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  • Reforma ou revolução em tempos de pandemia

    Reforma ou revolução em tempos de pandemia

    A situação para os trabalhadores na pandemia recoloca o debate sobre a questão da reforma e da revolução.

    Os Estados Unidos, país mais poderoso do capitalismo, são incapazes de evitar a situação que se abate sobre sua população. Os 100 mil mortos da pandemia já são um número maior do que o das guerras do Vietnã, da Coreia e do Afeganistão. O cenário é devastador: os dados são piores que a crise de 1929. Naquela época, houve 9% de desemprego. Hoje já são 25%, 38 milhões de desempregados e 27 milhões de indocumentados que não possuem seguro-desemprego, pois não têm direitos de nenhuma espécie.

    Por: José Welmowicki

    O problema, contudo, atinge todo o globo. Os países imperialistas e não imperialistas e o capitalismo só apresentam saídas que atacam os trabalhadores. Os planos dos governos capitalistas falam em salvar a economia, mas são para salvar os setores monopolistas da burguesia, bancos e grandes empresas.

    Nesse momento, uma questão chave volta à ordem do dia: é possível que se possa garantir a todos ao menos a vida sob o capitalismo? É possível o acesso a conquistas básicas da civilização, como a eliminação da fome, acesso à água, saneamento e saúde para toda a humanidade? O capitalismo tem possibilidade de, por meio de uma evolução gradual, chegar a uma sociedade socialista? É possível, assim, reformar o capitalismo?

    Essa disjuntiva, “reforma ou revolução”, ou como traduziu Rosa Luxemburgo, “socialismo ou barbárie”, é um tema presente. Neste artigo, vamos examinar a origem dessa discussão entre os socialistas. Em textos futuros, analisaremos como ela continuou até hoje.

    A discussão entre os primeiros socialistas

    Karl Marx

    A primeira crítica ao reformismo

    No Manifesto Comunista, Marx e Engels dedicam um capítulo à “Literatura socialista e comunista” e definem cinco correntes que elaboraram teses e influenciavam as visões naquela época: 1) os socialistas feudais, que idealizavam a sociedade feudal e se reduziam à medida que o capitalismo avançava; 2) o socialismo pequeno-burguês, que expressava a reação da pequena burguesia e de camadas médias arruinadas pela burguesia e propunham voltar no tempo, o que era utópico e reacionário nas palavras de Marx e Engels; 3) o socialismo burguês ou conservador, que desejava “a sociedade atual sem os elementos que a revolucionam e a dissolvem”; para Marx, essa corrente não conseguia superar a visão do “pequeno-burguês oscilando constantemente entre o capital e o trabalho, entre a economia política e o comunismo”, e era contra os movimentos políticos da classe operária; 4) o socialismo alemão ou «verdadeiro» socialismo, um pensamento típico da pequena burguesia, que refletia a realidade econômica da sociedade alemã naquele momento, ainda desenvolvida de forma insuficiente em termos capitalistas; opunha-se à burguesia, bem como ao comunismo, e colocava-se contra a irrupção política dos operários; 5) os “socialistas utópicos” – como Fourier e Owen –, cujas teorias eram antecipações geniais, mas ao aparecer antes das condições econômicas e sociais estarem desenvolvidas, não viam um papel revolucionário para o proletariado, mas apenas como classe oprimida e pobre; por isso buscavam convencer a todas as classes, inclusive a burguesia, de suas teses; opunham-se, assim, a todo movimento político próprio dos operários naquele momento.

    Ao lado dessas doutrinas, havia uma questão central para o programa que se expressaria já a partir do século XIX: os operários devem buscar tomar o poder como classe ou podem e devem governar com a burguesia ou setores progressistas dela? Louis Blanc, um socialista francês, aceitou entrar no governo burguês saído da revolução de 1848 como ministro do Trabalho. Foi o primeiro exemplo histórico de participação de dirigentes socialistas em governos da burguesia e Marx dedicou a ele duras críticas em seu As lutas de classes na França.

    Em 1899, a polêmica em torno à participação de ministros socialistas em governos burgueses, o ministerialismo, dividiu a II Internacional socialista quando o partido francês, por meio da ala de Jaurés, aceitou indicar Millerand.

    Rosa Luxemburgo escreveu um texto teórico condenando essa posição e explicando como a participação num governo burguês significava o abandono da visão marxista do Estado e da revolução socialista.

    Rosa Luxemburgo

    A crise da social-democracia: Bernstein e Rosa Luxemburgo

    O primeiro grande esforço teórico para apresentar uma elaboração em defesa das reformas como caminho para o socialismo foi de Eduard Bernstein no SPD alemão (Partido Social-Democrata) em 1899. Sua visão também defendia a cidadania como substituta da luta pela emancipação do proletariado. “A social-democracia não deseja romper a sociedade civil e fazer de todos seus membros proletários; na verdade, ela trabalha incessantemente para elevar o trabalhador da posição social de proletário para a de cidadão e, portanto, para tornar a cidadania universal”, dizia.

    Essa concepção, como lhe respondia Rosa Luxemburgo, significava aceitar a sociedade burguesa como horizonte: “quando [Bernstein] utiliza a palavra cidadão referindo-se tanto ao burguês como ao proletário, querendo com isso, referir-se ao homem em geral, identifica o homem em geral com o burguês e a sociedade humana com a sociedade burguesa”. Por isso, denunciava a revolução socialista como um caminho blanquista ou, ainda, “terrorista”.

    Bernstein considerava a democracia como “ausência de um governo de classe. Isso indica um Estado em que nenhuma classe tem o privilégio político”. Assim, cada governo eleito seria o responsável por implementar o seu programa segundo a classe que representasse. Para ele, o caminho para o socialismo passava pela democracia e pela implementação gradual de reformas. Bastaria ao partido operário triunfar nas eleições.

    Como Rosa Luxemburgo afirmava em Reforma e revolução, essa posição contrariava toda a concepção marxista do Estado e se identificava com os socialismos utópicos e reformistas que Marx e Engels combateram. Afinal, Bernstein colocava-se de forma explícita contra o programa marxista de revolução socialista e de tomada do poder, acusado por ele de terrorista.

    A I Guerra Mundial transformou essa questão teórica em questão política: a social-democracia alemã e a maioria esmagadora da II Internacional votaram o apoio a seus governos burgueses para entrar em guerra (os créditos de guerra), colocando os operários de seus países para combater e matar seus irmãos de outros países. Foi o abandono de um princípio básico do movimento operário desde a I Internacional, expresso na frase: “Proletários de todo o mundo, uni-vos.” Uma traição que custou a vida de milhões. Bernstein ficou associado a essas traições e derrotas históricas e, por essa razão, os novos setores que assumiram a mesma posição dele, em geral, não o reivindicam.

    Karl Kautsky

    O reformismo “de centro”

    Frente à I Guerra Mundial, não foram somente os seguidores de Bernstein que apoiaram suas burguesias para que entrassem em guerra. Em nome da “defesa da pátria”, os principais dirigentes abandonaram os princípios e inclusive o compromisso político do Manifesto de Basileia, de lutar contra a guerra e seus governos, votado pela II Internacional dois anos antes.

    O teórico mais destacado da II Internacional, Karl Kautsky, participou dessa virada e do abandono da posição marxista. Uma ala bem minoritária havia resistido a essa traição. Nela estavam Lenin, Rosa Luxemburgo, Trotsky, entre outros, que mantiveram a posição revolucionária contra a guerra. Quando as trágicas consequências da guerra em vidas e miséria abriu uma crescente indignação, levando à eclosão da Revolução Russa em fevereiro de 1917, os bolcheviques, liderados por Lenin, chamaram a preparar a revolução socialista que se efetivou em outubro.

    Em outubro, os sovietes tomaram o poder sob a direção dos bolcheviques. Kautsky encabeçou o combate contra os bolcheviques, alegando que os sovietes não deveriam tomar o poder, mas entregá-lo à Assembleia Constituinte. A natureza pró-burguesa da posição reformista consistia, então, em ser contra a revolução proletária na Rússia. Essa mesma posição de Kautsky materializou-se na revolução alemã que eclodiu no fim da guerra, na qual se formaram os conselhos operários, semelhantes aos sovietes, influenciados pela Revolução Russa. Ele defendeu que os conselhos operários não tomassem o poder e se subordinassem à Assembleia Constituinte. Essa posição, vitoriosa no congresso dos conselhos, levou à derrota a revolução alemã.

    Lenin

    O resgate revolucionário

    Lenin fez uma dura polêmica com Kautsky nos livros O Estado e a revolução e A revolução proletária e o Renegado Kautsky e afirmava que, por utilizar uma terminologia marxista para defender posições reformistas, “Kautsky é ainda pior que Bernstein”.

