que causavam lutas sociais intensas.

    Mas as tensões existentes em uma socieda­de onde a maioria era escrava e a cidadania era privilégio de uma minoria estavam abertamente ligadas à questão da liberdade. O homem livre economicamente era também o homem livre politicamente. A principal separação econômico-social entre homens livres e escravos era clara e diretamente refletida na definição da condição de cidadania política, e não oculta, como mais tarde iria se manifestar com o advento do capitalismo, onde essa separação seria distinta no ‘homo economicus‘ e no homem político.

    Esse movimento esporádico de extensão do direito de cidadania não alterava o critério básico de definição da figura do cidadão, nem seu aspecto seletivo. Mas sempre as instituições democráticas incluíam os cidadãos e excluíam os demais habitantes da república. Apoiada no modo de produção escravista, essa sociedade, quando faz discriminações entre homens livres e escravos, e levanta a possibilidade de alguns serem vendidos e outros não, de fato exclui da cidadania a maioria de seus habitantes.

    O historiador inglês Perry Anderson, basea­do em diversas pesquisas sabre o tema, afirma que o número de escravos giraria em torno de 80 a 100 mil, contra cerca de 45 mil homens livres em Atenas no período de Péricles, no século V a. C. Ele cita o comentário de Aristóteles a respeito: “os estados estão obrigados a ter inúmeros escravos8 e como Xenofonte elaborara um pla­no para restaurar a riqueza de Atenas baseado em que “o Estado tivesse escravos públicos na proporção de um para cada cidadão ateniense”, Aristóteles resu­miu a divisão social de forma clara: «O estado perfeito jamais admitiria o trabalhador manual entre os cidadãos, porque a maioria deles são hoje escravos ou estrangeiros». 9

    O trabalhador manual – quem de fato ga­rantia o sustento da sociedade inteira – estava excluído da cidadania. O trabalho não dava di­reito a ela. 

    O conceito de cidadania para os primeiros teóricos do liberalismo 

    Já os teóricos da burguesia inglesa, aquela que primeiro ascendeu ao poder, formulavam com muita clareza seus conceitos de liberdade e de indivíduo, cuja finalidade era desenhar os alicerces da nova sociedade em construção. O médico e filósofo inglês do seculo XVII, John Locke, foi quem primeiro teorizou as mudanças introduzidas pela Revolução Gloriosa de 1688, 10 e transformou-as em um sistema de doutrina política coerente, um liberalismo político adequa­do aos interesses da burguesia ascendente. A base de sua teoria era o primado do indivíduo, do qual derivou sua visão do individualismo liberal; para justificá-la, identificava como direito natural o di­reito a propriedade:

    O homem, nascendo, conforme provamos, com di­reito à perfeita liberdade e gozo incontrolado de todos os direitos e privilégios da lei da natureza, por igual a qual­quer outro homem ou grupo de homens do mundo, tem por natureza o poder não só de preservar a sua proprie­dade – isto é, a vida, a liberdade e os bens(…) O grande e principal objetivo, portanto, da união dos ho­mens em comunidades, colocando-se eles sob governo, é a preservação da propriedade. Para este fim, faltam mui­tas condições no estado de natureza. Primeiro, falta uma lei estabelecida firmada, conhecida, recebida e aceita me­diante consentimento comum, como padrão do justo e injusto e medida comum para resolver quaisquer controvérsias entre os homens.11

    Para Locke, a liberdade só merece esse nome quando garante o direito à propriedade. É a prin­cipal finalidade das leis que mudam o estado do homem do “estado de natureza” primitivo para livre e uma sociedade que o preserve enquan­to proprietário. 12

    Essa concepção, que tinha na sua raiz a luta contra os privilégios feudais e a defesa da pro­priedade burguesa contra os ataques arbitrários dos reis e da nobreza, também delimitava os parâmetros de cidadania para a nova sociedade: se liberdade é, em última instância, o direito à propriedade, os homens livres são aqueles que detêm a propriedade. Daí é fácil deduzir a origem da concepção do voto censitário, o direito ao voto somente àqueles que têm um determinado rendimento ou propriedade. Essa concepção é a de uma sociedade baseada na preservação da propriedade privada e na presença de uma instância política de deliberação formada apenas por indivíduos (ou cidadãos) que têm acesso à determinada forma de proprie­dade ou riqueza (a própria burguesia). Ela marcará toda a fase de ascensão da burguesia. 13

    O primeiro grande teórico do liberalismo econômico, Adam Smith, em A Riqueza das Nações, já defendia os pressupostos necessários para o livre desenvolvimento do capitalismo. Se o pressuposto fundamental era a superexploração dos trabalhadores, uma das condições mais importantes para que isso pudesse ser feito era impedir qualquer organização da clas­se operária. Cabia a cada cidadão como indivíduo buscar sua melhor recompensa no mercado:

    As pessoas da mesma profissão raramente se reúnem, mesmo que seja para mo­mentos alegres e divertidos, mas as conversações terminam em uma conspiração contra o público, ou em algum incitamento para aumentar os preços. Efetivamente, é impossível evitar tais reuniões, por meio de leis que possam ser cumpridas e se coadunem com o espírito de liberdade e justiça. Todavia, embora a lei não possa impedir as pessoas da mesma ocupação de se reunirem às vezes, nada se deve fazer no sentido de facilitar tais reuniões e muito menos torná-las necessárias. (…) O que torna tais reuniões necessárias é um regulamento que possibilita aos membros de uma mesma profissão a se imporem taxas, para cuidar do sustento de seus pobres, seus doentes, órfãos e viúvas, inspirando em todos um interesse comum.14

    Para Adam Smith, a associação de classe é nefasta, pois é contrária à liberdade individual, cria obstáculos para a iniciativa privada e impede a livre concorrência. Ele era categoricamente contra qualquer associação da classe operária, pois, segundo sua concepção, isso aumentaria ‘artificial­mente’ o poder dos trabalhadores para exigirem melhores salários. Mas Smith reconhecia que os patrões faziam esse tipo de reuniões (proibidas para os operários) para tramar a redução dos salários de seus trabalhadores, ainda que de maneira oculta:

    Muitas vezes, porém, os trabalhadores reagem a tais conluios com suas associações defensivas; por vezes, sem serem provocados, os trabalhadores combinam entre si elevar o preço de seu trabalho. Seus pretextos usuais são, às vezes, os altos preços dos manti­mentos; por vezes, reclamam contra os altos lucros que os patrões auferem do trabalho deles. No intuito de resolver com rapidez o impasse, os trabalhadores sempre têm o recurso ao mais ruidoso clamor, e, às vezes, à violência mais atroz.15

    Assim, os direitos individuais, para os teóricos do liberalismo, deveri­am se restringir à liberdade de fazer contratos de trabalho de acordo com que dispusesse o mercado, onde os operários poderiam ‘livremente’ ven­der sua força de trabalho ao preço que o mercado estivesse disposto a pagar, sem nenhuma interferência estatal, nem normas corporativas como as que haviam vigorado nas cidades medievais. 16

    Para prevenir qualquer “violência atroz” por parte dos trabalhadores, o Estado deveria tomar providências, como aconteceu na Inglaterra durante seculo XIX, com as leis contra a vadiagem e a perseguição aos ludistas e aos sindicatos. Essa liberdade era apenas aparente, pois as duas par­tes que estabeleciam o contrato não eram iguais entre si: uns eram proprietários e outros só dis­punham de sua força de trabalho. Como parte da visão liberal, deveria haver um sistema jurídico que legitimasse essa sociedade e fosse cum­prido obrigatoriamente por todos, primando a figura da ‘igualdade jurídica’, ou seja, «todos são iguais perante a lei».

    Essa deveria ser a base para impor as resoluções da burguesia aos setores ‘sem proprieda­de’, mas sob a aparência de uma decisão neutra, em benefício de todos. Esse tipo de contrato era a forma de obrigar os despossuídos a aceitar os termos dos exploradores. A outra cara dessa igualdade formal era a necessidade de impedir que interesses de determinados grupos ou clas­ses se sobrepusessem aos pretensos interesses da comunidade/sociedade. Daí a conclusão es­sencial para a concepção burguesa: se todos eram iguais perante a lei, era vedado o direito de ‘impor à sociedade’ aquilo que não estivesse previs­to em lei ou que fosse contrário ao decidido pe­los juízes. 

    Cidadania e revolução burguesa

    A cidadania foi uma ideia revolucioná­ria para a grande luta que varreu o feuda­lismo da face da Europa Ocidental en­tre os seculos XVII e XIX. Significa­ já o fim das distinções de “sangue” e títulos. Traduzia em uma pala­vra a ideia radical de acabar corn os privilégios da nobre­za e do clero durante a Ida­de Média. O filósofo Jean-Jacques Rousseau foi um dos oponentes mais radicais à manutenção dos privilégios e do Antigo Re­gime. Denunciava que os homens estavam divididos entre ‘cidadãos’ e ‘súditos’. Os súditos eram aqueles que, desprovidos de qualquer título ou não sendo de família nobre, estavam por definição, desde seu nascimento, condenados a obedecer, a servir seus superiores, os nobres e os reis, o que era injusto, segundo Rousseau. Isso contrariava o direito do homem à liberdade. 

    Para ele, ao se promover a igualdade jurídica, todos deveriam se transformar em ‘cidadãos’. E nenhum homem deveria mais ser diferencia­do do outro por sua origem ou seus títulos.

    Mas a burguesia, que se aproveitou dessa ideia em sua luta contra a nobreza e a monar­quia, resistentes à mudança, manteve apenas a dimensão ‘jurídica’ da igualdade. Uma das referências históricas mais importantes do conceito de cidadania está no lema da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. No entanto, no desenrolar dessa Revolução, a burguesia buscou li­mitar a distribuição do poder, da liberda­de e da riqueza. 

    A primeira Constituição pós-revolução, a de 1791, aboliu efetivamente os títulos e os privilégios jurídicos da nobreza e o uso de brasões, além de liquidar as propriedades do clero. Essas mudanças dão a dimensão da revolução que destruiu a ordem feudal. Assegurou a igualdade formal de todos os cidadãos, e estes não podiam mais tomar outro nome que não o do chefe de família. Mas, na mesma Constituição, apareceram as limitações que a burguesia impunha à nova ordem devido a seus interesses de nova classe privilegiada: a divisão entre cidadãos ativos e passivos. Os primeiros tinham direito a votar e ser votados. Os segundos, de acordo com um critério de rendimentos, não poderiam fazê-lo. Assim, a pri­meira Constituição introduzia o voto, mas sob o critério censitário. To­dos eram juridicamente livres. Ninguém mais era servo de ninguém. Mas os ativos tinham direitos políticos e os passivos não, sempre conforme o critério de propriedade.

    Apesar disso, foram feitas reformas profundas, entre elas, o fim da propriedade nobiliárquica e eclesiástica, o direito de expressão e opinião. Porém, elas eram apresentadas como a realização final da liberdade e da cidadania. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, enquanto colocava no papel uma série de preceitos democráticos que marcari­am uma nova época na história francesa e mundial, eternizava o “inviolável direito à propriedade”. 17 Os direitos do cidadão paravam no limite sagra­do do direito individual a propriedade. Apesar da abolição dos privilégios da nobreza e do clero, continuava a haver uma profunda desigualdade social, que partia do antagonismo em relação à propriedade dos meios de produção. Enquanto uma grande maioria não tinha a posse dos mesmos, uma minoria, a burguesia, não só detinha seu monopólio, coma utilizava a força de trabalho dos despossuídos para garantir a produção de mercadorias e extrair lucro.

    Os trabalhadores e a cidadania 

    A demonstração concreta da concepção burguesa de sociedade, ape­sar das declarações em prol da igualdade e da liberdade, foram as leis que buscavam impedir qualquer tipo de instituição que pudesse reduzir ou cercear a livre exploração do operário. Na Inglaterra, quando surgiram as Trade Unions (os primeiros sindicatos) e as greves, estes foram considera­dos uma ameaça à ordem, à liberdade e à cidadania, e punidos severamen­te com penas de prisão e repressão estatal. A burguesia percebeu que a força do movimento operário, desde o início de sua aparição na história, residia em sua ação coletiva ou, como a chamavam no seculo XIX, o direito de coligação ou coalizão, que se materializou na organização das Trade Unions

    Em O Capital, Karl Marx narra coma a luta contra as Trade Unions, travada pela classe dominante inglesa no seculo XIX, foi permanente e determinada:

    As leis cruéis contra as coligações dos trabalhadores faram abolidas em 1825, frente à atitude amearadora do proletariado. Mas apenas em parte (…). Finalmente, a lei de 29 de junho de 1871 pretendeu e!iminar os todos os vestígios dessa legislação de classe com o reconhecimento legal das Trade Unions. Mas numa lei do Parlamento, da mesma data, destinada a modi­ftcar a legislação criminal na parte relativa a violências, ameaças e ofensas, restabelece na realidade a situação anterior sob nova forma. Com essa escamoteação parlamentar, os meios que podem ser utilizados pelos trahalhadores em caso de greve ou lock-out foram subtraídos ao domínio do direito comum e colocados sob uma legislação penal de exce­çao, a ser interpretada pelos próprios fabricantes, em sua qualidade de juízes de paz.18 

    Marx demonstrou como era fundamental para a burguesia deixar o trabalhador isolado e reduzi­do a um indivíduo obrigado a se defrontar com o capitalista como tal, sem a posse dos instrumentos de trabalho, enquanto o capitalista detinha o poder econômico e politico. A cidada­nia burguesa tinha de ser apenas a igual­dade formal entre os indivíduos, que se materializaria nos direitos civis e no direito de voto (após duras lutas, como as dos sans-culottes na França, e dos cartistas na Inglaterra). A burguesia também resistiu ao sufrágio universal antes e depois das revoluções burguesas. Só depois de 70 OU 80 anos, os operários do sexo masculino con­quistaram o sufrágio universal, que seria estendido às mulheres apenas no século XX.

    Com a derrubada da nobreza, o indivíduo passava a ser proprietário de si próprio, o que correspondia, para a imensa mai­oria da população, a ausência de proprieda­de ou, ainda, a separação entre o trabalha­dor e os meios de produção.

    Privado dos meios de produção, ao tra­balhador só restava um caminho: buscar seus direitos por meio da ação coletiva, a única esfera em que poderia se opor ao capitalista na disputa pelos frutos do traba­lho. Sua unidade para impor a ameaça da ausência da força de trabalho (a greve) e obrigar o capital a recuar, embora parci­almente, era sua única arma. Exatamente por isso, o capitalista opunha-se decididamente ao direito de coligação ou de coalizão, a possi­bilidade de associação operária que pudesse se con­trapor à força do capital. Contra essa possibilida­de, os capitalistas sempre impuseram leis contra a classe operária, justificadas em nome da liberdade individual.

    Tão necessária era essa imposição para a classe burguesa, que Marx denunciou-a em seus escritos sobre a própria Revolução Francesa:

    Logo no começo da tormenta revolucionária, a bur­guesia francesa teve a audácia de abolir o direito de associação dos trabalhadores, que acabara de ser conquistado. Com o decreto de 14 de junho de 1791, declarou toda coligação dos trabalhadores um atentado à liberdade e à declaração dos direitos do homem: a ser punido com a multa de 500 francos e a privação dos direitos de cidadania por um ano.19 

    Marx refere-se à lei Le Chapelier, promulgada justamente após uma greve de operários de Paris de diversos setores profissionais, que reivindicavam a redução da jornada de trabalho e aumento salarial. Eles haviam fundado “sociedades fraternais” para defender-se da exploração e sustentar suas reivindicações, o que alarmou a burguesia. Cabe notar que essa lei era tão importan­te para os interesses estratégicos da burguesia que ela se manteve inalterada durante 70 anos. 20 Marx ressalta os pontos da lei em que estão colocados os interesses estratégicos da burguesia e como eles são uma continuidade de leis anteriores:

    O artigo 1° dessa lei diz: “sendo uma das bases fundamentais da Constituição francesa a eliminação de todas as espécies de corporações da mesma classe e profissão, fica proibido restabelecê-las sob qualquer pretexto ou qualquer fim”. 0 artigo 4° declara que “se cidadãos da mesma profissão, arte ou ofício tomarem deliberações, fizerem convenções, com o fim de conjuntamente se recusarem a fornecer os serviços de sua indústria ou seus trabalhos, ou de só os fornecer a um preço determinado, essas deliberações e convenções serão declaradas inconstitucionais, atentatórias à liberdade e a declararão dos direitos do homem, etc.”; 21 crimes contra o estado, portanto, exatamente como já previam os velhos estatutos contra os traba­lhadores. 

    Mesmo em plena luta revolucionária contra o Antigo Regime, com todo o povo francês lutando a seu lado contra a nobreza, a burguesia preocupava-se em não deixar espaço para a organização independente da classe operária. A introdução da cidadania para a burguesia triunfante significava garantir a liberdade individual e, em particular, a ‘liberdade’ do trabalhador como indiví­duo, dono de si próprio, pronto para ser livremente explorado. Essa era a questão mais importante e devia ser colocada acima e contra qualquer tenta­tiva de união de classe. Liberdade de expressão, sim, até mesmo direito de voto, mas não liberdade de associação de classe para reivindicar direitos que acarretassem qualquer obstáculo ao livre arbítrio do capital.