    Lenin considerou morta a II Internacional e chamou a formar a Internacional Comunista para agrupar os revolucionários. A social-democracia transformou-se numa federação de partidos reformistas que participam de governos burgueses como regra geral e cumprem um papel de aparatos contrarrevolucionários, defensores do Estado burguês e administradores do capitalismo.

  • O surgimento e o papel do reformismo stalinista e social-democrata

    O surgimento e o papel do reformismo stalinista e social-democrata

    A III Internacional, com a força da vitória da Revolução Russa, rapidamente adquiriu influência de massas numa disputa frontal com a social-democracia. Sua estratégia era a revolução mundial, a luta pela destruição do Estado burguês e pelo poder operário como transição ao socialismo.

    Por: José Welmowicki

    No entanto, o isolamento da Revolução Russa, a destruição causada pela guerra civil contra o poder operário pelas invasões dos mais de 20 exércitos sustentados pelas potências imperialistas, num país atrasado com um grande peso do campo, gerou um processo de burocratização do Estado e do partido comunista, levando a uma contrarrevolução política. Encabeçada pela fração dirigida por Stalin, ela tomou o controle do poder e do partido e imprimiu uma orientação oposta à de Lenin.

    Em primeiro lugar, mudou a política de Lenin e a visão marxista de que, para triunfar, o socialismo tinha de ser mundial. Também acabou com a democracia no Estado e no partido. Esses princípios foram substituídos pela defesa do “socialismo num só país”, pela burocratização do aparato estatal, pela perseguição aos opositores no partido e no Estado e pela opressão às nacionalidades e todos os setores oprimidos. Coroando esses retrocessos, surgiu a nova doutrina, o stalinismo, que assumiu como política para os países coloniais e semicoloniais a aliança estratégica com as burguesias nacionais ou seus setores supostamente progressivos.

    O stalinismo passou defender os governos de colaboração de classes, as chamadas frentes populares com a burguesia, como na França e na Espanha da década de 1930. Como afirmava Trotsky no Programa de Transição, em 1938: “A Internacional Comunista enveredou pelo caminho da social-democracia na época do capitalismo em decomposição, quando não há mais lugar para reformas sociais sistemáticas nem para a elevação do nível de vida das massas, quando a burguesia retoma sempre com a mão direita o dobro do que deu com a mão esquerda, quando cada reivindicação séria do proletariado, e mesmo cada reivindicação progressista da pequena burguesia, conduzem inevitavelmente além dos limites da propriedade capitalista e do Estado burguês.” O stalinismo assumiu as posições essenciais do reformismo.

    COLABORAÇÃO COM A BURGUESIA
    Depois da Segunda Guerra e o estado de bem-estar

    Na Segunda Guerra Mundial, deu-se uma das maiores batalhas e maiores vitórias dos trabalhadores e dos povos de todo o mundo: a derrota do nazifascismo. Isso apesar de todas as traições, dos acordos da Inglaterra e da França com o nazismo, dos pactos de Stalin com Hitler em 1938. O papel das massas da URSS, como em Stalingrado, foi decisivo nessa luta e nessa vitória apesar de sua direção. Por isso os partidos comunistas saíram prestigiados, pela resistência e pela vitória final contra os nazistas.

    Isso permitiu aos partidos comunistas uma situação privilegiada. Frente à colaboração das burguesias locais com Hitler e Mussolini, após a invasão da URSS pelos alemães em 1941, os comunistas cumpriram um papel de destaque na guerrilha iugoslava, na resistência francesa e italiana, na resistência grega, na China, no Vietnã.

    No fim da Segunda Guerra Mundial, uma situação revolucionária se abriu em toda a Europa. A resistência tinha o controle de países decisivos. Estava colocada a possibilidade de tomar o poder em países-chave. Uma revolução operária e popular se abriu na França, na Itália e na Grécia. Os trabalhadores armados e vitoriosos haviam destruído o ocupante nazista e o Estado burguês.

    Mais uma vez a traição das direções burocráticas foi decisiva para manter o capitalismo, sob as ordens de Stalin, que apostou tudo nos pactos de Yalta e Potsdam e na coexistência com o imperialismo, inclusive dissolvendo a III Internacional, em 1943, a pedido de Winston Churchill. Uma traição histórica à revolução e ao legado de Lenin. Essa conduta permitiu o massacre da resistência grega pelo exército inglês, e os PCs entregaram o poder à burguesia na França e na Itália.

    Diante de uma situação explosiva na Europa, o imperialismo foi obrigado a fazer uma série de concessões aos trabalhadores e permitir que a social-democracia e os PCs pudessem justificar seu apoio aos novos governos de “unidade nacional pela paz”. O imperialismo estadunidense organizou o Plano Marshall para financiar a reconstrução capitalista da Europa Ocidental arrasada pela guerra.

    Uma série de medidas de proteção social, antes recusadas pelas burguesias imperialistas acabaram sendo implementadas, como a legalização de vários direitos trabalhistas e a criação ou extensão da previdência social. Foi o chamado welfare state (estado de bem-estar social), que ao trazer melhorias no nível de vida passou a ser apresentado como “prova” da possibilidade de uma reforma gradual do capitalismo: um padrão que podia ser mantido e estendido.

    Nesse processo, os reformistas conseguiram uma retomada de seu prestígio ao capitalizar esse período em que, devido à destruição causada pela guerra e o medo da revolução operária, a burguesia se viu obrigada a permitir uma melhora importante nas condições de trabalho e nos direitos sociais. A social-democracia e os PCs se apresentaram como os defensores dos direitos sociais, reconstruíram-se na Europa Ocidental e passaram com frequência a ser parte dos governos da Alemanha, da Inglaterra, da França, entre outros países. Isso ocorreu nos anos 1950 e até o final da década de 1960 com fortes partidos reformistas, sejam partidos socialistas, sejam comunistas, em toda Europa Ocidental.

    No final dos anos 1940 e começo dos anos 1950, a pressão do imperialismo anglo-estadunidense na chamada “guerra fria” gerou um discurso mais duro da burocracia stalinista. Porém o stalinismo nunca rompeu seu compromisso com a ordem mundial de Yalta e Potsdam. O stalinismo passou a uma posição de colaboração aberta e de “coexistência pacífica” com o imperialismo. A partir dessa doutrina, os discursos são a defesa do diálogo e da conciliação, com os PCs ajudando a sustentar a dominação imperialista no mundo e o Estado burguês.

    A partir do final dos anos 1950, os PCs passaram a ser campeões em apoiar governos burgueses supostamente progressistas em todos os continentes. Na Itália, por exemplo, defenderam o “compromisso histórico” entre o PC, o maior partido comunista do ocidente, com a Democracia Cristã, maior partido burguês na Itália.

    AMÉRICA LATINA
    Fracasso do reformismo e do nacionalismo burguês no mundo semicolonial

    Na América Latina, entre os anos 1950 e 1970, a presença do reformismo e do nacionalismo burguês seguiram esse processo de chegar ao governo para tentar desviar os processos revolucionários desde a Bolívia, em 1952, até a Argentina, com Perón. Nesses processos, em nome da frente com a burguesia, os PCs apoiaram os governos ditos progressistas, como Joao Goulart no Brasil, em 1962-63, e a Unidade Popular de Allende no Chile, entre 1970-73. Em nome dessas alianças, passaram a defender a legalidade e o Estado e chamaram a confiar nas forças armadas, ditas patrióticas. Com isso, desarmaram a resistência aos golpes tanto no Brasil quanto no Chile.

    NEOLIBERALISMO
    A crise na social-democracia e no stalinismo

    A social-democracia, que havia se fortalecido na reconstrução do pós-guerra e por sua identificação com o Estado de bem-estar social, passou a sofrer um forte desgaste no final dos anos 1960. Nesse momento, começou o período de ataques a esses direitos sociais. Ataques que vieram pela direita, mas também pelos sociais-democratas quando estavam nos governos.
    Na França, na Alemanha e na Espanha pós-franquista, a partir dos anos 1970 e nos anos 1980, começou um forte desgaste que se aprofundou com a implantação do chamado “neoliberalismo”.

    Este consistia numa política econômica de retirada dos direitos conquistados em nome de “menos Estado” e da “liberdade de iniciativa”. Iniciado por Margaret Thatcher (Reino Unido) e Ronald Reagan (EUA) e experimentado na ditadura chilena de Augusto Pinochet, o neoliberalismo foi sendo tomado como pauta também por governos social-democratas: Mitterrand na França, em 1981-88, Felipe González na Espanha, nos anos 80, os trabalhistas na Inglaterra e os sociais-democratas na Alemanha. Desse processo, surgiu a terceira via do trabalhista Tony Blair, primeiro-ministro da Grã-Bretanha (1997 a 2007).