    Chama a atenção a semelhança de pontos de vista nesse campo entre os dirigentes burgueses da França e os liberais da Inglaterra dos seculos XVII e XVIII. Um dos argumentos mais usados pela burguesia era a necessidade de acabar com os “privilégios corporativos”. Até hoje, os sucessores dos liberais do seculo XVIII ainda usam estes mesmos argumentos e a oposição entre liberda­de individual e direito de associação para justificar sua postura contra a livre associação dos trabalhadores. 22

    Marx e Engels e a ótica de classe do proletariado

    Para a burguesia, a conquista da cidadania era também um objetivo revolucionário e traçava os limites aos quais era necessário ater-se para assegurar a estabilização da nova sociedade. Seria necessário o crescimento e experiência de lutas do proletariado na Europa para que outra visão de mundo come­çasse a se consolidar.

    Os primeiros socialistas e dirigentes das primeiras lutas operárias, entre o final do século XVIII e começo do XIX, ainda ti­nham uma visão permeada pelas concepções burguesas derivadas do desenvolvi­mento insuficiente das for­mas capitalistas nesse período, sem ultrapassar os limites do li­beralismo. Foram Marx e Engels, a partir de seu intenso contato com o movimento operário nascente e sua ruptura com o hegelianismo, que co­meçaram a elaborar uma ciência política do ponto de vista do proletariado, uma visão assumidamente de classe. Am­bos percebiam, por baixo da igualdade jurídica da sociedade burguesa, as diferenças entre as classes sociais como o eixo fundamental na definição dos interesses distintos que se chocavam.

    Para Marx e Engels, os interesses das classes em disputa punham em lados opostos empresários e trabalhadores, e estes últimos teriam como maior arma a presença enquanto coletivo. Isso só seria possível conquistar numa guerra social implacável contra a burguesia, que teria o interes­se de evitar essa união e, para isso, além de repri­mir o movimento operário, trataria de ocultar sua situação de classe, as diferenças de interesses soci­ais que atravessam a sociedade capitalista. Em re­sumo, a noção de cidadania opõe-se à de identida­de de classe; existem propostas e interesses distin­tos por trás de cada uma delas. 23

    A separação – segundo Marx – entre a arena econômica, onde a oposição capitalista-operário aparece mais claramente, é a arena politica, onde impera a figura do cidadão, que não guarda nenhuma relação aparente com a esfe­ra econômica, e um traço fundamental da concepção de cidadania promovida pela burgue­sia ascendente. Cidadania passa a ser uma cate­goria abstrata, desligada da práxis real e dos confli­tos inerentes à sociedade capitalista, 24 e ignora os processos reais que se dão na esfera da produção e da sociedade, para falar de um homem abstrato. Portanto, joga um papel de cobertura ideológica, de capa para os conflitos de classe que atravessam a sociedade.

    Essa situação predominante na gênese da ci­dadania na sociedade capitalista europeia sofreu modificações, em particular com o advento do mo­vimento operário de massas a partir da metade do seculo XIX. O surgimento de pode­rosos movimentos sociais com identidade de clas­se na Europa Ocidental e depois em todo o mun­do, e as conquistas parciais que arrancaram dos capitalistas e governos após lutas encarniçadas, foram de tal monta que modificaram a situação e impuseram, entre outras questões, que fosse acei­to o direito de organização sindical, assim como a extensão do direito de voto aos operários.

    Desde as três ultimas décadas do seculo XIX e em todo o transcorrer do seculo XX, o cenário para o movimento operário da Europa Ocidental capitalista havia se modificado com as conquistas sociais, democráticas e trabalhistas arrancadas nos principais países europeus até a Primeira Guerra Mundial, entre elas a jornada de 8 horas, o reco­nhecimento dos sindicatos de massa, o direito de voto e a organização e legalização dos grandes partidos socialistas ou laboristas.

    A origem da versão moderna de cidadania

    A Primeira Guerra Mundial, se por um lado causou uma derrota e uma divisão nas fileiras do movimento operário internacional, por ou­tro, ao aproximar-se do final, despertou uma onda de revoluções sociais que causou um forte impacto no mundo inteiro. Essa onda revolucionária foi freada e os trabalhadores impedidos de chegar ao poder político, com exceção da própria URSS.

    Nos países capitalistas, era necessário, para a burguesia, canalizar o descontentamento social das massas, para que o regime pudesse voltar a se estabilizar na Europa e assegurar a recomposição dos estados capitalistas abalados pela guerra e os movimentos de massa em luta armada contra o nazi-fascismo. Aplicou-se então o Plano Marshall, a política de financia­mento direcionada aos novos governos europeus, com vistas a que pudes­sem reconstruir suas economias arrasadas e proceder às reformas sociais do assim chamado welfare state

    Um dos países que mais simbolizou essa política de estender direitos soci­ais aos setores operários atingidos pela crise e pela guerra foi a Inglaterra. Ao final da guerra, mesmo saindo vitoriosa do conflito, a Inglaterra sofria uma grande pressão social por parte dos trabalhadores. Após grandes sacrifícios, a classe operária inglesa sentia-se vitoriosa e reivindicava melhorias imediatas em seu padrão de vida. Um sintoma do estado de espírito reinante foi a derrota de Churchill, o condutor da guerra contra Hitler, na primeira eleição logo após o final da guerra, justamente para os laboristas, que propunham a introdução ou melhoria dos serviços públicos, dos direitos sociais e a intervenção estatal na economia para impulsionar a recuperação.

    O sociólogo T.H. Marshall, então, retoma a noção de cidadania. Tratava de dar conta da nova realidade criada pelas modificações impostas às relações sociais e politicas após um seculo de lutas operárias e populares, com a irrupção e extensão do movimento operário internacional durante o seculo XX e, em particular, a vitória contra o nazi-fascismo e as conguistas sociais que daí se seguiram. Marshall fez um esforço por adequar formulações anteriores sobre os direitos políticos e sociais à situação do capitalismo britânico do pós-guerra. Para isso, ressuscitou a bandeira da cidadania.

    Com o fim da Segunda Guerra, a burguesia viu-se obrigada a recorrer a medidas que em outros tempos seriam chamadas de ‘socialismo’ ou ‘intromissão’ do Estado na vida das pessoas, ao assumir os direitos sociais e serviços básicos, como educação, saúde e habitação. A concepção de cidadania deveria ter um verniz diferente; não podia basear-se na mesma visa que trazia desde o seculo XVIII, mas incluir os novos direitos sociais, mesmo que colocando os limites que sua adoção não deveria ultrapassar: as fronteiras da sociedade capitalista. Algumas das ideias de Marshall tiveram grande influência posterior na retomada da formulação de cidadania e para tentar compreender a evolução social a partir dela. Para isso, fez um histórico do desenvolvimento da cidadania moderna, divi­dindo-a em três partes: a civil (direitos individuais básicos), a política (participação no poder politico) e a social (bem-estar econômico e segurança). 25 

    Marshall considerava a aceitação pela burguesia da cidadania social fruto da própria evolução econômica, do interesse que a burguesia teria em aumentar a produção de bens de consumo e fortalecer o mercado interno, mesmo que para isso tivesse de enfrentar um maior poderio do movimento operário or­ganizado nos sindicatos. Ele insiste em que as medidas destinadas a elevar o nível de civilização dos trabalhadores não deveriam interferir no livre funcionamento do mercado. Na verda­de, a tese de Marshall é uma adaptação da concepção da cidadania burguesa clássica aos tem­pos do pós-guerra e do welfare state. Reflete um período em que as conquistas no terreno dos di­reitos sociais ampliaram-se e pareciam tender a uma generalização, e a burguesia europeia foi obri­gada a ceder aos trabalhadores para poder estabi­lizar os regimes políticos.

    Pietro Barcellona, em seu texto A estratégia improvável da cidadania, 26mostra que o centro da noção de cidadania em Marshall é atribuir a essa categoria um novo significado – de acesso dos membros da comunidade a direitos sociais básicos que permitam integrar os setores mais pobres à sociedade, dar-lhes um sentido de inclusão, à medida que no próprio status de cidadão estejam incorporados determinados di­reitos sociais e isso possa diminuir a desigualda­de social.

    Marshall tenta demonstrar que não haveria uma contradição entre uma política de universalização progressiva de direitos sociais e a lógica do sistema capitalista. E dava como per­manente algo que era imposto pela relação de forças daqueles anos. As conquistas não decor­riam de uma conversão das classes dominantes, mas uma adaptação aos tempos atípicos do pós-guerra. Se era compreensível que houvesse uma confusão quanto a isso entre 1950 e 1980 na Europa Ocidental, hoje, nos tempos do neoliberalismo, reaparece com toda a crueza a contradição entre uma ideia de progressiva cida­dania social cada vez mais estendida e a realida­de imposta pela lógica do mercado na sociedade capitalista.

    Para onde nos leva essa política?

    Qual é o problema de fundo que a concepção de cidadania omite? Que a sociedade é dividi­da em classes. Que existem cidadãos proprietários dos meios de produção e cidadãos despossuídos. Os interesses da maioria explo­rada não são os mesmos da minoria explora­dora. Os lucros de uns implicam na miséria de outros. Essa minoria continua governando por­que tem a seu favor o aparato de Estado, os governos, os congressos, as Forças Armadas; enquanto os trabalhadores, apesar de serem maio­ria, só contam com sua própria organização e consciência para reagir e lutar. Omitir essa oposição em nome de uma pretensa igualdade entre todos a ser atingida na sociedade atual desvia os explo­rados da busca da necessária unidade de classe para acabar com a exploração. E deixa-os à mercê do canto de sereia por uma saída conjunta com seus exploradores, sem radicalismos

    No movimento sindical, a ideologia da ci­dadania, em nome de ‘abrir o sindicato à soci­edade’, prega a colaboração entre trabalhadores e empresários; e a ideia do sindicato cidadão, que deveria participar lado a lado com os pa­trões na defesa do emprego, na luta contra a miséria, ou o analfabetismo. É o que vem fazen­do a direção da CUT brasileira, que há muito abandonou o discurso classista da década de 80 para adotar uma proposta de parcerias e progra­mas integrados de ‘inclusão social’. Exemplo dessa política foi o projeto conjunto (Travessia) entre o Sindicato dos Bancários de São Paulo e os banqueiros americanos do Bank of Boston, que se propuseram a trabalhar com meninos de rua para melhorar o problema da violência e da exclusão no centro de São Paulo. Essa política começa assim e culmina com a negociação per­manente, concretizada nos acordos tripartites entre as centrais, governos e empresários, im­postos aos trabalhadores, como fazem as cen­trais europeias e as câmaras setoriais.

    A real situação dos trabalhadores demons­tra, ao contrário, que para lutar por esses direi­tos mínimos, que qualquer cidadão mereceria ter, necessita-se uma organização independen­te dos trabalhadores contra a reação burgue­sa! Essa organização independente, política e sindical, pressupõe uma consciência de clas­se e uma ação classista. Do contrário, não se travará a luta.

    A batalha contra o neoliberalismo hoje exige uma luta de classes sem trégua. A estratégia da cidadania, que se propõe a defender os direitos conquistados sob esse nome, difunde a visão no interior do movimento operário de que seja possível uma melhoria para todos baseada na parceria, na ação conjunta de toda a sociedade. É a velha política da colaboração de classes com outra roupagem. O resultado é o que se vê na ação da social-democracia e centrais sindicais europeias, que nem sequer conseguem de­fender os direitos sociais remanescentes em base a essa estratégia.É uma dialética implacável. A cidadania, algo que se considera pleno e de toda a sociedade, só poderá ser realmente alcançada com uma política de classe, ou seja, de uma parte desse todo que aponta uma saída anticapitalista para o conjunto. A colaboração de classes, a defesa da união de todos pelo bem comum, a aceitação do poder estatal burguês travestido de Estado de Direito como único horizonte possível, além de utópica, não permite sequer a defesa consequente desses direitos. É como se todas as contradições do sistema capitalista-imperialista pudessem ser re­solvidas mediante a conscientização, as ações locais e o convencimento pelo diálogo. Seria fácil. Mas o capitalismo não deixa saída. A história da humanidade moderna continua sendo a história da luta de classes.

    Notas

    1. El Mundo, 10/11/1999 ↩︎
    2. Manifesto de Daniel Cohn Bendit. Por uma Terceira Esquerda Verde, Le Monde 26/2/2000. ↩︎
    3. Vide a proposta de Moção de Orientação apresentada pela Mesa Promotora do Bloco de Esquerda. ↩︎
    4. «As redes que incentivam as marchas contra o desemprego e a organização de conferên­cias intercidadãs como contraponto às conferên­cias intergovernamentais que constroem a Europa neoliberal, revelam uma resistência que está em construção… Mas teria então que adotar uma democracia individual e coletiva que permitisse aos cidadãos, homens e mulheres, e aos povos, o controle dos meios e fins dessa construção.» Samary, Catherine, «De las crisis de las sociedades realmen­te existentes a la uropía socialista» in Monereo, Manuel e Chaves, Pedro (orgs.). Para que el socialismo tenga futuro, El Viejo Topo, 1999, p.117. ↩︎
    5. Jüergen Habermas, «Nos Limites do Estado», artigo publicado na Folha de S. Paulo, caderno
      Mais, 18/07/1999. ↩︎
    6. Démota: membro do demo (tribo). ↩︎
    7. Aristóteles, A constituição de Atenas. SP, Hucitec, 1995, p. 87. ↩︎
    8. Perry Anderson, Transiciones de la Antiguedad al Feudalismo. México, Siglo XXI, 1996, p. 33. ↩︎
    9. Aristóteles, Política. Madrid, Espasa-Calpe, 1972, III, iii, p.2. ↩︎
    10. A Revolução Gloriosa de 1688 foi a que permitiu a ascensão da burguesia inglesa ao poder, desta vez de forma definitiva. ↩︎
    11. John Locke, «Formas de Governo». ln Wcffort, Francisco (org.). Clássicos da Política. São Paulo, Ática, p. 199. ↩︎
    12. Idem ↩︎
    13. «Agora, do lado capitalista, na propriedade revela-se o direito de apropriar-se de trabalho alheio não pago ou do seu produto, e, do lado do trabalhador, a impossibili­dade de apropriar-se do produto de seu trabalho. A dissociação entre proprie­dade e trabalho é consequ­ência necessária de uma lei que claramente derivava da identidade existente entre ambos.» (O Capital, Livro I, vol.2, SP, Difel, 1982, 8ª ed., p. 679). ↩︎
    14. A Riqueza das Nações, vol. 1. São Paulo, Abril Cultural, 1978, p.140. ↩︎
    15. Idem, ibidem, p.104. ↩︎
    16. Como a passagem do servo para o cidadão separa o homem ‘político’ do ‘econômico’. «No fêudalismo não havia uma definição clara entre poder econômico e político; a relação entre o senhor e o servo era indistintamente econômica e política: não existia uma diferença entre o status econômico e seu status político; a servidão impli­cava em uma inferioridade tanto econômica quanto política. So­mente no capitalismo surge uma diferença clara entre econômico e o político, o surgimento desta. diferença é parte integrante da mudança na forma de exploração. No feudalismo se explo­rava os trabalhadores numa estreita relação com o senhor, que exercia um domínio total sobre eles (…) Esta mudança na forma de exploração implica em mudanças fundamentais entre a classe exploradora e a classe explorada. A relaçãode exploração já não se estabelece através da servi­dão por toda a vida, senão através… da compra e venda de trabalho. O operário encontra-se ‘livre’. Esta liberdade implica que o explorador imediato não pode exercer a mesma coerção que o senhor feudal exercia sobre seus trabalhadores. Um capitalista não pode normalmente encarcerar seus operários nem condená-los à morte. No entanto, está claro que se necessita de fato coerção física em qualquer sociedade para manter a ‘ordem’, a ordem da classe dominante. Ao contrário das sociedades anteriores, esta coerção … encontra-se no capitalismo separa­da do processo imediato de exploração e se localiza em uma instância diferente: no Estado.» (…) Através de um longo pro­cesso histórico, o servo feudal converteu-se em dois personagens diferentes: por um lado, trabalhador assalariado; por outro, cidadão». Holloway, John. Marxismo, Estado y Capital. Buenos Aires, Cuadernos del Sur, 1994, pp.108-109. ↩︎
    17. «A livre comunicação dos pensamentos e opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo pelo abuso da liberdade, nos casos determinados pela lei.»(artigo 11). «E, finalmente, o direito mais importante para os constituintes, representantes da burguesia: o direito ‘à propriedade, direito inviolável’» Ostermann, Nilse Wink, Às armas, cidadãos! São Paulo, Atual Editora. 1995, p.49. ↩︎
    18. Karl Marx, O Capital, Livro 1, vol.2. São Paulo, Difel, 1982, p. 858. ↩︎
    19. Karl Marx, op. cit., p. 859. ↩︎
    20. Manfred, A. A Grande Revolução Francesa. 2″ edição, SP, Ícone Editorial, 1986, p. 96. Também descrito em Bernard Epin et alli. A Revolução Francesa: Ela inventou nossos sonhos. SP, Brasiliense, 1989, p.44. ↩︎
    21. Karl Marx, op. cit., p. 859. ↩︎
    22. Milton Friedman é claro: «Na área econômica, um problema importante surge a respeito do conflito entre a liberdade de se associar e a liberdade de competir. (…) Talvez o problema específico mais importante neste caso, diga respeito à associação de trabalhadores, onde o problema da liberdade de associar-se e da liberdade de competir apresenta-se de modo mais agudo.» Friedman, Milton. Capitalismo e liberdade. SP, Abril, 1984, p. 83. ↩︎
    23. «A ‘guerra permanente entre a burguesia e o proletariado’ é uma característica da sociedade capitalista moderna. Por isso, quando o operário desperta, em geral para lutar contra a exploração, ou melhor dito, contra os efeitos da exploração capitalista, como os baixos salários ou a extensão da jornada ou diferentes tipos de opressão (trabalho feminino, infantil, etc.); então, ele é obrigado a assumir movimentos coletivos, pois sozinho estará submetido aos desígnios do capital. A ação conjunta proletária é a reação contra a guerra social que lhe é movida, e necessariamente se enfrenta ao capital.» F. Engels, Prefácio de A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. SP, Paz e Terra. 1982, p.12 ↩︎
    24. «O homem real só é reconhecido sob a forma de indivíduo egoísta; o homem verdadeiro, apenas sob a forma de citoyen abstrato.» Marx denuncia, neste enunciado, que a burguesia quer limitar o homem, na sua vida cotidiana, àquele individuo isolado, que compete com os demais, e deixa a atividade política para o cidadão. Como cidadão, o homem torna-se público, passa a pensar no interesse coletivo, como se se pudesse separar um do outro.» Cf. «A Questão judaica«, ln Octavio Ianni, (org.). Marx-Sociologia, São Paulo, Ática, 1992, p. 196 ↩︎
    25. T. Marshall. Cidadania, Classe Social e status. R.J., Zahar Editores, 1967, p.63. ↩︎
    26. Pietro Barcellona, O egoísmo maduro e a insensatez do capital. São Paulo, Ícone Editorial, 1996. ↩︎

    Publicado em junho de 2000 na revista Marxismo Vivo.