    Por outro lado, abriu-se uma crise nos partidos comunistas europeus stalinistas com a repressão do Exército Vermelho russo contra as revoluções políticas no Leste Europeu nos anos 1950, 1960 e 1970.

    Surgiu, então, o fenômeno do eurocomunismo, tendo como carro-chefe o PC Italiano. Levando até o fim a política de aceitar o Estado burguês em nome da democracia, formularam a doutrina da “democracia como valor universal”. Para eles a evolução da democracia levaria ao socialismo sem necessidade de revoluções sociais. Ou seja, adotaram um programa tal como a social-democracia havia feito no passado.

    As outras vertentes do stalinismo, como o maoísmo e o castrismo, apesar da estratégia guerrilheira, que num primeiro momento atraiu a simpatia de milhares de militantes, acabaram por ser a expressão das burocracias que governam China e Cuba. Em pouco tempo, apoiavam as burguesias ditas progressistas e se colocaram contra a tomada do poder pelos trabalhadores numa série de revoluções. Fidel Castro mostrou isso apoiando a aliança de Allende com a burguesia no Chile e também quando disse aos sandinistas na revolução da Nicarágua, em 1979, que não se devia expropriar a burguesia, mas sim se aliar a ela. “A Nicarágua não deveria ser uma nova Cuba”, disse.

    Tanto a burocracia chinesa quanto a cubana foram linha de frente da restauração do capitalismo em seus países. Hoje, o PC cubano representa a nova burguesia que restaurou o capitalismo na ilha. Já o PC chinês passou a ser um partido que governa de forma totalitária o Estado capitalista chinês.

    Após a restauração do capitalismo na ex-URSS, os partidos eurocomunistas como o PC Italiano completaram um processo de reconversão em partidos burgueses.

    A social-democracia e o que restou dos antigos partidos stalinistas, como o português e o francês, transformaram-se em partidos da ordem, cujo programa é a defesa do Estado burguês. Assim, tornaram-se instrumentos auxiliares para a burguesia implantar sua guerra social e destruir o welfare state.

  • As mentiras do sionismo e a ‘solução final’ de Israel em Gaza

    As mentiras do sionismo e a ‘solução final’ de Israel em Gaza

    O dia 7 de outubro vai ficar na história da luta pela libertação nacional na Palestina e no Oriente Médio. Foi o dia em que a resistência palestina conseguiu infligir uma derrota ao exército ocupante e romper por um período o cerco a que são submetidos diariamente por Israel, há 16 anos. Uma incursão preparada e coordenada conseguiu romper em vários pontos a cerca em volta de Gaza, que impede a saída de qualquer palestino. As câmeras e dispositivos de vigilância não funcionaram porque foram inutilizadas pelos combatentes. Até esse dia, a fama acumulada por Israel em várias guerras contra seus vizinhos árabes e da guerra permanente contra os palestinos havia dado um prestígio macabro, a tal ponto que sua tecnologia de vigilância, seus carros blindados de repressão à população vinham sendo exportada para muitos países.

    Por: Jose Welmowick

    Foi um fiasco do exército israelense. Em geral, os especialistas da área apontam centralmente a uma falha do aparato de inteligência, tais como Mossad. A nosso ver, não foi somente esse o fracasso. A reação das tropas da brigada que vigia Gaza foi derrotada facilmente pelos militantes de Hamas. Pelas informações que foram divulgadas, muitos oficiais e até mesmo coronéis e generais foram aprisionados. A reação do restante do exército foi tardia e lenta. O que pode estar por trás dessa derrota são dois fatores: 1) toda ocupação colonial leva a um desgaste das tropas envolvidas, e vai gerando uma incapacidade crescente para combater. É o que aconteceu com as tropas francesas na Indochina e Argélia, as norte-americanas no Vietnam. Sua atividade cotidiana é reprimir a população desarmada em forma perversa e covarde. 2) Quando os oprimidos se rebelam e enfrentam essas tropas elas não têm confiança em suas forças, ficam assustadas com a reação dos rebeldes oprimidos. No caso dos soldados sionistas em Gaza, os vídeos gravados mostram esse tipo de reação das tropas da guarnição a cargo da repressão em Gaza.

    Mas o que é trazido para nós e se vê em forma esmagadora na mídia é que tudo se tratou de um atentado terrorista de Hamas contra a população civil de Israel. Não tem nenhuma causa, a não ser a sanha assassina’ dessa organização.

    E como aconteceu na guerra do Iraque, e em muitas outras do Oriente Médio, uma série de fake News foram sendo divulgadas. A falsa história da suposta decapitação de bebês chegou a ser divulgada pelo presidente dos Estados Unidos, Biden, que chegou a mentir dizendo que viu essas fotos, quando eram apenas uma invenção de um blogueiro israelense de ultra direita, sem nenhuma comprovação. Ela acabou sendo desmentida, mas sem nenhum destaque. Vídeos distribuídos como prova de ‘ataques a civis’ mostravam na verdade um ataque a uma base militar israelense em que soldados surpreendidos tratam de se esconder de uma coluna de Hamas, que acaba invadindo e depois esses mesmos soldados aparecem mortos. Ou seja, era uma batalha militar. E invasões a aldeias e bairros de cidades israelenses vizinhas a Gaza são apresentadas como ataque premeditados a civis, quando numa guerra assimétrica como essa entre o Estado de Israel e a faixa de Gaza, cercada e bombardeada sistematicamente, as aldeias e cidades próximas à Gaza fazem parte do dispositivo militar do ocupante, no caso Israel, e, portanto, tem que ser enfrentados quando fazem uma incursão militar em resposta ao cerco, são alvos militares. Pelo menos, é assim que Israel trata tanto a própria Gaza como a Cisjordânia há décadas, que é a fonte de toda a violência, mas esses mesmos meios de comunicação não dizem uma palavra de condenação quando os colonos e o exército sionista invadem aldeias, destroem as casas da população, e matam seus habitantes.

    O que chama a atenção é que para a mídia e os governos e partidos dos EUA e da UE, e para essa mídia, os bombardeios massivos sobre Gaza que matam civis em uma quantidade impressionante são apenas “uma retaliação” de Israel! Portanto, segundo eles, justificada. Ou seja, seguem o mesmo roteiro do ministro da defesa israelense que classificou os habitantes de Gaza como “animais humanos”. O máximo que alguns fazem é sugerir ‘contenção’ aos genocidas.

    A mídia não mostra nada do sofrimento das crianças palestinas, nem antes, nem depois dos ataques. Não dão nenhuma importância a fatos como: 9 funcionários da ONU em Gaza foram assassinados pelo exército de Israel quando tentavam socorrer os habitantes feridos. Mas Israel declara que todos os seus alvos são militantes terroristas que “se escondem nas casas dos palestinos’, e, portanto, qualquer alvo residencial ou até mesmo instalações médicas e escolas em Gaza são parte dos seus objetivos de guerra.

    Estamos assistindo, em tempo real pela mídia mundial e as redes sociais, cenas idênticas à Nakba de 1948. O governo israelense, não contente com o deslocamento forçado de mais de um milhão de pessoas em poucas horas, declara que devem sair do território imediatamente para não ser atingidos por seus bombardeios. E ainda mandou bombardear um comboio de palestinos que tentaram sair do Norte para chegar ao Sul da Faixa. E que diz a mídia? É parte da “contraofensiva” de Israel, que de princípio está justificada e não mostra nenhuma foto ou filmagem das atrocidades e dos assassinatos de civis palestinos em Gaza.

    Há mais uma omissão vergonhosa da mídia mundial: inundam a TV e os jornais com as declarações das entidades judaicas sionistas e ligadas a Israel, todas defendendo os ataques do estado racista de Israel (chegam a dizer que um Estado que nasceu de uma limpeza étnica, que mantem uma ocupação por décadas e trata os palestinos como cidadãos de segunda classe ou prisioneiros em suas cidades é a única democracia do Oriente Médio!).

    Mas não dão uma linha para os movimentos judaicos que se colocam contra a linha genocida de Israel. Alguns deles são bastante fortes, como Jewish Voices for Peace (Vozes judaicas pela Paz) dos Estados Unidos, que tem mais de 440 mil membros e apoiadores. Movimentos como esse já vinham fazendo campanhas contra o apartheid israelense e o racismo colonial. E nesse momento, mantiveram sua postura frente ao processo em Gaza. A seguir reproduzimos um trecho do pronunciamento de Jewish Voices for Peace (JVP) do dia 7/10/2023:

    “O governo israelense pode ter acabado de declarar guerra, mas a sua guerra contra os palestinianos começou há mais de 75 anos. O apartheid e a ocupação israelenses – e a cumplicidade dos Estados Unidos nessa opressão – são a fonte de toda esta violência. A realidade é montada de acordo a quando você inicia o relógio.