  • Cidadania, democracia e sociedade civil, o retorno de Eduard Bernstein

    Cidadania, democracia e sociedade civil, o retorno de Eduard Bernstein

    A falência do modelo neoliberal, a crise do capitalismo global e o colapso do stalinismo nos últimos anos do século XX – e ainda mais neste início do século XXI – combinaram-se com o ascenso de poderosos movimentos de contestação antiglobalização e de trabalhadores, camponeses e indígenas contra as condições de vida impostas pelo neoliberalismo. Assim, gera-se uma efervescência política em relação a um programa alternativo ao capitalismo imperialista.

    Por José Welmowicki

    O Fórum Social Mundial é uma expressão dessa intensa busca por um projeto alternativo. No entanto, as propostas apresentadas por suas principais referências até agora se baseavam em teorias que buscavam reformar ou humanizar o capitalismo. Conceitos como “sociedade civil”, a conquista da “cidadania, democracia radical” passaram a substituir – dentro da elaboração de diversas correntes de esquerda – o conceito de luta de classes. A própria ideia de revolução socialista é rejeitada. Seu lema é “Outro mundo é possível”, sem definir qual é o caráter desse outro mundo nem como alcançá-lo. Algumas dessas correntes, que anteriormente se posicionavam como marxistas, propõem “atualizar o marximo» sob essas bandeiras. A característica mais geral é que rejeitam a revolução socialista e propõem-se a mudar o mundo por uma via reformista em nome da “justiça, do direito universal” e da transformação democrática do Estado. Propõem, como linha de orientação política, a “democracia participativa” ou “radical”, ou seja, a ampliação dos direitos e dos espaços democráticos do Estado burguês por meio de uma maior participação popular.

    Porém, seus autores sempre omitem a origem dessas ideias. Em geral, apresentam-nas como elaborações originais, como fruto das modificações da realidade, como a globalização, ou como fruto de uma reflexão, de um repensar da teoria socialista frente aos impasses pós-queda do muro de Berlim. Tentam se apresentar como uma saída renovadora, após o colapso do stalinismo. Correntes social-democratas, stalinistas, ex-stalinistas e até algumas que ainda se reivindicam do marxismo revolucionário atribuem a Lenin – ou a outros – os desastres dos chamados países socialistas e do stalinismo em geral e, assim, justificam suas posições cada vez mais defensoras da “sociedade democrática”.

    Ao apresentarem-se como formulados a partir de uma “nova estratégia socialista”, tentam ocultar sua dívida com pensadores e correntes de esquerda bastante anteriores, que em sua imensa maioria já haviam escrito posições semelhantes.

    A origem histórica do primeiro revisionismo

    Bernstein foi o primeiro teórico oriundo do movimento operário a elaborar uma revisão completa do marxismo, adaptada às perspectivas da burocracia sindical e política e da intelectualidade reformista, que já tinham grande influência no seio do Partido Social-Democrata alemão. Essa posição era minoritária entre os dirigentes do partido social-democrata no final do século XIX. Somente após a Primeira Guerra Mundial passou a dominar, teorica e politicamente, o partido. Por isso, Bernstein tentou, a princípio, apresentar suas ideias como uma atualização e correção parcial das posições de Marx e Engels, para aparecer como um seguidor crítico do marxismo – e não como alguém frontalmente contrário às suas posições. 1

    Essa primeira reação no seio do movimento operário e do marxismo – contrária às posições marxistas revolucionárias – incorporava a visão liberal-burguesa (sob outro nome) para justificar seu reformismo. Era, como não se cansava de afirmar em sua defesa, a expressão programática de uma prática, cada vez mais presente na intervenção política diária dos organismos do partido alemão, em uma época de luta por reformas que durou desde o último quarto do século XIX até o início do século XX e que acostumou o partido social-democrata à vida legal e às conquistas graduais. Seu encanto pela democracia burguesa provinha dessa expressão material, pela via reformista: sua renúncia a levantar antagonismos de classe, sua crença na moral e no possível idealismo desinteressado de todos os setores da sociedade. Em suma, sua aceitação da realidade da ordem burguesa vigente – do parlamento, do direito e da justiça burguesa – como horizonte e limite da prática e da luta social-democrata. Suas posições teóricas e programáticas assentavam-se numa inquestionável coerência com essa visão política de transformação gradual rumo a uma sociedade mais justa dentro da ordem vigente. Por isso, com razão, seus críticos no partido – em particular Rosa Luxemburgo – qualificavam-no de “revisionista” do marxismo.

    As principais posições de Bernstein: cidadania e emancipação de classe

    No principal texto de Bernstein, As premissas para o socialismo e as tarefas da social-democracia, 2 é sintomático como já aparece a luta “pela cidadania” como substituta da luta “pela emancipação do proletariado”. Uma característica de sua posição é negar a ideia de uma classe em nome de uma cidadania a ser alcançada: “A social-democracia não deseja aniquilar essa sociedade e fazer de todos os seus membros novos proletários; trabalha quase incessantemente para elevar o trabalhador, de uma posição social de proletário, à posição geral de cidadão e, assim, fazer da cidadania um direito universal”. Isso, segundo Bernstein, seria alcançado pela ampliação dos direitos dos setores desfavorecidos.

    A consequência política dessa posição era aceitar a ordem burguesa, pois, ao considerar a “cidadania” como o estado superior para todas as classes, significava aceitar a sociedade burguesa como a sociedade humana, como bem replicava Rosa Luxemburgo: “quando (Bernstein) usa a palavra cidadão, sem distinções, para se referir tanto ao burguês quanto ao proletário, querendo com isso referir-se ao homem em geral, identifica o homem em geral com o burguês e a sociedade humana com a sociedade burguesa”. 3

    Comparando com os atuais defensores da cidadania como estratégia, fica claro que a lógica é a mesma: nega-se o antagonismo de classe, nega-se a contradição estrutural entre burguesia e proletariado, para justificar a possibilidade de avançar em direção a uma sociedade justa sem romper com o capitalismo, sem expropriar os meios de produção, com a ampliação contínua dos direitos individuais e sociais. Assim como os atuais estrategistas da cidadania, em vez de derrotar a burguesia, Bernstein pensava em alcançar uma civilização superior sem destruir o capitalismo, que deveria ter uma construção independente e por cima das classes.

    Colocar a cidadania como horizonte superior exigia a aceitação de leis e procedimentos no interesse de todos, o que acabava conduzindo apenas à defesa da reforma da ordem vigente. Já discutimos em um artigo anterior 4 que também aqueles que defendem a cidadania planetária – como a ATTAC, um dos principais motores do Fórum Social Mundial – aplicam, em escala internacional, essa mesma lógica que identifica a cidadania em um país com a aceitação da ordem capitalista. Por isso, dirigem seus esforços para fazer da ONU um governo democrático mundial, assim como propõem que os estados mudem seu papel e adquiram mais força frente àqueles que manejam os mercados internacionais. 5

    A sociedade civil para Bernstein

    A visão de Bernstein sobre a sociedade civil tinha a mesma base teórica: a redução da sociedade a uma soma de indivíduos que podem se desenvolver de forma harmônica. Ele sustentava que todas as classes possuem um interesse comum na manutenção e no aperfeiçoamento dos valores civilizados, e que esse interesse comum seria o objetivo da atividade política.

    Para Bernstein, os valores da “sociedade civil desenvolvida” continham e transcendiam todos os interesses e pontos de vista setoriais, de classe. “A moralidade da ‘sociedade civil desenvolvida’ de forma alguma é idêntica à moralidade da burguesia”.

    Em Socialismo evolucionário, Bernstein chamava a atenção para o fato de que a palavra alemã “bürgerlich” significava tanto “civil” quanto “burguesa”, e que essa ambivalência linguística teria criado a falsa impressão de que, ao clamar pela abolição da sociedade burguesa, os socialistas também estariam exigindo o fim da sociedade “civil”.

    Os social-democratas de hoje costumam usar essa mesma referência:

    A sociedade civil que queremos criar é uma sociedade de liberdade e autodeterminação, de solidariedade e de justiça. Uma sociedade que não seja dominada por uma classe, mas que confere aos cidadãos soberanos sua independência e responsabilidade próprias”. Assim proclamava, em seu discurso, o presidente do Partido Social-Democrata (SPD) da Alemanha, o chanceler Gerhard Schröder, em comemoração ao 125º aniversário do “Congresso de Unificação” (Congresso de Ghota) dos Eisenachianos com os Lassalleanos, origem do moderno SPD. 6

    Bernstein e a democratização do Estado

    Para Bernstein, o Estado burguês moderno, democrático, era a concretização da civilização, dos interesses de todos os homens, desvinculado das lutas de classes. A democracia burguesa era associada à “ausência de governo de classe” – ou seja, um governo que podia e devia ser aperfeiçoado, mas sem romper suas regras básicas. O texto a seguir ilustra o pensamento bernsteiniano:

    «Esta pergunta envolve outra. O que é o princípio da democracia? A resposta parece muito simples. Para começar, pensar-se-ia ficar tudo acertado com a definição: ‘»‘governo pelo povo’. Mas mesmo uma pequena meditação logo nos diz que, por essa definição, apenas nos é dado um conceito muito superficial e puramente formal, enquanto a maioria das pessoas que hoje usam a palavra democracia a entendem por algo mais do que uma simples forma de governo. Estaremos muito mais próximos da definição se nos exprimirmos negativamente e considerarmos a democracia como uma ausência de governo de classes, como indicação de uma condição social onde um privilégio político não pertence a qualquer classe, em oposição à comunidade inteira.«

    «A idéia de democracia inclui, no conceito contemporâneo, uma noção de justiça – uma igualdade de direitos para todos os membros da comunidade e, nesse princípio, o governo da maioria, para o qual, em todos os casos concretos, a vontade da maioria se estende e encontra seus limites.«

    É claro que democracia e ausência de leis não são a mesma coisa. A democracia distingue-se de outros sistemas políticos não pela ausência de leis em si, mas pela ausência de leis que criem sanções ou limitem direitos individuais com base na propriedade, nascimento ou confissão religiosa. A democracia é tanto o meio quanto o fim. É uma arma de luta pelo socialismo e a forma pela qual o socialismo se realizará. É claro que ela não pode realizar milagres.7

    Para Bernstein, o socialismo era “o legítimo herdeiro do liberalismo”. Para ele, “Não existe hoje um pensamento realmente liberal que não pertença também aos elementos do ideário socialista”. Por isso, quando várias personalidades da esquerda de hoje defendem “a democracia como valor universal”, sem qualquer definição de classe, convém lembrar que Bernstein já tinha essa concepção muito clara em seu pensamento no final do século XIX.

    Rosa Luxemburgo contestou frontalmentre essa visão: “Quando (Bernstein) fala do caráter humano geral do liberalismo e transforma o socialismo em uma variante do liberalismo, priva o movimento socialista (em geral) de seu caráter de classe e, portanto, de seu conteúdo histórico; o corolário disso é que se reconhece na classe que representa historicamente o liberalismo – a burguesia -, a campeã dos interesses gerais da humanidade.8

    Para Bernstein, o Estado não era necessariamente – nem, em geral, deveria ser – o instrumento de dominação de classe. Era o meio pelo qual a barbárie e a desumanidade poderiam ser eliminadas, onde os princípios da civilização avançada poderiam ser impostos a todos os aspectos da vida pública. Essa expansão da civilização, para ele, deveria ser o objetivo último da social-democracia, embora admitisse, em última instância, que quando a classe operária era sistematicamente excluída da arena política, não teria outra opção senão a luta revolucionária. Mas, se e quando a democracia fosse alcançada e todas as classes pudessem participar dos direitos civis e políticos, então seria possível atender às reivindicações dos trabalhadores por meios políticos normais e estabelecer compromissos políticos com base no “interesse comum”. O primeiro objetivo do movimento socialista deveria, por isso, ser a democracia plena, e é significativo que Bernstein definisse a democracia como “a ausência de um governo de classe”. 9

    Essa concepção era contrária à essência da teoria marxista, que analisava tudo tendo como referência a dominação de classe e, no caso da sociedade capitalista, da dominação burguesa. Para Marx e Engels, todo Estado burguês – por mais democrático que fosse – correspondia a uma ditadura da burguesia. Lenin, em O Estado e a Revolução, deixava claro a necessidade de destruir a máquina estatal burguesa e revolucionar toda a superestrutura, construindo um Estado proletário, pela destituição e expropriação da burguesia, como demonstrado pela experiência da Comuna de Paris.

    A atualidade do revisionismo de Eduard Bernstein: a esquerda e a democratização do Estado

    A proposta de democratização do Estado é uma matriz de pensamento comum, atualmente, a uma gama de posições de esquerda que vão desde a social-democracia em todas as suas variantes (Terceira Via e outras) até o PC francês e o PT brasileiro, incluindo diversos ex-comunistas e setores que participam do FSM.

    Para sustentar essa posição, alguns teóricos trabalharam o tema da defesa de uma sociedade democrática em contraposição a todas as sociedades “totalitárias”. Ou seja, a diferença seria dada pelo regime político e não pela natureza de classe. Outros defendem o que chamam de revolução democrática, tentando reformular teoricamente a problemática da revolução socialista. Ambas as correntes incorporam formulações de Bernstein e suas consequências, influenciando, na mesma direção reformista, várias correntes da esquerda atual.

    Claude Lefort, ex-membro do antigo grupo Socialismo ou Barbarie, fundado por Castoriadis e outros ex-trotskistas dos anos 50, destacou-se por tentar fazer da crítica ao stalinismo um ponto de partida para negar o marxismo, buscando nele uma suposta raiz para o “totalitarismo”. Para isso, Lefort realiza uma leitura peculiar dos textos de Marx, nos quais define o Estado e os direitos burgueses, como na Questão Judaica, na Ideologia Alemã e outras obras.

    Depois de recriminar Marx por sua “desprezo aos direitos humanos”, Lefort defende a superioridade da “sociedade democrática”, onde, segundo ele, “haveria um espaço vazio no poder, sem ser ocupado por ninguém – nem classes nem partidos”.

    Ora minha convicção continua sendo a de que só teremos alguma oportunidade de apreciar o desenvolvimento da democracia e as oportunidades para a liberdade com a condição de reconhecer na instituição dos direitos do homem os sinais do nascimento de um novo tipo de legitimidade e de um espaço público no qual os indivíduos são tanto produtos quanto instigadores; com a condição de reconhecer, simultaneamente, que esse espaço só poderia ser devorado pelo Estado ao custo de uma violenta mutação que daria nascimento a uma nova forma de sociedade.” 10

    São os enunciados que sempre são tomados como alvo dos críticos dos direitos do homem, particularmente o mais virulento entre eles, Marx, que persegue todos os sinais do individualismo e do naturalismo para lhes atribuir uma função ideológica. Na liberdade de ação, na liberdade de opinião, garantidas a cada um, na segurança individual, Marx só demarca a instalação de um novo modelo que consagra ‘a separação do homem com o homem’ e, mais a fundo, ‘o egoísmo burguês’.11

    Lefort alega que Marx ignora a subversão das relações sociais e políticas encoberta pela representação dos direitos. Para ele, os direitos do homem suscitam uma nova rede de relações entre os homens, a sociedade democrática. Reivindica Tocqueville como precursor, que foi além nessa análise. Entre outros, Lefort influenciou Tarso Genro, atual prefeito de Porto Alegre e teórico – além de importante dirigente do PT brasileiro – de formulações – defensivas – da “sociedade democrática” e do Estado de Direito:

    «Abordarei o tema ‘instituições políticas do socialismo’ como instituições políticas de um Estado democrático de direito, que abram perspectivas para um projeto socialista democrático, e não como instituições de um Estado ‘totalmente outro’, para usar uma expressão de Claude Lefort. Faço isso porque acredito ser arriscado avançar mais do que isso. Diante da total inoperância dos sovietes, parece imprudente partir dessa instituição política da democracia direta para pensar um novo Estado. […] É necessário, pois, reinventar a democracia para repor a confiança da sociedade nas instituições políticas do Estado democrático»,

    Não se pode negar a clareza do posicionamento de Genro, que recusa o caminho dos sovietes (ou seja, de um Estado operário) para optar pela democratização radical do Estado burguês.

    Outros teóricos, como Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, defensores do que chamam de “revolução democrática” – na verdade outro nome para a democratização radical do Estado – tiveram grande influência na esquerda latino-americana, utilizando praticamente os mesmos argumentos.

    A discussão entre Mouffe e Laclau parte da questão do que eles chamam de “reducionismo de classe”. Em seu texto “Hegemonia e radicalização da democracia”, esses autores afirmam que:

    (…) “a alternativa da esquerda deve consistir em se posicionar plenamente no campo da revolução democrática (…). Do ponto de vista da determinação dos antagonismos fundamentais, o obstáculo básico tem sido, como vimos, o caráter de classe – ou seja, a ideia de que a classe operária representa o agente privilegiado no qual reside o impulso fundamental da mudança social...” 12

    A conclusão sobre a revolução democrática é que ela não é necessária no momento da tomada do poder, a não ser nos termos que Bernstein propunha (vide acima), ou seja, no caso de um regime em que a liberdade civil esteja comprometida; para Laclau e Chantal Mouffe, não se trata de uma revolução social contra o sistema capitalista de classes, pois isso seria, segundo eles, cair em uma visão reducionista. Seus autores preferem se posicionar no campo da democratização radical da sociedade, que nada mais é do que a ampliação dos direitos sociais e políticos, a reforma do Estado vigente – isto é, o aperfeiçoamento dentro dos marcos do Estado, desde que este seja democrático de direito.

    A importância de suas elaborações pode ser vista pela influência nas propostas da maioria do PT brasileiro, que estão explicitadas nas resoluções do primeiro Congresso, em 1991:

    Para o PT, o socialismo é sinônimo de radicalização da democracia. […] Por isso, encaramos a democracia política, econômica e social como a base constitutiva de nossa sociedade. O socialismo pelo qual o PT almeja prevê, portanto, a existência de um Estado de Direito no qual prevaleçam as mais amplas liberdades civis e políticas […]. Nossa perspectiva, entretanto, não se limita à democratização e à socialização da política apenas a partir do Estado. Nosso objetivo é construir, no socialismo, uma esfera pública na qual a ‘política’ não se restrinja às iniciativas estatais-institucionais,… na perspectiva de que a população se aproprie de funções hoje reservadas às esferas estatais-institucionais, exercendo em plenitude uma nova cidadania.” 13

    Reforma ou revolução? A atualidade da crítica de Rosa Luxemburgo

    Para Bernstein, revolução era sinônimo de “blanquismo” – no capítulo II, item b de seu livro Marxismo e Blanquismo, ele afirma:

    Na Alemanha, Marx e Engels, trabalhando sobre a base da dialética hegeliana, chegaram a uma doutrina muito semelhante ao blanquismo. 14 O herdeiro da burguesia só poderia ser sua contrapartida mais radical, o proletariado, esse produto intrínseco da economia burguesa. As exigências da vida econômica moderna eram totalmente desprezadas e a força relativa das classes e suas práticas de desenvolvimento eram completamente superestimadas. Ainda o terrorismo proletário – o qual, dado o estado das coisas na Alemanha, poderia apenas manifestar-se em forma destrutiva e, portanto, desde o primeiro dia em que estivessem atuando dessa forma especificada – contra a democracia burguesa.

    Bernstein esclarece que não se refere apenas ao aspecto de formar ligas secretas e buscar golpes rápidos para tomar o poder, típico do blanquismo.

    O blanquismo assemelha-se mais a uma teoria do que a um método; seu método, por outro lado, é simplesmente a conclusão, o resultado de uma determinada teoria implícita, bem mais profunda. E essa é simplesmente a teoria da potência inconmensuravelmente criativa da força política revolucionária e de sua manifestação, a expropriação revolucionária.15

    Mas, claro, isso é impossível. Para ele, a revolução operária está, por definição, associada a uma aventura ultraesquerdista, “destrutiva” por se confrontar com a democracia; segundo ele, a doutrina revolucionária despreza a situação real da economia moderna, o desenvolvimento das classes e, sobretudo, a democracia burguesa.

    A grande revolucionária Rosa Luxemburgo respondeu a essa posição em um texto que continua atual frente aos argumentos de seus herdeiros políticos:

    Bernstein, ao demonstrar a conquista do poder político como teoria blanquista da violência, tem a infelicidade de rotular como erro blanquista aquilo que sempre foi o pivô e a força motriz da história da humanidade. Desde a primeira aparição das sociedades de classes, com a luta de classes como conteúdo essencial de sua história, a conquista do poder político sempre foi o objetivo das classes em ascensão.16

    É por isso que a concepção da conquista de uma maioria parlamentar reformista é um cálculo de espírito tipicamente burguês liberal, que se ocupa apenas de um aspecto – o formal – da democracia, mas não considera o outro: seu verdadeiro conteúdo. Definitivamente, o parlamentarismo não é um elemento socialista que impregna gradualmente o conjunto da sociedade capitalista. Ao contrário, é uma forma específica do Estado de classe burguês, que ajuda a amadurecer e desenvolver os antagonismos existentes do capitalismo.17

    Entretanto, nesse aspecto, a ideia de revolução operária, socialista – tão clara em Marx e Engels e tão questionada há um século por Bernstein – sofre hoje ataques muito semelhantes por parte de correntes, dirigentes e intelectuais que se reivindicam marxistas ou socialistas. A moda atual é iniciar uma luta por valores, afirmando que qualquer confronto radical ou enfrentamento entre as classes é radicalismo que não leva a nada, apenas ao autoritarismo ou ao totalitarismo.

    Hoje, é comum ver diversos dirigentes, cientistas sociais, políticos ou filósofos alegarem que, em função das mudanças sociais e do avanço tecnológico, seria inviável qualquer projeto de revolução. Alguns, como Offe e Habermas, partem do “fim da sociedade do trabalho”; outros, dos novos sujeitos sociais para construir a “soberania popular descentralizada” ou ainda da utopia da razão. Mas todos têm em comum a negação, como autoritária e destrutiva, da revolução socialista.

    A visão idealista de Bernstein

    A última ideia que coroou a tentativa de Bernstein de esvaziar o marxismo de toda a sua força enquanto concepção de mundo – e que hoje possui inúmeros seguidores – é a visão do socialismo como ideia moral, e não como necessidade material. O socialismo enquanto realização moral, enquanto difusão de valores universais e atemporais, partia, para Bernstein, de sua recusa em aceitar a ideia de “objetivo final” como meta a serviço de uma classe. Embora nesse ponto ele não fosse propriamente original (basta lembrar os socialistas utópicos), também foi ele quem diferenciou e deixou um legado para todos seus sucessores reformistas: como buscar suavizar o antagonismo de classe com a burguesia e como apontar as “baterias” para os marxistas revolucionários, apelando à moral e aos valores eternos.

    Em uma citação publicada na Vorwärts, periódico social-democrata alemão, Bernstein dizia que via o objetivo final do socialismo não como um futuro estado de coisas, mas como um conjunto de princípios que regeria o cotidiano da atividade política no Partido18. A atividade política seria, segundo ele, regida por princípios atemporais que funcionavam como imperativos morais ao estilo kantiano: “o ponto de desenvolvimento econômico atingido hoje deixa aos fatores ideológicos e particularmente aos éticos um espaço bem maior para a atividade independente do que era o caso antes”; não por acaso ele fechava esse trabalho com um apelo por “um retorno a Kant”.

    Essa é a outra faceta do pensamento de Bernstein que exerce influência poderosa hoje no campo da esquerda. A ideia de conquistar uma sociedade justa pela propaganda dos valores da ética e da justiça.

    Habermas, renomado filósofo alemão – cuja influência se estende não só entre os verdes e social-democratas de seu país, mas também em âmbito mundial – defende a ação comunicativa e o diálogo racional entre todos os cidadãos como instrumentos na luta de classes, considerada obsoleta. Ele direciona seus esforços para buscar, através da filosofia política, um direito racional e normas éticas universais que permitam um exercício democrático renovado, livre das determinações impostas pelo poder econômico (ou de mercado) ou pelo Estado (poder administrativo).

    Para tanto, apela à participação e à liberação do “mundo da vida” (os homens comuns), supostamente mais imunes às intervenções do mercado e da burocracia, e que poderiam chegar a um “consenso racional”, como se fosse possível isolar essas esferas da organização capitalista da sociedade. O peso dado ao “diálogo” e à construção de uma ética superior, transmitida a todos a partir desse “consenso”, levou os seguidores de Habermas a se limitarem a uma luta pela ampliação do direito e dos valores éticos.

    Os ecos dessa posição chegam também ao outro lado do mundo, para aqueles que apelam à em sua militância à ética na política. José Genuino, presidente em exercício do PT (2002-2005), diz: “Ao contrário da pretensão universalista do neoliberalismo e do socialismo do passado,… o que deve ser universalizado são alguns valores, alguns objetivos e alguns direitos comuns a todos os seres humanos…”. Coerente com essa formulação, sua proposta para o Brasil resume-se a postular “a democracia republicana”. 19

    Podemos dizer que, se há alguma diferença entre esses reformistas de hoje e Bernstein, é que eles são ainda mais claros que ele em sua inspiração kantiana ou rousseuniana. A aposta em uma ética racional leva-os a intermináveis debates sobre um direito universal.

    Bernstein começou a elaborar as implicações idealistas de sua posição em Socialismo evolucionário. Não chegou a rejeitar completamente o materialismo nem se declarou um idealista. Mais tarde, em um ensaio intitulado O socialismo científico é possível?, Bernstein deixou clara sua posição. Após reiterar que a tese do “colapso do capitalismo” e, portanto, da necessidade histórica do socialismo é incapaz de ser comprovada cientificamente, ele foi além, afirmando que nenhum tema de pensamento é científico “quando seus objetivos e pressupostos incluem elementos que estão fora dos limites do conhecimento desinteressado” e que o socialismo é um sistema de pensamento que contém justamente esses elementos – ou seja, um conjunto de objetivos que não expressam os resultados de uma investigação científica, mas os interesses da classe operária. A ciência, sendo mera cognição, não poderia mover os homens para a ação; e, por essa razão, o socialismo, como um movimento que tem objetivos a ser conquistados – um movimento rumo ao que deveria ser – não poderia ser científico. 20

    Rosa Luxemburgo contestou, argumentando que, para os socialistas, a ciência seria uma questão de demonstrar o que é “objetivamente necessário” no sentido histórico, e que a atividade prática era científica na medida em que fosse guiada pelo reconhecimento da necessidade objetiva, em oposição a qualquer ideia preconcebida do que deveria ser.

    Bernstein não gosta que se fale de uma ‘ciência do partido’, ou mais precisamente, de uma ciência de uma classe, assim como não quer que se fale do liberalismo de uma classe ou da moral de uma classe. Ele acredita conseguir expressar a ciência humana em geral, abstrata, o liberalismo abstrato, a moral abstrata. No entanto, dado que a sociedade é composta por classes que possuem aspirações e concepções diametralmente opostas, uma ciência humana em geral, um liberalismo abstrato, uma moral abstrata, são, na realidade, ilusões, pura utopia. A ciência, a democracia, a moral – que Bernstein considera gerais, humanas – são, na verdade, nada mais que a ciência, a democracia e a moral dominantes, ou seja, burguesas.21

    Ela acrescentava que, segundo Bernstein, a consciência de classe do proletariado deixaria de ser “um simples reflexo intelectual das contradições crescentes do capitalismo e de seu declínio progressivo” e, ao invés disso, passaria a ser “apenas um ideal cuja força persuasiva reside unicamente nas imperfeições a ele atribuídas”. Não bastava ao proletariado reconhecer que, medido por certos princípios éticos, o sistema capitalista é defeituoso. Portanto, ao ver o socialismo não como uma necessidade histórica, mas como uma condição de compromisso moral, Bernstein teria “oferecido uma explicação idealista do socialismo”.

    Ele respondeu: “Eu, francamente, admito que tenho muito pouca inclinação ou interesse pelo que geralmente se chama ‘objetivo final do socialismo’. Esse objetivo, independentemente do que seja, não significa nada para mim; o movimento é tudo”. 22 Bernstein, com essa frase, desprezava a noção essencial para os marxistas, que é um programa revolucionário e uma estratégia de classe que deveria dar sentido a toda a prática política e às táticas que o partido adotaria. Ao priorizar os objetivos imediatos, perder-se-ia a perspectiva histórica e a própria razão de ser do partido socialista revolucionário, transformando-o num movimento por pequenas conquistas, devido à integração na ordem vigente. O destino potencial da social-democracia é a maior prova dessa contradição da qual não se pode escapar.

    Bernstein e a colonização: a posição frente ao imperialismo

    Outra questão na qual Bernstein tentou se justificar teoricamente na esquerda para a adaptação ao capitalismo europeu foi sua posição em relação ao imperialismo, sobre a questão colonial. Os parágrafos seguintes são extraídos de seu artigo publicado em 1900, “O socialismo e a questão colonial”:

    Medindo-se com esse padrão, a cultura superior possui sempre em face da cultura inferior, sob condições iguais, em circunstâncias diversas, o Direito incondicional do seu lado, em verdade, possui o dever de subjugar a cultura inferior.

    Não se pode conceder a nenhuma tribo, a nenhum povo, a nenhuma raça, o direito incondicional a qualquer parte de terra habitada. A terra não pertence a nenhum mortal. Ela é propriedade e herança do conjunto da humanidade.

    «Tão interessados quanto possam ser os representantes das culturas inferiores, originários, pelos etnólogos, não hesitará o sociólogo, por nenhum instante, em declarar como sendo necessária e justa, em sentido histórico mundial, sua perda de terreno em face dos representantes das culturas superiores.23

    Como se vê, já aparece nitidamente a ideia do direito de uma cultura “superior” dispor das riquezas e do território das “inferiores”. A comparação com os social-democratas de hoje é gritante. E não apenas com as correntes que estão no governo, mas com uma gama de posições chamadas de esquerda.

    Habermas, bastante ouvido pelos social-democratas e verdes alemães, promoveu uma campanha em defesa do Patriotismo Constitucional – orientação que ele já havia defendido na época da Guerra na ex-Iugoslávia, justificando sua posição a favor da intervenção militar do imperialismo quando se tratava de enfrentar “nações desprovidas de Direito Constitucional e liberdades fundamentais”.

    “Naturalmente, os EUA e os Estados-membros da União Europeia, que possuem responsabilidade política, partem de uma posição comum. Após o fracasso das negociações de Rambouillet, eles executam a ação punitiva militar contra a Iugoslávia com o objetivo declarado de impor regulamentações liberais para a autonomia de Kosovo, no interior da Sérvia. No âmbito do Direito Internacional Público clássico, esse ato seria visto como intromissão nos negócios internos de um Estado soberano – isto é, enquanto violação da interdição de intervenção. Sob as premissas da política de Direitos Humanos, essa ingerência deve ser entendida como uma missão armada que gera, porém, por obra da comunidade dos povos (tacitamente, também sem um mandato da ONU) – a paz autorizada.24

    Segundo essa interpretação ocidental, a Guerra de Kosovo poderia significar um salto do Direito Internacional Público clássico para o Direito Cosmopolita de uma sociedade civil mundial.

    Apesar de Habermas concentrar sua utopia na busca de uma compreensão comum e de uma ética universal, isso não o impede, em caso de guerra – e, portanto, de “necessidade imperativa” – de disputar com os europeus burgueses a necessidade de violar a soberania de países periféricos em nome da ética racional e do direito cosmopolita de uma sociedade civil mundial, da futura “Sociedade de Cidadãos do Mundo” (?!), ou do “patriotismo constitucional”, o qual hoje se apresenta e é exercido, claramente, pela vontade de um punhado de grandes potências imperialistas.

    Seu raciocínio é, evidentemente, muito semelhante às elucubrações de Bernstein sobre a cultura superior. Quem define o que é a “cultura superior” ou onde reside o “direito internacional da sociedade civil dos cidadãos do mundo” é o G-7, ou o governo dos EUA. O mesmo argumento pode ser usado hoje contra o Afeganistão ou qualquer inimigo do imperialismo, considerado o guardião da civilização e dos “valores” ocidentais. Ou, se usássemos os argumentos de Bernstein, é progressista, onde prevalece uma cultura «inferior’, que se imponha a vontade dos “civilizados” e “superiores” europeus.

    Civilização ou barbárie: o caráter benigno da colonização para os social-democratas

    Nesse mesmo texto sobre as colônias, Bernstein defende uma ideia muito cara aos “humanitários” de hoje, mas que havia sido antecipada por alguns representantes do liberalismo burguês.

    Tocqueville, o liberal burguês que é o ídolo de alguns desses teóricos, como Lefort, alertava seus compatriotas, já no século XIX, sobre o perigo de provocar entre os árabes a ilusão ou a pretensão de que poderiam ser tratados “como se fossem nossos concidadãos ou nossos iguais”. A ideia de igualdade entre os homens não poderia se estender ao ponto de incluir os “povos semicivilizados”.

    Em uma carta, antecipando de forma notável o discurso do imperialismo na guerra atual contra o Afeganistão, Tocqueville escrevia: “a recaída da Índia na barbárie seria desastrosa para o futuro da civilização e para o progresso da humanidade”. Por isso, depositava sua esperança em uma repressão eficaz por parte dos ingleses, o império hegemônico da época: “hoje em dia quase nada é impossível para a nação inglesa, se ela empregar todos os seus recursos”. 25

    Também hoje, quando social-democratas como Blair, Jospin ou Schröder apoiam o lado da “civilização contra a barbárie”, como o ataque norte-americano ao Afeganistão em nome do “direito à legítima defesa” de Bush; quando os “pacifistas” Verdes da Alemanha servem de embaixadores imperiais, como orgulhosamente fez o ministro Joschka Fischer, para negociar com os países vizinhos como fechar o cerco ao Afeganistão; quando o PDS de D’Alema, na Itália, apoia a intervenção dos EUA e mesmo assim quer aparecer como pacifista, podemos constatar que o cinismo defensor da colonização e a postura pró-imperialista de Bernstein têm inúmeros herdeiros, um século depois, entre aqueles que se dizem de esquerda, socialistas ou comunistas.