    Durante o ano passado, o governo mais racista, fundamentalista e de extrema-direita da história de Israel intensificou impiedosamente a sua ocupação militar sobre os palestinianos em nome da supremacia judaica, com expulsões violentas e demolições de casas, assassínios em massa, ataques militares a campos de refugiados, cercos implacáveis e humilhação diária. Nas últimas semanas, as forças de Israel atacaram repetidamente os locais muçulmanos mais sagrados em Jerusalém. Durante 16 anos, o governo israelita sufocou os palestinos em Gaza sob um bloqueio militar aéreo, marítimo e terrestre draconiano, prendendo e matando de fome dois milhões de pessoas e negando-lhes assistência médica. O governo israelita massacra rotineiramente palestinos em Gaza; crianças de dez anos que vivem em Gaza já ficaram traumatizadas por sete grandes campanhas de bombardeamento nas suas curtas vidas”.

    Nos Estados Unidos existiam pesquisas recentes apontando que mais de 50% da juventude judaica desse país não se sente identificada com Israel, um dado que assusta os dirigentes sionistas locais e a Organização Sionista Mundial. Há outros movimentos que unem esses setores a movimentos progressistas e comunidades de origem árabe ou muçulmana nos EUA, como mostra a carta escrita pelo Comitê de Solidariedade com a Palestina de Graduação de Harvard, que afirmava que os estudantes “responsabilizam inteiramente o regime israelense por toda a violência em curso”, carta que foi assinada por 33 grupos de estudantes. Que haja sido em Harvard, universidade de elite desse país surpreendeu sua cúpula. A reitoria se pronunciou se diferenciando da carta assim como vários ex-alunos, que foram ou hoje são executivos de grandes empresas ou ministros no governo americano. Também na New York University (NYU), os alunos se expressaram em uma declaração contra o genocídio de Israel.

    A mídia tampouco dá cobertura aos protestos dos judeus ultra religiosos que vivem em Jerusalém, no bairro Mea Shearim, são anti-sionistas, e colocaram uma bandeira palestina em seu templo para mostrar repúdio ao massacre. Por causa disso foram duramente reprimidos, golpeados pela polícia israelense e seu templo foi invadido para retirar a bandeira palestina de lá.[1] Só há uma verdade e um ponto de vista válido para a mídia e o stablishment imperialista: o do governo genocida de Netanyahu e seu defensor incondicional, o imperialismo norte-americano, através do governo Biden.

    Qual é a situação dos palestinos na Cisjordânia?

    Na Cisjordânia, existem três ‘áreas’ destinadas umas aos palestinos, outras aos colonos judeus, que já somam 750 mil. Estes têm total liberdade de ir e vir tanto na Cisjordânia, como em Israel. Jerusalém Oriental, que pela própria partição de 1948 deveria pertencer ao estado palestino a ser criado, foi anexada em 1967 à Jerusalém judaica sob controle dos sionistas.  Para os palestinos circular de uma área à outra somente através de inúmeros checkpoints, onde muitas vezes passam horas se submetendo a revistas humilhantes pelas tropas israelenses. Os colonos tem um comportamento abertamente racista e agressor sobre os palestinos, e são protegidos pelo exército. O mesmo acontece com os palestinos que vivem na cidade de Jerusalém.

    Um dos argumentos falaciosos dos defensores de Israel na mídia é que se trata de uma “guerra contra o Hamas”, não contra todos os palestinos. Por isso, a questão está em Gaza. Essa é outra mentira. A guerra contra os palestinos se centra em Gaza hoje, mas ao mesmo tempo está submetendo a Cisjordânia a um cerco semelhante e a assassinatos de civis. Esse processo já vinha desde muito antes, mas agora se multiplicaram em forma macabra a partir de 7 de outubro. Segundo os informes de agências de notícias, do Crescente Vermelho (a Cruz Vermelha dos muçulmanos), e de organizações dos direitos humanos, desde o dia 7 de outubro ao dia 14, 55 palestinos foram assassinados e 1.100 feridos por ataques dos colonos sionistas na Cisjordânia, com a cumplicidade ou participação das forças armadas israelenses. Todos eram civis, famílias indo de uma cidade à outra, trabalhadores ou pequenos comerciantes tentando abrir seus negócios. Até mesmo o cortejo de um funeral foi atacado a tiros, matando pelo menos 4 palestinos que participavam. Em nenhum desses ataques seus integrantes eram militantes de Hamas. Só tinham uma característica em comum: eram árabes palestinos. Essa é mais uma demonstração de que a política é de guerra e expulsão de todos os palestinos.

    O estado racista de Israel nasceu em 1948 com a Nakba, a limpeza étnica que expulsou 750 mil árabes das suas terras. Mas como não pôde se livrar completamente dos palestinos, seguiu sua ação nestes 75 anos. A partir de 1967, com a ocupação de Gaza e Cisjordânia, manteve seus habitantes submetidos a um regime militar, que tratava seus habitantes como prisioneiros e se beneficiava de seu trabalho escravo, e elas não tinham quaisquer direitos. Ao mesmo tempo, colonizavam novas terras expropriando os palestinos, seja em Jerusalém Oriental, seja na Cisjordânia, com colonos judeus

    Devido à resistência permanente, as duas Intifadas em 1987-1992 e a do ano 2000, somadas à persistente resistência, sua estratégia veio mudando. Agora, frente à resistência armada, essa estratégia se tornou explicita: a limpeza étnica de todo o território da Palestina. Para eles, ou saem da Palestina, ou morrem. Por isso, se veem os colonos da Cisjordânia gritarem: “Morte aos árabes” e atuarem de acordo a suas palavras, ou seja, executando pogroms. Da mesma forma como os antissemitas faziam contra os judeus na Europa Oriental. Os últimos foram em Huwara y Turmus Ayya, na Cisjordânia.

    Netanyahu apresentou na sessão da ONU do último mês de setembro um ‘novo mapa’ da região. Nele, não existe mais Palestina, nem sequer territórios ocupados. Só existe Israel, ocupando todo o território entre o mar Mediterrâneo e o Rio Jordão. (foto do mapa apresentado na ONU por Netanyahu).

    Uma analogia com a resistência judaica contra os nazistas: o Levante do Gueto de Varsóvia

    A partir da invasão nazista à Polónia, em 1939, o ocupante alemão decidiu concentrar os judeus de todo o país em uma pequena região da capital, que ficou conhecida como “Gueto de Varsóvia”[2]. Os nazistas assim o fizeram para poder controlá-los como numa prisão, tinha muros e cercas em toda a volta do gueto, de modo tal que só podiam sair os que tinham determinado cartão, com a finalidade de utilizar seu trabalho em forma semelhante à escravidão. A comunidade judaica na Polônia era a maior dos países ocupados por Hitler.

    Essa política dos nazistas para os judeus poloneses concentrados em Varsóvia durou até que eles resolveram partir para a ‘solução final’ em 1942: construir os campos de concentração com câmaras de gás para exterminar todos os judeus. A partir daí foram capturando os que ainda sobreviviam no gueto e enviando-os para a morte. De 380 mil residentes no início do gueto, cerca de 300 mil foram enviados para a morte entre 1942 e 43.

    Quando perceberam que esse era o destino que esperava a todos, os judeus sobreviventes resolveram resistir armados mesmo estando em uma enorme inferioridade militar e logística. Formaram uma organização de resistência unida, a ZOB, e organizaram um levante em abril de 1943 que conseguiu enfrentar os soldados alemães por mais de 30 dias, causando baixas importantes às tropas nazistas. Sabiam que havia uma decisão de serem levados e mortos nas câmaras de gás dos campos de extermínio nazista. Optaram por resistir e morrer lutando. Os nazistas chamavam os combatentes judeus de ‘terroristas’.

    Como afirma Haidar Eid, professor da Universidade al Aqsa em Gaza, em seu artigo Gaza 2023: Nosso momento semelhante ao Levante do Gueto de Varsóvia[3], “uma clareza do destino que Israel impôs aos palestinos de Gaza e também da Cisjordânia os levou a assumir o mesmo tipo de decisão: “Em Gaza e Jenin[4], recusamo-nos a marchar para as câmaras da morte de Israel. Em Gaza e Jenin – na verdade, em toda a Palestina histórica – deixamos absolutamente claro que resistiremos ao regime de colonos, ao regime colonial e de apartheid entre o Rio Jordão e o mar Mediterrâneo.”

    É nesse quadro que tem de se entender a luta armada desencadeada pelos residentes palestinos. 

    Do genocídio lento ao extermínio

    O que está passando hoje, frente a resistência armada palestina e o fracasso do intento sionista de escravizar o povo palestino e obrigá-lo a viver em condições sub-humanas para sempre, é a decisão de Netanyahu de arrasar toda Gaza, transformar o genocídio em marcha lenta dos últimos 30 anos em genocídio direto através dos bombardeios contra todos os habitantes, corte definitivo de abastecimento de água, energia.

    O governo israelense fez um chamado cínico a quem quiser sobreviver, que saia da faixa imediatamente, isso ao mesmo tempo que Israel bombardeia a passagem entre Gaza e Egito, a única ainda aberta. Como denunciaram os médicos da Cruz Vermelha e funcionários da missão da ONU em Gaza, assim como a própria Organização Mundial de Saúde, vinculada à ONU, é uma ordem impossível de ser cumprida por uma população de mais de um milhão e equivale a uma condenação à morte de doentes e feridos hospitalizados em Gaza. Ou seja, com a escusa de estar fazendo uma ‘retaliação’ aos ataques do Hamas, Israel condenou à morte toda a população residente sob a cobertura de destruir os ‘terroristas’. Em forma semelhante ao que fez Hitler contra os judeus a partir da ‘solução final’ de 1942 em diante e frente à revolta, decidiu acabar com o gueto de Varsóvia pela sua destruição.

    Com a cobertura dos governos ocidentais, da esmagadora maioria da mídia e a cumplicidade dos governos que se dizem ‘amigos dos palestinos’, como Lula no Brasil, Israel argumenta que tem o “direito a defender-se” para declarar guerra e praticar um massacre de um povo inteiro em Gaza e na Cisjordânia. O representante israelense na ONU ficou irritado porque houve alguns embaixadores que sugeriram que tentasse poupar os civis palestinos em Gaza. Ele reafirmou que não é hora de preocupar-se com os ‘danos colaterais’, e sim em liquidar o Hamas, nem que para isso tenha que demolir e destruir totalmente a cidade. Ou seja, os mais de 2,2 milhões de habitantes, que obviamente inclui uma grande maioria de civis, dos quais mais da metade são mulheres e crianças, não lhes importa. E esse governo tem o cinismo de se fazer de vítima e chamar Hamas de terrorista. Outra característica copiada do regime nazista: a propaganda mentirosa de Goebbels, que tinha uma frase definidora: “uma mentira repetida inúmeras vezes vira verdade”.

    Um governo que tem entre seus ministros defensores de matar ou expulsar os árabes de todo o território palestino. Como Itamar Ben Gvir, que já foi processado como terrorista até pelos tribunais israelenses, mas foi liberado e hoje é ministro de Segurança Nacional. Ele declarou publicamente que todos os árabes devem ser mortos, de tal forma que até os liberais israelenses o classificam de “fascista”. Ou seu ministro da defesa, Yoav Gallant que declarou abertamente que vai manter um cerco total a Gaza, e cortar todo o abastecimento de água, combustível e energia, porque assim destruirá Hamas. E obviamente matará dezenas se não centenas de milhares de civis, em especial crianças. O que constitui um crime de guerra para o ICIC. Anistia Internacional e Human Rights Watch já haviam classificado o regime de Israel como de apartheid.

    Netanyahu é um sucessor político de Vladimir Jabotinsky e Menachem Begin, que eram dirigentes da ala diretamente fascista do sionismo, que manteve um grupo terrorista próprio chamado Irgun Zvai Leumi, que atacava os árabes tratando-os como um povo inferior; esse grupo foi responsável pelo massacre de Deir Yassin em que assassinaram todos os palestinos que puderam, para criar um pânico que levasse à retirada dos árabes da Palestina, como parte da Nakba.[5]

    Por isso, é um cinismo abjeto de Netanyahu reivindicar estar vingando o assassinato em massa dos judeus pelo nazismo ao mesmo tempo que praticam a mesma metodologia de Hitler, quando eles são hoje o nazi-fascismo sionista. A diferença com o nazismo original, é que desta vez se dá contra os palestinos. O cinismo de Netanyahu não surpreende, mas o cinismo maior vem do coro que inclui os dois partidos norte-americanos, Democrata e Republicano, o governo Macron da França, Scholz da Alemanha, Sunak no Reino Unido. Que publicamente se colocam ao lado deste genocida, projetando a bandeira de Israel em seus prédios símbolo, como a Torre Eiffel em Paris ou o Portão de Brandeburgo em Berlim, e assim como a União Europeia se enfileiram apoiando o “direito de Israel a se defender”. Ou seja, os fascistas sionistas querem licença total para liquidar o povo palestino, e estão conseguindo.

    A solidariedade à resistência palestina

    O repúdio à ação genocida de Israel e a essa campanha demonizadora dos palestinos pela via de colocar Hamas como “terrorista” e classificar todos os que apoiam a resistência de terroristas ou apoiadores de terroristas está gerando uma indignação e importantes manifestações.

    Houve muitas manifestações em distintos países, as maiores no Oriente Médio, como na Jordânia, no Iêmen, Iraque, Egito. Na Jordânia cantavam “somos Hamas, se Hamas é terrorista, nós somos terroristas”. Estão havendo mobilizações também nos EUA, Inglaterra, França, em outros países da Ásia, como Coréia do Sul, e ainda na Austrália e na Indonésia. Apesar do apoio incondicional a Israel por governos como Macron na França, Sunak na Grã Bretanha, o movimento palestino não se curvou e, embora reprimido, saiu às ruas contra o genocídio do povo palestino.

    Em Paris, a polícia usou gás lacrimogêneo e canhões de água para dispersar uma manifestação de apoio aos palestinos, após o governo francês ter proibido qualquer protesto do tipo. Apesar da proibição, milhares de manifestantes reuniram-se em Paris, Lille, Bordéus e outras cidades na quinta-feira 12/10.

    Na Inglaterra, a polícia britânica alertou que qualquer pessoa que demonstre apoio ao Hamas, uma organização considerada “terrorista” pelo governo britânico, ou que se desvie da rota, poderia ser presa. Mesmo assim, milhares de pessoas saíram às ruas em Londres, Manchester, Liverpool, Bristol, Cambridge, Norwich, Coventry, Edimburgo (Escócia) e Swansea.

    Na Alemanha, Scholz disse aos deputados no Bundestag (Parlamento alemão) que a segurança de Israel era uma política de Estado alemã. E proibiu as manifestações pró- Palestina.

    Agora frente a continuação da guerra genocida de Israel contra Gaza, se abre um espaço para intervir com coragem nos organismos do movimento sindical, democrático propondo que se pronuncie contra o genocídio sionista em Gaza e chamar a manifestações de apoio em todo o mundo. Apoiamos o BDS, um movimento amplo de boicote a qualquer investimento e intercâmbios artístico e esportivo em Israel até que termine o regime de apartheid, seguindo o exemplo do boicote internacional contra a África do Sul e seu regime de apartheid nos anos 70 e 80.

    E chamamos ao apoio à resistência palestina, que é a forma direta para enfrentar o estado racista de Israel e seu regime de apartheid. Como se mostrou em mais de 20 anos após os acordos de Oslo, o caminho do ‘diálogo’’, da “paz” e da não violência não levou a nenhum resultado concreto, a não ser desarmar a luta palestina e a criar autoridades que não tem nenhum poder, fora o de obedecer às ordens do colonizador, como sempre foi a ANP de Mahmoud Abbas.

    Qualquer alternativa de buscar um caminho do meio, tipo “dois estados” só paralisa o movimento. Inclusive já ficou completamente impossibilitado pela colonização sionista em toda a Cisjordânia.

     A saída é o fim do estado racista de Israel e o surgimento de uma Palestina laica, democrática e não racista, uma Palestina livre, do rio  ao mar, como parte da luta socialista em todo Oriente Médio.

    Cartaz do Jewish Voice for Peace de 15/10/23

    Nossas diferenças com Hamas

    Apoiamos a resistência palestina porque é a forma direta e legítima de enfrentar e derrotar o apartheid sionista. E o Hamas esteve à cabeça desse ato de resistência que mostrou um caminho para o povo palestino. Nossas diferenças não estão sobre se é justo fazer ações armadas contra o regime sionista genocida, como fizeram todas as revoluções coloniais contra seus opressores.

    Mas consideramos a proposta que eles apresentam como saída, de um Estado Islâmico equivocada e estreita, afastando os setores seculares palestinos, democráticos e socialistas de seu projeto. Também tem uma política repressiva para a luta das mulheres, e dos LGTBQI+ como se vê no Irã atual. Por isso, sua gestão em Gaza partindo dessas premissas, teve um efeito negativo para a necessária unidade e a democracia no interior do movimento palestino.