    As consequências do reformismo, ontem e hoje

    A verdade é que os resultados práticos da posição reformista não ajudam a defender a posição bernsteiniana e de seus sucessores envergonhados. Em primeiro lugar, o reformismo desorienta a classe em sua luta contra a burguesia, alimenta a crença nas instituições; em vez da desconfiança e da intransigência classista; faz a classe acreditar em uma via pacífica e gradual a cujos fracassos se segue uma desmoralização política quando a utopia se mostra inviável. Recordemos o processo da luta de classes alemã e europeia quando a Primeira Guerra Mundial estourou. A divisão instalou-se entre os trabalhadores por culpa da direção social-democrata, justamente quando mais necessitavam de sua unidade internacionalista.

    Mas o problema assume contornos ainda mais graves quando os governantes sociais democratas e todas as demais variantes reformistas, coerentes com essa concepção, assumem a gestão do Estado burguês para “democratizá-lo” e acabam por defendê-lo, bem como a ordem que propõem reformar. Os reformistas, como Bernstein, alertam contra o perigo de uma “revolução prematura”. Aconselhavam o caminho “mais lento e seguro” das reformas graduais. E aqueles que querem revolucionar esse Estado, destruir a ordem burguesa – os marxistas revolucionários – acabam sendo tratados por eles como “inimigos da democracia”. O assassinato de Rosa Luxemburgo, perpetrado sob um governo social-democrata durante o processo revolucionário que explodiu na Alemanha ao final da I Guerra Mundial, foi a dramática expressão dessa lógica infernal da posição reformista e de seu antagonismo em relação à revolução.

    O papel dos atuais governos social-democratas e laboristas na Europa; dos defensores destacados da reconversão econômica em seus países para adaptá-los às diretrizes de Maastricht – a antiga coalizão de L’Olivo na Itália com o PDS, o Partido Comunista Italiano, à frente da aliança em defesa dos planos econômicos “para implantar o euro” e da diminuição do Estado -; dos governos estaduais e municipais do PT brasileiro com sua aplicação da política do FMI em nome do cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, são expressões dessa concepção. Seu posicionamento leva-os a confrontar as aspirações dos movimentos de massa e, consequentemente, a recorrer a políticas de austeridade para defender a ordem em nome da democracia. É a demonstração do vínculo entre teoria, programa e política.

    Porém, a realidade da ofensiva imperialista colonizadora, inerente à chamada globalização, coloca a questão do reformismo não somente diante da opção de estar ou não a favor da democratização do Estado nacional, mas também de estar a favor da destruição ou da reforma do imperialismo, das instituições internacionais e de uma articulação europeia em contraposição aos EUA: posicionam-se como a alternativa dos cidadãos contra os mercados. Essa corrente diferencia-se dos desgastados governos da Terceira Via e inclui setores críticos da social-democracia, como o ex-ministro das Finanças e da Fazenda do primeiro governo Schröder, Oskar Lafontaine, ONGs, a ATTAC, o jornal Le Monde Diplomatique e correntes oriundas do trotsquismo e do marxismo revolucionário, que têm em comum a proposta de uma maior regulação do fluxo de capitais (a Taxa Tobin), o fim dos paraísos fiscais e do segredo bancário (proposta que até George W. Bush defende atualmente como medida contra os grupos terroristas).

    Lafontaine propõe que a Europa reforce seus laços e “utilize seu poder frente à Wall Street”. E que a ONU adquira mais vigor na hora de aplicar os direitos humanos. 26 Essa corrente contrapõe a atuação conjunta da ONU à ação isolada dos EUA. Mas não conseguem sair dos tópicos já batidos das medidas relacionadas à ordem financeira, à ampliação das prerrogativas da ONU e à reforma das atuais instituições internacionais. Para eles,é possível que o imperialismo europeu tenha uma postura mais “social” ou “progressista” do que o norte-americano.

    Hoje, ser reformista implica não só aceitar o status quo em seu país, mas, em nome de uma mudança gradual, aceitar na prática a ordem imperialista. Esse neorreformismo termina por desarmar os movimentos que se radicalizam contra o imperialismo, ao optar por um caminho propositivo de criação de “espaços democráticos no mundo”, ou seja, por reformas “viáveis” dentro do capitalismo globalizado. Por isso, como evidencia a guerra contra o Afeganistão, o século XXI começou com uma disjuntiva para a esquerda: reforma da ordem imperialista ou revolução mundial.


    NOTAS

    1. Para fortalecer suas posições, Bernstein utilizava o papel de executor testamentário das obras de Engels, posto que dividiu com outro grande dirigente e teórico do SPD, Kautsky. Apesar de alguns momentos e posições ocasionalmente mais principistas – como o voto contra os créditos de guerra em 1915 – ele foi a primeira grande referência teórica e programática para aqueles que, dentro do movimento operário, abandonavam os princípios essenciais do marxismo. Seu apogeu como teórico da social-democracia ocorreu no Congresso de Giirlitzer, em 1921, quando foi um dos redatores e inspiradores do programa votado que rompeu totalmente com o marxismo revolucionário e tornou o partido num partido abertamente reformista, que até hoje serve de referência ao SPD alemão. ↩︎
    2. Esse foi o título do trabalho mais ambicioso de Bernstein (publicado no Brasil com o nome Socialismo evolucionário, pela Jorge Zahar Editor), escrito em resposta às críticas de militantes e dirigentes a seus artigos na imprensa, publicado pela primeira vez em 1899. Dele extraímos a maior parte das citações aqui utilizadas, na edição inglesa de Henry Tudor, Preconditions of Socialism, Cambridge, 1996. ↩︎
    3. Rosa Luxemburgo enfrentou essa questão em “Reforma o revolución – Obras escogidas”, Tomo. I. Bogotá: Pluma, 1979, p. 137 ↩︎
    4. Welmowicki, José. «Fórum Social Mundial: morte ao capitalismo ou capitalismo cidadão?» em Marxismo Vivo N. 3, (maio de 2001), p. 14 ↩︎
    5. Recentemente, o ex-ministro alemão Lafontaine esteve presente em um congresso da ATTAC para apoiar a proposta da entidade: “O ex-ministro das Finanças e da Fazenda do primeiro governo Schröder pediu uma maior regulação do tráfego de capitais, o que agora, curiosamente, George W. Bush defende como medida contra os grupos terroristas. ‘Reclamamos o fim dos paraísos fiscais e do segredo bancário, que só favorecem quem quer evadir impostos’, explicou Lafontaine. Ele instou a Europa a reforçar seus laços e a utilizar seu poder frente à Wall Street. O ex-líder social-democrata também se referiu à necessidade de que a ONU adquira mais vigor na aplicação dos direitos humanos. ‘É preciso criar as condições sociais e econômicas adequadas para a paz, não só autorizar a guerra’, ressaltou Lafontaine. Após o 11 de setembro, Lafontaine destacou que fica mais claro que ‘a mais desigualdade, mais violência e mais terrorismo’, daí a necessidade do trabalho de movimentos como a Attac, que o ex-ministro alemão apoia.” Fonte: El País, 23/10/01 ↩︎
    6. In: http://www.spd.de/events/congress/ ↩︎
    7. Bernstein, “Preconditions”, p. 141. ↩︎
    8. Luxemburgo, R., op. cit., p. 136. ↩︎
    9. “Em princípio, a democracia é a abolição do governo de classe, embora ela não seja em si a abolição das classes”, p. 143. ↩︎
    10. Lefort, Claude. Pensando o Político, p. 47, idem, p. 49. ↩︎
    11. Idem, p. 49 ↩︎
    12. “Laclau, Ernesto, MOUFFE, Chantal. In Hegemonía y estratégia socialista. Madrid: Siglo XXI, 1987.” ↩︎
    13. “Partido dos Trabalhadores: Resoluções, Encontros, Congressos. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 1998.” ↩︎
    14. Blanquismo era o nome de uma corrente que defendia a tomada do poder pelos operários oprimidos através de um golpe conduzido por uma minoria selecionada de revolucionários bem preparados, posição sempre criticada por Marx em seus escritos. Seu nome deve-se ao revolucionário francês Louis Blanqui, que teve papel destacado nas revoluções de 1830, 1848 e na Comuna de de Paris, em 1871. ↩︎
    15. Bernstein, L. Preconditions…, p. 38. ↩︎
    16. Luxemburgo, Rosa, op. cit., p. 123. ↩︎
    17. Idem, p. 90. ↩︎
    18. Tudor, H. and Tudor, Introduction to Preconditions of Socialism. Cambridge, 1996, p. xxx. ↩︎
    19. Este foi o título da Tese da corrente de Genoíno ao II Congresso do PT. ↩︎
    20. Tudor, H. and Tudor, p. xxxiv ↩︎
    21. Luxemburgo, op. cit., p. 135. ↩︎
    22. Tudor, H. and Tudor, p. xxviii ↩︎
    23. “Bernstein, El Socialismo e as Colônias, tradução de Emil von Munchen, Instituto José Luiz & Rosa Sunderman.” ↩︎
    24. Habermas, J. Brutalidade e Humanidade. Uma guerra entre o direito e a moral. 1999, tradução de Emil von Munchen, Instituto José Luiz & Rosa Sunderman. ↩︎
    25. Idem, p. 28. ↩︎
    26. El País, 23/10,2001 ↩︎

    Publicado em dezembro de 2001 na revista Marxismo Vivo N. 4

  • Leon Trotsky e a questão negra

    Leon Trotsky e a questão negra

    Como já dissemos, não conhecemos nenhum caso em que a III Internacional, na época de Lenin, tenha convocado a organização das operárias de forma separada ou que tenha impulsionado a organização dos oprimidos a partir da opressão.

    Por Alicia Sagra e José Welmowicki

    Mas o Freedom Socialist Party utiliza um exemplo para afirmar que a orientação de convocar organizações autônomas de mulheres, negros, LGBTI, etc., está inserida na tradição do trotsquismo. Trata-se da proposta de Trotsky para impulsionar a construção de uma organização negra nos EUA.

    O direito à autodeterminação

    O problema negro foi algo ao qual Trotsky deu muita atenção. Assim foi na África do Sul, onde propôs a “república negra”. Na mesma época, dedicou-se a estudar o tema nos EUA, onde acompanhava a construção do SWP.

    Chegou à conclusão de que os negros norte-americanos eram uma nação oprimida e que, portanto, o que se propunha era o direito à autodeterminação. Essa definição foi polêmica no SWP, e resultou de várias discussões na década de 1930. No início da década, em uma dessas discussões, Trotsky argumentava:

    «Sobre essa questão, um critério abstrato não é decisivo: o que é mais decisivo é a consciência histórica, seus sentimentos, suas determinações… A tomada de consciência ainda não ocorreu entre os negros, e estes ainda não se unem aos trabalhadores brancos. 99,9% dos trabalhadores norte-americanos são racistas, são os carrascos dos negros, assim como dos chineses… É necessário fazer os negros compreenderem que o estado americano não é o estado deles e que não precisam se tornar os guardiões desse estado. Os operários norte-americanos que dizem: ‘Se os negros querem viver separados, nós os defenderemos contra nossa polícia norte-americana, são os verdadeiros revolucionários. Tenho confiança neles. O argumento de que a palavra de ordem de autodeterminação se afasta do ponto de vista de classe representa uma adaptação à ideologia dos trabalhadores brancos.» 1

    Àqueles a quem se apontava que os negros não reivindicavam esse direito, ele respondia:

    «Se os negros não estão exigindo agora o direito à autodeterminação, é, supostamente, pela mesma razão que os operários brancos ainda não estão propondo a defesa da ditadura do proletariado. Os negros ainda não internalizaram que podem ousar tomar uma porção dos grandes e poderosos Estados Unidos para si.» 2

    A organização negra

    Em abril de 1939, como parte das discussões com a direção do SWP sobre a questão negra, Trotsky explica a importância do tema do ponto de vista de onde e com quem o partido deveria ser construído:

    «As antigas organizações, começando pela AFL, são organizações da aristocracia operária. Nosso partido faz parte do mesmo meio, não da base das massas exploradas, das quais os negros são a camada mais explorada. Que, até o presente, nosso partido não tenha se concentrado no problema negro é um sintoma inquietante. Se a aristocracia operária é a base do oportunismo, uma das fontes de adaptação à sociedade capitalista, então os mais oprimidos e discriminados representam o meio mais dinâmico da classe operária.» 3

    «Devemos dizer aos negros conscientes que o desenvolvimento histórico os chama para se tornarem a vanguarda da classe operária. O que freia as camadas superiores? São os privilégios, o conforto é o que os impede de se tornarem revolucionários. Isso não existe para os negros. O que pode transformar uma certa camada, torná-los mais capazes de ações corajosas e espírito de sacrifício? Isso se concentra nos negros. Se nós, no SWP, não conseguirmos encontrar o caminho para essa camada, então não seremos dignos. A revolução permanente e tudo o mais não passam de mentiras.» 4

    Nessa discussão, como parte de sua insistência para que se abordasse o problema negro e na busca desse caminho, Trotsky, que continuava defendendo o direito à autodeterminação, apoia, além disso, a proposta de CLR James, que defende a construção de uma organização negra. Trotsky afirma que a proposta é inovadora e sem precedentes, e que se trata de uma “tática especial para uma situação especial”.

    Qual era essa situação especial?

    As condições de vida dos negros nos EUA, sobretudo nos estados do Sul: a cultura comum que os une, a segregação no transporte, nas escolas, nos empregos, em muitos sindicatos e na própria classe operária, visto que se considerava que 99% dos trabalhadores brancos eram racistas. Trotsky explica a proposta da seguinte forma:

    «(…) [Os negros] Foram reduzidos à escravidão pelos brancos, foram libertados pelos brancos (a suposta libertação). Foram conduzidos e enganados pelos brancos e não tinham sua própria independência política. Eles precisavam, enquanto negros, de uma atividade preparatória para a política. Em teoria, parece-me absolutamente claro que é preciso criar uma organização especial para responder a uma situação especial (…) Nosso movimento conhece muitas formas de organização, como o partido, o sindicato, a organização educativa, a cooperativa; mas esta é um novo tipo de organização que não coincide com as formas tradicionais. Devemos considerar a questão de todos os pontos de vista para decidir se é ou não acertado e qual deveria ser a forma da nossa participação nessa organização (…) É para despertar as massas negras. Isso não exclui a captação. Creio que o sucesso é muito possível, embora eu não tenha certeza. Mas deve ficar claro que nossos camaradas nessa organização devem ingressar como um grupo.» 5

    Meses depois, em julho de 1939, o II Congresso do SWP votou duas resoluções apresentadas por CLR James, uma propondo o direito de autodeterminação para o povo negro e outra propondo a formação de uma organização negra.

    Qual é o significado dessa orientação proposta por Trotsky?

    Como já dissemos, o Freedom Socialist Party (FSP) dos EUA argumenta que o chamado a essa organização negra é uma prova de que Trotsky orientava a organização dos oprimidos como tal. Não nos parece que seja assim. Ele não propôs, por exemplo, uma organização dos trabalhadores imigrantes chineses — os quais ele mesmo afirma terem sido muito maltratados nos EUA. Tampouco convocou uma organização de mulheres, apesar de não desvalorizar a opressão que estas sofriam.

    Temos a impressão de que o chamado a essa “organização negra” foi, como ele manifestou, uma “tática especial para uma situação especial”, que estava intimamente ligada à sua visão dos negros como uma nacionalidade oprimida e à política central de “autodeterminação” que ele vinha defendendo. Seguindo esse raciocínio, parece-nos que essa organização, que ele não consegue definir bem o que é, mas que afirma ser diferente de tudo o que já existiu, tem mais a ver com a organização do povo negro como nação, isto é, a organização de uma nação que não tinha um território próprio.

    Essa organização nunca se concretizou e não há nada escrito sobre o tema, além daquela conversa com o SWP. Portanto, é difícil precisar mais.

    O que nos parece evidente é que Trotsky teve um grande acerto em sua insistência para que se abordasse o problema negro, e que essa insistência foi muito importante para a inserção do SWP nas lutas contra a opressão racial durante a Segunda Guerra e durante as grandes mobilizações pelos direitos civis na década de 60. Em relação às mobilizações dos anos 30, Cannon, em seu trabalho A Revolução Russa e o movimento negro norte-americano, relata que foi dessa revolução que surgiu o incentivo para que os revolucionários abordassem o problema negro. Que os trotskistas o abordaram, ainda que fossem muito pequenos, mas que o Partido Comunista, que se lançou de forma intensa (apesar de sua condução stalinista), realizou um grande trabalho a favor do movimento negro e obteve excelentes resultados em sua construção.

    Apesar de se tratar de uma espécie de balanço, Cannon não faz nenhuma referência ao chamado à organização negra. Mas se refere ao direito à autodeterminação:

    «A palavra de ordem de “autodeterminação” encontrou pouca ou nenhuma aceitação na comunidade negra. Após o colapso do movimento separatista dirigido por Garvey, 6 sua tendência foi principalmente para a integração racial com igualdade de direitos.» 7

    Seria tema de outro artigo analisar a política aconselhada por Trotsky para o movimento negro dos EUA. O que nos parece, de fato, é que não é correto tomar um aspecto isolado dessa política (o chamado a uma organização negra), que ele define como uma “tática especial para uma situação especial”, como se essa fosse sua orientação geral para os setores oprimidos.

    Notas

    1. – Trotsky, L., «On Black Nationalism and Self-determination», 28 de fevereiro de 1939, reeditado em: Leon Trotsky on Black Nationalism and Self-determination. Pathfinder Press, 1971. ↩︎
    2. Idem ↩︎
    3. Trotsky, L, Plans for the Negro organization, em On Black Nationalism: documents on the Negro struggle ↩︎
    4. Idem. ↩︎
    5. Trotsky, L, A Negro organization, em On Black Nationalism: documents on the Negro struggle ↩︎
    6. Garvey, Marcus Mosiah (1887-1940). Líder negro jamaicano. Figura emblemática do movimento negro. Nos EUA, propunha a saída de todos os negros do país para formar uma república própria na África, visto que a integração era impossível. ↩︎
    7. Cannon, James Patrick. A Revolução Russa e o movimento negro norte-americano, 1959. ↩︎

    Publicado em julho de 2015 na revista Marxismo Vivo n. 6

  • A negação do trabalho e do proletariado: as raízes do elitismo em Hannah Arendt

    A negação do trabalho e do proletariado: as raízes do elitismo em Hannah Arendt

    A importância do pensamento de Hannah Arendt para as elaborações sobre espaço público e democracia tem sido destacada a partir de sua conhecida crítica ao totalitarismo. A obra de Arendt influencia a esquerda brasileira desde os anos 90 nas formulações sobre cidadania, Estado e democracia. De seus trabalhos, distintos pensadores extraem e saúdam o privilégio ao político, colocado em uma esfera acima e isolada da esfera do trabalho e da sociedade. Autores de origens diversas como Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, Cornelius Castoriadis e Claude Lefort, ou ainda Jürgen Habermas; no Brasil os que defendem a cidadania como alternativa, como Vera Telles, entre outros, inspiram-se na visão de Arendt. Em geral, ainda que de distintos ângulos, enfatizam sua contribuição como uma redescoberta da liberdade e da democracia pluralista.

    Por José Welmowicki

    No entanto, uma pesquisa mais profunda e crítica demonstra o sentido elitista de seu arcabouço teórico. Um viés aristocrático, cuja base está em sua negação do papel do trabalho, condiciona o pensamento da autora. Aqui discutiremos a partir do livro A Condição Humana, que ela considerava ser seu texto filosófico mais desenvolvido. Nele, a autora inquieta-se com a transformação da sociedade moderna em sociedade operária e sonha com uma sociedade que possa ser verdadeiramente humana, uma vez que privilegie a ação e o discurso, que consigam se elevar acima do homem comum para realizar a atividade humana mais nobre, a política (ação):

    «Mas isto é assim apenas na aparência.  A era moderna trouxe consigo a glorificação teórica do trabalho e resultou na transformação efetiva da sociedade em uma sociedade operária. Assim, a realização do desejo, como sucede nos contos de fadas, chegou num instante em que só pode ser contraproducente. A sociedade que está para ser libertada dos grilhões do trabalho é uma sociedade de trabalhadores, uma sociedade que já não conhece aquelas outras atividades superiores e mais importantes em benefício das quais valeria a pena conquistar essa liberdade. Dentro dessa sociedade, que é igualitária porque é próprio do trabalho nivelar os homens, já não existem classes nem uma aristocracia de natureza política ou espiritual da qual pudesse ressurgir a restauração das outras capacidades do homem. Até mesmo presidentes, reis e primeiros-ministros concebem seus cargos como tarefas necessárias à vida da sociedade.» (Arendt, 1997, pp. 12-13, grifos nossos)

    Esta citação serve para avançar uma questão sobre a natureza da filosofia política de Arendt: sua visão do trabalho sustenta uma concepção política excludente. Para ela o labor equaliza e rebaixa a atividade humana, o que dá o embasamento teórico para uma posição que despreza a participação social e coletiva, típica do movimento dos trabalhadores.  Sua defesa da política é desde um ponto de vista individualista, que, portanto, recusa uma visão realmente emancipadora da humanidade.

    A concepção negativa de Arendt sobre o trabalho e o labor

    Arendt trabalha com 3 categorias da atividade humana, labortrabalho e ação. Ao optar por essa classificação tríplice da atividade humana, Arendt elaborou uma distinção entre duas atividades normalmente abrangidas pela denominação trabalho: 1) a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujo crescimento e eventual declínio tem a ver com as necessidades vitais imediatas do homem (o que ela chama de labor). Esta interfere apenas sobre a vida do homem, sua sobrevivência; 2) o trabalho, que corresponderia ao artificialismo da existência humana, ou seja, aquela atividade realizada com alguma finalidade/intenção por parte do homem e que produz um mundo artificial de coisas, que tende a transcender à sua própria e a todas a(s) vida(s) individual(is). Esta interfere sobre o mundo.

    Já a terceira atividade humana, a ação, seria a única atividade que se exerce entre os homens, sem a mediação da coisa ou da matéria. Corresponderia à condição da pluralidade humana, já que os seres humanos seriam iguais como tal, mas plurais, pois nenhum ser humano é idêntico ao outro. Esta pluralidade seria então especificamente a condição de toda vida política.

    Para ela, a única atividade verdadeiramente humana é a política, enquanto labor etrabalho seriam atividades pré-humanas. Arendt distingue a política, agregando que só se poderia realizar no espaço público. 1 Tudo o que os homens teriam em comum com outras formas de vida animal seria procurar vencer suas necessidades básicas. O que eles teriam de específico seria justamente a procura de uma atividade superior, a política. 2

    O Labor, atividade biológica

    A partir dessa divisão arbitrária, Arendt caracteriza o operário (o laborer) como animal laborans. Com essa denominação quis marcar o aspecto ‘biológico’ que a atividade laborativa adquiriu na sociedade capitalista. Partiu de um fato correto, o caráter repetitivo, alienado, da produção e do papel do operário na fábrica. Mas ao fazer este recorte, ela atribui à natureza do trabalho do operário em si (para ela o labor), aquilo que é fruto da situação imposta pelo capital a partir da divisão do trabalho e da introdução da máquina. Chama a atenção que, apesar de dialogar em boa parte do livro com obras de Marx, não tenha levado em conta o texto O Trabalho Alienado (ou O Trabalho Estranhado). 3

    Neste texto, Marx desenvolve a forma como se dá a alienação do trabalhador, como ele se nega em seu trabalho, não se sente bem, mas sim infeliz nele. Marx indica nada menos que 4 características que fazem o trabalho na sociedade capitalista não passar de uma aparência de atividade, de um trabalho estranhado: Primeiro, que ele é exterior ao trabalhador, já que é imposto a ele, é compulsório. Segundo, que o fruto de seu trabalho não lhe pertence, nem o próprio trabalho em si. O trabalho significa a perda de si mesmo para o trabalhador. Terceiro, a alienação faz o trabalho (que é sua atividade vitalhumana) aparecer ao homem como simples meio para sua existência. Quarto, tira do homem a característica mais importante como ser genérico, a de poder trabalhar o conjunto da natureza e não só para as necessidades físicas imediatas, como os animais. Portanto, ao contrário do que entende Arendt, para Marx o trabalho não é apenas ‘biológico’, mas sim o instrumento de intercâmbio e domínio do homem sobre a natureza, que se encontra alienado pela subordinação ao capital, estranhado. 4

    Um aspecto que impede Arendt de captar essa realidade é o não entendimento do caráter dialético existente entre a necessidade de responder às questões vitais, embutida no trabalho desde as comunidades mais primitivas, e sua característica especificamente humana. Foram as próprias necessidades básicas para a sobrevivência como a coleta, a caça e a defesa contra os inimigos que levaram o homem a se diferenciar de seus ancestrais símios e a desenvolver a capacidade de interferir sobre a natureza. Já a caça e a pesca exigiam conhecimentos do meio ambiente e determinados instrumentos, embora se limitassem a retirar da natureza frutos ou animais que ali estavam. Embora nesse momento ainda tivesse semelhanças com os demais animais, a utilização pensada dos materiais foi abrindo um crescente diferencial entre o homem e as demais espécies. Como Engels mostrou em seu texto clássico O papel do trabalho na transformação do macaco em homem, essa evolução, esse salto, torna-se claro quando o homem já utiliza as mãos não somente como o macaco para agarrar frutos nas árvores ou arrancar galhos para se proteger, mas para produzir um machado ou uma faca de pedra.

    Já a agricultura exigiu não só conhecimento sobre a natureza, como atuar de forma planejada sobre ela, com a semeadura, irrigação, colheita, etc. Ter noção de tempo, de como contabilizá-lo, e, mais importante ainda, criar formas de trabalho social. A finalidade da agricultura era alimentar a população crescente, evitar as fomes periódicas que acompanhavam o crescimento vegetativo das comunidades anteriores. No entanto, ao contrário do modelo que Arendt elaborou, ao separar labor e trabalho, (onde o primeiro se limitaria a produzir objetos de consumo que garantissem a vida biológica, sem permanência, enquanto o segundo produziria instrumentos, ferramentas, etc.,) foi a atividade agrícola que obrigou o homem a realizar obras de tal envergadura que permaneceram por muito tempo como exemplos do prodígio humano, como os diques da Mesopotâmia, ou a rede de canalização dos egípcios antigos, fundamentais para impedir que as enchentes dos rios Tigre/Eufrates ou do Nilo destruíssem as plantações e garantir condições de uso perene às terras férteis nas margens desses rios.

    Como bem observou Lukács no capítulo sobre o Trabalho em sua Ontologia do Ser Social, apoiando-se na visão de Marx e Engels, o trabalho é o elemento central e inseparável do salto qualitativo e estrutural da passagem do ser animal (biológico) para o ser especificamente humano(social).

    «Somente o trabalho tem, como sua essência ontológica, um claro caráter intermediário: ele é essencialmente, uma inter-relação entre homem (sociedade) e natureza, tanto inorgânica como orgânica, inter-relação que pode até estar situada em pontos determinados da série a que nos referimos, mas antes de mais nada, assinala a passagem, no homem que trabalha, do ser meramente biológico ao ser social.» (Lukács, 1981, p.3 )

    Assim, a oposição entre labor trabalho aventada por Hannah Arendt não esclarece a condição humana e acaba por subestimar o papel do trabalho como capacidade de interferir de forma consciente na natureza 5 sempre enfatizada por Marx, presente apenas no homem. Como também alerta Marx, o trabalho modifica o próprio homem e é fundamental na construção da consciência humana. Tanto o labor como o trabalho humanos, se utilizarmos a terminologia de Arendt, são únicos em relação às demais espécies animais. O homem desenvolveu através do trabalho uma atividade onde efetivamente existe a teleologia. Onde é necessário o conhecimento da causalidade, dos processos naturais e vitais para poder preparar e completar a produção, criando algo novo, mas que já havia sido pensado antes do ato laborativo. 6 Dizer que o labor é ‘apenas a atividade biológica’ como se fosse igual à dos animais, confunde e despreza a atividade laborativa humana.

    A famosa citação de O Capital sobre a diferença entre o trabalho da abelha e o do pior mestre de obras ou arquiteto joga luz sobre essa questão

    «Nós pressupomos o trabalho plasmado sob uma forma exclusivamente humana. A aranha realiza operações que se parecem com as do tecelão, a abelha faz corar de vergonha muitos mestres de obras, por sua perfeição ao construir as suas células de cera. Mas o que distingue, essencialmente, o pior mestre de obras da melhor abelha, é que ele projetou a célula em sua cabeça antes de fazê-la em cera. No fim do processo de trabalho aparece um resultado que já estava presente desde o início na mente do trabalhador que, deste modo, já existia idealmente. Ele não se limita a efetuar uma mudança de forma no elemento natural; ele imprime no elemento natural, ao mesmo tempo, seu próprio fim, claramente conhecido por ele, o qual governa como uma lei o seu modo de agir e ao qual tem de subordinar à sua vontade7

    O comentário de Arendt sobre esta mesma citação de Marx surpreende pela superficialidade com que se pretende ignorar toda a rica elaboração sobre o trabalho, e as contradições que o alienam na sociedade capitalista. 8 A diferença entre Marx e Arendt não reside em uma suposta falta de importância que este daria ao caráter de ‘imaginação’ que teria o trabalho humano, mas sim na denúncia que Marx permanentemente faz do papel do capital que, ao se apropriar da força de trabalho, aprisiona e transforma em seu oposto a força produtiva do trabalho social. Para o trabalhador concreto, é na máquina, em um objeto estranho a ele, no trabalho morto, que aparece a finalidade do trabalho, seu projeto. A máquina materializa um roteiro de tarefas prescrito, geralmente montado a partir de uma substituição das tarefas executadas pelos antigos instrumentos de trabalho, como na tecelagem, metalurgia, etc. Então não é que tenha deixado de existir a teleologia, a finalidade (ou a imaginação, conforme a terminologia de Arendt) no processo de trabalho. O problema é que uma figura nova, que antes não participava na produção, o capital, apropriou-se desta e através da máquina se faz presente no processo de trabalho, onde ele impõe em forma tirânica ao trabalhador todos os passos a seguir.

    A separação entre labor e trabalho

    Arendt confunde a diferença entre o trabalho qualificado ou que produz instrumentos e o trabalho não qualificado, com a diferença entre o trabalho artesanal pré-capitalista e o trabalho assalariado sob o capital (e alienado). Para ela, não foi o capital, mas uma abstração, tipo ‘a sociedade’ ou ‘ a revolução industrial’ que criou uma divisão do trabalho que reduziu o trabalhador ao papel de mero fornecedor de “força de trabalho”, e tornaram seus produtos meros objetos para o consumo (ou como diria melhor Marx, mercadorias).

    «A revolução industrial substituiu todo artesanato pelo labor; o resultado foi que as coisas no mundo moderno tornaram-se produtos do labor, cujo destino final é serem consumidos, ao invés de produtos do trabalho, que se destinam a ser usados. A divisão do labor, e não um aumento de mecanização, substituiu a rigorosa especialização antes exigida para todo tipo de artesanato.” (Arendt, 1997, p.137).

    A explicação que dá Arendt para a substituição do que ela chama de trabalho pelo labor ignora o papel do capital nessa transformação e na subsunção do trabalho, que passa a ser incorporado como trabalho abstrato e ser absorvido enquanto força de trabalho (labor power) pelo capital, atribuindo-a a uma tendência natural de busca da abundância. Esquece que justamente uma contradição central da sociedade capitalista é a que se dá entre a multiplicação da produção e a situação do trabalhador expropriado dos meios de produção, entre a possibilidade (potencial) de satisfação das necessidades, que é barrada continuamente pela apropriação privada capitalista e a dura realidade da classe operária

    «Os ideais do homo faber, fabricante do mundo, que são a permanência, a estabilidade e a durabilidade, foram sacrificados em benefício da abundância, que é o ideal do animal laborans. Vivemos numa sociedade de operários, porque somente o labor, com sua inerente fertilidade, tem possibilidade de produzir a abundância; e transformamos o trabalho em labor, separando-o em minúsculas partículas até que ele prestou-se à divisão na qual o denominador comum da execução mais simples é atingido para eliminar do caminho do <labor power> humano –  que é parte da natureza e talvez a mais poderosa das forças naturais – o obstáculo da estabilidade <inatural> e puramente mundana do artifício humano.”  (Arendt, 1997,  p.138.)

    Para Arendt, já estaríamos em uma sociedade da abundância. Esquece novamente o fato fundamental que os produtos que surgem do ‘labor’ são propriedade do capitalista, são mercadorias que só podem ser consumidas pelo trabalhador se este realizar a compra, se o seu salário permitir. Mais ainda, como Marx explica, a ampliação da produção pelo capitalista empobrece o trabalhador! Se olharmos o mundo de hoje, essa observação parece consistente e válida mais de 100 anos depois de ter sido redigida.

    «As contradições e os antagonismos inseparáveis da utilização capitalista da maquinaria não existem porque decorre da própria maquinaria, mas de sua utilização capitalista! Já que, portanto, considerada em si, a maquinaria encurta o tempo de trabalho, mas enquanto utilizada como capital aumenta a jornada de trabalho; em si facilita o trabalho, mas utilizada como capital aumenta sua intensidade; em si, é uma vitória do homem sobre a força da Natureza, mas utilizada como capital, submete o homem por força da Natureza; em si, aumenta a riqueza do produtor; mas utilizada como capital, pauperiza-o.» (Marx, 1973, V. I, p.58, grifos nossos).

    A divisão do trabalho, portanto, não é uma vitória do animal laborans sobre o homo faber, mas segue a lógica do capital, de reduzir o poder de fogo do trabalhador, subordinando-o à totalidade do processo dirigido pelo capital. As mudanças introduzidas pela nova divisão capitalista do trabalho não foram uma conseqüência das novas tecnologias, mas sim de uma determinada lógica da ordem econômica e social capitalista. Tiram a potência do trabalhador para concentrá-la no capital:

    «As potências intelectuais da produção ampliam sua escala por um lado, porque desaparecem por muitos lados. O que os trabalhadores parciais perdem, concentra-se no capital com que se confrontam. É um produto da divisão manufatureira do trabalho opor-lhes as forças intelectuais do processo material de produção como propriedade alheia e poder que os domina. Esse processo de dissociação começa na cooperação simples, em que o capitalista representa em face dos trabalhadores individuais a unidade e a vontade do corpo social de trabalho. O processo desenvolve-se na manufatura que mutila o trabalhador, convertendo-o em trabalhador parcial. Ele completa-se na grande indústria, que separa do trabalho a ciência como potência autônoma de produção e a força a servir ao capital.» (Marx, 1973, V. I, cap. 12, pp. 274-275).