    Mas hoje é fundamental apoiar a resistência palestina, nesse combate de David contra Golias e que hoje é encabeçada por Hamas. E não caímos nas armadilhas do imperialismo, nem de setores que se dizem democráticos e de uma parte da esquerda que devido a esses problemas retira seu apoio à resistência palestina, cedendo à pressão do imperialismo e do sionismo, ao aceitar o argumento que os palestinos são atrasados enquanto Israel é avançada, devido a algumas leis como o matrimonio LGTBQI+. Nenhuma dessas medidas pode nos fazer esquecer que Israel hoje tem o objetivo de exterminar todo o povo palestino, e que temos de estar ao lado da resistência palestina a esse intento genocida.


    [1] “A polícia israelense queria retirar as bandeiras palestinas no bairro judeu. Os judeus não permitiram isso e entraram em confronto com a polícia. A polícia israelense invadiu o bairro de Mea Shearim, onde os judeus vivem em Jerusalém, e queria retirar as bandeiras palestinas do bairro. Os judeus não permitiram isso, opuseram-se à polícia sionista e a polícia espancou brutalmente os judeus”. Publicado por Torah Judaism, 11/10/2023

    [2] Essa prisão nazista a céu aberto foi chamada de ‘gueto’ em referência aos bairros que os antigos reinos europeus da Idade Média obrigaram a que se concentrassem os judeus daquela época, para poder controlá-los melhor e submete-los a massacres (os pogroms) quando bem entendessem. Esses bairros eram chamados de guetos.

    [3] Publicado por Al Jazeera 10/10/2023.

    [4] Jenin é uma cidade na Cisjordânia, onde está um campo de refugiados  que tem se destacado por uma forte resistência aos massacres sionistas

    [5] O Irgun chegou a explodir o hotel Rei David em 1946, matando ingleses, árabes e até judeus ainda durante o mandato britânico (para assustar os ingleses pois o Irgun não concordava que se reservasse qualquer parte da Palestina aos árabes)

  • Engels, coautor da concepção materialista da História

    Engels, coautor da concepção materialista da História

    200 anos de Engels

    A colaboração entre Engels e Marx teve como ponto de partida a elaboração da concepção materialista da história: esta foi o resultado de uma convergência de ideias e, a partir daí, de uma parceria na elaboração teórica, na militância política de ambos por toda a vida.

    Por: José Welmowicki

    O marxismo contra o determinismo

    Em seu Prefácio a Contribuição à crítica da economia política, Marx escreveu:

    “…Friedrich Engels, com quem mantive por escrito uma constante troca de ideias desde o aparecimento do seu genial esboço para a crítica das categorias econômicas (nos Anais Franco-alemães), tinha chegado comigo, por uma outra via (compare-se a sua Situação da Classe Operária na Inglaterra), ao mesmo resultado, e quando, na Primavera de 1845, ele radicou-se igualmente em Bruxelas, decidimos esclarecer em conjunto a oposição da nossa maneira de ver contra a [maneira de ver] ideológica da filosofia alemã, de fato ajustar contas com a nossa consciência filosófica anterior. Este propósito foi executado na forma de uma crítica à filosofia pós-hegeliana. O manuscrito, 1 dois grossos volumes em oitavo, chegara havia muito ao seu lugar de publicação na Vestfália quando recebemos a notícia de que a alteração das circunstâncias não permitia a impressão do livro. Abandonamos o manuscrito à crítica roedora dos ratos de tanto melhor vontade quanto havíamos alcançado o nosso objetivo principal — autocompreensão. Dos trabalhos dispersos em que apresentamos então ao público as nossas opiniões, focando ora um aspecto ora outro, menciono apenas o Manifesto do Partido Comunista, redigido conjuntamente por Engels e por mim”.

    Essa convergência teórica levou os dois amigos a sistematizar suas ideias e que os levaram a romper com os jovens hegelianos, como os irmãos Bauer, Stirner e outros. Esse grupo estava dedicado à crítica do sistema político e jurídico da Alemanha, mas sua crítica permanecia no terreno ideológico, sem relacionar a crítica da realidade na sociedade alemã à de sua base material. Limitavam-se ao terreno das ideias. Para criticar essa corrente que não saía dos limites do idealismo de Hegel, Engels e Marx escreveram juntos, em 1845, A Sagrada Família (ou Crítica da Crítica crítica). Naquele momento, aproximaram-se de Feuerbach que fazia a crítica a Hegel de um ponto de vista materialista.

    Mas, logo em seguida, chegaram à conclusão de que Feuerbach era uma superação parcial e unilateral de Hegel, pois ele não passava de afirmar um materialismo contemplativo, ou seja, que a relação homem/natureza era vista como passiva, não valorizava a ação do ser humano sobre a natureza e sobre a sociedade. A expressão dessa ruptura com Feuerbach se expressará em A Ideologia Alemã, que os dois elaboraram conjuntamente em 1845 e à qual se refere o texto citado acima.

    Foi nesse texto – que não chegou a ser impresso por várias dificuldades a que Marx se refere no Prefácio acima (e cujo manuscrito foi mais tarde recuperado e publicado por Riazanov no Instituto Marx-Engels da URSS nos anos 1920) – que eles desenvolveram a nova concepção materialista da história. Marx e Engels incorporaram a defesa do lado ativo do ser humano, que a ação humana sobre a natureza e a sociedade podia transformá-las, podia ser revolucionária, como Marx sintetizou em suas Teses sobre Feuerbach, escritas no mesmo período:

    […] A principal insuficiência de todo o materialismo até aos nossos dias – o de Feuerbach incluído – é que as coisas, a realidade, o mundo sensível são tomados apenas sob a forma do objeto ou da contemplação; mas não como atividade sensível humana, práxis, não subjetivamente. Por isso aconteceu que o lado ativo foi desenvolvido, em oposição ao materialismo, pelo idealismo – mas apenas abstratamente, pois que o idealismo naturalmente não conhece a atividade sensível, real, como tal.

    Essas Teses foram publicadas por Engels em 1886 em seu livro Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. Como diz Marx no Prefácio, o Manifesto Comunista foi baseado nesta concepção.

    Entre os textos sobre processos revolucionários que ambos escreveram naquela época, destacam-se O 18 Brumário de Louis Bonaparte, de Marx, sobre a revolução e contrarrevolução na França de 1848-1851. Engels escreveu em 1850 A Guerra dos camponeses na Alemanha aplicando a concepção materialista da história para estudar como seu desenlace havia sido decisivo para a formação da Alemanha, comparada a outros países como a Inglaterra e França.

    Nesse texto, Engels faz uma análise da economia e da composição de classe da Alemanha de então. Em seguida, analisa o surgimento e os programas das distintas oposições. Em especial, explica profundamente as diferenças entre Lutero (o teólogo da Reforma Protestante) e Münzer (o líder radical da guerra camponesa) e como elas influenciaram as insurreições camponesas do final do século XV e começo do XVI, quando estava começando a Reforma Protestante. Também explica as características das revoltas contra os nobres e os líderes da nobreza, como Sickingen. A partir daí, relata os episódios da guerra camponesa e as causas de sua derrota final. Por fim, analisa as consequências dessa derrota na história da Alemanha.

    Todo o trabalho de Engels concentra-se na necessidade de uma luta de classes implacável contra os senhores feudais para abrir condições mais favoráveis para uma revolução proletária. Também analisa como as correntes burguesas que surgiram foram incapazes de levá-la. Lições da história que os levam a uma formulação semelhante na célebre «Mensagem de 1850 ao Comitê Central da Liga dos Comunistas», que ele e Marx escreveram sobre a revolução alemã de 1848-1850.

    O texto de Engels sobre a guerra camponesa é um exemplo de como a concepção materialista da história permite analisar as sociedades, inclusive as não capitalistas e tirar conclusões políticas, opostas aos ideólogos e os representantes das classes dominantes.

    Engels continuou aplicando a concepção sistematizada na Ideologia alemã ao longo de toda sua trajetória, nos combates ideológicos que teve que dar contra os distintos teóricos que voltavam ao idealismo ou ao materialismo mecanicista e negavam a concepção materialista da história, assim como aos políticos reformistas.

    É curioso que haja críticos de Engels que o atacam justamente pelos textos que escreveu para combater esse tipo de visão mecânica, como o seu clássico conhecido pelo nome de o Anti-Dühring. Hoje já não se menciona a Dühring, mas na época ele teve sucesso e exerceu uma influência ampla entre as fileiras do partido operário alemão e inclusive na sua direção. O que Dühring defendia em seus livros era um “sistema” fechado com leis rígidas, que atacavam os textos centrais de Marx e Engels. Em seu livro, Dühring investia contra a dialética, e para poder atacar Marx e impactar seus leitores, fazia tergiversações de várias partes de O Capital, entre outros textos para contrapor “uma teoria geral da ciência, pretendendo encontrar nela uma conexão interna, da natureza, da história, da sociedade, o Estado, o Direito”. 2 Para poder contrapor-se “à filosofia da natureza do senhor Dühring”, 3 Engels teve que desenvolver polêmicas em todos os terrenos que Dühring incursionou, como a economia política, as ciências naturais, a filosofia, etc.