    Um último comentário sobre essa questão do labor e do trabalho: com os desenvolvimentos da reestruturação produtiva, a interação entre ciência e produção, entre execução e elaboração é cada vez maior nos setores de ponta da indústria. Se as fronteiras do trabalho não qualificado e qualificado são cada vez mais tênues, já que o capital busca reduzir a componente do trabalho improdutivo na produção das mercadorias, e se apropriar da sabedoria do operário, obrigando os participantes da linha de produção a fazer eles mesmos o controle de qualidade, a sugerir medidas para melhorar a produtividade da fábrica, como nomear o trabalho desse operário hoje? Como labor ou como trabalho, se aplicássemos as categorias de Arendt? 9

    O movimento operário é considerado incapaz de atividade política

    Mas é na análise do movimento operário que aparecem as consequências políticas dessa avaliação que Arendt tem da condição humana e do papel inferior do labor. Arendt recusa-se a reconhecer no trabalho um potencial de sociabilidade capaz de gerar uma prática política digna do nome entre os homens. Sua primeira definição é coerente com as definições teóricas aqui discutidas

    «Embora não seja capaz de criar uma esfera pública autônoma, na qual os homens possam aparecer qual  homens, a atividade do trabalho, para a qual o isolamento em relação aos outros é condição prévia necessária, está ainda vinculada de várias maneiras a esse espaço da aparência; na pior das hipóteses permanece ligada ao mundo tangível das coisas que produz. O trabalho, portanto, talvez seja um modo apolítico de vida, mas certamente não é antipolítico. Este último é precisamente o caso do labor, atividade na qual o homem não convive com o mundo nem com os outros: está a sós com o seu corpo ante a pura necessidade de manter-se vivo. É verdade que também vive na presença e na companhia de outros, mas essa convivência não possui nenhuma das características da verdadeira pluralidade.» (Arendt, 1997, p.224, grifos nossos)

    Mas essa definição não poderia explicar a intensa participação política e revolucionária do movimento operário; por isso, ela se espanta com a participação ativa e decisiva do movimento dos trabalhadores desde o século XIX, o que não a impede de prever um rápido fim a essa situação.

    «A surpreendente ausência de rebeliões sérias por parte dos escravos nos tempos antigos e modernos parece confirmar a incapacidade do animal laborans para diferenciação e, por conseguinte, para a ação e o discurso. Não menos surpreendente é o papel súbito e, muitas vezes, extraordinariamente produtivo que os movimentos operários desempenharam na política moderna.» (p.227, grifo nosso)

    Obrigada a reconhecer a discrepância entre sua definição e a realidade, chega a se confessar surpreendida; no entanto, para explicar como um movimento que se baseia no labor conseguiu obter a relevância que teve nos séculos XIX e XX, busca uma explicação política externa ao fato: seria a conquista da cidadania política, do direito ao voto em particular e por aí de sua inclusão na sociedade que teria feito o movimento operário, distinto dos escravos e servos, capaz de interferir no processo político.

    «Esta discrepância aparentemente flagrante entre o fato histórico – produtividade política da classe operária – e os dados fenomenológicos obtidos da análise da atividade do labor tende a desaparecer após exame mais profundo do desenvolvimento e da substância do movimento operário. A principal diferença entre o trabalho escravo e o moderno trabalho livre não é a posse da liberdade pessoal, mas o fato de que o operário moderno é admitido na esfera pública enquanto cidadão. O momento crucial da história do movimento operário foi a abolição do requisito de propriedade para o exercício do direito de voto.» (Arendt, 1997, p.229). (grifos nossos).

    A seguir dá o exemplo dos sansculottes da França. Apareciam como tal, aproveitando o impacto causado por uma aparição pública com suas roupas idênticas e lutavam por direitos democráticos e trabalhistas.

    «A mola propulsora dessa tentativa [refere-se ao papel protagonista que os operários cumpriram em 1789, 1848, etc.] não foi o labor – nem a rebelião sempre utópica contra as necessidades da vida –  mas sim aquelas injustiças e hipocrisias que desapareceram com a transformação da sociedade de classes em uma sociedade de massas, e a substituição do salário diário ou semanal por um salário anual garantido.» (Arendt, 1997, p. 231)

    Coerente com essa visão, sustenta a perspectiva de rápida desaparição do fenômeno do movimento operário enquanto contestação à ordem. Tenderia a se reduzir à expressão de qualquer outro ‘grupo de pressão’. E se adaptaria à ordem vigente como todos os outros:

    «A importância política do movimento operário hoje é a mesma de qualquer grupo de pressão; já se foi o tempo – que durou quase um século – em que podia representar o povo como um todo, se entendemos por le peuple o verdadeiro corpo político diferente portanto da população e da sociedade.» (Arendt, 1997, p. 231).

    «Ambíguo em seu conteúdo e objetivos desde o princípio, o movimento operário perdia imediatamente essa representação, e, por conseguinte, seu papel político, sempre que a classe operária tornava-se parte integrante da sociedade.» (Arendt, 1997, p.232).

    Esse argumento encerra uma contradição lógica com o trecho citado acima que afirmava como motivo da participação surpreendente do movimento operário a sua emancipação (política), em particular com a conquista do direito de voto: se o motivo da intervenção dos trabalhadores como protagonistas das revoluções era essa conquista, como esperar que eles perdessem imediatamente seu papel político uma vez que se tornassem ‘parte integrante da sociedade’? Então, o que levara a que eles tivessem um papel político revolucionário, completamente inesperado para Arendt, imediatamente os colocaria em uma situação de integração e igual a qualquer grupo de pressão?

    Mais uma observação sobre seu argumento: as revoluções operárias nem sempre se colocaram em locais onde a classe operária já havia se emancipado politicamente nem tinha tradição de participação ou mesmo direito a voto. Citemos apenas a russa de 1917 para exemplificar, onde inclusive a classe operária propriamente dita era uma ínfima minoria na população.

    O fenômeno da participação institucional e da integração das lideranças sindicais e partidos operários reformistas à ordem burguesa, em particular em países da Europa Ocidental é objeto de larga discussão na literatura sociológica e política, pois aí entram as mediações políticas, a luta de classes, as possibilidades de concessões econômicas, como no período do Welfare State e o papel mais poderoso dos regimes democráticos (e do Estado) dos países imperialistas. Mesmo assim, ao generalizar, Arendt esquece a realidade das revoluções operárias (ainda que não tenham triunfado) em países de tradição democrática e participação dos movimentos operários na política institucional, como a França (1936 e 45), Itália (1921 e 45), Alemanha (1919, 21 e 23, para não falar da conjuntura pré-ascensão do nazismo em 1933).

    Para explicar essa força e presença do movimento operário nestes 160 anos e os poderosos movimentos e correntes políticas que gerou, teríamos que partir do caráter social do trabalho operário sob o capitalismo, da contradição ente o trabalho social e apropriação privada do seu fruto para entender a revolta operária contra sua condição sob o capital, contra a alienação do trabalho que o capital permanentemente reproduz. Ao contrário do que afirma Arendt, o labor/trabalho sob o capital é fonte de uma atividade política, humana, da luta política pela emancipação do trabalhador, contra a alienação do trabalho e do homem.

    E o fato de que a humanidade esteja submetida a essa situação (ou ainda pior, quando está marginalizada, sem trabalho) em todo o mundo é a base para o internacionalismo operário e o que Marx chamava de libertação/emancipação dos trabalhadores, como estava inscrito no lema da Associação Internacional dos Trabalhadores. Nas Teses sobre Feuerbach ele afirmava a “humanidade socializada” como o horizonte do materialismo moderno, e não o que entendeu Arendt, quando afirma

    «E por isso é que Platão sugeriu que os operários e escravos eram não apenas sujeitos a necessidades e incapazes de liberdade, mas incapazes também de dominar o lado ‘animal’ de sua própria natureza. Uma sociedade de massas de operários, tal como Marx tinha em mente quando falava de <humanidade socializada>, consiste em exemplares da espécie humana isolados do mundo, quer sejam escravos domésticos, levados a essa infeliz situação pela violência de terceiros, quer sejam livres, exercendo voluntariamente suas funções.» (Arendt, p.131, grifos nossos).

    Aqui Arendt deixa muito clara sua posição, apoiando-se em Platão, de que os trabalhadores, sejam livres ou escravos, são incapazes por definição de superar seu lado animal e alcançarem a dimensão da ‘liberdade’.

    A única atividade considerada humana: a ação

    Esta revisão crítica das categorias de labor e trabalho utilizadas por Arendt permite agora que analisemos seu conceito de Ação: esta seria o diálogo entre ‘iguais’ (homens livres que buscam o bem comum) em um livre intercâmbio de opiniões possível somente em um espaço público. O espaço público é por definição uma arena comum separada da vida privada, das famílias, e opõe-se ao espaço privado, onde impera a dominação, a submissão, o egoísmo, etc. Arendt acredita que as pessoas tenham na ação política, ‘por seus atos e palavras’, uma oportunidade de ser livres. A conquista da liberdade estaria na esfera do político, no espaço público, e seria uma superação do reino da necessidade típica do espaço privado, da família, 10 etc. Apoiando-se numa interpretação do que teria sido a polis grega,  Arendt relaciona liberdade e política, esfera pública e privada:

    «O que todos os filósofos gregos tinham como certo por mais que se opusessem à vida na polis, é que a liberdade situa-se exatamente na esfera política; que a necessidade é primordialmente um fenômeno pré-político, característico da organização do lar privado; e que a força e a violência são justificadas nesta última esfera por serem os únicos meios de vencer a necessidade – por exemplo, subjugando escravos – e alcançar a liberdade.» (Arendt, 1997, p.40)

    Para Arendt só é atividade verdadeiramente política, aquela em que o indivíduo se move não por necessidade, mas pelo bem comum. O espaço público é definido também por este caráter de lugar onde os homens, livres das necessidades e das questões típicas do espaço privado, podem reunir-se para, através do diálogo, utilizando o discurso, deliberar sobre os destinos comuns. O reconhecimento público é o prêmio a alcançar. Esse espaço não pode ser ocupado por associações de iguais (de classes ou setores sociais), pois isso seria atentar contra a pluralidade:

    «A união de muitos em um só é basicamente antipolítica: é o exato oposto da convivência que prevalece nas comunidades comerciais ou políticas que – para citar o exemplo de Aristóteles – não é a associação <koinonia> de dois médicos, mas de um médico e um agricultor e, de modo geral, de pessoas diferentes e desiguais.» (Arendt, 1997, p.227).

    Para ela, portanto, o movimento operário é incapaz de uma verdadeira ação política. Ação e discurso só têm sentido para ela no espaço público, como forma de interação entre homens desligados de sua localização social ou privada. O espaço público seria o espaço da deliberação conjunta, através do qual os homens, na medida em que são capazes de ação e opinião, tornam-se interessados e responsáveis pelas questões que dizem respeito a um destino comum, que é a matéria própria da esfera do político. E este, para ser livre, deve estar desvinculado do trabalho e do labor. Nele, o número das pessoas não pode ser grande, pois levaria a uma irresistível tendência ao conformismo e à tirania da maioria.

    «Os gregos, cuja cidade-estado foi o corpo político mais individualista e menos conformista que conhecemos, tinham plena consciência do fato de que a polis, com sua ênfase na ação e no discurso, só poderia sobreviver se o número de cidadãos permanecesse restrito. Grandes números de indivíduos agrupados numa multidão desenvolvem uma inclinação quase irresistível para o despotismo pessoal ou o governo da maioria; e embora a estatística, isto é, o tratamento matemático da realidade fosse desconhecido antes da era moderna, os fenômenos sociais possibilitaram esse tratamento – grandes números justificando o conformismo, o behaviorismo e o automatismo nos negócios humanos – eram precisamente o que, no entendimento dos gregos, distinguia da sua a civilização persa.» (Arendt, 1997, pp.52-53, grifos nossos).

    As consequências dessa concepção sobre a visão política de Arendt

    A visão de Hannah Arendt sobre política opõe a ação (Política) ao social. Ela opina que a predominância do labor antes descrita trouxe consigo a invasão da esfera pública pela necessidade. Em tal proporção, que esta terminou por se desfigurar, transformando-se numa vasta administração técnica e burocrática que existe apenas em função da economia. Por isso, preocupa-se com “a ‘invasão do social’ sobre as outras esferas públicas, característica da esfera moderna”, 11 e com as multidões que não estariam em condição de resistir ao despotismo.

    Também se recusa a reconhecer na ‘polis’ a existência do conflito, como sua dimensão e, portanto, qualquer luta política entre classes e movida por interesses é considerada não política ou antipolítica. Assim, por extensão, qualquer conflito de classes ou setores de classe deturpa a esfera pública, vai contra a ideia central em sua visão do que é fortalecer o político e a esfera pública (pois seria uma expressão da esfera privada).

    Ela lamenta que as classes proprietárias modernas tenham abdicado de sua participação na esfera pública em prol do bem comum, como, em sua visão, faziam os gregos.  “Logo que passou à esfera pública, a sociedade assumiu o disfarce de uma organização de proprietários, que ao invés de se arrogarem acesso à esfera pública em virtude de suas riquezas, exigiram dela proteção para o acúmulo de mais riqueza.” (Arendt, 1997, p.78).

    Ela pressupõe o espaço público como o lugar por excelência da política, mas como atividade de poucos. Qualquer movimento social de massas deturparia o diálogo, introduziria o conformismo na esfera pública. Assim, ela separa a esfera política do social e da realidade concreta da vida cotidiana. Dessas considerações, só se pode entender que, como materialização contemporânea do espaço público, ela pensa em uma recriação da polis grega, que teria de ser baseada naqueles que tem condição de pensar, de elevar-se acima de seus interesses imediatos.

    Sua visão de cidadania seria inspirada na participação política entre iguais no espaço público (a isonomia), implicando em uma preparação para a vida política, para que possa ser uma ação entre iguais sem vinculação a interesses outros que não o bem comum da polis. Ou seja, para os melhores, os que não vivem do labor, nem do trabalho, para aqueles capazes de realizar a ação e o discurso com o sentido em que o faziam os cidadãos gregos.

    Para sinteticamente responder à hipótese inicial levantada no início deste texto, acreditamos que a formulação política de Arendt tem a ver com sua concepção, que despreza o trabalho e desconhece a potencialidade emancipadora do movimento dos trabalhadores. A consequência é defender uma visão restrita de política, baseada na interlocução de uma elite, desligada da sociedade, que se presuma estar acima dos interesses privados para poder decidir, em nome do bem comum, o que é legítimo ou ilegítimo.

    Num mundo dominado pela classe capitalista, em que o Estado responde aos interesses de classe dessa ‘elite’, a posição de Arendt, ao contrário do que ela tenta transmitir, tem um significado completamente antidemocrático, reacionário, pois propõe uma ‘democracia’ que exclui os trabalhadores, considerados incapazes de articular uma política. Mas para ela, os empresários que conseguissem abstrair de seus interesses (sic) seriam capazes de pensar no bem comum! O que tem esse modelo idílico a ver com a realidade, seja das democracias modernas, seja a dos partidos europeus, seja da América Latina?

    Na contramão de Marx e Engels, que identificaram no proletariado a classe que tinha de se organizar em forma autônoma para poder revolucionar a sociedade, ela defende a exclusão dos trabalhadores da arena política. Qualquer movimento social de massas seria nocivo, distorceria a ‘esfera pública’.

    Arendt reivindica a ‘democracia grega’, que excluía os escravos, mas para justificar essa exclusão, os gregos não os consideravam humanos ou como definia Aristóteles os escravos seriam ferramentas falantes. Para ela, assim como eram considerados os escravos na Grécia antiga, os proletários no capitalismo são inferiores por sua atividade. Esse é o pano de fundo da concepção de Hannah Arendt.


    Bibliografia:

    ANTUNES, Ricardo – Os Sentidos do Trabalho, São Paulo, Boitempo, 1999.

    ARENDT, Hannah – A Condição Humana. São Paulo, Forense, 8ª edição, 1997.

    FERNANDES, Florestan (org.) – Marx-Engels, História. São Paulo, Ática, 3ªed.,1989

    LUKÁCS, Gyorgy – Ontologia do Ser Social. (O Trabalho). tradução de Ivo Tonet

    MARX, Karl – El Capital, vol. I. México, Fondo de Cultura Económica, 8ª ed.,1973.

    MARX, Karl – Elementos fundamentales de la Economia Política (Gundrisse). México, Siglo XXI edit., 17ª edição, 1997.


    Notas

    1. Arendt, 1997, em especial, as partes II e VI. ↩︎
    2. “somente duas eram consideradas políticas e constituintes do que Aristóteles chamava de bios politikos: a ação(praxis) e o discurso(lexis), dos quais surge a esfera dos negócios humanos(o ton anthropon pragmata, como chamava Platão) que exclui estritamente tudo aquilo que seja apenas necessário ou útil.” Idem, pág.34 ↩︎
    3. Fernandes (org.), em especial Marx, K. “Trabalho alienado e superação da auto-alienação humana”, Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, pp. 148-156. ↩︎
    4. “Ao definir o trabalho como ‘metabolismo do homem com a natureza’, em cujo processo ‘o material da natureza é adaptado às necessidades do homem’, de sorte que ‘o trabalho se incorpora ao sujeito’, Marx deixou claro que estava ‘falando fisiologicamente’, e que o trabalho e o consumo são apenas dois estágios do eterno ciclo da vida biológica.” Arendt, 1997, p.110. ↩︎
    5. Arendt, 1997, nota de rodapé 35 da p.111: “Marx chamava o labor de ‘consumo improdutivo’ e jamais perdia de vista que se tratava de uma condição fisiológica.” ↩︎
    6. Seguimos raciocínio de Lukács no mesmo texto. ↩︎
    7. Marx, 1973, cap. V, pp.130/131. ↩︎
    8. “É obvio que aqui Marx já não se referia ao labor, mas ao trabalho – no qual não estava interessado; e a melhor prova disso é que o elemento de «imaginação», aparentemente tão importante, não desempenha papel algum em sua teoria do trabalho.” Arendt, 1997, p.111, nota 36 ↩︎
    9. Ver cap. VII de Antunes, 1999. ↩︎
    10. “A polis diferenciava-se da família pelo fato de somente reconhecer “iguais”, ao passo que a família era o centro da mais severa desigualdade.”  Idem, p .41 ↩︎
    11.  Idem, p. 55 ↩︎

    Publicado originalmente em www.teoriaerevolução.pstu.org.br

  • A derrota militar de Israel é possível

    A derrota militar de Israel é possível

    Até o ano passado, era difícil pensar a possibilidade de uma derrota militar de Israel em sua guerra permanente genocida contra o povo palestino.  Hoje, importantes intelectuais, como Ilan Pappe, já preveem o colapso de Israel ou sua derrota militar a curto prazo. 1

    Por: Jose Welmowick, Jorge Martinez e Américo Gomes

    A crise no governo de Netanyahu e no Estado de Israel já existia antes do ataque do Hamas em 7 de outubro, no entanto, o ataque daquele dia e a resistência palestina, que não é derrotada depois de 8 meses de combate, estão agravando-a.