    Assim, Engels defende a concepção materialista da história em seu texto polêmico. Para realizar esse objetivo, Engels teve que atacar de maneira frontal o determinismo e o mecanicismo de Dühring. No entanto, cada vez mais existem autores, inclusive alguns que se reivindicam marxistas, que criticam esse texto, assim como os manuscritos publicados postumamente como Dialética da Natureza por um suposto determinismo ou mecanicismo.

    Nessa polêmica, existem aqueles que opinam que o marxismo é uma visão determinista da história. Outros, em maior quantidade, dizem que Engels seria a fonte dessa visão determinista, em oposição ao próprio Marx.

    Como revela Engels no Prefacio à 2ª edição do Anti Dühring, ele escreveu o livro em contato permanente com Marx, que o leu e inclusive redigiu a parte sobre a historia crítica das teorias econômicas: “como o ponto de vista aqui desenvolvido foi em sua maior parte fundado e desenvolvido por Marx, e em sua mínima parte por mim, era óbvio entre nós que esta exposição minha não podia realizar-se sem o seu conhecimento. Li o manuscrito inteiro antes de levá-lo à imprenta, e o décimo capítulo da seção sobre economia («Da História crítica») foi escrito por Marx”. Para que não reste dúvidas, reproduzimos uma carta de Marx em que ele recomenda a um correspondente, Moritz Kaufmann, que leia o Anti-Dühring de Engels. Nela pode se comprovar que Marx não só participou de sua elaboração, mas que o considerava uma ótima exposição do socialismo cientifico:

    Londres, 3 de outubro de 1878

    Meu estimado Senhor,

    O Sr. Petzler informou-me que o Sr. teria redigido um artigo sobre meu livro «O Capital» e sobre minha vida, artigo esse que deverá ser impresso, juntamente com outros de sua autoria, bem como que o Sr. apreciaria que eu ou Engels corrigíssemos alguns erros seus. […]
    Por correio, enviar-lhe-ei igualmente – caso o Sr. dele já não disponha – um novo escrito de meu amigo Engels, intitulado “A Subversão da Ciência do Sr. Eugen Dühring”, escrito esse muito importante para a uma correta apreciação do socialismo alemão.

    Respeitosamente, seu Karl Marx.” 4

    Engels teria se tornado um determinista ao final de sua vida?

    Alguns autores afirmam que Engels teria adotado uma concepção determinista em seu último período de vida. Que Engels teria retrocedido ao materialismo mecanicista. A acusação, como antecipamos, tenta se apoiar em textos como Anti-Dühring e Dialética da Natureza.


    Na verdade, Engels analisa nesses textos como a evolução das ciências naturais e da tecnologia foram frutos da ascensão da burguesia e da necessidade do capitalismo intervir sobre os processos produtivos, na indústria (como a máquina a vapor, mais tarde a eletricidade, etc.) e na agricultura, de acelerar a circulação de mercadorias e, portanto o transporte, (trens, navegação mais rápida, etc.). Portanto, era necessário conhecer melhor a natureza, daí o estímulo às ciências naturais. Houve nesse período uma tendência das ciências naturais de encontrar uma explicação linear de causa e efeito e ver a própria natureza como uma evolução contínua. Contrapunham-se, nesse sentido, às explicações religiosas anteriores do clero cristão e às restrições típicas do período feudal.

    Iluminismo era a ideologia típica da burguesia em ascensão, que se colocava como representante das ‘luzes’: assim como na política, falava da igualdade entre os homens, dos direitos humanos em contraponto com aos velhos privilégios típicos dos sistemas feudais com toda sua hierarquia, suas ideias e sua resistência à ciência. Uma vez consolidado o poder da burguesia, esta posição se altera. A versão para esse período torna-se conservadora, a ordem social deve ser conservada e a ciência social deve explicar como essa ordem é natural, tão natural como a geologia, a física ou a química. Surge daí um ambiente ideológico de fé no progresso oriunda do desenvolvimento econômico e da conservação social.

    A filosofia resultante dessa aplicação das ciências naturais à sociedade está muito ligada à figura de August Comte, o fundador do positivismo: uma concepção que estendia essa compreensão de maneira linear às sociedades, com pretensões científicas, inclusive criando uma disciplina para estudar cientificamente a sociedade: a Sociologia ou, como a nomeava Comte, a física social.

    Comte considerava que a sociedade tinha leis causais da mesma natureza das leis da física e que nela havia uma evolução permanente, um progresso que era um processo como o da natureza. 5 Ele e outros teóricos construíram uma visão determinista a partir daí, em que os eventos históricos estão previamente definidos por essas leis da física social.

    Os críticos de Engels acusam-no de ter sido influenciado por esse tipo de visão.  No entanto, os próprios textos de Engels atacam exatamente esse tipo de determinismo e a visão mecânica da aplicação de leis físicas ou biológicas à sociedade e inclusive mostram que na natureza tampouco se aplica a visão determinista como pensam os materialistas vulgares.

    No Anti-Dühring, Engels escreve:

    “O sistema de Hegel foi um aborto gigantesco, porém o último de sua espécie. Com efeito, sua filosofia padecia ainda de uma contradição interna incurável, pois, se, por um lado, considerava como pressuposto essencial da concepção histórica, segundo a qual a história humana é um processo de desenvolvimento que não pode, por sua própria natureza, encontrar solução intelectual no descobrimento disso que se chama de verdades absolutas, por outro, se nos apresenta precisamente como resumo e compêndio de uma dessas verdades absolutas, um sistema universal e compacto, definitivamente plasmado, no qual se pretende enquadrar as ciências da natureza e da história, é incompatível com as leis da dialética. […] Verificamos, assim, que o socialismo tradicional era incompatível com a nova concepção materialista da história bem como a concepção dos materialistas franceses, sobre a natureza, não podia coexistir com a dialética moderna e com as novas ciências naturais.” 6

    Em sua carta a Mehring de 1893, Engels, depois de elogiar seu livro A lenda de Lessing e o apêndice escrito por Mehring sobre o materialismo histórico, não tem rodeios em atacar a interpretação que tenta fazê-los aparecer como materialistas vulgares mecanicistas e contrapor-se a esse suposto materialismo de Marx e Engels para justificar seu idealismo.

    Londres, 14 de julho de 1893

    Caro Sr. Mehring,

    Começo pelo fim – i.e. com o apenso, intitulado “Acerca do Materialismo Histórico”, onde o Sr. apresenta as coisas principais magnifica e convincentemente para toda pessoa imparcial… Dito isso, falta ainda apenas mais um ponto que, porém, nos escritos de Marx e nos meus, não surge, em regra, suficientemente destacado e em relação ao qual somos culpados ambos, em igual medida.

    Com efeito, ambos colocamos o peso principal, em primeiro lugar, na dedução das representações políticas, jurídicas e todas as outras noções ideológicas e, assim também, dos atos intermediados por essas representações, a partir dos fatos econômicos fundamentais, sendo que assim tivemos de fazer.

    Nisso, negligenciamos, então, o lado formal, i.e. : o modo e a maneira segundo os quais emergem essas representações etc., em favor do lado conteudístico…

    ideólogo da história (o histórico deve significar aqui, de modo simplesmente resumido, o político, jurídico, filosófico, teológico, em suma: todos os domínios que pertencem à sociedade – e não meramente à natureza) – o ideológo da história possui, portanto, em cada domínio científico, um material que se formou autonomamente a partir do pensamento de gerações precedentes e percorreu uma série própria e autônoma de desenvolvimento no cérebro dessas gerações que se seguiram umas às outras.

    Certamente, fatos externos que pertencem a um domínio peculiar ou a outros domínios podem ter atuado, de maneira codeterminante, sobre esse desenvolvimento.

    Porém, esses fatos mesmos constituem, precisamente, segundo o pressuposto tácito, novamente, apenas frutos de um processo do pensamento e, assim, permanecemos ainda no campo do mero pensamento que, por si mesmo, digeriu os fatos mais duros, com aparente satisfação. É sobretudo essa aparência de uma história autônoma das constituições do Estado, dos sistemas jurídicos, das representações ideológicas, em cada domínio especial, que cega a maioria das pessoas.

    Nesse contexto, situa-se também a seguinte estúpida noção dos ideólogos: precisamente porque subtraimos às diferentes esferas ideológicas, que desempenham um papel na história, um desenvolvimento histórico autônomo, estaríamos subtraindo-lhes também todo e qualquer efeito histórico.

    Esse raciocínio é aqui embasado com a noção ordinária, não-dialética, de causa e efeito, concebidos enquanto polos rigidamente opostos um ao outro, o que significa o total esquecimento da interação.