    Além da heroica resistência palestina, as grandes manifestações internacionais, principalmente nos países imperialistas e algumas ações dos trabalhadores destes países, desmascararam o governo israelense e potencializam a grave instabilidade política em Israel.

    A política do imperialismo de impor um enclave sionista em uma região de árabes e muçulmanos no Oriente Médio pode estar à beira de uma derrota histórica. Um dado que Ilan Pappé chama a atenção é sobre o número de judeus israelenses que estão deixando o país, preocupados com a segurança. Ele calcula em uns 500 mil israelenses tomando essa atitude, ou seja cerca de 10% da população judaica. O ex-primeiro-ministro Naftali Bennet publicou um chamado emocional para que os judeus não abandonem Israel neste momento delicado. 2

    Do ponto de vista político, portanto, já há uma derrota. Uma expressão disso é que a maioria da vanguarda da classe trabalhadora dos países ocidentais já identifica o Estado de Israel como um Estado repressor e opressor que está praticando um genocídio contra todo um povo. A maioria da juventude judaica dos EUA, país chave para a manutenção do Estado de Israel, já não se identifica com Israel e participa em massa das manifestações contra o genocídio na Palestina. Já está se dando uma derrota política para o sionismo, e a realidade do Oriente Médio já não será a mesma depois destes últimos meses.

    Embora nem todos vejam que este regime nazista e racista necessita ser destruído e eliminado, o que só pode ocorrer de maneira violenta, o repúdio é cada vez mais estendido, tendo atingido as maiores universidades dos EUA, tais como Harvard e Columbia.

    O problema está em que a maioria das organizações operárias, mesmo as que se apresentam mais à esquerda, apoiam, explicita, ou tacitamente a política de manutenção dos dois Estados e não desenvolvem uma política efetiva de apoio militar à resistência palestina.

    Em virtude desta posição, a maioria das organizações não desenvolve uma política efetiva de apoio militar à resistência palestina, nem se faz uma política de exigência para que os governos da região rompam as relações com Israel, declarem-se solidários e apoiem o esforço dos palestinos para derrotar Israel militarmente.

    Por outro lado, se aqueles que se dizem pela vitória da resistência, como o Hezbollah e o Irã apoiassem efetivamente e abrissem uma outra frente de combate, acelerariam a crise e a derrota militar do enclave sionista.

    A farsa da democracia do estado de Israel

    Israel tenta se apresentar como uma democracia, inclusive que respeita as minorias oprimidas, diferente dos outros países da região, como os Estados muçulmanos.

    No entanto, o regime que existe é o de um estado colonial de apartheid, que pratica discriminação e segregação racial sistêmica de forma desumana para oprimir os palestinos. Na realidade, os cidadãos palestinos de Israel são de segunda classe e os palestinos dos territórios ocupados são submetidos a regras coloniais 3 sem ter nenhum direito. As prisões sionistas estão repletas, com milhares de prisioneiros palestinos presos sem sequer uma acusação formal, mas que ficam meses ou anos detidos sem ter acesso sequer a um julgamento.

    Israel realiza eleições regulares, tem um parlamento, um Supremo Tribunal e instituições clássicas de uma democracia, e uma imprensa em alguma medida livre para os israelenses, mas nada para os árabes.  A propaganda sionista fala todo o tempo de ser a única ‘democracia’ do Oriente Médio.  Na verdade, esta democracia parlamentar é para os cidadãos judeus, pois os árabes são excluídos. Mesmo nela, uma série de decisões políticas e jurídicas autoritárias foram tomadas nos últimos anos apenas para salvar o poder do atual governo Netanyahu, que inclusive levaram a protestos de massa dos próprios israelenses nas ruas.

    Na Cisjordânia, existe uma série de assentamentos judeus ilegais pelas normas do direito internacional e da ONU e, além disso, os muros que separam Israel dos territórios ocupados obrigam os palestinos que vivem nas cidades da área a passar por um emaranhado de postos de controle se quiserem se deslocar por esses territórios ou trabalhar dentro das fronteiras de Israel de 1967, nos quais são submetidos a humilhações diárias e retenção em filas por horas a fio. E os colonos judeus dessas áreas são a base para os agrupamentos diretamente fascistas que integram governos como o de Netanyahu e ministros importantes como Smotrich ou Bengvir que falam abertamente no extermínio físico dos palestinos.

    O fato é que 5 milhões de palestinos que estão sob ocupação israelense não têm direitos nem mesmo a voto. Se todos que estivessem sujeitos à autoridade israelense tivessem o direito de votar, a maioria seria palestina. Se incluirmos os milhões de refugiados palestinos fora do país que gostariam de regressar à sua terra natal, o quadro se torna ainda mais complexo para os sionistas. Por isso, a maioria eleitoral sionista tem feito uma série de leis discriminatórias que visam limitar os direitos de cidadãos não-judeus de Israel cada vez mais.

    Essas são as principais razões pelas quais muitos observadores internacionais não consideram Israel uma verdadeira democracia. Assim como as entidades de direitos humanos, cada vez mais, responsabilizam Israel por estar cometendo um genocídio com sua agressão assassina em Gaza e na Cisjordânia.

    Israel não aceita o estado palestino

    Apesar da farsa imperialista da política dos dois Estados, para os partidos que governam Israel, a única opção possível neste momento é uma solução de um Estado único, mas desde que se mantenha o status quo de um Estado com territórios ocupados e apartheid e nem consideram a possibilidade de um Estado palestino na Cisjordânia e em Gaza, onde os palestinos tenham plenos direitos políticos.

    A saída democrática está na proposta original da OLP, de uma Palestina única, livre, laica e democrática. A política dos ‘dois estados” serve apenas para encobrir os países imperialistas que apoiam Israel com uma aparente política de “justo meio”, pois levantam essa posição para atrair um setor da sociedade palestina e para justificar sua posição pró-Israel e tentar dar credibilidade a seus esforços de impor uma ‘paz dos cemitérios’, que acabe com a revolta palestina. Mas o setor que simboliza essa política no interior da sociedade palestina, a ANP e seu líder Abbas tem cada vez menos apoio, e na verdade cumpre um papel de polícia interna da ocupação sionista.

    A política de dois Estados também serve para ganhar tempo para levar a cabo o genocídio do povo palestino, à medida que Israel aumenta a sua ocupação territorial ilegal, inflando a imigração, e tentando crescer aumentando a natalidade entre as comunidades religiosas fundamentalistas.

    A verdadeira política que se vê na realidade é a que afirma o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu: “Vamos transformar Gaza numa ilha deserta. Aos cidadãos de Gaza, eu digo: vocês devem partir agora. Iremos atacar todos e cada um dos cantos da faixa.” Para os sionistas, a alternativa para os palestinos é evacuar ou morrer com os palestinos não tendo para onde correr.

    Israel não é invencível

    A invencibilidade militar de Israel foi por terra. Seu grande desenvolvimento tecnológico e capacidade de monitoramento têm sido vendidos através de seus softwares espiões, como o Pegasus, para muitos países ao redor do mundo, incluindo países árabes.

    Mas o ataque do Hamas em 07 de outubro demonstrou que o sistema de inteligência das forças de Israel, com seus drones de vigilância, suas câmeras de segurança e todo seu aparato de coleta de informações mostrou-se um fracasso. 

    Além da confiança em sua tecnologia militar Israel confiava em seu muro, construído com alto custo, que os combatentes palestinos simplesmente demoliram com escavadeiras e caminhões, passaram com motocicletas e jipes e sobrevoaram com asas deltas.

    Os soldados que o guarneciam foram esmagados e demonstraram pouca resistência, mostrando que estavam com o moral baixo. Desmoralização que se reflete na incapacidade das forças armadas de derrotar a resistência palestina depois de 8 meses de combate e de toda a destruição provocada em Gaza.

    Essa situação levou o principal porta-voz das Forças de Defesa de Israel, Contra-Almirante Daniel Hagari, a afirmar que “o Hamas é uma ideia” que não pode ser eliminada e não dizer isso é “jogar areia nos olhos do público“.

    Recentemente, o New York Times publicou uma matéria, mostarndo que os principais generais de Israel defendem um cessar-fogo na Faixa de Gaza, mesmo com o Hamas mantendo o poder. Cresce a diferença entre o comando militar e o governo Netanyahu, que continua defendendo que a guerra só terminará “depois de ter atingido todos os seus objetivos, incluindo a eliminação do Hamas e a libertação de todos os nossos reféns“. Os generais admitem que estão subequipados para os combates, com menos munições, menos peças de reposição, e menos energia moral. 4

    Estes fatos obrigaram Netanyahu a dissolver seu gabinete de guerra, ainda mais depois que o ex-ministro da Defesa Benny Gantz acusou-o de atrapalhar a “vitória real“. A divisão nos altos escalões do estado sionista é uma expressão do fracasso de sua ofensiva para esmagar a resistência. Netanyahu é acusado abertamente de manter a guerra para salvar seu mandato, já que uma vez que o conflito acabe, ele corre o risco de ser julgado inapto para o cargo por corrupção. Manifestações com dezenas de milhares de israelenses vêm crescendo, exigindo um acordo de cessar-fogo e que Israel aceite a proposta da resistência palestina e faça a troca de reféns israelenses por prisioneiros palestinos feitos por Israel em todos esses anos de ocupação.

    A resistência palestina se mantém forte em Gaza e na Cisjordânia

    Além de não ter conseguido destruir a resistência palestina em Gaza, o exército de Israel está sendo obrigado a renovar os combates mesmo nas áreas da Faixa que foram ocupadas. Apesar do governo Netanyahu afirmar que desmantelou o aparato militar da Resistência no norte da Faixa de Gaza, em janeiro de 2024, no bairro de al-Shujaiya, na Cidade de Gaza, estão se dando violentos combates há meses. Com as forças blindadas e de infantaria israelitas recebendo reforços e estando mais bem equipadas e com maior poder de fogo, apoiadas pela Força Aérea. Os combatentes da Resistência Palestina estão enfrentando as forças hostis e causando baixas em forma permanente ao inimigo nessa região.

    Segundo informa o site Al Mayadeen, as Brigadas al-Quds da Jihad Islâmica Palestina (PIJ) atacaram os tanques israelenses Merkava 4, usando o Shawaz EFP, (uma ogiva autoformada) e foguetes (RPG) al-Yassin. Combatentes do Al-Qassam também enfrentaram as forças de ocupação em Tal al-Hawa, outro bairro no sul da Cidade de Gaza, disparando um RPG contra os soldados.

    As forças de ocupação no assentamento de Netsarim e em Kissufim foram atacadas em suas bases militares por combatentes da Resistência, que dispararam vários tipos de projéteis de artilharia e foguetes em sua direção. 5

    Depois da invasão terrestre da Faixa de Gaza, no final de outubro de 2023, a Resistência Palestina, com as Brigadas al-Qassam do Hamas, recuperaram capacidades operacionais eficazes em Jabalia e seu campo de refugiados, no norte de Gaza.

    Em Rafah, a Resistência Palestina continua a enfrentar as forças de ocupação lançando foguetes contra instalações militares israelenses, como em Sufa, leste da cidade, e no bairro de al-Saudi, o local da base militar de Karem Abu Salem. Uma equipe de franco-atiradores da Al-assam conseguiu abater soldados israelenses perto da mesquita al-Shibli, no leste de Rafah. As Brigadas também dispararam foguetes RPG al-Yassin contra um APC israelense no bairro de Al-Saudi. No bairro de al-Shaboura, combatentes de Al-Qassam dispararam projéteis RPG contra os tanques israelenses Merkava.

    Também na Cisjordânia, a resistência está infligindo perdas às tropas de ocupação sionistas.  Em Jenin, as Brigadas Al-Quds estão enfrentando as forças de ocupação israelenses que invadiram a cidade. Com seus artefatos explosivos improvisados (IEDs). Na área de Sahel Marj Bin Aamer, no norte de Jenin, vários soldados israelitas foram feridos, no que foi chamado pelas Brigadas de “Operação Fúria de Jenin 2“. Veículos blindados israelenses foram destruídos, como o Panther Personnel Carrier (APC).

    Essas são demonstrações de que a disposição dos combatentes da Resistência Palestina é de continuar a lutar contra a ocupação israelense até que esta seja derrotada na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. 6

    Estes combatentes necessitam de apoio político, contrabandos de armas e de que as nações árabes e muçulmanas da região se unam e isolem Israel em toda a região.

    As manobras imperialistas

    Como a situação está adversa para Israel e os sionistas, apareceram outras propostas de saída negociada. Nos marcos da ONU, os integrantes do Conselho de segurança como China e Rússia tentam conseguir uma suspensão das hostilidades, para que os negócios voltem a fluir.  Porém, esses países, apesar de algumas declarações e críticas ao Estado sionista, assim como os governos das nações árabes e muçulmanas, não fazem nada efetivamente para ajudar a Resistência. Todos se disciplinam às decisões do Conselho de Segurança, onde os EUA, com seu direito de veto, impedem qualquer política efetiva que obrigue Israel a recuar da invasão genocida a Gaza, e da repressão assassina na Cisjordânia.

    De fato, esperam que Israel aplaste a Palestina para que a região volte à ‘normalidade’. Enquanto o imperialismo, por seu lado, unificado, fala sobre a política dos dois Estados, visando derrotar a resistência palestina com manobras protelatórias e dissuasivas.

    Os EUA chegaram a falar em suspensão do fornecimento de ajuda militar a Israel, mas nada disso se efetivou, muito pelo contrário. 7 Os pedidos de mandados de prisão dos líderes de Israel e do Hamas apresentados no Tribunal Penal Internacional (TPI) expressam o repúdio massivo que está tendo o genocídio transmitido ao mundo com imagens ao vivo, mas não têm o poder de impedir a continuidade da invasão, nem o apoio militar decisivo dos EUA a Israel. E quando a Espanha, a Noruega e a Irlanda reconhecem formalmente a Palestina como Estado, é só para encontrar um caminho para estabilizar a situação, com o objetivo de ganhar tempo para a derrota da Resistência Palestina.

    Um programa para a vitória militar

    Por Israel ser uma potência militar que visa massacrar um povo em condições de inferioridade militar, além de ser fortemente apoiada pelas potências imperialistas, o esforço para sua derrota deve combinar uma série de fatores.

    A começar pela mobilização da classe trabalhadora, com atos e manifestações, mas também com boicotes e bloqueios de materiais militares, a estilo do boicote aos produtos de Israel através do movimento do BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções) e os embargos em portos e aeroportos ao comércio com o agressor genocida. Mas também é necessário que a solidariedade à Resistência Palestina, além de política, seja militar, com o envio de armas pelos países que reconhecem que há um genocídio.

    Os Estados Árabes e da região devem romper com o Acordo de Abraham e declarar sua ruptura com Israel, a começar pelo Irã e Arábia Saudita. Mas não basta só romper relações políticas e econômicas. Além disso, os países da região devem regionalizar o conflito militar atacando o Estado sionista.

    A causa palestina exige uma “nova Intifada regional”, com o apoio dos palestinos que vivem na Jordânia. O Egito e outros países vizinhos podem prestar apoio militar direto aos palestinos perseguidos e com suas vidas ameaçadas na Cisjordânia e em Gaza.  O Hezbollah deve ter uma postura ofensiva contra Israel, partindo do conflito no sul do Líbano e no norte de Israel em solidariedade aos palestinos de Gaza e Cisjordânia. Além disso, os países da região devem se colocar claramente ao lado dos palestinos, colocando a agressão sionista como um conflito militar contra todas as nações árabes e muçulmanas da região e isolando o Estado sionista.

    Acreditar em uma paz sem a derrota militar de Israel é uma utopia reacionária. Não há possibilidade de paz no SWANA ou a existência de uma Palestina Livre e Democrática sem a destruição do Estado de Israel.


    Notas

    1. https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/o-colapso-do-sionismo-e-israel/ ↩︎
    2. Nota de Naftali Bennett. ↩︎
    3. Para que se veja a expressão dessa atitude colonialista, utiliza-se as regulamentações do período colonial britânico sobre a Palestina entre 1918 e 1947 nos casos que envolvem palestinos dos territórios ocupados. ↩︎
    4. Guerra em Gaza: Sem munições e energia, generais israelenses querem cessar-fogo no enclave palestino (globo.com) ↩︎
    5. Resistência palestina enfrenta nova invasão de al-Shujaiya | Al Mayadeen Inglês ↩︎
    6. Idem ↩︎
    7. A Casa Branca informou ao Congresso que planeja enviar mais de US$ 1 bilhão em novas armas para Israel. ↩︎

    Publicado em julho de 2024 em www.litci.org/pt