    Frequentemente esses senhores esquecem, quase propositadamente, que um momento histórico, tão logo seja colocado no mundo, em dada ocasião, através de outras causas, em última instância, causas econômicas, acaba reagindo também sobre o seu redor, podendo reagir até mesmo sobre as suas próprias causas.” 7.

    E no texto Dialética da natureza, 8 Engels escreveu no cap. XII: Apontamentos Dialética e Ciência…

    História
    Em posição contrária a essa opinião, está o determinismo, que se transferiu do materialismo francês para a ciência e que procura liquidar a casualidade, desconhecendo-a. Segundo essa concepção, na Natureza impera apenas a necessidade simples e direta… Que esta semente de dente de leão tenha germinado e a outra não; o fato de que, esta noite, às quatro da madrugada, uma pulga me tenha mordido e não às três ou cinco; e justamente do lado direito do ombro e não da barriga da perna esquerda: todos esses são fatos produzidos por uma irrevogável concatenação de causa e efeito, por uma irremovível necessidade e, certamente, de uma tal maneira que a esfera gasosa da qual se originou o sistema solar estava já constituída de forma que esses fatos teriam que se verificar assim e não de outro modo. A verdade é que, com essa espécie de necessidade, não nos libertamos da concepção teológica da Natureza [...]
    “As leis eternas da Natureza transformam-se, cada vez mais, em leis históricas. O fato de que a água se apresente no estado líquido entre 0˚ e 100º C é uma lei natural eterna, mas para que seja válida é necessário haver: 1) água; 2) determinada temperatura; 3) pressão normal. Na Lua não há água, no sol existem apenas seus elementos; para esses corpos celestes a lei, portanto, não existe
    .”

    Nesse mesmo texto, em sua Introdução, Engels deixa bem claro a relação dialética entre homens e sociedade, natureza e história: 9

    “Com os homens, entramos na história. […] Os homens, pelo contrário, quanto mais se afastam do animal, em sentido restrito, tanto mais fazem eles a sua própria história com consciência, tanto mais diminuta se torna a influência de efeitos imprevistos, de forças incontroladas, sobre esta história, tanto mais exatamente corresponde o resultado histórico ao objetivo previamente fixado. Se aplicarmos, porém, esta escala à história humana, mesmo dos povos mais desenvolvidos do presente, verificamos que aqui continua a existir uma desproporção colossal entre os objetivos previamente colocados e os resultados alcançados, que os efeitos imprevistos predominam, que as forças incontroladas são, de longe, mais poderosas do que as postas planificadamente em movimento. E isto não pode ser de outra maneira enquanto a atividade histórica mais essencial dos homens — aquela que os elevou da animalidade à humanidade, que forma a base material de todas as suas restantes atividades: a produção daquilo de que necessitam para viver, isto é, hoje em dia, a produção social — estiver, por maioria de razão, submetida ao jogo recíproco de efeitos inintencionais de forças incontroladas e só realizar o objetivo querido de maneira excepcional, e de longe mais frequentemente o seu preciso contrário. Nos países industriais mais avançados, domamos as forças da Natureza e compelimo-las ao serviço dos homens; com isso, multiplicamos a produção ao infinito, de tal modo que, agora, uma criança produz mais do que anteriormente cem adultos. E qual é a consequência? Trabalho excessivo crescente e miséria crescente das massas e, a cada dez anos, uma grande crise”.

    A confusão entre o pensamento de Engels e o da social democracia posterior e o stalinismo

    A maioria dos críticos de Engels esquece um fato: durante toda a vida de Marx e Engels, houve uma batalha de ambos contra as pressões que o partido social democrata alemão sofria e as reações de sua direção, nas quais ambos identificavam tendências a recuar no programa e na teoria.

    O Anti-Dühring só foi escrito porque as ideias de Dühring haviam causado impacto na própria direção do partido. Após sua morte, e combinado com um processo objetivo de aristocratização de setores da classe operária alemã (e em outros países imperialistas) e burocratização das direções sindicais vinculadas ao partido, o que terminou por levá-los ao abandono do programa comunista, à traição na Primeira Guerra em 1914, à substituição da teoria marxista por um evolucionismo, ou seja, a ideia de que naturalmente a sociedade capitalista evoluiria para o socialismo sem necessidade de rupturas revolucionárias. Kautsky, o mais importante teórico da social democracia foi o elaborador decisivo dessa nova teoria justificativa evolucionista que dava base ao reformismo. Bernstein, que o havia antecedido em 1899 e foi combatido por Rosa Luxemburgo (e naquele momento por Kautsky) foi derrotado dentro do partido. Mas, em 1914 ele e Kautsky juntaram-se nessa visão que era o oposto de Marx e de Engels. O oposto no programa e na teoria. Era a substituição da concepção materialista da história por um materialismo vulgar e evolucionista, que mais tarde foi adotado por Stalin e a burocracia russa quando assumiram o poder na URSS.

    Um dos textos que deu sustentação a essa concepção mecanicista é o Tratado de Materialismo Histórico de Bukarin, que tem o subtítulo de Ensaio de Sociologia Popular.

    Mas como Lenin sempre afirmou contra Kautsky, e depois Trotsky em seu combate à burocracia stalinista, essas concepções eram opostas às de Marx e Engels. Nos 200 anos de Engels, é fundamental o resgate de sua contribuição ao marxismo e a importância de sua elaboração, em conjunto com Marx, da concepção materialista da história para a armação programática da militância revolucionária nesse momento histórico em que as pressões do reformismo e do pós-modernismo, que pregam que nada está determinado e nada pode ser comprovado, são utilizados a todo momento.

    Nas palavras de Trotsky, em seu texto 90 anos do Manifesto Comunista, de 1937:

    “[…] A concepção materialista da história, formulada por Marx pouco tempo antes da aparição do texto e que nele se encontra aplicada com perfeita maestria, resistiu completamente à prova dos acontecimentos e aos golpes da crítica hostil. Constitui-se, atualmente, em um dos mais preciosos instrumentos do pensamento humano. Todas as outras interpretações do processo histórico perderam todo significado científico. Podemos afirmar, com segurança, que atualmente é impossível não apenas ser um militante revolucionário, mas simplesmente um observador politicamente instruído sem assimilar a concepção materialista da História.

    Notas

    1. Refere-se à Ideologia Alemã ↩︎
    2. Carta de Engels a Marx em Londres de 28 de Maio de 1876. ↩︎
    3. Este “sistema natural de um saber, precioso por si mesmo, para o espírito, “descobriu, com toda a certeza, sem transigir quanto à profundidade da ideia, as formas fundamentais do Ser”, Desde a sua “plataforma verdadeiramente crítica”, o Sr. Dühring nos apresenta os elementos de uma filosofia real, projetada, portanto, sobre a realidade da natureza e da vida, ante a qual não se mantém um só horizonte apenas aparente, mas se desenrola ante os nossos olhos surpreendidos, em suas potentes comoções, todas as terras e os céus da natureza exterior e interior; oferece-nos, pois, um novo método especulativo e seus frutos são “resultados e observações radicalmente novos…, ideias originais criadoras de sistema… verdades comprovadas.” Nela, temos “um trabalho que encontrará a raiz de sua força na iniciativa concentrada”… supondo-se que isso queira dizer alguma coisa; uma “investigação que desce até as raízes…, uma ciência radical…, uma concepção rigorosamente científica das coisas e dos homens…, um trabalho especulativo que penetra em todos os aspectos e modalidades das coisas…, um esboço criador das hipóteses e consequências domináveis pelo pensamento…o absolutamente fundamental.” Anti Dhuring, parte II, Paz e Terra, 1979, 2ª ed., pg. 25 ↩︎
    4. In http://www.scientific-socialism.de/FundamentosCartasMarxEngelsCapa.htm ↩︎
    5. “Sem admirar ou maldizer os fatos políticos, vendo‐os essencialmente, como em qualquer outra ciência, como simples temas de observações, a física social considera, portanto, cada fenômeno sob o duplo ponto de vista elementar de sua harmonia com os fenômenos coexistentes e desencadeamento como estado anterior e posterior do desenvolvimento humano” citado por Michael Lowy in As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Munchhausen, Cortez, São Paulo, 2003, 8ªed., p.24 ↩︎
    6. Anti-Dühring, Rio, Paz e Terra, 1979, pp. 23 e 24 ↩︎
    7. https://www.marxists.org/portugues/marx/1893/07/14.htm ↩︎
    8. Extraído de https://www.marxists.org/portugues/marx/1882/dialetica/06.htm. Dialética da Natureza, Parte XII ↩︎
    9. Idem. Introdução ↩︎

    Publicado em novembro de 2020 em www.litci.org/pt